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CRÍTICA

m arxista
Uma nova fase
do capitalismo?
4ESENHAS
François Chesnais, Gérard Duménil, Dominique Lévy
e Immanuel Wallerstein.
São Paulo e Campinas, Editora Xamã e Centro de
Estudos Marxistas (Cemarx) da Unicamp

REINALDO A. CARCANHOLO*

O Cemarx (Centro de Estudos Marxis- própria à potência econômica


tas) e a Editora Xamã lançaram, no final estadunidense”;
de 2003, um livro que muito contribui
para uma adequada interpretação mar- − Immanuel Wallerstein, “Mun-
xista do mundo atual, com o título: Uma dialização ou era de transição?
nova fase do capitalismo? Trata-se da tra- Uma visão de longo prazo da
dução do livro de Chesnais et alii. Une trajetória do sistema-mundo”.
nouvelle phase du capitalisme?, publica-
do anteriormente na França. Ele reúne Além dessas três contribuições, o
três diferentes contribuições apresenta- livro inclui a discussão travada sobre o
das e discutidas durante os seminários tema entre os mencionados autores e
de estudos marxistas da Maison des mais Michel Husson, Jean Magniadas
Sciences de l’Homme de Paris. Essas con- e Catherine Samary.
tribuições são as seguintes: O fato de que consideremos como
boas contribuições para o pensamento
− Gérard Duménil e Dominique marxista e, além disso, como indispen-
Lévy, “Superação da crise, sáveis suas leituras por todos aqueles in-
ameaças de crises e novo capi- teressados no futuro de nossa socieda-
talismo”; de não quer dizer que, na nossa opi-
nião, não existam problemas nas inter-
−François Chesnais, “A ‘nova pretações apresentadas e que concorde-
economia’: uma conjuntura
*
Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo.

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mos com a perspectiva teórica e meto- cipal ou fundamental. Há, assim, uma
dológica de cada um dos autores, até sobrestimação dessa contradição e, em
porque divergem entre si. Vejamos, contrapartida, o papel dos trabalhado-
pois, cada uma delas. res, em especial o dos trabalhadores pro-
No primeiro artigo do livro, Du- dutivos, embora lembrado em algumas
ménil e Lévy resumem as principais i- passagens do texto, recebe tratamento
déias das relevantes pesquisas que vêm genérico e sem relevância para o essen-
realizando, há algum tempo, sobre o ca- cial da interpretação.
pitalismo. Esses autores sustentam que Se a luta de classes aparece no tex-
o período iniciado após a crise estrutu- to de maneira pouco adequada, a teo-
ral dos anos 70, chamado por eles em ria do valor, núcleo central da interpre-
outro lugar “neoliberal”, caracteriza-se tação de Marx sobre o capitalismo, está
pela restauração da hegemonia da pro- absolutamente ausente. Seus conceitos
priedade do capital, através do sistema de valor, mais-valia, mais-valia extra,
financeiro, sobre sua gestão. Tal perío- exploração, transferência de valor nem
do teria sucedido o que eles denomi- sequer são mencionados. É verdade que
nam “compromisso keynesiano”, que o termo capital aparece de maneira re-
durara apenas algumas décadas, no qual corrente, mas sem que se expresse o seu
essa hegemonia havia sido perdida para real conteúdo e menos ainda seu movi-
os gestores das empresas produtivas. mento dialético.
O trabalho empírico e a análise Apesar de considerarem a even-
dos mencionados autores é de grande tualidade de que as contraposições atu-
significação e indispensável para enten- ais do capitalismo possam chegar a ser
der aspectos importantes da fase atual resolvidas por uma grande crise econô-
do capitalismo. No entanto, apesar de mica no centro do sistema, admitem
os autores proporem-se a realizar uma também a possibilidade de uma extin-
interpretação marxista, poucos dos con- ção gradual dessa hegemonia e da polí-
ceitos dessa teoria são efetivamente uti- tica neoliberal. Concebem uma espécie
lizados, exceto os mais genéricos de for- de retorno a um capitalismo que per-
ças produtivas e relações de produção. mitiria certas concessões aos trabalha-
Quando a luta de classes é chamada a dores, uma volta a um capitalismo mais
cumprir algum papel, restringe-se à humano, se é que isso de fato em al-
contraposição entre proprietários e gum momento existiu. Trata-se, na ver-
gestores do capital que, embora se trate dade, de uma visão muito otimista do
de uma contradição com algum signi- futuro e, a nosso ver, irreal.
ficado para um entendimento concreto O texto de Chesnais retoma sua
da história do capitalismo desde o ini- conhecida e consagrada tese de que o
cio do século XX, não pode, do ponto período capitalista atual caracteriza-se
de vista marxista, ser considerada prin- (de maneira similar, nesse aspecto, ao

