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http://m.vivamais.com.br/noticias/reportagem/vida-em-roma-antiga.phtml

12/07/2018

A vida em Roma antiga

Um retrato do cotidiano da primeira megalópole

Reinaldo José Lopes

uas repletas de pessoas, a maioria suja e malvestida. Casas minúsculas amontoam-se pelas

ladeiras. Crianças e mendigos esmolam por toda parte. Muitos pobres dormem ao relento,

em frente a comércios, mercados e fontes. Nos muros, propagandas políticas e

declarações de amor. A sujeira contrasta com modernos e belíssimos prédios de mármore,

endereço de instituições públicas. Nas regiões mais nobres da cidade, construções

majestosas e imponentes abrigam as famílias ricas e seus escravos. Dentro dos palacetes,

não raro as festas, com fartura de comida e bebida, evoluem para uma orgia.
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São Paulo, Nova Délhi, Cidade do México? Nada disso. Falamos de Roma, por volta do

século 2, a capital do império mais importante e poderoso que o mundo já conheceu. Em

seu ápice, ela era quase idêntica às metrópoles atuais (mas sem a poluição no ar, claro).

Aliás, Roma era ainda mais apinhada que os exemplos anteriores: no ano 200 alcançou 1

milhão de habitantes e sua densidade demográfica atingiu 66 mil pessoas por km2 (hoje,

a cidade mais apertada do mundo é Mumbai, na Índia, com 29 650 pessoas por km2).

Mesmo superpovoada e tumultuada, Roma nunca sofreu de baixa auto-estima. Prova

disso era o costume de começar as proclamações oficiais com a expressão latina Urbi et

Orbi, ou seja, “à cidade e ao mundo”. Era como se aquele formigueiro humano, sozinho,

tivesse tanto peso quanto todo o resto do planeta junto – o que não estava assim tão longe

da verdade. A cidade parecia uma miniatura do mundo: a primeira megalópole da História

tinha gente de todas as raças e línguas, além de ser rica e exuberante. E um bocado

bagunçada e perigosa.

Expansão inédita

Mas calma lá. Roma nem sempre foi um gigante urbano. Tudo parece ter começado de

forma modesta lá pelo século 8 a.C., quando uma ou mais aldeias foram fundadas por

tribos latinas (povo indo-europeu que falava línguas ancestrais do latim) nas colinas perto

do rio Tibre. O vilarejo que surgiu aí tornou-se agrícola e aparentemente logo começou a

manter boas relações comerciais com seus vizinhos. “Já no século 6 a.C. há sinais de

contato com os gregos e com os etruscos (povo que dominava o centro-norte da Itália)”,

diz Isabelle Pafford, professora de estudos clássicos da Universidade da Califórnia em


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Berkeley, Estados Unidos. Nobres etruscos teriam fundado uma dinastia, mas foram

expulsos. Por volta de 500 a.C., nascia a República Romana.

O filósofo Cícero discursando para o senado, na época da República Cesare Maccari

Aproveitando-se da falta de um poder hegemônico próximo e das eternas brigas que

dividiam as cidades-estado italianas, a república se organizou militarmente. Virou, nos

séculos seguintes, senhora da Itália inteira, incorporando cidades e cidadãos. Primeiro

foram a Espanha e a Sicília. Depois, a bacia do Mediterrâneo toda. No século 1 a.C., o

general Júlio César obteve a conquista da Gália, atual França. A essa altura, não havia

mais nada de republicano em Roma. Otaviano, sobrinho-neto de César, tornou-se o

primeiro imperador romano com o nome de Augusto. Até 68, o poder ficou com sua

família, que ampliou os domínios, mas se mostrou corrupta, violenta e autoritária. Depois

da morte de Nero, os imperadores passaram a ser pessoas escolhidas por mérito, e não

por parentesco.
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Coincidência ou não, a estratégia deu certo. As disputas internas enfraqueceram e, sob o

comando de Trajano, ex-general que reinou de 98 a 117, Roma alcançou o auge de seu

poderio militar e econômico. Ele liberou presos políticos, tratou com deferência o Senado,

anexou a Dácia (atual Romênia e partes de outros países do Leste Europeu) e chegou,

com seus exércitos, até Susa (no Irã de hoje). Qual o segredo de Roma? “O êxito do

império por tanto tempo deve-se a seu caráter assimilador”, afirma o historiador Pedro

Paulo Funari, professor da Universidade Estadual de Campinas e autor de A Vida

Quotidiana na Roma Antiga. “Mesmo os povos vencidos acabavam incluídos como

aliados ou romanos. Assim, as pessoas – ou as elites, ao menos – participavam do império.

