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A lógica atormentada

Coordenador justifica o curso 'A Crise da Razão'

ADAUTO NOVAES

ESPECIAL PARA A FOLHA

"Certas coisas são produzidas pela necessidade, outras pelo acaso, outras,
enfim, por nós mesmos." Epicuro

No ensaio "O Filósofo e a Sociologia", Merleau-Ponty nos lembra que, em sua


última hora, Edmund Husserl nos deixou como herança uma advertência:
estamos diante de dois possíveis -a racionalidade ou o caos. Na mesma época,
Paul Valéry descrevia o destino da civilização e a crise do espírito em tom
tristemente célebre: nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais, dizia
ele: "Tanto horror não teria sido possível sem tanta virtude. Sem dúvida, foi
preciso muita ciência para matar tantos homens, dissipar tantos bens, aniquilar
tantas cidades em tão pouco tempo. Saber e Dever sois, portanto, suspeitos?.
Para falar da crise da razão, o poeta invoca como testemunha um "Hamlet
intelectual que contempla milhares de espectros, medita sobre a vida e a morte
das verdades e tem por fantasmas "todos os objetos de nossas controvérsias;
mas ele hesita entre dois abismos, "porque dois perigos não cessam de ameaçar
o mundo: a ordem e a desordem.

O "Hamlet intelectual recolhe e interroga, um a um, os crânios de alguns


expressivos cultores da razão. Ao ver Leonardo Da Vinci, observa: "Sabemos
que o homem voador, montado num grande cisne ('il grande uccelo sopra del
dosso del suo magnio cecero') tem em nossos dias outras tarefas que a de buscar
neve nos cimos dos montes para jogá-la na calçadas das cidades nos dias de
calor... Outro crânio é o de Leibniz, "que sonhou com a paz universal. Este aqui
foi Kant, Kant que gerou Hegel, que gerou Marx, que gerou....
Passados tantos anos, depois dessa dupla advertência, a de um filósofo e a de
um poeta, não se pode dizer que vimos o triunfo da razão: as guerras tornaram-
se o lugar comum das nossas vidas: diariamente, sem nenhuma emoção, vemos
nos jornais e na televisão as descrições de centenas de mortos; vivemos na
cidade do temor e da tristeza, adotada como o lugar natural e necessário; os
relatos de escravidão já não espantam; os excessos tornaram-se verdadeira
necessidade: o corpo busca "excitantes brutais, emoções breves e grosseiras
para sentir e agir. O isolamento do indivíduo é cada vez maior, superado apenas
pelo sentimento de impotência diante das flutuações políticas.
Resta o consolo da superstição e dos cultos, ingênuas expressões de refúgio de
felicidade, como se o bem pudesse resultar do encontro de vários males.
Fundamentalistas dirigem a política, seitas fanáticas espalham-se em vários
países, cultos diabólicos, imolação de crianças, suicídios em massa, massacres
políticos. Os tarôs, as cartomantes e os videntes ocupam o lugar da ciência
política. A crise política, a crise ética, a crise de sensibilidade atestam mais uma
vez a percepção de Valéry, que se espantava com o próprio pensamento:
"Excuso-me (e me acuso) por sonhar às vezes que a inteligência do homem, e
tudo aquilo através do qual o homem se afasta da linha animal, poderia um dia
enfraquecer-se, e a humanidade, insensivelmente, voltar a um estado
instintivo..."; "Sentimos que uma civilização tem a mesma fragilidade de uma
vida.
Não podemos, portanto, pensar o nosso presente sem evocar a crise. Mas o que
é uma crise? Quais são suas origens e a sua natureza? Se a crise não é um
acontecimento apenas, ou um conjunto de acontecimentos que configuram um
mundo -nosso mundo presente-, é porque ela guarda também um sentido oculto,
que nos leva a procurar reencontrar o que nela, ou por causa dela, foi perdido.
A crise exige de nós reflexão: falar da crise da razão nos leva a pensar não
apenas os acontecimentos "históricos, mas também os "fundamentos da crise,
que, em última análise, são não-acontecimentos, uma vez que eles podem ser
entendidos como uma "continuação do mesmo. Eis uma hipótese que o ciclo de
conferências procura discutir: a crise já estaria dada no próprio momento de
fundação da idéia de razão?

