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DA INJUSTiÇA
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Christophe Dejours
Tradução Luiz Alberto Monjardim
5ª edição
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A banalização da injustiça social
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A banalização da injustiça social
Christophe Dejours
Por que o discurso economicista que atribui o infortúnio à cau- sição central. O trabalho tem efeitos poderosos sobre o sofrimento psíquico. Ou bem con-
tribui para agravá-lo, levando progressivamente o indivíduo à loucura, ou bem contribui
salidade do destino, não vendo responsabilidade nem injustiça na ori- para transformá-lo, ou mesmo subvertê-lo, em prazer, a tal ponto que, em certas situa-
gem desse infortúnio, implica a adesão maciça de nossos concidadãos, ções, o indivíduo que trabalha preserva melhor a sua saúde do que aquele que não traba-
com seu corolário, à resignação ou à falta de indignação e de mobiliza- lha. Por que o trabalho ora é patogênico, ora estruturante? O resultado jamais é dado de
nrncmão. Depende de uma dinâmica complexa cujas principais etapas são identificadas e
ção coletiva? Para responder a essa pergunta, creio que a psicodinârni-
unalísndas pela psicodtnârnica do trabalho.
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A banalização da injustiça social Chrlstophe Dejours
co tempo. Segundo a interpretação mais corrente, essa insólita passivida- não é a causa da desmobilização. Seria antes o resultado desta, resulta-
de coletiva estaria ligada à falta de perspectivas (econômica, social e políti- do que, por muitos anos, foi ao mesmo tempo incerto e surpreendente.
ca) alternativas. Certamente é difícil negar essa falta de alternativa rnobili- Esse período de 15 anos também se caracteriza, no universo do
zadora. Mas seria ela, como pensam muitos analistas, a causa dessa inér- trabalho, pela adoção de novos métodos de gestão e direção de empresas, o
cia social e política ou sua conseqüência? Particularmente, não creio que que se traduz pelo questionamento progressivo do direito do trabalho e das
os movimentos coletivos de dimensão social sejam habitualmente mobiliza- conquistas sociais (Supiot, 1993). Esses novos métodos se fazem acompa-
dos pela vontade de marchar para uma felicidade prometida, ainda que nhar não apenas de demissões, mas também de uma brutalidade nas re-
por uma ideologia estruturada. Entendo que -a mobilização tem sua prin- lações trabalhistas que gera muito sofrimento. Decerto que essa brutali-
cipal fonte de energia não na esperança de felicidade (pois sempre duvida- dade é denunciada. Mas a denúncia permanece absolutamente sem con-
seqüência política, pois não há mobilização coletiva concomitante. Ao
mos dos resultados de uma transformação política), mas na cólera contra
contrário, essa denúncia parece compatível com uma crescente tolerância à
o sofrimento e a injustiça considerados intoleráveis. Em outras palavras, a
injustiça. Acaso devemos ver nisso a prova da fragilidade dos discursos
ação coletiva seria mais reação do que ação, reação contra o intolerável,
de denúncia no plano político ou o indício de uma duplicidade que, por
mais que ação voltada para a felicidade.i' Exemplo disso, entre outros, são
trás da denúncia, esconde uma tolerância crescente? Será que a denún-
os movimentos grevistas de novembro/dezembro de 1995: o que os pro- cia funciona aqui de uma maneira inusitada, ou seja, que em vez de ca-
vocou foi a cólera contra o desmantelamento do serviço público, e não a talisar a ação política ela serve para familiarizar a sociedade civil com a
perspectiva de um futuro risonho. Voltando à falta de alternativa ideológi- adversidade, para domesticar as reações de indignação e para favorecer
ca, sou propenso a crer que ela é geneticamente secundária, e não primá- a resignação, constituindo inclusive uma preparação psicológica para pa-
ria, em relação à falta de mobilização coletiva contra a adversidade e a in- decer a adversidade?
justiça infligidas a outrem.
Nessa perspectiva, devemos tentar explicar de outra forma, que
não pela falta de utopia social alternativa, a precariedade da mobiliza-
ção coletiva contra o sofrimento. O problema passa a ser então o do de-
senvolvimento da tolerância à injustiça. É justamente a falta de reações
coletivas de mobilização que possibilita o aumento progressivo do desem-
prego e de seus estragos psicológicos e sociais, nos níveis que atualmen-
te conhecemos.
É indiscutível que os anos Mitterrand (1981-95) foram marca-
dos por uma reviravolta ideológica em relação aos ideais socialistas, sob
a forma de um "economicismo de esquerda". Mas essa reviravolta políti-
ca, que consiste em colocar a razão econômica acima da razão política,
3 Nessa esfera, portanto, as condutas coletivas se distinguem das condutas particulares cu-
jo primum movens, em vez de racional, pode ser primariamente induzido pelo desejo (ou
pela pulsão). Tal diferença me parece atestada pela experiência clínica em psicodinâmica
do trabalho, que faz do médico ou do pesquisador uma testemunha privilegiada do surgi-
menro e da extinção dos movimentos coletivos concernentes à justiça e à injustiça nos lo-
cais de trabalho. Essa experiência, comparada à experiência clínica do psicanalista, sugere
- voltaremos a esse ponto mais adiante - uma diferença radical entre processo de mo-
bilização subjetiva individual e processo de mobilização coletiva na ação.
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