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A UTÓPICA LIBERDADE DOS ESCRAVOS PÓS-LEI ÁUREA

Discente: Franciele Vaz de Souza


Docente: Rosângela de Lima Vieira
Disciplina: Tópicos de História I

MARÍLIA

2017
1. INTRODUÇÃO

O intuito a que o presente trabalho se propõe é de uma época pontual da relação Brasil
e África, perpassando por tal relação, inevitavelmente, a influência de Portugal.
Analisando, portanto, desde as épocas que antecederam a Lei Áurea, até os dias de
hoje. Nesse liame, urge destacar o quão falaciosa é ideia de que o negro é um ser livre,
apenas porque, em 1888, uma pessoa assinou um documento. Para legitimar os
teóricos que serão expostos, será crucial intercalar relatos de Carolina Maria de Jesus,
de modo a atestar, do ponto de vista de uma negra, o que é ser negro na sociedade
brasileira.

2. A ESCRAVIDÃO QUE PERDURA NO BRASIL PÓS-ABOLIÇÃO

“No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa


parecer a alguns dos nossos patriotas, é que ainda nos associa
à Península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradução
longa e viva, bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma
comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer
que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi
matéria que se sujeito mal a essa forma.”

Sérgio Buarque de Holanda

Começar com uma epígrafe (1995, p. 40) de Sérgio Buarque de Holanda (1902 –
1982), no contexto de Raízes do Brasil, é providencial. O intuito do presente trabalho versa
sobre a relação Brasil e África, sendo esta, baseada essencialmente na exploração escravista;
mas, o que uma epígrafe que foca na relação entre Brasil e seus colonizadores, poderia nos
auxiliar na análise do Brasil e os escravos da África? Podemos dizer que uma relação,
portanto, leva à outra.
Tomando como pressuposto que as relações possuem gradações e vínculos complexos,
não teremos uma investigação segmentada, e sim, analisada em seu todo. Assim, o conceito
de Immanuel Wallerstein, sociólogo estadunidense ainda vivo, de um caráter orgânico,
portanto, do todo, urge entrar como método da presente análise, e não a usual classificação e
subdivisões que não se entrelaçam. Assim, entrelaçar a relação Brasil-Portugal, com Brasil-
África é de suma importância para conhecermos nossas bases, e o porquê somos e agimos
dessa forma, e não de outra.
A chegada dos portugueses no Brasil fez com que, não coincidentemente, o Brasil
estreitasse seus laços com a África. Os portugueses criaram meios e investiram muito para
que africanos chegassem em massa nas terras brasileiras. Essa conexão estreita, constituída
pela exploração dos escravos, deu início em 1538, perpassando séculos, até 1850. O que,
obviamente, é um marco de fim meramente simbólico, já que a exploração perdura mesmo
após séculos.
Com tantos indivíduos de uma sociedade em outro local, é natural que este fluxo haja
sobre esse novo meio. O Brasil não sairia, portanto, ileso de tal relação, incutindo em sua
própria cultura, hábitos, religiões e mesmo influências raciais. As pessoas, como natural do
ser humano, são sociáveis e, naturalmente políticos1, relacionando-se, então, com o meio e
entre si. Claro que dessas relações interraciais2 – seja entre brancos-índios, brancos-africanos,
etc – não teve nenhum fruto provindo de um caso amoroso, recíproco e saudável. Negras e
índias, com seu físico corpulento, chamavam a atenção daqueles que se sentiam no direito de
possuí-las, sem permissão; em outras palavras: há toda uma geração resultante de estupros.
Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977), mais à frente minuciada, no contexto sobre o
quão os negros eram perseguidos pelos policiais, contrastou com as relações das mulheres
negras: estas não precisavam correr, não pelos motivos dos negros homens.

Eu notava que, com as mulheres pretas, eles não mexiam muito. Não faziam elas
correrem. Mas falavam palavrões para elas e mostravam o pênis, e eu fui dizer para
a minha mãe:
-Sabe mamãe, eu vi o homem mostrando a vela para a Vitalina, e falou umas coisas
que eu não compreendi. A filha da Vitalina chorou e disse que vai contar ao noivo
dela. (JESUS, 1986, p. 56)

Importante notar que os escritos de Carolina de Jesus nem se passavam à época da


escravidão, e, mesmo assim, as negras ainda eram objetificadas. Pensar em um ato que
perdura mesmo após séculos, é vislumbrar um passado de constrangimentos e humilhações ao
negro, e, mais especificamente à mulher, como acentuado e recorrente. Portanto, as leis