Heidegger, na sua "Introdução à Metafísica", pensa assim: "O declínio da


determinação do 'logos' -declínio que torna a lógica possível- já começa
precisamente em Platão e Aristóteles. O declínio já está constituído na grandeza
mesma do primeiro acontecimento e por isso não há declínio no sentido de um
erro (o famoso acidente de percurso), que nos faria deslizar por descuido fora
da grandeza do começo, mas uma continuação. A crise da razão estaria, pois,
na essência mesma do começo. Podemos interpretar este pensamento de várias
maneiras, e uma delas é que, de início, o acaso dá ao homem não o bem ou o
mal, mas necessariamente começos daquilo que pode ser um grande bem ou um
grande mal: compete aos homens trabalhar racionalmente suas vidas.
O nosso ponto de partida e a estrutura que definiu este novo ciclo de
conferências são o que alguns pensadores definem como a grande cisão que
separa o homem do Ser, o sujeito do objeto, a ciência da filosofia, a liberdade
da necessidade, o acaso da razão, a razão da imaginação, a paixão da razão etc.
Vemos que, ao longo da história, foram sendo criados conceitos para se
contraporem à razão. Estes contrapontos produziram imagens de razão que, em
última instância, levam à negação da própria idéia de razão, abrindo, desta
maneira, caminhos para as crises. Para discutir a crise da razão, concentramos
nosso esforço nos opostos, isto é, naquilo que foi produzido para anular a idéia
de razão. Assim, teremos uma dupla reflexão: o conceito de razão em
determinados momentos de passagem na história das idéias e a constituição de
seus opostos.

Mas, ao trabalhar a idéia de opostos, nossa atenção está voltada também para
outro problema fundamental: o oposto (a imaginação, o acaso, as paixões...)
não deve ser entendido apenas como o outro radicalmente incomunicável com
a razão -não se pode pensar em subordinação absoluta de um dos termos. Caso
contrário, cairíamos em um determinismo insuportável, e o próprio ciclo de
conferências não teria sentido. Em toda determinação racional existe uma
margem de indeterminação, um dado ainda a determinar, certamente provocado
pelo oposto da razão, criando o movimento ou passagem de uma razão latente
à razão manifesta. São experiências racionais e imaginárias desfeitas e refeitas
no curso do tempo.

Ora, a razão não é a autonomia plena que existe fora do seu contrário, mas uma
autonomia que se constitui no triunfo sobre cada um dos contrários, não fugindo
deles, mas lutando com eles e submetendo-os. Este é o movimento que permite
a criação permanente e concreta da razão, uma vez que ela não cessa de ser
interrogada pela presença do termo suprimido. Estamos, pois, diante não de um
conceito racional instituído, mas de um pensamento em ação, uma razão
"instituinte", que existe não apesar dos contrários, mas graças também à ação
destes contrários. Só a religião e a racionalidade técnica -dois momentos de uma
lógica semelhante- podem apresentar-se como razão absoluta, um Deus que não
se discute, harmonia plena.

A razão, no sentido forte do termo, traz nela mesma uma lógica atormentada,
que, a cada momento, presta contas do poder que exerce. Assim, toda razão é
enigma se entendermos razão como o encontro com os opostos em um
movimento sem fim. Neste sentido, crise e razão têm um só e mesmo destino:
se formos à origem do vocábulo, vemos que a palavra "crise", derivada do grego
"krinein, que quer dizer julgamento, decisão, capacidade de julgar; o "logos
grego (ou a "ratio latina) também quer dizer julgar, faculdade de pensar, e
pensar, como todos sabem, é pesar, decidir.
Crise e razão já nasceram de mãos dadas. Como nos lembra, por exemplo,
Cornelius Castoriadis (no texto "Imaginário Político Grego e Moderno), a
democracia traz em si, desde a origem, a idéia do trágico; é um regime sujeito
à "hybris, à sua autolimitação: "A tragédia é também, e principalmente, a
exibição dos efeitos da 'hybris' e, mais do que isto, a demonstração de que
razões contrárias podem coexistir (é uma das 'lições' da 'Antígona') e que não é
insistindo na própria razão que se torna possível a solução dos graves problemas
que pode ter a vida coletiva (o que não tem nada a ver com o consenso indolente
da época contemporânea).

"A Crise da Razão vai pôr também em discussão outro problema essencial: a
partir da criação dos opostos resultou a idéia de que a razão é sempre
exterioridades, isto é, ela é sempre aquilo que não somos. No seu livro "A
Solicitude da Razão, Ferdinand Alquié nos mostra que, nesse sentido, para ser
racional, é preciso primeiramente submeter-se e ceder à força externa: "A
ordem dos objetos -escreve Alquié- constitui sempre para o meu desejo uma
ordem à qual é necessário obedecer e, portanto, uma ordem imperativa. Mais
ainda, se o racionalismo é verdadeiro, eu mesmo devo ser explicável: a razão
não é, portanto, o que em mim trago, mas antes o que me conduz e pode
explicar-me.
O que Alquié propôs, e o que outros filósofos contemporâneos desenvolvem, é
a criação de um racionalismo metafísico. Ou melhor, aquilo que Merleau-Ponty
chamou de "metafísico no homem, entendendo por metafísica não uma
construção de conceitos "por meio das quais tentaríamos tornar menos sensíveis
nossos paradoxos; é a experiência que fazemos dela em todas as situações da
história pessoal e coletiva -e das ações que, assumindo-as, transformam-nas em
razão. Talvez este seja um dos caminhos contra irracionalismos e superstições
que afirmam o não-valor do mundo e a racionalidade técnica que se impõe aos
homens e às coisas.

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