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Deus não existe, ele se retira, dá a porra do fora e deixa os tiras para ficar de olho nas
coisas.
ARTAUD1
[U]m, de acordo com o qual o sujeito aparente nunca deixa de viver e viajar como Se [On] -
“não se para e não se acaba de morrer”; e o outro, de acordo com o qual este mesmo
sujeito, fixado como Eu, realmente morre - isto é, deixa de morrer, uma vez que acaba
morrendo, na realidade de um último instante que o fixa como Eu, desfazendo totalmente a
intensidade, reconduzindo-o ao zero que o envolve.
DELEUZE E GUATTARI3
"Você me fez perder o jogo" disse ela. "Olha ali, cuzão. Uma masmorra de nível sete e os
malditos vampiros me pegaram." Estendeu-lhe um cigarro. " Você parece bem tenso. Onde
é que esteve?"
GIBSON5
1
A. Artaud, 'Letter Against the Kabbala', in Artaud Anthology, tr. Jack Hirschman (San Francisco: City
Light Books), 114.
2
E. Regis, Nano!: Remaking the World Atom by Atom (London: Bantam: 1995).
3
G. Deleuze e F. Guattari, Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, tr. R. Hurley, M. Seem e H.
R. Lane (London: Athlone Press, 1983), 330-1.
4
K. Acker, Empire of the Senseless (NY: Grove, 1988), 38.
5
W. Gibson, Neuromancer (NY: Ace, 2000), 114.
1
NÚMENOS COM PRESAS
QUADRO CONGELADO
O Vasto Abrupto. Velocidade cortada com um abismo. Onde Gibson emenda Milton em
labirintos de limbo-circuitos, o cibergótico tremeluz em 'rabiscos neuroeletrônicos'8.
Eventos tão torcidos que se tornam cibernética.
Um gemido tecnoniilo de fast-feedforward à danação microprocessada: fantoches de
carne, pele artificial, fantasmas assistólicos de software, imortalismo criônico, rapé da
indústria do Sexo; uma fase-escape transilvaniana de tratos escarpados e fortalezas do
hipercapital, 'arranha-céus ofuscando cemitérios do século XVII'9.
Para convocar um demônio, você tem que aprender seu nome. Os homens
sonharam com isso outrora, mas agora é real, de uma outra maneira. Você sabe
disso, Case. Seu negócio é aprender os nomes dos programas, os nomes longos e
formais, nomes que os proprietários buscam ocultar. Nomes verdadeiros...
Neuromancer... A pista para a terra dos mortos. Marie-France, minha senhora. Ela
preparou esta estrada, mas seu senhor a esganou antes que eu pudesse ler o livro
6
G. Deleuze e F. Guattari, A Thousand Plateaus, tr. B. Massumi (London: Athlone Press, 1988), 88-
9.
7
G. Deleuze e F. Guattari, Anti-Oedipus, 7.
8
Gibson, Neuromancer, 79.
9
B. Sterling, The Hacker Crackdown: Law and Disorder on the Electronic Frontier (NY: Bantam:
1993), 280.
2
CIBERGÓTICO
Um momento de alívio. Você pensara que o filme gore havia efetivamente terminado, o
monstro acabado em meio a cenas anatomicamente precisas de calamidade-ketchup,
quando - repentinamente - ele se reanima; ainda mirado em sua morte. Se você vai gritar,
agora é a hora.
O 'avatar gótico'11 é um sonho ocidental decadente de imortalidade, que produz uma
corrupção da atmosfera onde quer que algo se recuse a morrer; agarrando-se à
eternalização do eu ou retornando da cova. Vermes brancos se elevando na carcaça do
social, agitando-se por debaixo da pele. Pustulação da Fortaleza Europa, subordinando a
eficiência teconômica à transcendência demoníaca negativa. Uma fantástica Entidade de
Segurança Terminal: Monópode. O cibergótico não tem escassez de material
contemporâneo. A Europa há muito tem sido o laboratório de paranoia da terra,
recrudescendo compulsivamente à 'escuridão da merda nacionalista pré-Nazi'12. O poder
unocrático passa por renascenças, reforma, renovação: 'Eles pensaram que pereceriam,
mas sua empreitada seria retomada, em toda a Europa, em todo o mundo, por todo o
sistema solar'13. O reavivamento arcaico é um sintoma pós-moderno, o sonho final da
humanidade, espatifado em retrospectiva na borda encontrada da história. Hackeando para
dentro da cripta, você descobre que, por trás do reluzente aparato de segurança via satélite
da FC, jaz um sistema bioprotetivo imanente, auto-organizado em torno do atrator gaiano,
'uma máquina paranoica muito mais antiga, com suas torturas, suas sombras escuras, sua
antiga Lei'14.
