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Folha de S.Paulo - O iluminado - 25/05/2008 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2505200806.

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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2008


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O iluminado
O ITALIANO VITTORIO STORARO FALA SOBRE O
PARENTESCO ENTRE PINTURA E CINEMA E
EXPLICA O QUE APRENDEU COM BERTOLUCCI E
COPPOLA

MARIA ANDREA MUNCINI


COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Vittorio Storaro é certamente um dos melhores diretores de


fotografia em atividade. Prova disso são os filmes rodados
com grandes cineastas europeus e americanos mas também,
o que é algo raro, suas teorias sobre a luz e a poética a ela
relacionada. Desse ponto de vista ele é um autêntico
discípulo do pintor Caravaggio (1571-1610), tema de
produção homônima para a TV da qual participou no ano
passado.
Mas há outra coisa que o distingue de seus melhores colegas:
ele não quer ser chamado de "diretor de fotografia".
Assim, qualquer um que o entreviste ficará desconcertado
por essa objeção que, embora aparentemente bizarra, adquire
uma lógica própria assim que Storaro, com muita paciência,
expõe os seus motivos ao interlocutor intimidado.
A surpresa de quem o escuta, a meio caminho entre a
perplexidade e a curiosidade, é imediatamente satisfeita e
ampliada quando Storaro conclui dizendo que gostaria de ser
definido como "cinematógrafo", por analogia a "fotógrafo":
enquanto este escreve com a luz (segundo a etimologia grega
do termo), mas com imagens fixas, ele escreve com a luz,
mas com imagens em movimento (como se deduz do grego
"kinésis", que forma a primeira parte da palavra
cinematógrafo).
A insistência no uso desse termo tem mais uma explicação.
Quando se roda um filme, diz Storaro, há apenas um diretor
no set, que é o cineasta, e não pode haver outro.
Storaro é um conversador muito cordial, que deixa qualquer
interlocutor à vontade, mesmo quando se fala de conceitos
sobre a luz, de sua importância, do envolvimento total no
plano expressivo e criativo, do processo lento e
profundamente sentido que leva à reflexão, a ver dentro de si
com um olho novo e consciente.
Sua evolução pessoal, que Storaro narra com lucidez crítica
e envolvimento apaixonado, enreda totalmente seu ouvinte
(e também, é claro, o leitor dos seus livros, como a série
"Scrivere con la Luce", Escrever com a Luz).
Romano, 67 anos, filho de um projecionista da Lux Film,
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entusiasta precoce da fotografia, já aos 18 anos Storaro era
um dos melhores alunos do Centro Experimental de
Cinematografia de Roma.
Pouco depois, em 1961, estava atrás das câmeras como
cinegrafista de "Pugni, Pupe e Marinai" (Socos, Gatas e
Marujos), de Daniele D'Anza. Em seguida, foi assistente de
"Antes da Revolução" (1964), de Bertolucci, e diretor de
fotografia do filme "Giovinezza, Giovinezza" (Juventude,
Juventude, 1969), de Franco Rossi.
Daquele momento em diante, tornou-se cada vez mais
reconhecido, e a fama do seu talento cruzou o Atlântico,
quando passou a trabalhar para diretores como Francis Ford
Coppola e Warren Beatty, Michael Apted e Richard Donner.
Obviamente continua trabalhando com italianos e europeus,
tanto que assina quase todos os filmes de Bertolucci e do
espanhol Carlos Saura, com um currículo que já ultrapassa
40 filmes.

FOLHA - De que modo o sr. buscou recuperar a pintura de


Caravaggio com os meios do cinema?
VITTORIO STORARO - O cinema como arte complexa traz
em si a arte da pintura, e não há dúvida de que somos o
resultado de todos os artistas, de todas as emoções, todas as
ideações e criatividade que nos precederam no campo das
artes figurativas. Também não há dúvida de que Caravaggio
é um dos principais protagonistas da relação entre luz e
sombra nas artes figurativas. A princípio me baseei nisso
para restituir visualmente sua vida, sua atividade sacra,
analisando a relação figurativa que esse artista estabelece
com a luz.
No início de sua atividade, a luz é muito difusa, nórdica (ele
nasceu em Caravaggio, um povoado na Província de
Bergamo). Depois, pouco a pouco, a paisagem se anula, o
fundo se torna escuro e dali extrai as personagens colhidas
pela luz.
Chega assim à "Vocação de São Matheus", que constitui um
momento revolucionário da arte pictórica, uma relação
extraordinária entre luz e sombra, com aquele raio de sol que
atravessa toda a cena e a divide em duas entidades.
Foi esse traço revolucionário que tentei colocar no centro da
história, uma vida passada entre luz e sombra, duas partes
que se unem num conjunto harmônico e ao mesmo tempo
conflituoso.

FOLHA - O sr. já pintou?


STORARO - Não. Não só não sei pintar mas nem sequer
desenhar. Por isso tento me expressar pela fotografia.