Além disso, a saúde financeira dele dependia do comércio, que era favorecido pela criação

de mercados conectados por seu domínio.”

Do berço ao túmulo

Mesmo tão cosmopolita, Roma enfrentava problemas inerentes a sua época. Nascer no

império, mesmo em seu auge, não era tarefa fácil. Por volta do século 2, a taxa de

mortalidade infantil era de 400 para cada 1000 bebês (hoje, a pior taxa do mundo é a do

país africano Níger, com 150 mortes para cada grupo de 1000). Num lugar onde as

mulheres eram encaradas como propriedade de seus pais ou esposos, a que conseguisse

dar à luz três filhos vivos ganhava independência legal. O índice de abandono das crianças

recém-nascidas também era altíssimo: ultrapassava os 20% entre os séculos 1 e 3. Os

motivos para abandonar um filho variavam de algum defeito físico ao simples fato de ele

ser do sexo feminino, já que os filhos homens eram mais valorizados por manterem a

linhagem da família. “É preciso separar o que é bom do que não pode servir para nada”,
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escreveu o filósofo Sêneca, no século 1. As crianças chegavam a ser enjeitadas até por

razões políticas: conta-se (embora não haja comprovação) que, quando o imperador Nero

matou sua própria mãe, Agripina, alguém abandonou um bebê com um cartaz: “Não te

crio com medo de que mates tua mãe”.

Passado esse primeiro e duro desafio, a criança livre de nascimento e de boa família tinha

sua educação entregue a um par de escravos. O disciplinador pedagogo, geralmente um

escravo idoso e severo, não hesitava em usar o chicote. Uma escrava de origem grega

(para ensinar a língua cultural desde o berço), a maternal nutriz, amamentava o bebê. Os

escravos ensinavam meninos e meninas a ler e os educavam até a puberdade, quando só

os garotos continuavam seus estudos com literatura clássica, mitologia e retórica: o ideal

da educação não era aprender uma profissão, mas ser capaz de impressionar em debates

públicos ou disputas judiciais.

Ilustração do fórum romano Wikimedia Commons


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Entre os romanos não existia maioridade aos 18 anos – o rapaz só era considerado

emancipado se seu pai morresse. A rigor, todos os bens de um romano com genitor vivo

podiam ser administrados por seu pai, segundo a lei, mesmo que ele se casasse. O

casamento, por sua vez, não tinha nada de romântico: costumava ser um acordo entre

famílias. Os rapazes uniam-se por volta dos 20 anos e as meninas, aos 14, embora não

fosse incomum elas se casarem aos 12. Os homens tinham certa preferência por noivas

virgens. Se isso ocorresse, na noite de núpcias, ele se limitava a fazer sexo anal com ela,

para não apavorá-la.

Só os libertinos eram dados a luxúrias como fazer amor em pleno dia (o costume era

esperar a noite cair) ou com a mulher de seios de fora (elas quase nunca se despiam

completamente). Mesmo porque fazer sexo só pelo prazer não era coisa que os homens

faziam com suas esposas – o objetivo da relação sexual no casamento era procriar. Livrar-

se do cônjuge, por outro lado, era simples: bastava um dos dois querer. Havia maridos

que nem sabiam que estavam divorciados: suas esposas simplesmente voltavam para a

casa dos pais e não avisavam. Assim como a taxa de separações, o índice de amantes era

elevadíssimo.

A expectativa de vida durante o Império Romano era muito baixa: girava em torno dos

30 anos. As péssimas condições de higiene contribuíam para a transmissão de doenças, e

mortes por enfermidades ou ferimentos hoje considerados simples eram um bocado

comuns. A medicina era tão precária que, nos primeiros anos do império, os chefes de

família acreditavam deter todo o conhecimento necessário para curar seus parentes

usando ervas medicinais. E, diferentemente dos gregos, que valorizavam os médicos, para
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os romanos a profissão era considerada inferior – e relegada a escravos, libertos e

estrangeiros.

Bacanais dos bacanas

Como várias das metrópoles atuais, a capital do Império Romano era cheia de contrastes.

Os aristocratas viviam em versões luxuosas da domus, a tradicional casa da nobreza

romana, que possuía água corrente e piscinas aquecidas. Os vários cômodos da residência,

como salas de jantar e escritórios, ficavam em torno de um pátio central, o atrium. Era

nos escritórios que o rico romano antenado estudava os filósofos da moda, como Epicteto

ou Epicuro. Um hábito difundido entre os aristocratas era o de promover enormes festas

em suas casas – uma forma de medir o prestígio de um nobre. Nelas, comia-se e bebia-se

muito: o costume era servir cerca de sete pratos, que incluíam iguarias exóticas como

língua de passarinho. Os banquetes costumavam ter motivos religiosos. Para os romanos

– cuja religião era uma mistura de mitos gregos, etruscos e latinos, além de crenças que

assimilavam dos povos conquistados –, era normal essas festas terminarem em orgias, já

que deuses como Baco, do vinho, simbolizavam desregramento.


