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Compor o compositor: as condições de possibilidade para "ser livre".

Introdução: dos termos propostos pela Via Latina enquadra este


texto uma articulação entre o registo biográfico, visto como processo
de auto-construção face ao Outro, em relação a pressupostos
culturais, temporais, históricos e espaciais, vividos ou herdados. Vivo
num certo espaço -tempo e estou inserido numa certa cultura e num
país no qual se vive de forma problemática a inserção geográfica e
política na Europa, vista como região do mundo e como herança
cultural: problemática porque se traduz numa dupla relação-
diferença com ela, descrita por Eduardo Lourenço através da
coexistência dos sentimentos de ressentimento e fascínio, marca
reiterada em diversos momentos históricos, das componentes
essenciais da questão identitária perene da cultura portuguesa.

Porque é que terei as condições de possibilidade para "ser livre" enquanto


compositor? Em boa parte porque sou periférico.

Ponto prévio sobre o alcance do olhar: devo tentar explicar a minha


perspectiva sobre os diferentes olhares. O que é que vê um
periférico? Vê o que se passa no seu país e aquilo que lhe é dado
conhecer pelos dispositivos de divulgação dos países centrais;
desse modo conhece relativamente bem a música de hoje feita em
França, na Alemanha, na Inglaterra e, em menor grau, na Itália e nos
Estados Unidos. Mas não conhece a música feita nas outras
periferias, em Espanha, na Grécia, na Irlanda, na Bélgica, na
Dinamarca, na Suiça, na Bulgária, na Roménia, na Rússia, etc., a
não ser a dos compositores destas periferias que emigraram para o
centro. O que é que vê e conhece um compositor dos países
centrais? Vê acima de tudo o se passa no seu país, ignorando não
apenas a música de todos os periféricos como igualmente a música
dos outros países centrais, excepto a daqueles que fazem parte do
'subcampo contemporâneo', a parte da produção musical que tem o
aval de instituições europeias como o Réseau Varèse e outras
similares de menor peso. Nesse sentido cada compositor de um país
periférico conhecerá mais mundo do que os dos países centrais,
ofuscados que estão, como afirma Milan Kundera, pelo "brilho da
sua própria cultura"

A resposta, aparentemente paradoxal, que reclamo para a minha pergunta,


passa por uma análise das formas como é vista a figura do compositor nos
países centrais. Estes países dotados de dispositivos de poder, tanto de
condicionamento como de distribuição ou irradiação - cada vez mais
reduzida, em verdade - que são apenas operativos se associados a uma
determinada ideologia que define o compositor como "autónomo" e "heróico".
Esta ideologia tem uma história, espaços de enunciação originários,
instituições que simultaneamente a regulam e são reguladas por ela, em
intrínseca interligação.
Trata-se de um imaginário sem o qual todo o edifício institucional associado
ao "mundo da arte" musical colocaria em questão a sua própria razão de
ser. Nesse sentido é indispensável para a manutenção do actual estado de
coisas.

Estes conceitos reguladores, estes imaginários partilhados não se


circunscrevem aos países centrais da Europa, ou de forma mais lata, ao
Ocidente. O seu alcance é mais vasto e abrange as diversas tribos locais
locais, periféricas e semi periféricas, sem as quais não haveria mercados
importadores para os produtos culturais provenientes dos países dominantes.
É por isso crucial para as ideias reguladores do campo musical e do
subcampo contemporâneo sejam capazes de ser aceites como verdadeiras
para além dos países centrais.

Esta tripla associação entre conceitos reguladores, imaginários partilhados e


dispositivos de poder económico-culturais que gerem a dominação
geocultural no campo musical é crucial para qualquer das três componentes
principais do complexo edifício ideológico que lhes serve de base de
sustentação e de sobrevivência. Como condição fundamental desta crença
está a ideia universalista: uma ideia que toma imediatamente como válido em
qualquer lugar do mundo aquilo que origináriamente é apenas local.

