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D OS
Resumo Abstract
O artigo discute “canções de amor” que The article discuss “love songs” that
narram “rastros” do passado. Relaciona- narrate “traces” from the past. We re-
mos as músicas com o historiador na late the music to the historian in con-
interrogação contínua e sofisticada das tinuous and sophisticated interrogation
fontes e visto como o “ogro da lenda” of sources and seen as the “ogre of leg-
para “farejar carne humana” como end” who “pursues the smell of human
apontou Marc Bloch. Problematizamos flesh” as Marc Bloch pointed out. We
critérios e clivagens do campo musical e problematize criteria and cleavages of
usamos, nas disciplinas, canções diver- the musical field and used them, in the
sas, tanto em gêneros, como em tempo- disciplines, several songs, both genders,
ralidades: Velha Roupa Colorida e Como as in temporality: Velha Roupa Colori-
Nossos Pais de Belchior; Detalhes de Ro- da and Como Nossos Pais by Belchior;
berto Carlos; Fio de Cabelo de Chitãozi- Detalhes, by Roberto Carlos; Fio de Ca-
nho e Chororó; Tudo que Vai da banda belo by Chitãozinho & Chororó; Tudo
de rock Capital Inicial, e Moldura da que vai from the rock band Capital Ini-
banda de forró Desejo de Menina. Refle- cial, and Moldura from the forró band
timos com tais músicas: o papel funda- Desejo de Menina. We discuss: the key
mental dos vestígios no conhecimento role of traces in historical knowledge;
histórico; a compreensão de intenciona- understanding of intentionality / mem-
lidades/seletividades da memória; o diá- ory selectivity; dialogue between theory
logo entre teoria (perguntas) e o empíri- (questions) and the empirical (evi-
co (testemunhos) nas investigações das dence) in the investigation of historical
experiências históricas. experiences.
Palavras-chave: Marc Bloch; ensino de Keywords: Marc Bloch; History teach-
História; canções. ing; songs.
Não quero lhe falar Vou ficar nesta cidade Você pode até dizer
Meu grande amor Não vou voltar pr’o Que eu estou por fora
Das coisas que aprendi sertão Ou então
Nos discos... Pois vejo vir vindo no Que eu estou
Quero lhe contar vento enganando...
Como eu vivi O cheiro da nova estação Mas é você
E tudo o que E eu sinto tudo Que ama o passado
Aconteceu comigo Na ferida viva E que não vê
Viver é melhor que Do meu coração... É você
sonhar Já faz tempo Que ama o passado
E eu sei que o amor E eu vi você na rua E que não vê
É uma coisa boa Cabelo ao vento Que o novo sempre
Mas também sei Gente jovem reunida
vem...
Que qualquer canto Na parede da memória
E hoje eu sei
É menor do que a vida Esta lembrança
Eu sei!
De qualquer pessoa... É o quadro que dói mais...
Que quem me deu a ideia
Por isso cuidado meu Minha dor é perceber
De uma nova consciência
bem Que apesar de termos
E juventude
Há perigo na esquina Feito tudo, tudo, tudo
Está em casa
Eles venceram e o sinal Tudo o que fizemos
Guardado por Deus
Está fechado pra nós Ainda somos os mesmos
Que somos jovens... E vivemos Contando seus metais...
Para abraçar meu irmão Ainda somos os mesmos Minha dor é perceber
E beijar minha menina E vivemos Que apesar de termos
Na rua Como Os Nossos Pais... Feito tudo, tudo, tudo
É que se fez o meu lábio Nossos ídolos Tudo o que fizemos
O seu braço Ainda são os mesmos Ainda somos
E a minha voz... E as aparências Os mesmos e vivemos
Você me pergunta As aparências Ainda somos
Pela minha paixão Não enganam não Os mesmos e vivemos
Digo que estou encantado Você diz que depois deles Ainda somos
Como uma nova Não apareceu mais Os mesmos e vivemos
invenção ninguém Como Os Nossos Pais...
Vemos o peso dado por Marc Bloch aos vestígios na explicação histórica.