1
“Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos”. Cf.
ARISTÓTELES. Política. 2006, p. 5. É importante destacar apenas o contexto social inerente ao homem a que
Aristóteles atenta neste trecho. Não considerar, em hipótese alguma, a teoria como um todo, já que ele
concebe com natural as hierarquias entre os homens, indo, assim, de encontro a que o presente trabalho se
propõe.
2
“Há também ênfase nas heranças da colonização portuguesa, do lusitanismo, sem esquecer a ‘informalidade’
com a qual os colonizadores portugueses e os seus descendentes relacionaram-se social e afetivamente com os
nativos, isto é, indígenas, e com os escravos trazidos da África, compreendendo inclusive os descendentes de
uns e outros”. Cf. IANNI, Octavio. Pensamento Social no Brasil. 2004, p. 45.
promulgadas servem apenas como dado histórico, e de modo didático de como categorizar
acontecimentos, conforme exige a história tradicional.
Logo, a perpetuação da lei, como, por exemplo, a Bill Aberdeen, não impediu de vez
com que os navios não mais transportassem escravos, e, como a adequação às leis são
vagarosas, muito transporte clandestino e ilegal dos escravos ocorreram.
Há, segundo Visentini, um grande descaso em enfatizar o contributo dos africanos
para o Brasil. Restringe-se a inserção do negro apenas enquanto escravos. Enquanto ocorre,
ao contrário, estudos positivos sobre a vinda dos europeus para o Brasil. Como destacado, a
abolição dos escravos foi apenas uma data. Em todos os períodos que a economia brasileira
deu uma guinada, por trás, sempre havia o trabalho africano. Como, por exemplo, na época do
café: os negros “ex escravos”, ainda eram mão de obra do Nordeste.

Nas cidades a situação era semelhante, com eles cumprindo serviços domésticos,
atuando como artesãos, operários, prestadores de serviços ou negros de ganho. O
desenvolvimento de cidades como Salvador, São Luís e Recife também implicou a
presença de uma maior contingente populacional negro. (VISENTINI, 2014, p. 191)

Vale ressaltar que, como resultado da lógica escravista, ainda percebe-se grandes
impactos na vida de negros, mesmo não sendo oficialmente escravos. Se, séculos depois,
muitos pensamentos coadunam com a vertente europeia – como a supremacia do branco sobre
o negro, por exemplo –, não à toa que as etapas para que se chegasse até a abolição fossem
igualmente lentas, com tendência ao retrógrado.
Assim, antes de ser efetivamente posta em prática, a Lei Áurea, em 1888, tiveram uma
série de convenções que estabeleciam o mínimo de dignidade ao negro, como: a Lei do
Ventre Livre, de 1871, postulando que os filhos de escravos, nascidos após essa data, não
fossem considerados escravos. Enquanto em 1885, garantiu em lei que os escravos de mais de
sessenta anos fossem considerados livres, com a Lei dos Sexagenários. Mesmo com tais
libertações, os negros não foram agregados nos trabalhos mais prósperos, pelo contrário,
continuaram a serem pessoas relegadas a trabalhos inóspitos.
Dentre as teorias exaltadas por Rafael Guerreiro Osório – citadas por Visentini (2014,
p. 192) –, a segunda vertente, a saber, que a ascensão política atingiria como consequência os
negros, e os fariam ascender, é a prova mais cabal de um equívoco. O racismo, segundo essa
lógica, desapareceria, como resultado dessa suposta ascensão do negro.
Mas, o que o trabalho procura destacar, aqui, é que não há como concordar com tal
vertente, ou qualquer outra que dialogue com a democracia racial. Florestan Fernandes (1920
– 1995) suscita amplo debate sobre o descaso com o negro após a abolição, em A integração
do negro na sociedade de classes (1965). A abolição foi mera formalidade, que não pensou
nas consequências de como o negro se adaptaria à nova conjuntura social; o que seria sua
posição para além de ser escravo.

O liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo,


tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não
dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma
economia competitiva. (FERNANDES, 2008, p. 29).

