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ROBERTO CARNEIRO

Professor Associado de Ciências Humanas


da Universidade Católica Portuguesa
O COMBATE ÀS BAIXAS
Ilustrações de:
QUALIFICAÇÕES DOS
JOÃO AMARAL
PORTUGUESES

REVISTA FORMAR N.º 72


Convido-vos, a título de aperitivo, para uma pequena viagem
pela década inaugural do novo século que estamos a viver.
Tomarei como marcos de referência apenas três aconteci-
mentos, entre eles distanciados de 5 anos

ANTECEDENTES (2000-2010) stock é deveras preocupante. Acresce a esta exigência-padrão de nível secundário
Há 10 anos, em Julho de 2000, no termo completo a necessidade de desenvolver novas competências (...) Estamos em face
de um complexo estudo realizado a pedi- de uma opção estratégica de geração.
do do Governo com a duração de 3 anos, Cinco anos volvidos, a 14 de Dezembro de 2005 na FIL (Junqueira), ocorreu a cerimónia
o qual envolveu um vasto leque de inves- pública de lançamento pelo Governo da Iniciativa Novas Oportunidades (INO). Na oportu-
tigadores e de académicos, alertei para a nidade, fui convidado a fazer a conferência de enquadramento do evento, intervenção a
gravidade do atraso estrutural português que chamei «Descobrir o Tesouro». Afirmei nessa conferência o seguinte2:
em matéria de qualificações. Na altura, A educação e a formação são questões da maior premência social. São elas as úni-
em conclusão do referido estudo, elabo- cas alavancas seguras para proporcionar aos portugueses do século xxi aquela pros-
rei um documento estratégico intitulado peridade que foi negada às gerações precedentes.
«2020 – 20 anos para vencer 20 déca- Está em causa vencer o «ciclo longo» do atraso português investindo conjugada-
das de atraso educativo». Aí se demons- mente na melhoria contínua das condições de escolarização das crianças e jovens,
tra que o atraso educativo português pro-
vém de, pelo menos, meados do século xix
e não deixou de se acumular desde então
até há cerca de 40 anos atrás. Diz-se na
síntese final do estudo1:
Numa altura em que as sociedades
são pressionadas a adaptarem-se
aos imperativos da generalização dos
meios de acesso ao conhecimento e
à informação tem-se por adquirido
que o final de estudos secundários é
o novo limiar crítico para que as pes-
soas ou nações possam triunfar.
O grosso do pelotão da nossa popu-
lação activa situa-se muito abaixo.
Ainda que o país tenha conseguido
regularizar o fluxo de educação, o pro-
blema da composição educacional do

1
Carneiro, R., 20 Anos para Vencer 20 Décadas de Atraso
2
Educativo, Lisboa, DAPP/ME, p. 12, 2000. Carneiro, R., «Descobrir o Tesouro», in Comunicação & Cultura, Lisboa, FCH, UCP, n.º 3, pp. 145-156, 2007.