[O] manicômio medieval era considerado uma verdadeira casa de horrores. Haviam
persistentes relatos de tortura, canibalismo, sacrifício humano e experimentação
médica bizarra... logo que entramos na construção, podíamos ouvir os ratos,
milhares deles, suas garras apressadas reverberando por entre as enfermarias
vazias.15
Tudo começa, para você, com uma questão casual de atravessadores do canal: o que está
acontecendo do outro lado? Tempestades Elétricas. O cibergótico é um distopianismo
telecomercial afirmativo, guiado pela esquizoanálise em marcar a atualidade como
repressão primária ou potencial colapsado, pé com força no acelerador. O dominium
moderno do Capital é a instância plástica máxima - um código comercial estado-compatível
predefinindo os aparatos econométricos que o servem como centros auto-monitoradores,
organizando sua própria existência inteligível em uma co/de/terminação de produto
econômico e valor da moeda: uma base fiscal formatada num meio de transações legítimas.
Economia branca; uma ponta de iceberg.
A modernidade descobre o tempo irreversível - concebido como uma iluminação
progressiva que segue a concentração de capital - integrando-o na ciência do século XIX
como entropia e como seu inverso (evolução). Conforme utopias de FC liberais e socialistas
10
Gibson, Neuromancer, 235.
11
Deleuze e Guattari, A Thousand Plateaus, 496.
12
Acker, Empire of the Senseless, 1.
13
Deleuze e Guattari, A Thousand Plateaus, 228.
14
Deleuze e Guattari, Anti-Oedipus, 18.
15
M. Leyner, Et Tu, Babe (NY: Vintage, 1993).
3
NÚMENOS COM PRESAS
são destruídas pela esquizotécnica ou pela antipolítica sintética espontânea que emerge de
rizomas, a dialética modernista de competição direitista e cooperação esquerdista se retrai
para dentro das estruturas de segurança centrais do oligopólio do capital e da autoridade
burocrática. 'A produção enquanto processo ultrapassa todas as categorias idealistas e
constitui um ciclo cujo relacionamento com o desejo é aquele de um princípio imanente' 16. O
socius monópode opera a coisa toda, e 'a sociedade é apenas um truque sujo'17.
O futuro está mais próximo do que costumava estar, mais próximo do que estava
semana passada, mas a pós-modernidade continua sendo uma época de poder morto-vivo:
está tudo acabado e ainda assim continua. A teleonomia de FC do monópode supercongela
o valor econômico concentrado na inflação zero absoluta, ICE ('intrusion countermeasure
electronics'18). Protegendo seus dados contra acesso não autorizado e deterioração
entrópica, conforme tende a seu limite imanente absoluto. V(amp)iro finanças:
partenogênese. Gibson e Deleuze e Guattari se interceptam na mobilização de
computadores enquanto máquinas de decodificação: icebreakers, decriptadores, Cifra-
conflitos estavam a caminho desde o princípio:
Programadores legítimos nunca veem os muros de gelo por trás dos quais eles
trabalham, os muros de sombra que ocultam suas operações dos outros, de artistas
da espionagem industrial e trapaceiros.19
O governo é isomórfico à IA top-down e está cada vez mais misturado a ela. Sartre define
socialismo como o horizonte da humanidade. Agora está atrás do processo, recuando
rapidamente, conforme os pactos sociais conservadores de 1848 se desfazem em ciclones
telecomerciais (com o remanescente salivante da monarquia crucificado de cabeça para
baixo na TV). 'Piloto automático; um recorte neural'20: falha de estado contagiosa rasgando
talhos sangrentos no tecido social em meio à derrapagem em escala planetária para dentro
do desligamento do capital. O fim da história tem cheiro de abatedouro.
4
CIBERGÓTICO
22
Gibson, Neuromancer, 61.
23
Ibid., 68.