Neste quadro o compositor local, periférico, inexistente face às estruturas de


selecção e exclusão do subcampo central e transnacional, muitas vezes
ignorado ou marginalizado nos seus próprios países, encontra aí, ao mesmo
tempo, o seu limite e a sua possibilidade de libertação criativa. Como se
processa este fenómeno, aparentemente contraditório?

A sua possibilidade de autonomia criativa face às correntes dominantes é-lhe


dada, de forma paradoxal, pelos limites impostos pela "inexistência" global
mas reclama uma segunda condição.

Essa segunda condição - a libertação possível mas não garantida à partida


das estéticas dominantes - só se pode realizar através da autoconsciência
face ao funcionamento complexo das componentes ideológicas, das ideias
aceites e correntes em geral, do seu imaginário difundido como verdadeiro.
Sem essa assunção consciente de não-pertença, nem do ponto de vista da
realidade, nem do ponto de vista do horizonte de expectativas, verifica-se um
fenómeno particular de falsa-consciência. Neste caso o compositor periférico
trabalha e produz comandado pelos valores e crenças que recebe e assume
como seus, sem com isso alterar substancialmente a sua condição de
periférico. É a imaginação-do-centro que alimenta o equívoco de pertença a
um mundo do qual só existe a imaginação dele.

Mas, se existir essa consciência de pertença a um lugar de enunciação


específico - exterior aos valores dominantes nos centros - o compositor
periférico liberta-se das várias formas de pressão ou dominação semi-
invisíveis. Primeiro, liberta-se da ideologia dos "mais avançados", da pressão
das ideias do "estado da linguagem musical"; segundo, da primazia das
correntes aí dominantes, em cada momento histórico - que, aliás, neste
momento particular, são diversas, mesmo nos diferentes países centrais - e
terceiro, pode estabelecer para si próprio um outro conjunto de valores em
que acredita, criar laços de afecto com o público do seu país com o qual
interage - dando e recebendo - e com o qual partilha a condição da periferia,
e desse modo, criar uma individualidade distintiva, que não poderia alcançar
fora desse lugar de enunciação.

Não é por acaso que a grande parte dos compositores emigrantes, depois de
1950 até hoje, assumiram como seus, os valores dominantes dos países
onde foram acolhidos; de outro modo o conflito estético resultante teria
provocado a dificuldade de, simplesmente, trabalhar. Face às actuais
diferenças entre os países centrais, que só a ideologia universalista torna
invisíveis - uma vantagem do periférico: ver o que os outros não conseguem
ver - não é indiferente emigrar para a França, ou a Alemanha, ou a Inglaterra,
embora este aspecto não tenha sido até hoje objecto de grande reflexão
publicada. De certo modo ouve-se nas obras dos compositores emigrantes
(da segunda metade do século XX até hoje) a marca indelével do contexto
cultural escolhido, da narrativa aí predominante, a par com aquilo que sobra
para constituir uma assinatura de autor. Muitas obras foram compostas nas
quais é possivel à simpels audição detectar essas marcas. Algumas dessas
obras são boas composições. O que está em jogo não é da ordem do
julgamento de valor mas sim da marca geocultural. Na verdade cada lugar,
cada contexto, cada sistema de ensino, cada estrutura institucional, contribui
fortemente para "compor o compositor".