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texto anterior) pelo domínio da presentes os elementos fundamentais de
“finança” sobre a “indústria” ou, em uma adequada teoria do valor que lhe
termos mais adequados, do capital permite entender, com profundidade,
especulativo sobre o produtivo, resul- o mundo capitalista atual. O outro pon-
tante da política de desregulamentação to positivo está constituído por sua in-
e liberalização promovida pelos Estados terpretação, como resultado de sua tese
Unidos e pela Inglaterra desde o final geral, das razões do crescimento experi-
dos anos 70 e início dos anos 80. mentado pelos Estados Unidos duran-
Chesnais também destaca em sua aná- te a segunda metade dos anos 90, das
lise a contradição que existe entre os limitações desse crescimento e da im-
gestores de fundos de investimentos, possibilidade de se imaginar o mesmo
que configurariam o interesse próprio fenômeno para outros países. Mais uma
do capital especulativo, e os dirigentes vez a perspectiva da totalidade e a teo-
das empresas produtivas (a gestão pro- ria do valor constituem os pilares que
dutiva), mas não deixa de ressaltar os conferem relevância e garantem a ade-
efeitos disso: a) sobre a forma de orga- quação do pensamento de Chesnais.
nização da produção, mais exigente no Ponto fraco do artigo é seu apelo
que se refere à rentabilidade (esta idéia à teoria da regulação. O formalismo da
também está presente em Duménil e terminologia regulacionista, longe de
Lévy); e, b) sobre o conjunto dos tra- permitir um maior aprofundamento da
balhadores, pois implica um aumento sua tese, dificulta a compreensão do tex-
do nível da exploração. Assim, em sua to. É verdade que o autor não chega a
interpretação, o conflito de classes, es- afirmar claramente a relevância da con-
pecialmente o fundamental, não fica au- cepção regulacionista, ficando a meio
sente; ao contrário, é aspecto central. caminho quando declara que ela cons-
É bem verdade que o artigo não tituiria um sério e enriquecedor desafio
pretende ser uma síntese da interpreta- ao “marxismo mumificado”. Pareceria
ção geral do autor e, assim, pode não ficar sugerida, assim, a necessidade
atender adequadamente leitores que iniludível de apelar para esse tipo de
busquem um primeira visão sobre ela. teoria. Se, de fato, esse era o recado,
No entanto, avança ao esclarecer sua parece-nos improcedente; para superar
perspectiva sobre a “mundialização”, as limitações do pensamento marxista
aspecto que, segundo suas próprias pa- contemporâneo é melhor, sem dúvida,
lavras, não ficara claro em anteriores uma volta substancial e adequada ao
escritos seus. É aqui justamente que se velho mestre: a Marx.
configura um dos dois pontos mais al- Do nosso ponto de vista, talvez a
tos do artigo: sua perspectiva é tributá- contribuição menos relevante (embora
ria de uma visão dialética de totalidade não desprovida de interesse, por repre-
e, nela, embora intuitivamente, estão sentar uma honesta postura reformis-

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ta) seja o texto de Wallerstein. A luta sabor de lei misteriosa que presidiria a
de classes passa longe de sua análise, trajetória do capitalismo. Ao contrário,
embora existam aqui ou ali algumas sobre as tendências estruturais de longo
menções a conflitos de interesses. O prazo (seculares), o autor procura justi-
autor chega a pensar em conflito ficar-se. Apela para uma espécie de
distributivo entre “classes inferiores” e reedição mal elaborada da tendência de-
“classes superiores”; refere-se, em deter- crescente da taxa de lucro. Foge da pro-
minado momento, à alta classe média fundidade da análise Marx, para cair
dos anos 80 (os “yuppies”). Há no tex- numa justificativa pouco substancial.
to de Wallerstein uma perspectiva de Assim, para ele, haveria uma ten-
totalidade para o entendimento do dência à elevação dos custos de produção
mundo capitalista, aliado, corretamen- para o capital e, portanto, uma redução
te, à idéia de que o futuro jamais se de sua remuneração, devido a três causas:
encontra totalmente determinado, ha-
vendo espaço significativo para a ação 1. Crescente dificuldade do capital
humana consciente. Além disso, para na sua estratégia de transferir in-
ele, a totalidade não é harmônica, mas vestimentos para áreas na peri-
conflitiva. Com isso, não é que faça feria, com a finalidade de encon-
concessão a Marx pensando a História trar trabalhadores dispostos a
como história da luta de classes, mas aceitar salários relativamente re-
não deixa de admitir o conflito entre duzidos, pelo menos nas ocupa-
uma sociedade absurda, resultado do ções mais qualificadas.
interesse imediato dos capitalistas, e os
interesses objetivos de um “amplo blo- 2. Crescentes custos para os in-
co mundial de forças democráticas”. sumos, em razão do esgota-
Wallerstein explica o período atual mento ecológico.
do capitalismo mundial, desde o final dos
anos 60 e início dos anos 70, através da 3. Crescentes custos que ele atri-
conjugação do ciclo Kondratiev na fase bui à democratização, que sig-
descendente, por um lado, com tendên- nificaria aumento progressivo
cias seculares, por outro. Estaríamos hoje dos gastos estatais (via eleva-
às portas de uma nova fase ascendente ção dos impostos), destinados
desse tipo de ciclo, mas o capitalismo já à saúde, educação etc., além
teria entrado “em seu período de crise da necessidade do atendimen-
terminal”, graças justamente a essas ten- to das maiores exigências sa-
dências seculares. Para nós, junto com a lariais dos trabalhadores.
idéia dos ciclos Kondratiev (de duração
aproximada de 50 anos) que se repetiri- De certa maneira, ao ler suas jus-
am, um depois do outro, fica um certo tificativas para essa “nova” lei da ten-