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Baco em afresco de Pompeia Wikimedia Commons

Do lado de fora das mansões, o sossego era quebrado por bandos de jovens conhecidos

como collegia juvenum. Filhos de famílias ricas, adoravam uma arruaça e, para se divertir,

invadiam e quebravam lojas, montavam violentas torcidas organizadas e até realizavam

estupros coletivos de prostitutas. “Volta do teu jantar o mais cedo possível, pois um grupo

muito excitado de jovens das melhores famílias saqueia a cidade”, diz o personagem de

um texto da época.

Por outro lado, a grande massa de pobres da cidade – desempregados, pequenos

comerciantes e imigrantes – vivia em apertadas insulae (“ilhas” em latim), prédios de

apartamentos com até nove andares feitos de materiais frágeis como madeira e tijolos

secos ao sol. O térreo normalmente era ocupado por quitandas ou outras lojas. “As

diferenças sociais em Roma não foram maiores que em outras sociedades. Mas havia

políticas públicas que visavam os mais pobres. Milhares deles recebiam trigo a preços

subsidiados e existia um ministério voltado ao abastecimento da população”, afirma o

professor Funari.

Nos bairros populares do monte Aventino, lixo e dejetos, feitos em penicos, eram

despejados na rua, da janela. Quem preferisse poderia usar uma latrina pública, onde as

pessoas ficavam sentadas, com a túnica arriada, à vista de todos. No fim, a chuva

carregava tudo para a cloaca máxima, sofisticado sistema de esgotos subterrâneos que

usava a água que saía dos banhos e fontes públicas para carregar os detritos até o rio

Tibre. No miserável bairro da Suburra, operários ou desocupados bebiam em tavernas um

vinho intragável, quase um vinagre, dissolvido em água. Por segurança ou por pura
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pompa, abastados só passeavam por lá (e pelo resto da cidade) aboletados em liteiras e

precedidos por um séquito de escravos. Como não havia polícia, eles também faziam as

vezes de guarda pessoal.

Os prazeres da vida

Roma era uma cidade insalubre. Mas os romanos se esforçavam para manter a própria

higiene. A prática dos banhos era amplamente difundida, e tanto ricos como pobres

freqüentavam as termas. Nelas, havia piscinas de água fria, banheiras de água quente,

salas com vapor e ambientes para prática de ginástica – homens e mulheres usavam

espaços diferentes. Nos imensos complexos, relaxava-se, faziam-se negócios e discutiam-

se política e filosofia. “Nada é mais doce que o gongo, sinalizando a abertura dos banhos”,

dizia o senador e pensador Cícero no século 1 a.C.

A nobreza e a grande massa popular também se misturavam nas famosas corridas de bigas

do Circo Máximo ou nas populares lutas de gladiadores, que se enfrentavam na arena

(“areia”, em latim, por causa do sedimento que recobria o cenário). O principal palco

dessas lutas, o Coliseu, foi concluído pelo imperador Tito no ano 80 e possuía uma

organização de fazer inveja aos atuais estádios de futebol brasileiros: tinha um sistema de

coberturas retráteis contra a chuva e o sol excessivo e os vomitoria, saídas que davam

acesso direto aos assentos ou ao exterior e permitiam esvaziar o local em minutos, sem

tumulto.
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A decadência de Roma em escultura contemporânea de areia Wikimedia Commons

Os jogos eram patrocinados pelos imperadores ou por outros membros endinheirados da

nobreza. A entrada era paga, mas os preços, módicos. “Os espetáculos podiam ter um viés

político para angariar votos, mas eram muito mais que isso”, diz a historiadora Renata

Senna Garraffoni, da Universidade Federal do Paraná e autora de Gladiadores na Roma

Antiga. “Eram lugares de encontro entre as pessoas comuns e expressavam a identidade

do povo romano, seus valores culturais, como a relação com os deuses, com a vida e a

morte, suas ideias de virtude, de guerra, de combate.”

As brigas, porém, não eram tão sangrentas assim. Como os gladiadores eram profissionais

valiosos, os derrotados eram poupados com freqüência da morte. “Muitos viveram vários

anos e até se aposentaram, tornando-se instrutores de jovens gladiadores”, diz Renata.