Considerando as principais correntes que existem neste momento na vida


musical do subcampo contemporâneo e também alguns compositores (por
exemplo, entre muitos outros, como Sofia Gubaidulina, mas que, de outro
modo, tem muito trabalho e é bastante tocada em instituições mais
tradicionais e menos contralizadas) que, de algum modo, não marcam
presença regular nele, especialmente na sua estrutura institucionalizada que
é o Réseau Varèse, rede que dispõe de apoios de fundos da UE e que
corporiza a continuidade da dominação longínqua, herdeira do eixo
Darmstadt - IRCAM, irei procurar descrever aquilo que, a meu ver, marca a
minha diferença enquanto periférico e enquanto não alinhado pelos valores
centrais dominantes.
Em primeiro lugar não partilho a ideia de unidade, coerência, lógica,
construção, conjunto de conceitos base das tendências pós-seriais dos vários
matizes. Esta corrente caracteriza-se igualmente por manter fidelidade ao
conjunto de interditos cuja origem remonta a Schoenberg. Os interditos são
em particular acordes perfeitos, oitavas e ritmo regular ou pulsado, todos
vistos como sobrevivências anacrónicas e reaccionárias do sistema tonal,
declarado extinto pela visão linear da evolução da linguagem musical de raiz
hegeliana. Este conjunto complexo de princípios base e interditos
práticos (mais ligados a uma filosofia da hstória da música do que aos
procedimentos eles-próprios, (cf. o artigo Racionalidade(s) e Composição,
1999) é seguido pelos favoritos do Réseau Varèse que prolongam e
prosseguem esta orientação. Há certamente algumas peças compostas por
este grupo compositores que considero boas peças, apesar de não partilhar
os seus princípios, nem os seus pressupostos.

O facto de não tomar essas ideias como válidas hoje, permite-me não apenas
não considerar nenhum dos seus interditos, tal como não partilhar os
conceitos organicistas derivados de Goethe - unidade, coerência, lógica - e,
em consequência, abrir como zona de livre invenção e de imaginação criativa
a construção de "regras" para cada obra, sem por isso sentir como
necessário o estabelecimento de qualquer conjunto de principios teóricos
base. Nesse sentido vejo o acto de compor da forma que Stanley Cavell
descreveu como característica da arte moderna: "O artista deve criar a sua
obra num modo de radical auto-reflexão". (Hammer: 2002: 98)

Conheço aqueles princípios nas suas várias encarnações históricas e


realizações artísticas e estou longe de demonizar essa corrente como um
todo. Sou, no entanto, crítico feroz da primazia que algumas instituições e
dispositivos culturais atribuem (ou atribuíram) a essa corrente, mesmo antes
de ouvirem as obras, quaisquer que sejam. Trata-se de incluir à priori com
base em preconceitos estabelecidos e na hegemonia aceite como natural.

A recusa dos princípios base assenta na rejeição de uma possível


enunciação sua, apriorística. Isto não significa que eles não regressem,
eventualmente, noutra fase posterior. É durante a própria composição das
peças que se estabelecem as "regras" que lhes são próprias, que se
desvendam gradualmente como necessidade - de acordo com os meus
critérios específicos de coerência e lógica discursiva que me parece que
aquela obra, em particular, reclama - e nunca por serem entidades prévias,
absolutas, universais e indiscutíveis. Cada momento histórico, cada
corporização de um estilo de uma época ou de um compositor - normalmente
estabelecida posteriormente, a partir da visão de um conjunto de obras do
passado - mostra-nos que, mesmo no caso da longue durée que a tonalidade
constituiu, os critérios de avaliação daqueles valores foram, eles próprios,
mudando ao longo do tempo. Assim sendo - o que me parece consensual -
seria muito estranho que o nosso tempo tivesse levado a cabo uma inversão
dessa ordem das coisas, criando formas indisputáveis daqueles conceitos
reguladores.

Aqui reside a contingência essencial da arte: cada obra explica o seu próprio
ser ou não explica.