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dência decrescente da taxa de lucro, custos sobre o valor do capital constan-
parece que estamos vivendo em mun- te e, sobretudo, sobre o valor da força
dos diferentes. Difícil é acreditar que, de trabalho, antes de poder fazer qual-
na periferia, não se continue a encon- quer tipo de afirmação, mesmo que te-
trar trabalhadores mais baratos, muito órica, sobre a tendência da taxa de re-
mais baratos, mesmo em ocupações muneração do capital. Isso pressuporia
mais qualificadas. levar em consideração o aumento da pro-
No que se refere ao terceiro ele- dutividade do trabalho, a expansão das
mento, poderíamos dizer que há no jornadas e da intensidade do trabalho
autor, uma extrapolação perigosa: acre- (observadas amplamente no mundo atu-
ditar que as concessões que o capital fez al), para poder falar da taxa de mais-va-
aos trabalhadores no pós-guerra, no lia e, só depois, da taxa de lucro.
primeiro mundo, constituem tendên- Para concluir, devemos dizer que
cia universal e secular. Por outro lado, Wallerstein, embora sustente que o ca-
há uma deficiência teórica profunda: pitalismo entrou em sua crise terminal
confundir o salário em termos de valo- e apesar de que preveja o seu fim, ter-
res de uso com o salário em valor (que é mina sustentando que as “camadas ca-
o decisivo para a determinação da taxa pitalistas”, para não perderem seus pri-
de mais-valia e, portanto, para a magni- vilégios, procurarão construir um novo
tude do lucro), além de esquecer a ques- sistema, “de tipo desconhecido”, que
tão das transferências internacionais de conservaria a hierarquia e a desigualda-
valor destinadas aos países centrais. de como caraterísticas básicas. Contra
Finalmente, no que se refere ao isso, propõe “um amplo bloco mundial
segundo aspecto, não podemos deixar de forças democráticas”. A proposta não
de recordar autores do passado. Ricardo, nos parece realista, nem promissora.
já em 1815 e posteriormente na sua obra Após os três capítulos resenhados,
fundamental, explicava a tendência à o livro traz, como dissemos no início,
queda na taxa de lucro do capital pelo uma última parte dedicada à discussão
progressivo esgotamento dos recursos entre os autores. No primeiro capítulo
naturais (terras férteis e próximas), co- dessa parte, intitulado “Introdução à
locando em segundo lugar o avanço téc- discussão. Uma nova fase do capitalis-
nico. O pensamento ricardiano, mes- mo? Três interpretações marxistas”,
mo para a época, já era algo ingênuo. Gerard Duménil e Dominique Lévy
Sem negar a existência de custos apresentam um mapeamento das con-
crescentes para insumos naturais, não tribuições dos autores do livro e, no,
podemos nos contentar com uma aná- último capítulo, intitulado simplesmen-
lise tão superficial para explicar a ten- te “Discussão”, todos os autores e mais
dência da taxa de lucro. Seria necessá- três outros economistas marxistas dis-
rio discutir teoricamente o efeito desses cutem, uma a uma, as questões, teses e

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argumentos apresentados ao longo do
livro. Esses capítulos finais dão subs-
tância ao título da coleção que o Ce-
marx e a Xamã acabam de lançar: Se-
minário marxista – questões contempo-
râneas.

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