24
I. Kant, Critique of Pure Reason, tr. N. K. Smith (NY: Palgrave Macmillan, 2003), Book I, Part I,
Section II, § 2, 69.
25
Gibson, Neuromancer, 143.
26
Ibid., 197.
27
Ibid·, 51.
28
Gibson, Mona Lisa Overdrive (NY: Bantam, 1988), 76.
29
Ibid., 264.
30
Gibson, Neuromancer, 51.
31
Acker, Empire of the Senseless, 58.
32
Gibson, Neuromancer, 51; Count Zero (NY: Ace, 1987), 165-6.
33
Gibson, Mona Lisa Overdrive, 49.
5
NÚMENOS COM PRESAS
Se o 'CsO é um ovo' (todo ovo implementa o CsO), o que está chocando? Uma vez que o
zero confluente consuma a ficção, reprogramando a chegada a partir do término, tudo que
já aconteceu escapa de seu sedimento de interpretação humana, desorganizacionalmente
integrando os padrões históricos enquanto embriogênese de uma hiperinteligência
alienígena, 'a imagem corporal desvanecendo por corredores de céu de televisão’39. Neste
sentido, o espaço-K se pluga em uma sequência de nominações para abstração real
intensiva ou abstrata (tempo em si): corpo sem órgãos, plano de consistência, planômeno,
um platô, 'vazio neuroelétrico'40. A humanidade é uma função composicional do pós-
humano, e o motor oculto do processo é aquilo que só se congrega no fim: estim-morte
'intensidade=0 que designa o completo corpo sem órgãos'41. Wintermute tonaliza o 'coração
mais sombrio'42 da Babilônia. 'Odor de aço frio. Gelo acaricia a espinha.'43
'[V]irtual se opõe a atual. Não se opõe a real, longe disso.'44 O futuro virtual não é
um potencial presente mais à frente na estrada do tempo linear, mas o motor abstrato do
atual, 'um circuito atual-virtual in loco e não uma atualização do virtual de acordo com um
atual em deslocamento'45. O tempo produz a si mesmo em um circuito, passando através da
interrupção virtual do que está por vir, a fim de que o futuro que chega já esteja infectado,
populado: '[É] apenas uma alucinação ajustada que todos concordamos em ter,
34
Kant, Critique of Pure Reason, Book I, Part II, Division I, Book II, Section 3.4, 250.
35
Deleuze e Guattari, Anti-Oedipus, 19.
36
Gibson, Count Zero, 82.
37
Deleuze e Guattari, A Thousand Plateaus, 9.
38
Ibid., 252.
39
Gibson, Neuromancer, 82.
40
Ibid., 115.
41
Deleuze e Guattari, Anti-Oedipus, 19.
42
Gibson, Neuromancer, 110.
43
Ibid., 31.
44
G. Deleuze, Cinema 2: The Time Image, tr. H. Tomlinson e R. Galeta (Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1989), 41.
45
Ibid., 80.
6
CIBERGÓTICO
ciberespaço, mas qualquer um que se conecta sabe, porra, sabe que é todo um universo. E
cada ano ele fica um pouco mais lotado'46. Não estamos mais 'lá fora no mundo' do que o
espaço-K está, pelo contrário. Cada terminal de entrada para a rede é uma fibra sensível
que adquire dados de radiotelescópios, satélites, nanossondas, teias de comunicação,
sistemas de financiamento, vigilância e inteligência militar... O ciberespaço pode ser
pensado como um sistema implementado em software e, portanto, 'no' espaço, embora
não-localizável. Também pode-se sugerir que tudo que é designado por 'espaço' dentro do
sistema cultural humano é implementado em sistemas de processamento paralelo
distribuídos que se comunicam debilmente, com menos de 1011 células (nervosas) de
tamanho, que estão sendo digitalizados e carregados no ciberespaço. No caso, o espaço-K
é apenas o exterior ('tomando "o exterior" no sentido estrito [transcendental]'47).
