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ANTOLOGIA TEMÁTICA DA POESIA BRASILEIRA

Literatura Brasileira II

Instituto de Letras/UFF
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TEMA I: A POESIA DA POESIA

O POEMA DO FRADE (fragmento)


Álvares de Azevedo

XXIII

Frouxo o verso talvez, pálida a rima


Por estes meus delírios cambeteia,
Porém odeio o pó que deixa a lima
E o tedioso emendar que gela a veia!
Quanto a mim é o fogo quem anima
De uma estância o calor: quando formei-a,
Se a estatua não saiu como pretendo:
Quebro-a – mas nunca seu metal emendo.

XXIV

Meu herói é um moço preguiçoso


Que viveu e bebia porventura
Como vós, meu leitor... se era formoso
Ao certo não o sei. Em mesa impura
Esgotara com lábio fervoroso
Como vós e como eu a taça escura...
Era pálido sim... mas não d’estudo:
No mais... era um devasso e disse tudo!

XXV

Dizer que era poeta – é cousa velha:


No século da luz assim é todo
O que herói de novelas assemelha.
Vemos agora a poesia a rodo!
Nem há nos botequins face vermelha,
Amarelo caixeiro, alma de lodo,
Nem Bocage d’esquina, vate imundo,
Que não se creia um Dante vagabundo!

XXVI

O meu não era assim: não se imprimia,


Nem versos no teatro declamava!
Só quando o fogo do licor corria
Da fronte no palor que avermelhava,
Com as convulsas mãos a taça enchia.
Então a inspiração lhe afervorava
E do vinho no eflúvio e nos ressábios
Vinha o fogo do gênio à flor dos lábios!

(1862)
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A UM POETA
Olavo Bilac

Longe do estéril turbilhão da rua,


Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego


Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício


Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,


Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade. (Tarde, 1919)

A CABEÇA DE CORVO
Alphonsus de Guimaraens

Na mesa, quando em meio à noite lenta


Escrevo antes que o sono me adormeça,
Tenho o negro tinteiro que a cabeça
De um corvo representa.

A contemplá-lo mudamente fico


E numa dor atroz mais me concentro:
E entreabrindo-lhe o grande e fino bico,
Meto-lhe a pena pela goela adentro.

E solitariamente, pouco a pouco,


De bojo tiro a pena, rasa em tinta...
E a minha mão, que treme toda, pinta
Versos próprios de um louco.

E o aberto olhar vidrado da funesta


Ave que representa o meu tinteiro,
Vai-me seguindo a mão, que corre lesta,
Toda a tremer pelo papel inteiro.

Dizem-me todos que atirar eu devo


Trevas em fora este agoirento corvo,
Pois dele sangra o desespero torvo
Destes versos que escrevo. (Kyriale, 1902)
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POÉTICA

Manuel Bandeira

Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
[manifestações de apreço ao sr. diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho
[vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com
[cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
– Não quero saber do lirismo que não é libertação. (Libertinagem, 1930)

MOTIVO
Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe


E a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,


Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
No vento.

Se desmorono ou se edifico,
Se permaneço ou me desfaço
– Não sei, não sei. Não sei se fico
Ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.


Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– Mais nada. (Viagem, 1939)
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TEMA II: IMAGENS DA NATUREZA

LEITO DE FOLHAS VERDES


Gonçalves Dias

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo


À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.

Eu sob a copa da mangueira altiva


Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.

Do tamarindo a flor abriu-se há pouco,


Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.

Brilha a lua no céu, brilham estrelas,


Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!

A flor que desabrocha ao romper d’alva


Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.

Sejam vales ou montes, lago ou terra,


Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

Meus olhos outros olhos nunca viram,


Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazóia na cinta me apertaram.

Do tamarindo a flor jaz entreaberta,


Já solta o bogari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!
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Não me escutas, Jatir; nem tardo acodes


À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas! ( Últimos cantos, 1851)

CÁRCERE DAS ALMAS


Cruz e Sousa

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,


Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza


Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas


Nas prisões colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,


Que chaveiro do Céu possui as chaves
Para abrir-vos as portas do Mistério?! (Últimos sonetos, 1905)

O RIO E A SERPENTE

Jorge de Lima
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O rio e a serpente são misteriosos, meu filho.