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por um lado, e na reversão da atávica ›› F orte endosso político e mediático ao cada coorte de coreanos lograva alcançar
desqualificação da maioria esmaga- mais alto nível. o final do ensino secundário.
dora da população adulta que se viu ›› Eleição do nível secundário de estu- Participei, recentemente (Junho de
privada do direito a uma educação dos como objectivo estratégico a al- 2010), na cerimónia pública de divulga-
completa. Encontramo-nos historica- cançar no plano de uma Educação ção e análise dos primeiros indicadores
mente defrontados com o desígnio para Todos. de execução trienal do Programa Opera-
de garantir o direito universal à for- ›› Dupla certificação – educacional e cional Potencial Humano (POPH) aprovado
mação e a determinação de «atacar» profissional – como grande deside- em 2007, o qual dedica 8,8 mil milhões de
uma dupla desigualdade. rato. euros (6,1 mil milhões de euros comparti-
Em primeiro lugar, a inaceitável, diria ›› Meios institucionais expressamente cipados pelo FSE), ou seja, 37% do QREN, à
insuportável, rejeição pelo sistema concebidos e articulados com o sis- Qualificação dos Portugueses e ao Refor-
escolar de cerca de 40%3 dos jovens tema tradicional de educação-forma- ço da Coesão Social (sublinho bem esta
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alunos ao seu cuidado que, por razões ção para levar por diante o programa segunda dimensão neste Ano Europeu do
diversas, não alcançam o menciona- (técnicos especializados, quase 500 Combate à Pobreza e à Exclusão Social).
do nível limiar do ensino secundário, Centros Novas Oportunidades – CNO, O principal investimento do POPH tem
os quais engrossam ano após ano a uma agência central com mandato sido, significativamente, a INO que dá cor-
multidão de portugueses de baixas específico, a Agência Nacional para a po ao enorme esforço de recuperação de
qualificações e reduzidas hipóteses Qualificação – ANQ). atrasos estruturais na educação-forma-
num mercado de trabalho cada vez ›› Uma grande ambição, traduzida num ção dos portugueses. Significativamen-
mais insaciável na procura de habili- sentido de urgência (emergência na- te, a ANQ é um Organismo Intermédio com
tações e de competências avançadas. cional) e na formulação de metas subvenção global para a medida dos Cen-
Em segundo lugar, a desigualdade hu- «pressionantes» e propiciadoras de tros Novas Oportunidades.
milhante sofrida por população adulta uma forte tensão de desempenho Revisitado, a traços largos, o período
que, excluída de uma escolaridade ha- por parte das estruturas executivas. 2000-2010 que culmina, no final da déca-
bilitante para viver e trabalhar numa da, com uma política pública muito consis-
sociedade crescentemente baseada A 31 de Maio de 2010, a INO-Eixo Adultos tente de requalificação dos portugueses,
nos saberes, se vê constrangida pela tinha já certificado cerca de 300 mil pes- passo a tecer breves considerações sobre
vida fora com o peso de um «pecado soas e registava nos Centros Novas Opor- a importância da qualificação numa tripla
original» de que não é culpada, antes tunidades um volume de inscrições supe- perspectiva: crescimento, emprego, e coe-
é a vítima. rior a 1 milhão de adultos. Estes números, são social.
A gravidade social e humana da dupla atingidos em escassos 3 anos, conferem-
desigualdade exige a sua denúncia ca- -lhe um estatuto absolutamente extraordi- QUALIFICAÇÃO E CRESCIMENTO
tegórica. A resolução gradual dos pro- nário no contexto de programas europeus Katz e Goldin (2003) estimaram uma con-
blemas de fluxo colocados pela for- comparáveis ou semelhantes4. tribuição anual da ordem de 22% para os
mação das novas gerações não nos Para muitos «Velhos do Restelo» uma ganhos de produtividade do factor tra-
exonera da obrigação de zelar pela missão impossível ou, ainda pior, um pro- balho e um incremento líquido de 0,35
elevação maciça da qualificação do grama perigoso para os que querem impe- pontos percentuais por ano para o cres-
stock de adultos que se encontram dir a erosão das suas rendas decorrente cimento do PIB nos EUA, ambos como con-
destituídos das ferramentas indis- do fim da escassez de diplomados com o sequência directa do enriquecimento da
pensáveis para sobreviver numa so- mínimo de estudos secundários na popu- economia americana em capital humano.
ciedade crescentemente cognocráti- lação activa. Para os incrédulos, costumo Mais argumentam estes investigadores
ca. Até porque a literatura científica apontar o exemplo da Coreia do Sul. Este da Universidade de Harvard que se deve à
está cheia de evidência empírica de país asiático duplicou a percentagem de generalização do ensino secundário, ope-
como o nível educativo dos pais e o diplomados de nível secundário num es- rada no período 1910-1940, a extraordi-
ambiente cultural da família são po- paço temporal de 20 anos, elevando de nária expansão económica americana da
derosos determinantes dos resulta- 50% para praticamente 100% a taxa de segunda metade do século xx e os funda-
dos escolares dos filhos. conclusão de estudos secundários. Hoje, mentos da sua vantagem estratégica so-
A INO evidencia-se, e diferencia-se, de pro- todos os jovens chegam ao final de estu- bre as demais economias do Mundo5.
gramas anteriores de Educação de Adul- dos secundários enquanto há 56 anos Mais recentemente, cálculos do custo
tos em Portugal por um acervo de dimen- atrás (dados de 1954) apenas 25% de para a economia estado-unidense resul-
sões acentuadamente inovadoras:
4

APL – Accreditation of Prior Learning, designação genérica 5
Claudia Goldin & Lawrence F. Katz, «Mass Secondary
pela qual são conhecidos programas de certificação e Schooling and the State: The Role of State Compulsion in
3

Hoje, em 2010 (10 anos volvidos), registam-se ainda va- acreditação de competências adquiridas por vias infor- the High School Movement», in NBER Working Paper No.
lores de abandono ligeiramente superiores a 30%. mais ou não formais. 10075, Novembro de 2003.

