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RESUMO
Em sua origem, a clínica psica-
A CLÍNICA
nalítica de crianças nos brindou
com os importantes aportes de
PSICANALÍTICA: DE
Melanie Klein e Anna Freud,
que nos apontaram a
CRIANÇAS A BEBÊS,
especificidade dessa clínica. S e
o que antes ocupava as analis- UMA ESPECIFICIDADE
tas repercutia na técnica a ser
utilizada com crianças, nossa
proposição sustenta uma
especificidade ainda mais singu-
lar quando se trata de bebês,
uma vez que não se pode escutá- Denise Carvalho Barbosa
los da mesma maneira que se
escuta uma criança que já ence-
na em seu brincar a apropria-
ção dos significantes do Outro.
Na atualidade, após décadas de
história clínica veremos que,
além da importância de uma
estratégia clínica apropriada ao
psiquismo infantil, será na re-
lação do inconsciente com a lin- A psicanálise de crianças, inaugurada pelo
famoso pequeno Hans, foi empreendida numa situ-
guagem que esta clínica encon-
trará subsídios que autorizem ação ímpar, já que Freud o viu uma única vez e o
uma intervenção analítica. tratamento, sob sua supervisão, esteve a cargo do
Descritores: bebês; clínica
pai, Max Graf1. Sem pretender fazer desta o protóti-
psicanalítica; crianças;
psiquismo infantil. po da análise de crianças e sem que se fizesse uso da
transferência como instrumento técnico, Freud, neste
momento, conclui: “Só porque a autoridade de um
pai e a de um médico se unia numa só pessoa, e
porque nela se combinava o carinho afetivo com o
interesse científico, é que se pôde, nesse único exem-
plo, aplicar o método em uma utilização para a qual
ele próprio não se teria prestado, fossem as coisas
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com o filho, já que ela “não brincou começou a arrastar seu pézinho quan-
quando criança”, e a dificuldade de do anunciei o final da sessão: “veja
saber o que ele quer, já que ele verba- doutora”, diz a mãe: “ele não quer ir
liza muito pouco e de forma bastante embora, agora você quer ficar, é? É,
truncada; diante desses obstáculos, ela danadinho?” – ele abraça a mãe e diz
não se autoriza a aventurar-se pelo – “é”. Acolher a demanda de
viés do seu desejo, não codifica seus Manuelito, dilatando o tempo da ses-
gestos e não lhe ocorre perguntar ao são, foi também uma maneira de en-
filho o que ele quer, embora saiba que dossar a interpretação materna e le-
ele quer alguma coisa. É interessante gitimar-lhe o lugar de Outro do bebê.
notar que, embora haja uma suposi- Um pequeno recorte clínico de
ção de sujeito, não há uma suposição sessões ocorridas após um ano de
de saber nele, provavelmente devido atendimento: Manuelito “batuca”
à representação que ela tem dele – um com suas mãozinhas no divã extrain-
outro filho autista – como também do um som que o surpreende e con-
pelo fato de se sentir fracassada en- voca o olhar da analista, o que o leva
quanto mãe, de não supor em si um a repetir sua façanha. O ritmo de sua
saber sobre o filho. A atitude mater- batida evoca uma conhecida música
na frente à demanda do filho, a falha espanhola e a analista começa a can-
da função observada na dificuldade tarolar; o curioso é que a analista não
de lançar mão de seu repertório par- sabe a letra, mas a música, esse novo
ticular para significar a demanda do sentido, o empolga, ele dança, grita e
filho e de fazer dele seu interlocutor o grito, antes estranho, agora parece
(Barbosa, 2009), a angústia e a falta familiar, já que, mesmo sem palavras,
de recursos para elaborá-la, evidenci- passamos a compartilhar o mesmo
ados na pobreza simbólica do seu código, elemento essencial para o gan-
brincar, denunciam um sintoma clí- cho transferencial. A partir de então,
nico; é preciso intervir, emprestar-se as sessões começarão com o grande
como o Outro do bebê. concerto do pequeno percussionista
Certa vez Manuelito foi atendi- que, por um bom período, não dis-
do na sala de espera: ao chegar a sua pensará o olhar e a voz da cantora
vez, observo certa lentidão nos seus improvisada, objetos a da analista que
passinhos, algo que contrastava com se deixa fisgar, e que se ofertam como
as vezes em que ele adentrava corren- legitimadores de uma produção sig-
do, assim que a porta se abria – “o nificante, na qual ele poderá se fazer
que esse passinho quer dizer, representar “agora eu era o a(r)tista”.