Do cimo desta montanha
dois círculos do Eterno estavam.
Um círculo era a serpente,
o outro círculo era o rio:
ambos se despenharam
procurando ambos o homem,
um para o purificar,
o outro para o envenenar.
Ambos foram encontrar
o homem simples lá embaixo.
Um lhe ofereceu o Peixe para o alimentar,
o outro o fruto para o intoxicar.
O rio e a serpente são misteriosos, meu filho.
Das nuvens se despenharam,
ambos se arrastam na terra
como dois caminhos do homem
para ele se guiar.
O rio e a serpente são misteriosos, meu filho:
vêm do começo das coisas,
correm para o fim de tudo
e às vezes na água do rio
a negra serpente está.
As coisas eram simples, meu filho:
o rio que te pode lavar
também pode te afogar,
pois com a aparência do rio
é a serpente que está.
O rio e a serpente são misteriosos, meu filho:
eram dois círculos no início,
vêm desatados de lá. (A túnica inconsútil, 1938)

IMAGENS DO NORDESTE

Joaquim Cardozo

Na água triste da camboa;


Sobre o capim orvalhado Em junhos do meu Nordeste,
Por baixo das mangabeiras Fantasma que me povoa.
Há rastros de luz macia:
Por aqui passaram luas, Asa e flor do azul profundo,
Pousaram aves bravias. Primazia do mar alto,
Vela branca predileta;
Idílio de amor perdido, Na transparência do dia
Encanto de moça nua És a flâmula discreta.
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Num sopro de maresia
És a lâmina ligeira Viveiros se derramaram
Cortando a lados cordeiros, Em noites de pescaria.
Ferindo os ramos dourados:
– Chama intrépida e minguante Camarupim, Mamanguape,
Nos ares maravilhados. Persinunga, Pirapama,
Serinhaém, Jaboatão;
E enquanto o sol vai crescendo Cruzando barras de rios
O vento recolhe as nuvens Me perdi na solidão.
E o vento desfaz a lã;
Vela branca desvairada, Me afastei sobre a planície
Mariposa da manhã. Das várzeas crepusculares;
Vi nuvens em torvelinho,
Velho calor de dezembro, Estrelas e encruzilhadas
Chuva das águas primeiras Nos rumos do meu caminho.
Feliz batendo nas telhas;
Verão de frutas maduras, ..............................................
Verão de mangas vermelhas.

Salinas de Santo Amaro,


A minha casa amarela Ondas de terra salgada,
Tinha seis janelas verdes Revoltas na escuridão,
Do lado do sol nascente; De silêncio e de naufrágio
Janelas sobre a esperança, Cobrindo a tantos no chão.
Paisagem, profundamente.
Terra crescida, plantada
Abri as leves comportas De muita recordação.
E as águas duras fundiram;
(Poemas, 1947)

TEMA III: IMAGENS URBANAS

ARQUÉTIPO

Fagundes Varela

Ele era belo; na espaçosa fronte


O dedo do Senhor gravado havia
O sigilo do gênio; em seu caminho
O hino da manhã soava ainda,
E os pássaros da selva gorjeando
Saudavam-lhe a passagem neste mundo.
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Sim, era uma criança, e no entanto


Friez de morte lhe coava n’alma!
O seu riso era triste como o inverno,
E dos olhos cansados, nem um raio
Nem um clarão, nem pálido lampejo
Da mocidade o fogo revelavam!

Era-lhe a vida uma comédia insípida,


Estúpida e sem graça, – ele a passava
Com a fria indiferença do marujo
Que fuma o seu cachimbo reclinado
Na proa do navio olhando as vagas,
– Vivia por viver... porque vivia.

Em nada acreditava; há muito tempo


Que a idéia de Deus soprara d’alma
Como das botas a poeira incômoda.
O Evangelho era um livro de anedotas,
Beethoven torturava-lhe os ouvidos,
A Poesia provocava o sono.