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DOSSIER
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tante do défice de qualificações situam a Em todos os países da OCDE7 as taxas in- Para sustentar o modelo schumpeteriano,
perda de PIB para 2008 em $2.3 triliões ternas de rentabilidade privada de um in- os investigadores partem da premissa de
de dólares6. vestimento no ensino secundário (con- que a educação está associada positiva-
As novas teorias do crescimento (new cluído imediatamente após o ensino mente ao crescimento sobretudo nos paí-
growth theories) demonstram que a ca- obrigatório) são sensivelmente superio- ses que se encontram mais distanciados
pacidade para gerar continuamente novas res a 4,5%. daquilo a que chamam a fronteira tecno-
competências e ideias constitui o factor Aghion e Howitt (2009) passaram recen- lógica. Assim, economias de baixo teor em
mais importante para o sucesso de uma temente em revista as quatro principais capital humano são mais aptas à imitação,
economia a longo prazo, mas existem sé- teorias económicas que explicam os pa- ao passo que as economias melhor dota-
rias condicionantes culturais e organiza- radigmas e processos de crescimento8: o das em qualificações e competências re-
cionais para que o conhecimento – e a modelo neoclássico (Solow-Swan), o mo- velam-se mais competitivas na inovação.
inovação – viabilize ciclos longos de pros- delo AK do crescimento exógeno (Harrod- Os autores levaram a cabo ensaios de re-
peridade, alterando o paradigma «ricar- -Domar), o modelo de produto variável gressão econométrica sobre séries lon-
diano» dos retornos marginalmente de- (Romer) e o modelo de inovação disrupti- gas (1960-2000) relativamente a um
crescentes nos factores de produção. va (schumpeteriano). painel de 19 países da OCDE. Os autores
chegaram à conclusão de que: (i) a mar-
6
Byron G. Auguste, Bryan Hancock & Martha Laboissière, 7
Education at a Glance, Paris, OECD, 2009. gem de crescimento das economias da
«The Economic Cost of the US education gap», The McK-
insey Quarterly, Junho de 2009. www.mckinseyquarterly. 8
P hilippe Aghion & Peter W. Howitt, The Economics of
OCDE está fortemente dependente de ca-
com (acedido em 7 de Julho de 2010). Growth, Cambridge, The MIT Press, 2009. pital humano qualificado; (ii) o efeito ca-