Um dos impactos vigentes dessa não abolição – que leva ao espectro negativo do
negro, que ainda perdura – é o patamar no negro frente às condições inóspitas de vida. E um
arquétipo empírico dessa marginalidade é a obra de Carolina de Jesus.
Carolina Maria de Jesus nos cede relatos sobre o que é ser negro do ponto de vista do
mesmo: ser negra. Dados que Visentini, ou Florestan nos traz são alarmantes e muito nos
preocupa, e o que Carolina nos cede é a confirmação de tais dados, de uma forma crua e
doída. Da posição de ser uma mulher, e negra, e pobre. Viveu às margens do rio Tietê, na
favela de Canindé, em São Paulo. Como sustento ora catava latinhas e papelão, ora trabalhou
como empregada doméstica. Dentro do contexto do que é ser negra, será, aqui, pormenorizado
o capítulo Os Negros, de Diário de Bitita, obra póstuma, de 1982.
O capítulo nos explana, no modo de falar, a doçura da infância, cenário que permeava
os relatos discorridos no mesmo capítulo. De forma terna e dolorida Carolina já percebia as
contradições do mundo. Como, por exemplo, quando Carolina, ainda criança, tentava policiar
a si própria para ser honesta o tempo todo, talvez, porque, muitas pessoas atrelavam-na com
pessoas desonestas, só pelo fato de ser negra. E relata quando fora roubar manga na vizinha, a
qual justificou o roubo só por conta de sua cor.

Eu notava que os brancos eram mais tranquilos porque já tinham seus meios de vida.
E os negros, por não ter instrução, a vida era-lhes mais difícil. Quando conseguiam
algum trabalho, era exaustivo. O meu avô com setenta e três anos arrancava pedras
para os pedreiros fazerem os alicerces das casas. Os pretos, quando recebiam aquele
dinheirinho, não sabiam gastar em coisas úteis. Gastavam comprando pinga. Os
pretos tinham pavor dos policiais, que os perseguiam. Para mim aquelas cenas eram
semelhantes aos gatos correndo dos cães. (JESUS, 1986, p. 55-6)
Dentre seus relatos, a conjuntura familiar era grande, como costumava sê-la, mesmo
aos brancos. Seu avô teve oito filhos, todos iletrados. E Carolina relata o pesar de seu avô por
não ter conseguido dar uma educação, mesmo mínima, a seus filhos; mas não por displicência
da parte do avô, e sim, porque a escola não era pública e acessível para negros. À época de
Carolina, algumas coisas mudaram, já que era depositada, da parte do avô, a esperança que
seus netos estudassem.

Além de ter a consciência que, mesmo negros, seus descendentes mereciam uma boa
educação – já que poderiam ser útil à lógica econômica para além do trabalho braçal, e
ocupar, através dos estudos, posição social mais elevada –, ele também possuía a clarividência
que com seus trabalhos, na época de senzalas e exploração, ele não trabalhava para enriquecer
a si próprio, mas, pelo contrário, a seu senhor – como Carolina menciona, a seu “sinhô
português” (1986, p. 57). Mas, apesar de tanta lucidez quanto à estrutura que estava inserido,
ainda via o brasileiro como homem cândido, sem capacidade para explorar os negros, como
os portugueses faziam.

Deus ajude os homens do Brasil – e chorava, dizendo: - O homem que nasce


escravo, nasce chorando, vive chorando e morre chorando. Quando eles nos
expulsaram das fazendas, nós não tínhamos um teto decente, se encostávamos num
canto, aquele local tinha dono e os meirinhos nos enxotavam. Quando alguém nos
amparava, nós já sabíamos que aquela alma era brasileira. E nós tínhamos fé: os
homens que lutaram para nos libertar hão de nos acomodar, o que nos favorece é que
vamos morrer um dia e do outro lado não existe a cor como divisa, lá predominarão
as boas obras que praticamos aqui. (1986, p. 57-8)