O conhecimento histórico como “um conhecimento através de vestígios”. Na
impossibilidade de captar o passado em si mesmo temos um saber acerca de
Em minha opinião, esses vícios podem ser resumidos na operação analítica, ain-
da presente em alguns trabalhos, que fragmenta este objeto sociológica e cultural-
mente complexo, analisando “letra” separada da “música”, “contexto” separado da
“obra”, “autor” separado da “sociedade”, “estética” separada da “ideologia”. Além
disso, outro vício comum da história tradicional, qual seja um certo viés evolu-
cionista para pensar a cultura e arte é totalmente descartado nesse livro. Minha
perspectiva é apontar para a necessidade de compreendermos as várias manifes-
tações e estilos musicais dentro da sua época, da cena musical na qual está inse-
rida, sem consagrar e reproduzir hierarquias de valores herdados ou transformar
o gosto pessoal em medida para a crítica histórica. (Napolitano, 2002, p.8)
pode-se definir a canção como uma narrativa que se desenvolve num interregno
temporal relativamente curto (em média, de dois a quatro minutos), que constrói
e veicula representações sociais, a partir da combinação entre melodia e texto
(em termos mais técnicos, melodias, harmonia, ritmo e texto). Produzida em
tempos de indústria fonográfica – no seio dela ou em relação com ela, ainda que
marginal –, circula majoritariamente por meio de registros sonoros, sendo veicu-
lada através dos meios de comunicação de massa (rádio, TV e mídias digitais,
por exemplo). Como um produto cultural do século XX, apesar de tratar de dife-
rentes temáticas e temporalidades, tem no processo crescente de urbanização e
Fio de Cabelo
Compositores: Marciano / Darci Rossi
que não volta mais, “o tempo passa e a gente vê as coisas de um jeito diferente”
e “é impossível que a magia seja a mesma eternamente”. Temos aí uma narra-
tiva de como o tempo deixa marcas a serem sentidas, cicatrizes a serem reme-
moradas: “e as lembranças ficam presas na moldura de um retrato...”.
O cancionista dessa letra, assim como das outras músicas citadas, se pro-
pôs a “simplesmente uma outra forma de falar dos mesmos assuntos do dia a
dia” (Tatit, 2004, p.72), capaz de representar e repercutir certas imagens sobre
o tempo de uma forma que podemos relacionar com o texto de Bloch. No caso,
uma leitura das dores do amor perdido, um lamento, em forma de letra e
melodia, sobre os efeitos do tempo e das ações humanas nele realizadas. Uma
narrativa, em forma de canção, que fez os estudantes se reconhecerem na músi-
ca e atentarem para sua construção, por isso sua riqueza em sala de aula. O que
podemos observar já pelo título, o termo “moldura” – cheio de significados:
Moldura
Compositor: Byafra
Esta canção foi apresentada em sala num notebook que exibiu o show onde
foi gravada pela primeira vez. Enfatizamos inicialmente a discussão da dimensão
do suporte em que a canção foi disponibilizada, uma vez que foi lançada de forma
inédita e exclusivamente em um show reproduzido em DVD. Observamos, além
da melodia e da letra, o contexto do show (do ano 2000 e parte do projeto Acústico
MTV) em que a música foi lançada. Apresentação que foi um marco na trajetória
da banda Capital Inicial, na ressignificação de suas músicas das décadas de 1980 e
1990, assim como referendou um novo repertório junto ao público mais jovem.
Tivemos em sala a discussão da trajetória e do contexto da banda e do show, das
performances dos instrumentistas e dos vocais na interpretação da canção.
Questionamos mais uma vez o que cada estudante pensava da música, se a
conhecia, como se relacionava com ela, que canções eram semelhantes àquela e
por quê. A música então, por diversas vezes, apareceu como apropriada pelos
estudantes e pelos professores, em diversas rodas de violão e festas. A letra melan-
cólica, casada com a melodia e a interpretação dadas, faz a canção ecoar na sala
provocando diversas “sensações” entre todos nós: “seu rosto em pedaços”, como
que remetendo a fotos rasgadas ou lembranças que se apresentam assim em esti-
lhaços – cortantes e quebradas; ou “tudo que vai deixa as fotos, deixa os dedos/
deixa memória/ eu já nem lembro mais”, num contraponto de uma música com
tanta dedicação em “chorar” memória e usar desse artifício no seu final para “não
lembrar mais”. E o que dizer dos “anéis”, talvez alianças, que se foram de tal
forma que nem aparecem na canção ao se cantar que os dedos ficaram?