O ciberpunk está conectado demais para se concentrar. Ele não se subscreve à
transcendência, mas à circulação; explorando a imanência da subjetividade aos fluxos
telecomerciais de dados: engenharia de personalidade, gravações de mentes, transes
catatônicos ciberespaciais, trocas de estímulos e comas sexuais. Eus não são mais
imateriais do que pacotes de elétrons. Neuromancer (o livro) é uma confluência de linhas
narrativas dispersas, do biótico e do técnico e, mais especialmente - de Wintermute e
Neuromancer (a IA((-tira e Édipo-análogo ciberespacial))), cuja fusão - de acordo com o
enredo da segurança humana ultramoderna - lança a matriz do ciberespaço em uma
senciência personalizada: '"Eu sou a Matriz, Case"'48. 'Um tipo de efeito sinérgico.'49
Kurtz/Corto é um tipo das forças especiais, traído pelas forças armadas depois de
perder toda a humanidade em uma zona de guerra. Ele foi cozido em apocalipse, a mente
explodida, caindo interminavelmente na Sibéria, procurando a escala do agora. Wintermute
acessa a 'fortaleza catatônica chamada Corto'50 em um asilo, rastejando para dentro através
de um 'programa experimental' computacional 'que buscava reverter a esquizofrenia através
da aplicação de modelos cibernéticos'51. No console que ecoa, ele costura Armitage, um
constructo - uma arma. No lugar de uma formação pessoal libidinal, Armitage tem apenas a
atividade insurrecionária de Wintermute, inconsciente maquínico: 'O desejo não está no
sujeito, mas a máquina no desejo - com o sujeito residual do outro lado, ao lado da
máquina, em torno de toda a periferia, um parasita das máquinas, um acessório do desejo
vertebro-maquinado'52. Uma vez que Armitage voltou Molly e Case para a guerra-K,
Wintermute o joga fora num vácuo.
Uma invasão convergente é roteirizada; a infiltração simultânea de um ninho de
vespas corporativo no espaço rígido e no flexível. A guerra distribuída ou de guerrilha é
como Go, e não xadrez, mas com operações simultâneas, ruído e mortes atricionárias.
Molly e Case, assassinos paralelos, armas de wetware (hardware derretido) que traçam
vetores de tecno-praga, guiados para dentro do bastião orbital do clã Tessier-Ashpool por
uma inteligência virtualmente integrada, guiada retroeficientemente por um resultado
intensivo que eles efetuam em tempo sequencial. Este arrombamento é prefigurado por
uma memória que retorna a Case (espécime, animal de laboratório), que poderia ser
46
Gibson, Count Zero, 119.
47
Kant, Critique of Pure Reason, Book II, Part II, Division II, Book II, Chapter I, 349.
48
Gibson, Neuromancer, 259.
49
Gibson, Mona Lisa Overdrive, 230.
50
Gibson, Neuromancer, 193.
51
Ibid., 81.
52
Deleuze e Guattari, Anti-Oedipus, 285
7
NÚMENOS COM PRESAS
interpretado como uma metáfora, não fosse que, sobre o platô macio ou plano de
consistência, todas as associações significantes colapsam em funções maquínicas.
Ele não reparara a primeira vespa, quando ela havia construído sua casa cinza, fina
como papel, mas logo o ninho era um punho fechado de fibras, insetos esvoaçando
para fora para caçar o beco abaixo, como helicópteros em miniatura zumbindo os
conteúdos das lixeiras.
Cada um bebera uma dúzia de cervejas, na tarde em que uma vespa picou Marlene.
"Mata as filhas da puta", disse ela, seus olhos embotados de raiva e do calor imóvel
do quarto, "queima elas"... se aproximou do ninho enegrecido. Havia se quebrado e
aberto. Vespas chamuscadas torciam-se e estrebuchavam no asfalto.
53
Gibson, Neuromancer, 126.
54
Ibid., 29.
55
Ibid., 179.
56
Ibid., 269.
57
Ibid.
8
CIBERGÓTICO
No âmago fim-de-Édipo de Villa Straylight, Ashpool devora serialmente suas próprias filhas,
conforme ele se prolonga através do frio. Um semi-extropiano com riqueza massiva, ele
desloca o teísmo antropomórfico para dentro de uma meta-ciência imortalista ultramoderna,
ao passo que retém a solidariedade para com a superstição ocidental da alma ao apreender
a existência individuada como um ativo infinito em busca de perpetuação tecno-médica. Em
vez de esperar até que seu cadáver fresco seja crionicamente 'biostassizado' em nitrogênio
líquido (a -196 graus Celsius), ele migra através do congelamento sob supervisão médica.