Carolina tinha com, grande apreço, o hábito de ouvir as histórias da época de escravo
de seu avô. Da época de agruras, à abolição e resistência. Obviamente que no contexto de
levantes de resistência negra, seu avô mencionava o contributo de Zumbi dos Palmares. Foi
uma resistência forte, existente no século XVII, que compreendia o grupo Quilombo dos
Palmares, tendo como propulsor dos ideais, Zumbi. Ao que tudo indica, Zumbi dos Palmares
fora morto no dia 20 de novembro de 1695, e, devido este marco, passou a ser memorado,
todo dia 20 de novembro, como dia da Consciência Negra. (VISENTINI, 2014, p. 194).
Diante das resistências, Carolina nos passa que o relato de seu avô pontuava a
benevolência por parte dos portugueses, para tentar apaziguar o espírito revolucionário dos
escravos. Mas, os brincos de ouro postos nas pequenas negras, não compensava toda dor ao
longo dos 400 anos de escravidão.
Após a libertação oficial dos negros, a violência simbólica, para além da física,
desferido pelos brancos sobre os negros, era grande. A liberdade era chacota para os brancos,
pois, estes, não davam subsídio básico aos negros para sobreviverem, queriam ver como
seriam a vida destes ex-escravos, como eles sobreviveriam, e matariam suas fomes, uma vez
que não estavam mais subjulgados e “protegidos” pelos brancos e sinhôs.
Apesar de ter como alívio que seus netos não tenham nascido na época da escravidão,
Carolina cita Castro Alves: “O negro é livre quando morre” (1986, p.59), já nos deixando o
triste vislumbre que a liberdade negra é como uma utopia, sobretudo numa sociedade que há
pouco tempo teve essa suposta abolição, e não tivemos muito mudança.
Carolina tinha cinco anos quando possuía essas percepções tão aguçadas sobre o que
já era ser negra. Mesmo muito nova, e cobrindo sua mãe de perguntas, queria saber quem
começou essa relação negro-branca. Bem aos moldes do “quem nasceu primeiro? o ovo ou a
galinha?”. Não via sentido para que os brancos rechaçassem tanto os negros, já que o
responsável pela vinda destes foram os próprios brancos. O único invasor de terras era outro,
que não o negro.
Mesmo com a liberdade, Carolina procura enfatizar que o negro não ocupava posição
alguma, quiçá de dignidade. Os brancos passaram a temer os negros, pois os negros estavam
revidando à todas as violências. Carolina menciona que os brancos diziam: “Estes atos
selvagens são a consequência da liberdade. E vocês vão ver coisas piores, pois o Rui chegou a
dizer que, se o negro estudar, poderá ser governador, presidente, deputado, senador e até
diplomata” (1986, p. 62). Claramente, muitas coisas mudaram, já que percebemos que,
realmente, há negros, atualmente, nesses cargos. Mas, quando postos tais contingentes em
comparação, a quantidade de pessoas negras é insignificante frente ao número de brancos no
poder. Ter um livro escrito por uma pessoa fora de todas as expectativas, a saber, mulher e
negra, é mais um símbolo de resistência. O lugar ocupado pela mulher em assuntos
acadêmicos, e de destaque, bem como em primeira pessoa, é algo que raramente encontramos.
O que se nota, no caso de Carolina de Jesus, e demais pessoas negras do país, é o total
descaso e despreparo no pós abolicionismo. Os ex escravos teriam de concorrer o mercado de
trabalho com os ditos trabalhadores nacionais, bem como com a mão-de-obra importada da
Europa, tanto os primeiros, como os últimos mais letrados e capacitados, permitindo, assim,
uma competição injusta, dos negros em sua completa ignorância acerca dos assuntos que o
mercado de trabalho exigia, ou seja, analfabetos. (FERNANDES, 2008, p. 31). Mesmo no
censo de 2011, “quando o quesito é alfabetização, a taxa de analfabetismo entre os brancos
fica em 5,9%, um percentual bem menor que o de pardos (13%) e pretos (14,4%)”
(VISENTINI, 2014, p.194), essa disparidade perpetua.

Ouvia dizer que os estrangeiros que já estão há mais tempo no Brasil auxiliavam os
patrícios pobres. Que os brasileiros ricos não auxiliam o brasileiro pobre. Que não
confiam. Os estrangeiros não vinham pobres. Eles não eram analfabetos e
dominavam o comércio. E o brasileiro analfabeto não tinha condição de progredir.
(JESUS, 1986, p. 61)

Com novos adventos acerca do trabalho, a mão-de-obra não era mais exclusiva de
escravos. Além deles haviam os brancos e estrangeiros, como citado, com quem tinham de
enfrentar as vagas de trabalho. Como o trabalho, principalmente o braçal, era exclusivo ao
escravo, e, portanto, um trabalho torpe e insignificante, teve de mudar tal concepção com a
chegada do trabalho às demais raças: o trabalho teve de ser visto de maneira positiva. Sobre
isso, Octavio Ianni (1926 – 2004) diz:

Ocorre que o escravismo entra em declínio e termina como regime de trabalho


escravo, forçado, submetido. Simultaneamente, intensifica-se a imigração de
europeus, enquanto “braços para a lavoura” destinados a substituir o escravo e, ao
mesmo tempo, “branquear”, “europeizar” ou “arianizar” a população brasileira. De
repente, toda uma cultura do trabalho como atividade de trabalhador escravo precisa
ser abandonada ou redefinida em termos de trabalho como atividade de trabalhador
livre. De repente, todos são desafiados a redefinir a ética do trabalho. Desenvolve-se
todo um vasto e complicado processo sociocultural, psicossocial e ideológico
destinado a conferir dignidade ao trabalho e ao trabalhador. (IANNI, 2004, p. 49).