Manuelito?” Ele sorri e busca os brin- Em seguida, Manuelito se interessará
quedos da sala de espera. O efeito por uma parte do corpo da analista:
desta leitura pode ser observado al- com uma panelinha pega pelo cabo
gumas sessões seguintes: Manuelito como se fosse a extensão de sua mão,
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ABSTRACT
In the beginning, important contributions of Melanie Klein and Anna Freud showed us the
specificity of the psychoanalytical clinic for children. However, if this subject resulted in a
change in the technique for treating children, we propose a more specific approach when dealing
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RESUMEN
En su origen la clínica psicoanalítica de niños nos brindó con los importantes aportes de Melanie
Klein y Anna Freud, las cuales nos señalaron la especificidad de esa clínica. Si lo que antes
ocupaba a las psicoanalistas repercutía en la técnica a ser usada con niños, nuestra propuesta
sustenta una especificidad todavía más singular cuando se trata de bebés, una vez que no pueden
ser escuchados de la misma manera que se escucha a un niño que ya escena en su juego la
apropiación de los significantes del Otro. En la actualidad, después de décadas de historia
clínica, veremos que, además de la importancia de una estrategia clínica apropiada al psiquismo
infantil, será en la relación del inconsciente com el lenguaje que esta clínica encontrará subsidios
que autoricen una intervención analítica.
Palabras clave: bebés; clínica psicoanalítica; niños; psiquismo infantil.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
1 Análise que permitiu a Freud assentar os fundamentos para a compreensão da linguagem
pré-verbal e utilização da interpretação (Aberastury, 1986), cujos efeitos confirmaram a possi-
bilidade de se analisar crianças, bem como também comprovar suas descobertas acerca da
sexualidade infantil.
2 Jerusalinsky (2005, p. 49) “também as estruturas da infância são provisórias. Porque depen-
dem das transformações que se produzem nas relações com este Outro primordial encarnado
nos pais”.
Lembremos o quanto há de freudiano nesse pressuposto, na insistência do psicanalista em
defender, desde o início, – embora isso vá tomando contornos diferentes ao longo de sua obra
–, a necessidade de dois tempos para que se configure uma psicopatologia, o tempo da inscri-
ção, na infância, e o da fixação do sintoma, quando chega a puberdade, momento de eclosão da
sexualidade e do imperativo da escolha do objeto, a qual comporta uma renúncia à mãe, entan-
to primeiro objeto de amor.
3 Jerusalinsky (1988) já havia anunciado a “permeabilidade biológica ao significante” (p. 44).
4 Esta correlação entre o desenvolvimento e a constituição psíquica é abordada amplamente
por Julieta Jerusalinsky (2002).
5 Jerusalinsky (1990) se refere à posição temporal do Nome-do-pai; segundo ele, a problemá-
tica da sexuação é, precisamente, a que determina a posição do inconsciente na infância.
6 Considerando a anterioridade da voz em relação ao olhar, Catão (2009) propõe a voz como
o primeiro organizador do caos psíquico em que se encontra o infans.
7 “Desde o nascimento, a criança é um ser de fala, receptivo e ativo, à espera de trocas
sensório-motoras da linguagem vocal e gestual, e atento ao outro que o embala, lhe sorri e lhe
fala” (Dolto, citado por Ledoux, 1991, p. 24).
8 Para nós, trata-se de semblantear, uma vez que, embora o analista fale pelo bebê, é dos
enunciados parentais que ele se vale para intervir. Pensamos nas duas vertentes do laço primor-
dial de que nos fala Cullere-Crespin (2004), que aqui referimos ao lugar ocupado pelo analista
na transferência.
denise.cb@uol.com.br
Rua Marechal Deodoro, 139/102
48005-020 – Alagoinhas – BA – Brasil.
Recebido em dezembro/2010.
Aceito em maio/2011.
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