Muita donzela suspirou por ele,


Muita beleza lhe dormiu nos braços,
Mas frio como o gênio da descrença,
Após um’hora de gozo maldito,
Saciado as deixou, como o conviva
A mesa do festim – farto e cansado. –

Era mais caprichoso, – mais bizarro


Do que um filho de Álbion, mais volúvel
Que um profundo político; uma tarde
Após haver jantado, recordou-se
Que ainda era solteiro; pelo Papa!
– É preciso tentar, disse consigo.

Quatro dias depois tinha casado.


Escolhera uma noiva descuidoso,
Como um brinco chinês – um livro in-fólio,
Ao altar conduziu-a, distraído,
E as juras divinais do casamento
Repetiu bocejando ao sacerdote.

Como tudo na vida, o matrimônio


Bem cedo o aborreceu; após três meses
Disse adeus à mulher que pranteava,
E acendendo um cigarro, a passos lentos
Dirigiu-se ao teatro onde assistiu
Um drama de Feuillet, – quase dormindo. –
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Por fim de contas, uma noite bela,


Depois de ter ceado entre dous padres,
Em casa de morena Cidalisa,
Pegou numa pistola e entre as fumaças
De saboroso – Havana – à eternidade
Foi ver se divertia-se um momento. (Noturnas, 1861)

NEW-YORK
Olavo Bilac

Resplandeces e ris, ardes e tumultuas;


Na escalada do céu, galgando em fúria o espaço,
Sobem do teu tear de praças e de ruas
Atlas de ferro, Anteus de pedra e Brontes de aço.

Gloriosa! Prometeu revive em teu regaço,


Delira no teu gênio, enche as artérias tuas,
E combure-te a entranha arfante de cansaço,
Na incessante criação de assombros em que estuas.

Mas, com as tuas Babéis, debalde o céu recortas,


E pesas sobre o mar, quando o teu vulto assoma,
Como a recordação da Tebas de cem portas:

Falta-te o Tempo, – o vago, o religioso aroma


Que se respira no ar de Lutécia e de Roma,
Sempre moço perfume ancião de idades mortas... (Tarde, 1919)

ODE AO BURGUÊS
Mario de Andrade
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
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Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o èxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
"–Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
–Um colar... –Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burgês!...

(Paulicéia desvairada, 1922)

A FLOR E A NÁUSEA

Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas,


vou de branco pela rua cinzenta.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:


não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre


fundem-se no mesmo impasse.
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Em vão tento me explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que triste são as coisas consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.


Quarenta anos e nenhum problema
resolvido , sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?


Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuído em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.


Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!


Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe,


suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país ás cinco horas da tarde


e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

(A rosa do povo, 1945)


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O ENGENHEIRO
João Cabral de Melo Neto

A luz , o sol, o ar livre


envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;


o desenho, o projeto, o número;
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

(Em certas tardes nós subíamos


ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).

A água, o vento, a claridade,


de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples. (O engenheiro, 1945)

Tema IV: Um eu que se espia

FETICHISMO

Raimundo Correia

Homem, da vida as sombras inclementes


Interrogas em vão: – Que céus habita
Deus? Onde essa região de luz bendita,
Paraíso dos justos e dos crentes?...

Em vão tateiam tuas mãos trementes


As entranhas da noite erma, infinita,
Onde a dúvida atroz blasfema e grita,
E onde há só queixas e ranger de dentes...

A essa abóbada escura, em vão elevas


Os braços para o Deus sonhado, e lutas
Por abarcá-lo; é tudo em torno trevas....
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Somente o vácuo estreitas em teus braços;


E apenas, pávido, um ruído escutas,
Que é o ruído dos teus próprios passos!... (Aleluias, 1891)

MAPA
Murilo Mendes

Me colaram no tempo, me puseram


uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos,ao sul pelo medo,
a leste pelo apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e medidas me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.
Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos canjerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.
Almas desesperadas, eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
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Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
Viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em transformação.