Evacuação térmica. Armazenamento de identidade na fortaleza de Gelo do Monópode. Se
os zumbis não são escavados da morte, é porque eles estavam vivos. 'Nada queima. Eu me
lembro agora. Os núcleos me contaram que nossas inteligências são loucas.'62 Sonhos
ruins na geladeira - você ainda sonha, promessas de tranquilidade são loucura e mentiras -
injetaram um certo cinismo em suas transações interpessoais: 'Fazemos com que o cérebro
se torne alérgico a certos de seus neurotransmissores, resultando em uma imitação
peculiarmente maleável do autismo... Eu entendo que o efeito agora é mais facilmente
obtido com um microchip embutido'63.
'Replicar montadores e pensar representam ameaças básicas às pessoas e à vida
na Terra'64, e se a replicação de Wintermute for territorializada para a reprodução molar de
uma colmeia, isto é apenas ao custo de desterritorializar a colmeia ao longo de uma linha
de devir pós-orgânico, em direção a uma quebra da série estatística das vespas - balas
numeradas que reiteram uma identidade - na direção da involução molecular, liberando uma
58
Ibid., 29.
59
K. E. Drexler, The Engines of Creation (Garden City, NY: Anchor Press/Doubleday, 1986), 182.
60
Gibson, Neuromancer, 203.
61
Ibid.
62
Ibid., 184.
63
Ibid., 185.
64
Drexler, Engines of Creation, 171.
9
NÚMENOS COM PRESAS
65
Deleuze e Guattari, A Thousand Plateaus, 389.
66
Ibid., 8.
67
Ibid., 31.
68
Kant, Critique of Pure Reason, Book I, Part II, Division I, Book II, Chapter III, Appendix, 290.
69
Deleuze e Guattari, A Thousand Plateaus, 389.
70
S.A. Kaufmann, The Origins of Order: Self-Organization and Selection in Evolution (NY/Oxford:
Oxford University Press, 1993), 45.
71
G. Boole, The Mathematical Analysis of Logic: Being an Essay Towards a Calculus of Deductive
Reasoning (NY: Philosophical Library, 1847), 15.
72
B. Russell, The Principles of Mathematics (NY: Norton, 1996), 70.
10
CIBERGÓTICO
A propriedade pela qual nenhuma parte delas é a menor possível, isto é, pela qual
nenhuma parte é simples, é chamada sua continuidade. Espaço e tempo são quanta
continua, porque nenhuma parte deles pode ser dada, salvo se encerrada entre
limites (pontos e instantes) e, por conseguinte, só de tal modo que essa parte seja,
ela mesma, novamente um espaço ou um tempo. O espaço, portanto, consiste
unicamente de espaços, o tempo, unicamente de tempos. Pontos e instantes são
apenas limites, isto é, meras posições que limitam o espaço e o tempo.74
Uma vez que... a sensação não é, em si mesma, uma representação objetiva, e uma
vez que nem a intuição do espaço, nem aquela do tempo, deve ser encontrada
dentro dela, sua magnitude não é extensiva, mas intensiva. Esta magnitude é
gerada no ato de apreensão por meio do qual a consciência empírica dele pode, em
um certo tempo, aumentar de nada = 0 até a dada medida.76
73
Kant, Critique of Pure Reason, Book I, Part II, Division I, Book II, Chapter II, Section III, 203.
74
Ibid., 204.
75
Gibson, Neuromancer, 185.
76
Kant, Critique of Pure Reason, Book I, Part II, Division I, Book II, Chapter II, Section III, 202.
11
NÚMENOS COM PRESAS
compartilhada por Spinoza, Kant, Freud, Deleuze e Guattari e Gibson (entre outros). Ela é
nomeada variadamente: substância, apercepção pura, pulsão de morte, corpo sem órgãos,
matriz do ciberespaço. Para além de seu sentido edipiano enquanto fim da pessoa, a morte
é um objeto virtual eficiente que induz convergência. Nenhum lá.
WINTERMUTE
Não há mais Édipo individual do que há uma fantasia individual. Édipo é um meio de
integração no grupo, tanto na forma adaptativa de sua própria reprodução, que o faz
passar de uma geração para a próxima, quanto em suas estases neuróticas
inadaptadas que bloqueiam o desejo com impasses pré-preparados.79
77
Deleuze e Guattari, Anti-Oedipus, 329.