Outro dado que é crucial destacar, é a análise de São Paulo e seu processo tardio, feita
por Florestan. Como a cidade entrou atrasada para a exportação colonial, quando comparada
com outras cidades como Rio de Janeiro e Recife, por exemplo, ela não conseguiu
acompanhar algumas mudanças, como o progresso da civilização agrária. Assim, o escravo
recém-liberto não conseguia encontrar oportunidades frutíferas, e tinha muito mais
dificuldade em conseguir um emprego, mesmo algum singelo. (FERNANDES, 2008, p. 33).
Isso, talvez explique a situação de Carolina de Jesus, que, com certeza não era um dado
isolado de São Paulo, mas que ocorria com mais frequência, quando comparado com outros
centros urbanos, como Salvador ou Rio de Janeiro.

No período em que as famílias dos fazendeiros paulistas começam a fixar residência


em São Paulo e em que se acentua a diferenciação do sistema econômico da cidade,
o liberto se defrontou com a competição do imigrante europeu, que não temia a
degradação pelo confronto com o negro e absorveu, assim, as melhores
oportunidades de trabalho livre e independente (mesmo as mais modestas, como a
de engraxar sapatos, vender jornais ou verduras, transportar peixe ou outras
utilidades, explorar o comércio de quinquilharias etc). (FERNANDES, 2008, p. 33).

3. CONCLUSÃO

Podemos concluir com tais dados históricos, e mesmo os mais atuais, cedidos por
Visentini, a dificuldade que o negro encontrava e ainda encontra para adequar-se ao sistema.
Infelizmente, a abolição não ocorreu, e essa suposta liberdade cedida pelos brancos foi de
grande proveito para os próprios brancos, já que foram com eles com quem ficaram os
empregos. Não dando, pois, subsídio algum para tais pessoas, as quais não tinham casas, não
tinham bens, sequer educação europeia. Tirando as pessoas de suas terras, reconduzindo-as a
seu bel prazer, esses negros já não lembravam mais suas raízes, que ficaram em seus
antepassados, há gerações. Eram pessoas que não possuíam suas terras, sua cultura, sua
comida, ou sua vestimenta. Foram desterrados. Eram desterrados na terra de desconhecidos
que abusaram de sua força física, e subestimaram sua capacidade mental. Carolina de Jesus
lamenta:

Havia os pretos que morriam com vinte e cinco anos: de tristeza, porque ficaram
com nojo de serem vendidos. Hoje estavam aqui, amanhã ali, como se fossem folhas
espalhadas pelo vento. Eles tinham inveja das árvores que nasciam, cresciam e
morriam no mesmo lugar. Os negros não são imigrantes, são acomodados. Não
sonham com outras plagas. Às vezes o homem era vendido e separado de sua
esposa. Os sinhôs haviam espalhado que eles eram amaldiçoados pelo profeta Cam.
Que eles haviam de ter a pele negra, e ser escravo dos brancos. A escravidão era
como cicatriz na alma do negro. (JESUS, 1986, p. 58-9).

Para que, no momento que não eram mais úteis, fossem relegados a nada, tendo de
começar novamente suas vidas, sem serem escravos; mas sem terem oportunidades. Sem suas
habilidades naturais, de sua terra, sem saber sobre a enciclopédia europeia, sem vestir roupas
de ninguém. Eram ninguém, e, ainda são ninguém. Mas esses “ninguém” possuem voz, e são
capazes de se reerguerem, mesmo que leve mais quinhentos anos. Há no sangue negro,
resistência. No sangue negro, pulsa vida. E esse sangue está em nós, em cada um de nós,
brasileiros, seja você branco, negro ou mulato.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIENTI, Wagner Leal; FILOMENO, Felipe Amin. Economia política do moderno sistema
mundial: as contribuições de Wallerstein, Braudel e Arrighi. Ensaios FEE. Porto Alegre:
v.28, n. 1, p. 99-126, jul. 2007.

ARISTÓTELES. A política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: o legado da "raça


branca". Volume I. Prefácio de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães. 5. ed. São Paulo: Globo,
2008. (Obras reunidas de Florestan Fernandes).

HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.

IANNI, Octavio. Pensamento social no Brasil. Bauru, SP: EDUSC, 2004.

JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

VISENTINI, Paulo Fagundes. História da África e dos africanos. Organização de Paulo


Visentini, Luiz Dario Teixeira Ribeiro, Analúcia Danilevicz Pereira. 3. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2014.

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