(Poemas, 1930)

MOMENTO

Dante Milano

Esqueço-me dos anos, e dos meses,


E dos dias, das datas. Mas às vezes
Lembro-me de momentos. Rememoro
Um que me fez chorar. E ainda o choro.
Recordo-me de uma hora, céu cinzento,
A terra sacudida pelo vento,
Um terrível momento escuro e imundo
Em que me vi perdido e só no mundo,
Sob os trovões, e estremecendo às vezes
Entre relâmpagos e lividezes...
Lembranças, não antigas, mas presentes.
Lembranças, não saudades, as ausentes.
Sem novas esperanças que despontem
O dia de hoje me parece o de ontem.
Nenhuma data, em mim, nenhuma festa.
Meu amanhã é o pouco que me resta.
Eu sou o que não fui e o que quis ser.
Já fiz o que me resta por fazer,
E bem no fundo do meu ser obscuro
Lembro-me antigamente do futuro...

(Poesias, 1948)
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TEMA V: A MORTE E SEUS MISTÉRIOS

NÃO ME DEIXES!

Gonçalves Dias

Debruçada nas águas dum regato


A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava...
“Ai, não me deixes, não!

Comigo fica ou leva-me contigo


Dos mares à amplidão,
Límpido ou turvo, te amarei constante;
Mas não me deixes, não!”

E a corrente passava; novas águas


Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
“Ai, não me deixes, não!”

E das águas que fogem incessantes


À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
“Ai, não me deixes, não!”

Por fim desfalecida e a cor murchada,


Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,


Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
“Não me deixaste, não!”

(Novos cantos, 1857)


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LONGE DE TUDO

Cruz e Sousa

É livres, livres desta vã matéria,


Longe, nos claros astros peregrinos
Que havemos de encontrar os dons divinos
E a grande paz, a grande paz sidérea.

Cá nesta humana e trágica miséria,


Nestes surdos abismos assassinos
Teremos de colher de atros destinos
A flor apodrecida e deletéria.

O baixo mundo que troveja e brama


Só nos mostra a caveira e só a lama,
Ah! só a lama e movimentos lassos...

Mas as almas irmãs, almas perfeitas,


Hão de trocar, nas Regiões eleitas,
Largos, profundos, imortais abraços!

(Últimos sonetos, 1905)

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Augusto dos Anjos

Eu, filho do carbono e do amoníaco,


Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas –


Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,


E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra! (Eu, 1912)
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PROFUNDAMENTE

Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci


Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei


Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.

Onde estavam os que há pouco


Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

– Estavam todos dormindo


Estavam todos deitados
Dormindo profundamente

Quando eu tinha seis anos


Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo


Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
– Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
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(Libertinagem, 1930)

CANTARÃO OS GALOS
Cecília Meireles

Cantarão os galos, quando morrermos,


e uma brisa leve, de mãos delicadas,
tocará nas franjas, nas sedas
mortuárias.

E o sono da noite irá transpirando


sobre as claras vidraças.

E os grilos, ao longe, serrarão silêncios,


talos de cristal, frios, longos ermos,
e o enorme aroma das árvores.

Ah, que doce lua verá nossa calma


face ainda mais calma que o seu grande espelho
de prata!

Que frescura espessa em nossos cabelos,


livres como os campos pela madrugada!

Na névoa da aurora,
a última estrela
subirá pálida.

Que grande sossego, sem falas humanas,


sem o lábio dos rostos de lobo,
sem ódio, sem amor, sem nada!

Como escuros profetas perdidos,


conversarão apenas os cães, pelas várzeas.
Fortes perguntas. Vastas pausas.

Nós estaremos na morte


com aquele suave contorno
de uma concha dentro da água.

(Retrato natural, 1949)


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TEMA VI: LAÇOS DE FAMÍLIA

MINHA MÃE
Casimiro de Abreu

Oh l’amour d’une mère! – amour que nul n’oublie


V.Hugo
Da pátria formosa distante e saudoso,
Chorando e gemendo meus cantos de dor,
Eu guardo no peito a imagem querida
Do mais verdadeiro, do mais santo amor:
– Minha Mãe! –

No berço, pendente dos ramos floridos,


Em que eu pequenino feliz dormitava:
Quem é que esse berço com todo o cuidado
Cantando cantigas alegre embalava?
– Minha Mãe! –