Nesse sentido, a última canção de que falaremos ocupa lugar-chave por
se tratar, em nossa opinião, de referência para outras canções românticas que
pensam a passagem do tempo e as marcas criadas pelos sujeitos e de como
lidam com elas. Eu chamava a canção de uma espécie de “avó” das demais, e
com ela avançava ainda mais na análise da “dimensão do diálogo” presente nas
canções ouvidas em sala de aula. Indaguei se as outras músicas de alguma
forma sofreram influências explícitas ou não de sua letra. Será coincidência a
canção Moldura ecoar e, a nosso ver, dialogar com os versos de 30 anos antes,
escritos por Erasmo e Roberto Carlos: “mas na moldura não sou eu que lhe
sorri, mas você vê o meu sorriso mesmo assim”?
Composta e gravada em 1971, Detalhes pertence ao LP “Roberto Carlos”,
de 1971, da CBS. Disco que é um marco na carreira desse cantor no sentido de
fazer um balanço, apontando várias contradições e facetas de sua obra até então.
Detalhes
Roberto e Erasmo Carlos
há senão uma ciência dos homens no tempo e que incessantemente tem neces-
sidade de unir o estudo dos mortos ao dos vivos” (Bloch, 2001, p.67).
Considerações finais
Acredito que o trabalho em sala de aula com canções que tratam do tempo
e pistas do vivido suscitou várias questões presentes em Marc Bloch: a História
não é pontual e sim processual; não há verdades eternas e absolutas; é neces-
sário perceber e interpretar os silêncios e as seletividades das memórias; os
esforços permanentes de compreensão dos possíveis vestígios deixados; a
História só pode ser recuperada mediante investigação dinâmica cruzando
diferentes “testemunhos”, uma vez que “das eras que nos precedem, só pode-
ríamos [portanto] falar segundo testemunhas. Estamos, a esse respeito, na si-
tuação do investigador que se esforça para reconstruir um crime ao qual não
assistiu...” (Bloch, 2001, p.69).
Os estudantes, portanto, entraram em contato com um conhecimento que
só pode ser construído pela interpretação de pistas, de vestígios, do diálogo
entre “vivos e mortos”. O passado é intocável, mas o conhecimento sobre ele,
já o vimos com Bloch, está em constante construção, pois depende das perma-
nentes análises das marcas deixadas pelas ações humanas.
Assim, interessava-me, e interessa-me, no livro a sua riqueza enquanto
depoimento e balanço crítico de uma trajetória, não sua possível glorificação.
Não objetivava em sala de aula uma suposta “apologia à apologia” e sim o
debate crítico de suas reflexões e principalmente da atualidade e solidez/histo-
ricidade de suas propostas e desafios colocados no presente, potencializados
com o uso de canções que permitam outras reflexões sobre a obra e sua capa-
cidade em debater aspectos do oficio do historiador em suas ações e campos.5
Ao levar a obra para as aulas de disciplinas da Área de Teoria da História,
estava em jogo uma questão muito maior do que reforçar a “autoridade” de
Marc Bloch. Propus o estudo da “legitimidade da história” – de suas pesquisas
e de sua função social, pois Marc Bloch apresenta-nos um ofício com seus
desafios e possibilidades e pretendeu “antes de tudo, dizer como e por que um
historiador pratica seu ofício”. A legitimidade se faz da decisão do leitor ao
entrar em contato com a beleza e angústia da trajetória e decidir “em seguida,
se tal ofício merece ser exercido” (Bloch, 2001, p.46).
Mas não escrevo unicamente nem tampouco, sobretudo para o uso interno da
oficina. Tampouco cogitei escrever, aos simples curiosos, as irresoluções de nossa
ciência. Elas não são desculpas. Melhor ainda: dão frescor aos nossos estudos.
Não apenas temos o direito de reclamar em favor da história, a indulgência devi-
REFERÊNCIAS
ALONSO, Gustavo. Quem não tem swing enche a boca de formiga: Wilson Simonal e
os limites de uma memória tropical. Rio de Janeiro: Record, 2011.
ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro não: ditadura militar e música cafona.
Rio de Janeiro: Record, 2003.
BITTENCOURT, Circe Maria F. O Ensino de História: fundamentos e métodos. São
Paulo: Cortez, 2004.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Oficio de Historiador. Trad. André Telles.
Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
_______. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales. (1929-1989): a Revolução Francesa da Historio-
grafia. Trad. Nilo Odália. São Paulo: Ed. Unesp, 1997.
CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria A. Ensinar História. São Paulo: Scipione,
2004.
DUBY, Georges. A História continua. Trad. Clovis Marques. Rio de Janeiro: Zahar,
1993.
FURTADO, João Pinto. A Música Popular Brasileira dos anos 60 aos 90: apontamen-
tos para o estudo das relações entre Linguagem e Práticas Sociais. Pós-História,
Assis (SP), v.5, p.123-143, 1997.
Músicas
Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida (Belchior), LP “Alucinação”, Philips, 1976.
Detalhes (Roberto Carlos / Erasmo Carlos), LP “Roberto Carlos”, CBS, 1971.
Fio de Cabelo (Marciano / Darci Rossi), LP “Somos Apaixonados”, Copacabana, 1982.
NOTAS
1
Apontamentos sobre as circunstâncias e a importância da feitura da obra e da produção
mais vasta de Marc Bloch e dos Annales podem ser vistos nos prefácios de Lilia Schwarcz e
Jacques Le Goff presentes na edição brasileira de Apologia da História, assim como em li-
vros de Burke e Reis.
2
Algo que podemos ver no trecho a seguir em que tal dialética das temporalidades se apre-
senta como uma das forças do livro e que faz sua atualidade ser ainda maior: “Li muitas
vezes, narrei frequentemente, relatos de guerras e de batalhas. Conhecia eu verdadeira-
mente, no sentido pleno do verbo conhecer, conhecia por dentro, antes de ter eu mesmo
experimentado a atroz náusea, o que são, para um exército, o cerco, para um povo, a der-
rota? Antes de ter eu mesmo, durante o verão e o outono de 1918, respirado a alegria da
vitória – na expectativa, e decerto espero, de com ela encher uma segunda vez meus pul-
mões, mas o perfume, ai de mim, não será mais completamente o mesmo –, sabia eu ver-
dadeiramente o que encerra essa bela palavra? Na verdade, conscientemente ou não, é
sempre a nossas experiências cotidianas que, para nuançá-las onde se deve, atribuímos
matizes novos, em última análise os elementos, que nos servem para reconstituir o passa-
do: os próprios nomes que usamos a fim de caracterizar os estados de alma desaparecidos,
as formas sociais evanescidas, que sentido teriam para nós se não houvéssemos antes visto
homens viverem? Vale mais [cem vezes] substituir essa impregnação instintiva por uma
observação voluntária e controlada. Um grande matemático não será menos grande, supo-
nho, por haver atravessado de olhos fechados o mundo onde vive. Mas o grande erudito
que não tem o gosto de olhar a seu redor nem os homens, nem as coisas, nem os aconteci-
mentos, [ele] merecerá talvez, como dizia Pirenne, o título de um útil antiquário. E agirá
sensatamente renunciando ao de historiador” (BLOCH, 2001, p.66).
3
Sobre o tema da “cultura da memória” no regime de historicidade presentista atual, des-
taco que “o presente contemporâneo e o presentismo que o acompanha revelaram-se difi-
cilmente suportáveis. De modo que a demanda da memória pode ser interpretada como
uma expressão dessa crise de nossa relação com o tempo, assim como uma maneira de
procurar responder a ela” (HARTOG, 2013, p.186). E ainda que “a cultura da memória
preenche uma função importante nas transformações atuais da experiência temporal, no
rastro do impacto da nova mídia na percepção e na sensibilidade humanas” (HUYSSEN,
2000, p.25-26). Cabe ressaltar que nesses processos mnemônicos em suas seletividades e
relativos à “construção dos sentidos sociais da canção popular brasileira” (HERMETO,
2012, p.52-53) foi possível perceber como muitos estudantes nos debates apontaram para
Como Nossos Pais como uma música composta por Elis Regina. Algo que remetia ao papel