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talisador sobre o crescimento resultante QUALIFICAÇÃO E COESÃO SOCIAL EPÍLOGO
do investimento em capital humano quali- Permito-me, a título sintético, citar cinco Os portugueses foram sendo levados, pela
ficado é tanto maior quanto mais próxima conclusões matriciais da investigação so- passagem do tempo, a reconhecer a im-
estiver a respectiva economia da fronteira cioeconómica contemporânea sobre a re- portância da educação para as suas vidas
tecnológica. lação entre os dois termos do binómio ci- e para a efectivação das suas legítimas
Tomando por orientação os resultados tado em epígrafe. ambições de felicidade e de realização
das investigações que venho citando, to- ›› Mais qualificação deve ser sinónimo plena. Por isso carece de demonstração
mando por pressuposto que Portugal é de mais educação cívica e de cidada- científica a tese, tantas vezes esgrimida,
uma economia ainda distante da fron- nia, logo de melhoria da qualidade da de que os portugueses desprezam o va-
teira tecnológica (embora em recupera- democracia participativa. lor da educação ou subalternizam a impor-
ção), e num cálculo muito aproximativo, ›› Uma qualificação alargada que com- tância de uma qualificação profissional.
podemos estimar em cerca de 13 750 mi- preenda a aquisição de competên- O grande teste de um programa de requali-
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lhões de euros a perda líquida de PIB nos cias sociais contribui positivamente ficação generalizada dos portugueses resi-
20 anos que medeiam entre 2000 e 2020 para a coesão, o empreendedorismo de na sua capacidade para motivar a nação
resultante da desqualificação de cerca de de valor social e a harmonia no seio e libertar as suas energias interiores em
2/3 da população portuguesa a um nível da comunidade. torno do desígnio maior da aprendizagem e
abaixo do limiar do secundário. Dito de ou- ›› A necessidade da coesão e do inves- da formação ao longo da vida. Mutatis mu-
tro modo, o custo de oportunidade do in- timento em capital social é também tandis, o aferidor definitivo de generosi-
vestimento em capital humano, calculado uma aquisição racional, logo positi- dade da nossa sociedade será o empenho
no espaço de 20 anos, equivaleria a apro- vamente correlacionada com o nível com que a geração presente se preocupa
ximadamente 1,56 vezes o montante to- de qualificação de uma sociedade. com o bem-estar da seguinte e exprime a
tal do POPH para o período da sua vigência ›› Uma melhor distribuição de capi- sua solidariedade com as adversidades que
(2007-2013). tal humano gera menos desigualda- atingiram as gerações precedentes.
de e atenua a excessiva polarização O segredo está, pois, em criar motivação.
QUALIFICAÇÃO E EMPREGO social resultante do jogo das livres Sem motivação não haverá procura sus-
A investigação demonstra, a partir de um forças de mercado em contexto de tentada e sem procura motivada – entu-
amplo corpus de evidência empírica, que: processos de rápido crescimento siasmada – não haverá oferta que subsis-
›› Pessoas mais qualificadas têm maior económico. ta no mercado da formação.
probabilidade de acesso a bons em- ›› Investimentos selectivos em educa- Motivar a aprender e aprender a motivar:
pregos. ção infantil (early childhood educa- um duplo desígnio no qual se joga a so-
›› Os activos mais qualificados são tion) fazem diminuir a propagação brevivência de qualquer política pública
muito menos vulneráveis ao desem- intergeracional de desigualdades e o de qualificação e de requalificação maciça
prego de longa duração do que aque- fatalismo da pobreza (ou seja, o «cír- dos portugueses, como é a que vem cor-
les que possuem uma menor dota- culo de ferro» da pobreza traduzido porizada na INO.
ção de capital humano. no aforisma: é pobre o filho de po- Neste sentido, o ideal da Sociedade Edu-
›› O nível de qualificação está positiva- bre). cativa não se esgota num mero projecto
mente correlacionado com a inicia- técnico de melhoria das qualificações dos
tiva empresarial e com a propensão Tem-se verificado um aumento acentua- portugueses; o perfil dessa desejada So-
para auto-emprego. do de desigualdades salariais na genera- ciedade Educativa não se confina a uma
›› Uma economia do conhecimento é lidade dos países industrializados desde o proposta sectorial de intervenção pública
indutora de um skills-bias que privi- final dos anos 70. Portugal não escapa à nem se resolve pela simples injecção de
legia o emprego de alto valor acres- tendência, sendo mesmo uma das econo- recursos financeiros. Ela traduz um verda-
centado. Logo, uma subida no stock mias da OCDE onde essa disparidade vem deiro projecto de comunidade, apela a um
de qualificações é positiva para a ge- atingindo níveis alarmantes. A verdade é programa mobilizador da nação, significa
ração de novo emprego rico em co- que o aumento das diferenças salariais a vontade contagiante de desinstalar lide-
nhecimento. entre grupos com diferentes níveis de es- ranças, pessoas e instituições, corporiza
colaridade constitui um forte factor expli- uma ambição corajosa de mudar.
Logo, as qualificações são um forte de- cativo do crescimento da desigualdade. O POPH e a INO podem ser uma alavanca
terminante das oportunidades de empre- A razão fundamental para este facto resul- inestimável de mudança se souberem aliar
go e de acesso a empregos de qualidade ta do aumento exponencial da procura de a quantidade à qualidade, a massificação à
(decent jobs, na acepção vulgar em que a altas qualificações que vem sendo impul- busca incansável da excelência, a certifica-
economia do trabalho vem classificando o sionada pelas mudanças tecnológicas e ção a oportunidades acrescidas de mobili-
escalão superior de empregos numa seg- por via das alterações conexas nos modos dade social e económica, o desígnio à mo-
mentação do mercado de trabalho). de trabalhar e de organizar a produção. bilização total dos parceiros sociais.

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