De noite, alta noite, quando eu já dormia


Sonhando esses sonhos dos anjos dos céus,
Quem é que meus lábios dormentes roçava,
Qual anjo da guarda, qual sopro de Deus?
– Minha Mãe! –

Feliz o bom filho que pode contente


Na casa paterna de noite e de dia
Sentir as carícias do anjo de amores,
Da estrela brilhante que a vida nos guia!
– Uma Mãe! –

Por isso eu agora na terra do exílio,


Sentado sozinho co’a face na mão,
Suspiro e soluço por quem me chamava:
– “Oh filho querido do meu coração!”
– Minha Mãe! –

(As primaveras, 1859)


21

III – “PODRE MEU PAI...”

Augusto dos Anjos

Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.


Em seus lábios que os meus lábios osculam
Microorganismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.

Duras leis as que os homens e a hórrida hidra


A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!...

Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos


Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!...

Amo meu Pai na atômica desordem


Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!

(Eu, 1912)

INFÂNCIA

Carlos Drummond de Andrade

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.


Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé.
Comprida história que acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu


a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo


olhando para mim:
– Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
22

Lá longe meu pai campeava


no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história


era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

(Alguma poesia, 1930)

A ilusão do migrante

Quando vim da minha terra,


se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.
Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar,
porque tudo é conseqüência
de um certo nascer ali.

Quando vim, se é que vim


de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.

Que carregamos as coisas,


moldura da nossa vida,
rígida cerca de arame,
na mais anônima célula,
e um chão, um riso, uma voz
ressoam incessantemente
em nossas fundas paredes.

Novas coisas, sucedendo-se,


iludem a nossa fome
de primitivo alimento.
As descobertas são máscaras
do mais obscuro real,
essa ferida alastrada
na pele de nossas almas.

Quando vim da minha terra,


23
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo,
este vivente enganado,
enganoso.

(Farewell, 1996)

POEMA ENJOADINHO

Vinícius de Morais

Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa a aporrinhação:
Cocô está branco
Coco está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los.
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
24
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são! (Antologia poética, 1954)

TEMA VII: IMAGENS DO AMOR

CANÇÃO E CALENDÁRIO

Oswald de Andrade

Sol de montanha
Sol esquivo de montanha
Felicidade
Teu nome é
Maria Antonieta d´Alkmin

No fundo do poço
No cimo do monte
No poço sem fundo
Na ponte quebrada
No rego da fonte
Na ponta da lança
No monte profundo
Nevada
Entre os crimes contra mim
Maria Antonieta d´Alkmin

Felicidade forjada nas trevas


Entre os crimes contra mim
Sol de montanha
Maria Antonieta d´Alkmin
25

Não quero mais as moreninhas de Macedo


Não quero mais as namoradas
Do senhor poeta
Alberto d´Oliveira
Não quero mais
Crucificadas em meus cabelos
Quero você

Não quero mais


A inglesa Elena
Não quero mais
A irmã da Nena
Não quero mais
A bela Elena
Anabela
Ana Bolena
Quero você

Toma conta do céu


Toma conta da terra
Toma conta do mar
Toma conta de mim
Maria Antonieta d´Alkmin

E se ele vier
Defenderei
E se ela vier
Defenderei
E se eles vierem
Defenderei
E se elas vierem todas
Defenderei
Defenderei
Defenderei

Cais da minha vida


Partida sete vezes
Cais da minha vida quebrada
Nas prisões
Suada nas ruas
Modelada
Na aurora indecisa dos hospitais

Bonançosa bonança (Cântico dos cânticos para flauta e violão, 1942)

AS VITRINES

Chico Buarque
Eu te vejo sair por aí Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão Te avisei que a cidade era um vão
–Dá tua mão –Dá tua mão
–Olha pra mim –Olha pra mim
–Não faz assim –Não faz assim
–Não vai lá não –Não vai lá não

Os letreiros a te colorir Ler os letreiros aí troco


Embaraçam a minha visão Embaçam a visão marinha
Eu te vi suspirar de aflição Vi tuas fúrias e predileção
E sair da sessão, frouxa de rir Errar sisuda, sã fora dos eixos