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Diversos deles viravam celebridades, objetos de desejo das damas mais assanhadas da

nobreza. Declarações de amor eram feitas a eles nas paredes romanas. Os muros, por

sinal, recebiam outros tipos de inscrição: propaganda política, anúncios de comércio e

simples provocações entre desafetos. Sutileza não era o forte romano. Um dos grafites,

por exemplo, traz: “Marítimo pratica o cunilíngua por quatro asses [dinheiro da época],

mas só aceita virgens: batamos, então, em outra porta”.

Em Roma, era comum homens trocarem beijo na boca como demonstração de amizade.

O ócio era praticado pelos ricos durante a tarde inteira: eles só liam, escreviam,

conversavam. Viver de renda era mais glamoroso que trabalhar. A propina era praticada

em todas as instâncias e o enriquecimento de políticos, absolutamente normal (ainda que

muitos o condenassem). Há quem critique Roma por seu imperialismo ou por manter uma

economia sustentada pela mão-de-obra escrava. O que ninguém pode contestar é que a

civilização é o berço das nações europeias e diversos outros países colonizados por elas,

inclusive o nosso. E que foi com Roma que aprendemos, bem ou mal, a ser como somos.

Linha do Tempo: vida e morte

Como o Império Romano nasceu, cresceu e foi derrotado

753 a.C.

Segundo a tradição romana, a cidade foi fundada pelos gêmeos Rômulo e Remo em 753

a.C. A data, porém, coincide com os vestígios arqueológicos de um vilarejo criado por

pastores e lavradores latinos.


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509 a.C.

Até então uma monarquia, os latinos de Roma a tornam uma república. Em 202 a.C.,

domina a cidade africana de Cartago e suas possessões na Espanha e na Sicília, além de

diversos reinos gregos.

58-44 a.C.

Júlio César conquista a Gália e é declarado ditador perpétuo pelo Senado, mas é morto.

Após uma guerra civil, Otaviano vira imperador. Entre 27 a.C. e 14 d.C., ele consolida os

domínios no Mediterrâneo.

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Com Trajano, o império alcança sua extensão máxima: 6,5 milhões de km2, do norte da

Inglaterra ao Egito e partes do atual Iraque. O auge dura até o fim do século 3, quando

revoltas militares e invasões de povos (chamados bárbaros) começam a corroê-lo.

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Constantino confere liberdade religiosa ao império. Cada vez mais próximo da Igreja

cristã (foi batizado antes de morrer), lança as bases para transformar o cristianismo em

religião oficial. Ele funda a nova capital, Constantinopla.

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Ao morrer, o imperador Teodósio divide os domínios de Roma em Império do Ocidente

(cuja primeira capital era Milão) e Império do Oriente (com capital em Constantinopla),

governados por seus filhos Arcádio e Honório, respectivamente.

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Rômulo Augústulo, último imperador do Ocidente, é deposto por Odoacro, chefe dos

hérulos, povo de origem germânica, um dos vários que invadiram Roma. É o fim do

controle romano na Europa Ocidental. O Império do Oriente cai apenas em 1453.

Tipos romanos

Quem eram os personagens que circulavam pela efervescente capital do império

Senador
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Só nobres tinham os melhores cargos no funcionalismo público. E ser membro do Senado

(que chegou a ter 1000 homens) era a mais alta posição. Os senadores eram consultores

do imperador e governavam as principais províncias.

Escravo

Provinha de várias frentes: povos vencidos nas guerras de expansão, vítimas de tráfico

nas fronteiras, filhos de escravos e crianças abandonadas ou pobres vendidas por seus

pais. Mas Roma permitia que seus escravos comprassem a própria liberdade.

Gladiador

Os homens que lutavam entre si ou com animais eram estrangeiros capturados em guerras,

criminosos ou livres em situação desesperadora. Ser gladiador era uma forma de buscar

dinheiro e glória. Há indícios de que eles eram um tanto gorduchos.

Matrona

As mulheres ricas tinham liberdade para visitar as amigas e podiam, com a ajuda de

tutores homens, administrar seus próprios bens e até processar desafetos. As viúvas de

classe alta, em especial, conseguiam escolher a dedo seus amantes.


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Soldado

Ser soldado, na época da República, era restrito aos homens que possuíssem terras. Mas,

no império, as imbatíveis legiões aceitavam qualquer romano. Embora a vida fosse brutal,

para muitos era uma oportunidade de sair da pobreza.

Comerciante

Os padeiros, açougueiros, tintureiros e taberneiros, entre vários outros, geralmente

pertenciam às camadas mais pobres ou eram escravos libertos – trabalhar diretamente

com o comércio era considerado indigno dos ricos.

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