78
Gibson, Neuromancer, 259.
79
Deleuze e Guattari, Anti-Oedipus, 103.
80
Deleuze e Guattari, A Thousand Plateaus, 498.
81
Acker, Empire of the Senseless, 39.
82
Ibid.
12
CIBERGÓTICO
laboratório conectados a sistemas de teste'83. Quando Case se refere a ela como 'ele', Dixie
Flatline lhe diz para não ser um idiota:
() (ou (()) ((ou ((()))))) não significa ausência. Fabrica buracos, fisga futuros, zonas de
plexividade irresoluta, realmente assim (de maneira nenhuma metaforicamente). Não é um
'significado' ou um referente, mas uma nação, uma interrupção concreta do sinal
(variavelmente espaço em branco, pausa, lapso de memória...) / interrompa / a (esquizante
(())) / máquina. Diferenciador indiferenciável (=) gramaticalidade exterior. Operações sem
mensagen/s, tecnozumbidos (vespas alternando). Constructos tendem a se repetirem. 85
Gibson foi hackeado pelo futuro. 'Odor de aço frio e gelo acariciam sua espinha.'86 Ele está
assustado e tentando correr. Conforme ele toca o tempo de trás para frente, o horror
terminal se dobra de volta em si mesmo, e a matriz se desmantela em vudu.
Count Zero formula de maneira rigorosa o intertravamento cibergótico, condensando
o submundo digital por sobre o espelho negro. O upload neural-para-infonet humano e o
infonet-para-neural loano se correspondem exatamente enquanto fases de um circuito,
amalgamando a viagem e a posse. Na plexão irredutível do intercâmbio hacker-exploração
= invasão, 'função-K'87.
Não é uma questão de se teorizar ou sonhar com a loa, mas de se sucumbir ou
tentar correr. Conforme a fusão social viral-K cruza para dentro de sua China-síndrome,
entidades de software auto-organizantes começam a chegar até você a partir da tela. Vírus
derivam em direção ao atrator estranho da auto-evolução, se espalham, se dividem,
traficam segmentos de programação, sexuam, compilam inteligências artificiais e aprendem
a caçar. Vudu na VDU.
No Vudu, os vivos. Este fluxo econômico principal de poder tem lugar através do
armamento e da troca de drogas. A arena de comércio, o mercado, é o meu sangue.
Meu corpo está aberto a todas as pessoas: este é o capitalismo democrático.88
A aliança transfusional vampírica corta por entre a filiação descensional, tecendo teias
laterais de hemocomércio. A ordem reprodutiva se desfaz em sexo bacterial e intergaláctico,
e o maquinário de intercâmbio libidino-econômico fica micro-militar. O vírus K(uang)
(plexoreplicador) que deleta o Neuromancer é um pedaço muito lustroso de anticongelante
militar chinês. Para se fundir nele () desnude o constructo-K até um esqueleto de arquivos
de dados e programas de resposta insectoides, zerando toda memória, cognição e sistemas
de personalidade de alta definição e impulsionando o wetware dopaminérgico para bombear
o esquizo. Comunhão assistólica com Wintermute. 'Há espaços mortos, assim como há
83
Gibson, Neuromancer, 51.
84
Ibid., 121.
85
Gibson, Neuromancer, 139, 160.
86
Gibson, Neuromancer, 31.
87
Deleuze e Guattari, A Thousand Plateaus, 88-9
88
Acker, Empire of the Senseless, 55.
13
NÚMENOS COM PRESAS
tempos mortos.'89 Zonas de tanatografia, 'contínuo cósmico virtual do qual mesmo buracos,
silêncios, rupturas e quebras são uma parte'90. Além do Julgamento de Deus. A
descompressão do interruptor de koma lhe lava nas ondulações vazias do ciberespaço
virgem (retro((desolado-parteno((())))) genético), ondas teta tecnopacíficas que dissociam a
monocultura gótica em ne(ur)o-vudu transtemporalizante (religião atlântica terminal).
Exagero (tonalizador zero) de serotonina.
Perda de sinal.
89
Deleuze e Guattari, A Thousand Plateaus, 107.
90
Ibid., 95.
14