Já te vejo brincando, gostando de ser Doces ventos, grandes beijos do jantar


Tua sombra a se multiplicar Um militar saber tuas polcas
Nos teus olhos também posso ver Bem postos meus veros antolhos
As vitrines te vendo passar Patinavas, sorvetes, Diner’s

Na galeria Na alegria
Cada clarão A cara do clã
É como um dia depois de outro dia Um doutor doido me cedia poesia
Abrindo um salão Um absalão rindo
Passas em exposição Pião, sexo, asa, espaço
Passas sem ver teu vigia És súpita virgem avessa
Catando a poesia A asteca do piano
Que entornas no chão Quão sonha no Center

( Disco Almanaque, 1981)

TEMA VIII: A PALAVRA EM COMBATE

ADEUS, MEU CANTO (fragmento)

Castro Alves

Adeus, meu canto! É a hora da partida...


O oceano do povo s´encapela.
Filho da tempestade, irmão do raio,
Lança teu grito ao vento da procela.

O inverno envolto em mantos de geada


Cresta a rosa de amor que além se erguera...
Ave de arribação, voa, anuncia
Da liberdade a santa primavera.
É preciso partir, aos horizontes
Mandar o grito errante da vedeta.
Ergue-te, ó luz – estrela para o povo,
– Para os tiranos – lúgubre cometa.

Adeus, meu canto! Na revolta praça


Ruge o clarim tremendo da batalha.
Águia – talvez as asas te espedacem,
Bandeira – talvez rasgue-te a metralha.

Mas não importa a ti, que no banquete


O manto sibarita não trajaste – ,
Que se louros não tens na altiva fronte
Também da orgia a coroa renegaste.

A ti que herdeiro duma raça livre


Tomaste o velho arnês e a cota d´armas,
E no ginete escarvava os vales
A corneta esperaste dos alarmas.

É tempo agora p´ra quem sonha a glória


E a luta... e a luta essa fatal fornalha,
Onde referve o bronze das estátuas,
Que a mão dos sec´los no futuro talha...

Parte, pois, solta livre aos quatro ventos


A alma cheia das crenças do poeta!...
Ergue-te ó luz! – estrela para o povo,
Para os tiranos – lúgubre cometa.

Há muita virgem que ao prostíbulo impuro


A mão do algoz arrasta pela trança;
Muita cabeça d´ancião curvada,
Muito riso afogado de criança.

Dirás à virgem: – Minha irmã, espera:


Eu vejo ao longe a pomba do futura.
– Meu pai, dirás ao velho, dá-me o fardo
Que atropela-te o passo mal seguro...

A cada berço levarás a crença.


A cada campa levarás o pranto.
Nos berços nus, nas sepulturas rasas,
– Irmão do pobre – viverás, meu canto.

E pendido através de dois abismos,


Com os pés na terra e a fronte no infinito,
Traze a benção de Deus ao cativeiro,
Levanta a Deus do cativeiro o grito! (Os escravos, 1883)
TECENDO A MANHÃ

João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fio de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,


se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(A educação pela pedra, 1966)

COISAS DA TERRA

Ferreira Gullar

Todas as coisas de que falo estão na cidade


entre o céu e a terra.
São todas elas coisas perecíveis
e eternas como o teu riso
a palavra solidária
minha mão aberta
ou este esquecido cheiro de cabelo
que volta
e acende sua flama inesperada
no coração de maio.

Todas as coisas de que falo são de acrne


como o verão e o salário.
Mortalmente inseridas no tempo,
estão dispersas como o ar
no mercado, nas oficinas,
nas ruas, nos hotéis de viagem.

São coisas, todas elas,


cotidianas, como bocas
e mãos, sonhos, greves,
denúncias,
acidentes do trabalho e do amor. Coisas,
de que falam os jornais
às vezes tão rudes
às vezes tão escuras
que mesmo a poesia as ilumina com dificuldade.