Por outro lado, na sequência do trabalho dos minimalistas americanos, um


vasto número de compositores, com destaque para os de língua anglo-
americana, passaram a utilizar sobretudo a partir de meados de 1970, não
apenas ritmos pulsados regulares, mas gradualmente um conjunto de
princípios harmónicos próximos da tonalidade, muitas vezes associados ao
uso da orquestração e da instrumentação totalmente de acordo com o que
define academicamente "uma boa orquestração" à maneira do final do século
XIX ou da primeira metade do século XX, em certos caso expandidos com
harmónicos superiores em maior ou menor grau derivados de análises e dos
procedimentos espectrais, característicos da corrente francesa do mesmo
nome, para eventualmente enriquecer a harmonia, no fundo de base tonal e
tornar a sonoridade mais "moderna". Também neste caso se verifica
existirem uma série de ideias herdadas, de lugares-comuns aceites mas
muito aquém de poderem ser indiscutíveis. São formulações provisórias de
que cada um possui uma visão particular ou individual. Não é certamente o
maior ou menor número de aderentes que dá a uma corrente a menor
possibilidade de reclamar o estatuto de "verdade". Trata-se apenas de
substituir uma série de convicções por outra série de convicções e traduz-se
numa determinada prática ou num conjunto de práticas.

De uma forma geral não sigo igualmente estes procedimentos. Não pretendo,
à partida, que as minhas peças tenham uma sonoridade tradicional, um
discurso leve, nem as formas harmónicas que Richard Taruskin designa por
New Age. Mas, do mesmo modo, nada me garante que, do ponto de vista da
recepção, elas possam eventualmente recebidas como tal. Entre as
intenções do compositor e a forma como o seu trabalho é recebido, há a
barreira que sempre existe entre o fazer e o percepcionar - entre a poiesis e a
esthesis - que está para além daquilo que um compositor pode controlar. Faz
o seu trabalho, lança-o no mundo, mas depois as possibilidades de recepção
e de interpretação são infinitas, sendo isto válido para todas as obras e todos
os compositores.

Julgo no entanto que é relativamente evidente que há sempre, na minha


música recente, uma componente de sujidade face a estes critérios estéticos.
No mesmo sentido penso que um acorde perfeito (ou imperfeito) não precisa
de uma 'aura' que lhe dê uma aparência de modernidade. Moderno poderá
ser tanto o discurso que encontra o atonal como o tonal, o belo como o "feio".
O feio - de acordo com os critérios do 'belo musical' do anterior paradigma -
tem uma enorme importância. Há quem lhe chame sublime usando a famosa
diferença kantiana. Devo dizer que é das coisas mais difíceis de tentar
explicar a outros e de defender perante críticas, tal como do mesmo modo,
fazê-lo inversamente a propósito de uma secção tonal, lírica, espressiva, etc,
face a modernistas para os quais o simples aparecimento de tais atributos é
imediata razão de rejeição. Em última análise cada um tem de compor
sempre de acordo com as suas convicções e não com as de outros. Se
vacilar nisto, o compositor estará a um passo de uma espécie de perdição.

Prosseguindo, conforme as obras - cada uma é um artefacto artístico diverso


de todos os outros - pode haver maior ou menor importância dessas
componentes que referi, mas julgo que é no seu disurso articulado que se
encontra a produção de sentido. Cada compositor possui as suas
idiossincrasias, um conjunto de idiosincrasias, que são fulcrais para lhe dar a
possibilidade de assinar.

A melodia - a mais misteriosa de todas as 'ciências humanas' como disse


George Steiner - é justamente aquele parâmetro musical, digamos deste
modo, no qual aquilo que é mais próprio de cada compositor se manifesta,
mesmo quando na superfície não há melodia. Há sempre melodia, uma linha
que conduz, por maior que seja a massa sonora. Por isso, porque é que
depois desta nota deve ser esta e não aquela? Porque é que depois deste
bloco sonoro deve ser esta linha ínfima e frágil e não aquela? Estas
perguntas remetem para a questão da forma e, também neste aspecto, não
há modelos pre-definidos. Existe o exercício constante de auto-reflexão e
auto-avaliação sem recorrer a modelos numéricos ou a sucessões ou
multiplicação dos tradicionais grupos de quatro compassos. Se houvesse
modelos pré-definidos e utlizáveis compor seria fácil. Não é fácil. A liberdade
é a mais dura das disciplinas.

António Pinho Vargas, Publicado na Revista Via Latina, Coimbra, 2015

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