Mas é nelas que te vejo pulsando,


mundo novo,
ainda em estado de soluços e esperança. (Dentro da noite veloz, 1975)

ELENCO DE POETAS

Alphonsus de Guimararaens: 1870-1921


Álvares de Azevedo: 1831-1852
Augusto dos Anjos: 1884-1914
Basílio da Gama: 1741-1795
Carlos Drummond de Andrade: 1902-1987
Casimiro de Abreu: 1839-1860
Castro Alves: 1847-1871
Cecília Meireles: 1901-1964
Chico Buarque: 1944
Cruz e Sousa: 1861-1898
Dante Milano: 1899-1991
Fagundes Varela: 1841-1875
Ferreira Gullar: 1930
Gonçalves Dias: 1823-1864
João Cabral de Melo Neto: 1920-1999
Joaquim Cardozo: 1897-1978
Jorge de Lima: 1893-1953
Manuel Bandeira: 1886-1968
Murilo Mendes: 1901-1975
Olavo Bilac: 1865-1918
Oswald de Andrade:1890-1954
Raimundo Correia: 1859-1911
Vinícius de Moraes: 1913-1980

ÍNDICE

Tema I – A poesia da poesia

 O poema do frade (fragmento), Álvares de Azevedo, p.2


 A um poeta, Olavo Bilac, p.3
 A cabeça de corvo, Alphonsus de Guimaraens, p.3
 Poética, Manuel Bandeira, p.4
 Motivo, Cecília Meireles, p.4

Tema II – Imagens da natureza

 Leito de folhas verdes, Gonçalves Dias, p.5


 Cárcere das almas, Cruz e Sousa, p.6
 O rio e a serpente, Jorge de Lima, p.7
 Imagens do Nordeste, Joaquim Cardozo, p.8

Tema III – Imagens urbanas

 Arquétipo, Fagundes Varela, p.9


 New-York, Olavo Bilac, p.11
 A flor e a náusea, Carlos Drummond de Andrade, p11
 O engenheiro, João Cabral de Melo Neto, p.13

Tema IV – Um eu que se espia

 Fetichismo, Raimundo Correia, p15


 Mapa, Murilo Mendes, p.16
 Momento, Dante Milano, p.17

Tema V – A morte e seus mistérios

 Não me deixes!, Gonçalves Dias, p.18


 Longe de tudo, Cruz e Sousa, p.19
 Psicologia de um vencido, Augusto dos Anjos, p.19
 Profundamente, Manuel Bandeira, p.20
 Cantarão os galos, Cecília Meireles, p.21

Tema VI – Laços de família

 Minha mãe, Casimiro de Abreu, p.23


 III -“Podre meu pai...”, Augusto dos Anjos, p.23
 Infância, Carlos Drummond de Andrade, p.24
 Poema enjoadinho, Vinícius de Morais, p.25

Tema VII – Imagens do amor

 Particularidades..., Gilka Machado, p.28


 Canção e calendário, Oswald de Andrade, p.29.
 As vitrines, Chico Buarque, p.30

Tema VIII – A palavra em combate

 Adeus, meu canto (fragmento), Castro Alves, p.32


 Tecendo a manhã, João Cabral de Melo Neto, p.33
 Coisas da terra, Ferreira Gullar, p.34
Elenco de poetas, p.35

O Brasil – Olavo Bilac

Para! Uma terra nova ao teu olhar fulgura!


Detém-te! Aqui, de encontro a verdejantes plagas,
Em carícias se muda a inclemência das vagas...
Este é o reino da Luz, do Amor e da Fartura!

Treme-te a voz aleita às blasfêmias e às pragas,


Ó nauta! Olha-a, de pé, virgem morena e pura,
Que aos teus beijos entrega, em plena formosura,
— Os dous seios que, ardendo em desejos, afagas...

Beija-a! O sol tropical deu-lhe à pele doirada


O barulho do ninho, o perfume da rosa,
A frescura do rio, o esplendor da alvorada...

Beija-a! é a mais bela flor da Natureza inteira!


E farta-te de amor nessa carne cheirosa,
Ó desvirginador da Terra Brasileira!

Texto 3: Erro de português – Oswald de Andrade

Quando o português chegou


Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
(Oswald de Andrade)

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