FOLHA - Corrija-me se eu estiver errada: até hoje o sr. já


participou de cerca de 40 filmes. A pergunta é: por que
decidiu trabalhar numa minissérie de TV?
VITTORIO STORARO - Na realidade, "Caravaggio" não é
uma minissérie de TV, mas um filme para a televisão, um
projeto realizado em dois episódios de cem minutos cada
um. Mas o primeiro filme para a TV de que participei foi "A
Estratégia da Aranha", de Bertolucci.
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Em "Caravaggio", o que mais pesou foi a história, a
reconstrução de época, mesmo buscando a maior
proximidade possível com o homem Caravaggio, com sua
vida, seu sofrimento, com o fato de ter sido considerado um
"pintor maldito", a dor da criança que perde o pai aos seis
anos e, aos 18, a mãe, o trauma do menino provavelmente
violentado aos 12 anos pelo primeiro professor...
Traumas e feridas que carregou pela vida inteira, conflitos
internos que seguramente influíram em sua pintura, toda
feita de luz, que se pode entender como consciência, e de
obscuridade, que se pode entender como inconsciente.
Estou convencido de que, em Caravaggio, a sombra é mais
importante do que a luz, luz que ele faz emergir da sombra,
da escuridão.
Quando, seis ou sete anos atrás, a produtora Ida Di
Benedetto me propôs o projeto do "Caravaggio", comecei a
estudar as cenas e os copiões à medida que eles evoluíam e
se modificavam com o tempo e percebi que aquela história
me pertencia bastante, quase demasiadamente, tanto que eu a
aceitaria qualquer que fosse o formato: um desenho, um
grafite na parede de uma caverna, uma história em
quadrinhos, um filme ou um episódio televisivo, enfim,
qualquer coisa.
Lembro que, durante meu curso de fotografia, um professor
nos disse: "Como é impossível saber tudo de tudo,
lembrem-se de que a coisa mais importante é saber onde
buscar as coisas que precisamos conhecer. Haverá um
momento em que vocês se interessarão por algum tema:
então escavem nele o melhor que puderem".
Mas logo entendi que a melhor escola para mim era
justamente meu trabalho, ou seja, uma série de
oportunidades que me permitiam aprofundar, cada uma, um
tema a ser pesquisado, indagado, estudado.
Por exemplo, em "O Conformista", de Bertolucci, eu teria
pela frente a Itália dos anos 1930, a figura de Alberto
Moravia, a arquitetura racionalista, a pintura de Giorgio de
Chirico.
Ou, para citar outro exemplo, também de Bertolucci, "O
Último Imperador", que me levou a estudar a cultura
chinesa. Ou, então, a cultura árabe, em "O Céu Que Nos
Protege", ou a russa, em "Pedro, o Grande".

FOLHA - Quais são as diferenças (se é que existem) entre


trabalhar para o cinema e para a TV?
STORARO - Do meu ponto de vista não vejo diferenças,
pois em ambos os casos se trata de imagens em movimento.
A distinção entre "para a tela grande" e "para a telinha" me
parece cada vez mais carente de sentido, já que as telas têm
encolhido nos multiplex, enquanto as telas de TV e os
videoprojetores aumentam de tamanho.
É por isso que tenho em mente um projeto de unificação dos
formatos de cinema e TV, que chamo de Univisium (que em
latim significa justamente "visão única").
Por exemplo, tomemos "O Último Imperador", de
Bertolucci, filmado em cinemascope, um formato com
predomínio da dimensão horizontal, muito apreciado pelos
espectadores das salas cinematográficas por seu poder de
envolvimento.
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Na TV esse tipo de formato, para se adaptar aos padrões
televisivos, passa por cortes que incidem em seus extremos,
direito e esquerdo, cortes que evidentemente alteram os
enquadramentos do filme, às vezes ocultando parte dos
atores. Para contornar esse grave e irritante inconveniente,
pensei num formato que esteja em equilíbrio entre o do
cinema e o da TV, constituído substancialmente por dois
quadrados, ou seja, com a largura duas vezes maior que a
altura, mais ou menos como a pintura "A Última Ceia", de
Leonardo da Vinci. Usei esse formato, por exemplo, para
Carlos Saura em "Tango" e em "Goya", e também em
"Mirka", de Rachid Benhadj. Atualmente, sempre com o
formato Univisium, estou filmando "Eu, Don Giovanni",
mais uma vez para Saura.

FOLHA - Luca Ronconi, com quem o sr. trabalhou em


"Orlando Furioso", é um diretor de teatro. Existe uma
relação diferente da iluminação para o teatro e para o set
de filmagem?
STORARO - Minha experiência com o teatro chamou minha
atenção para o fato de que a iluminação não era fruto de uma
pesquisa específica, que corria o risco freqüente de perturbar
o sentido das cenas, da recitação dos atores e, no caso da
ópera lírica, dos cantores. O que me interessava era intervir
criativamente na iluminação aos olhos dos espectadores.
Assim, minha expressão não sofria nenhuma alteração
técnica, mas agia diretamente, apenas com a iluminação.
Mas, após essa experiência, também compreendi que a
minha expressão se completava justamente com o uso de
todas as tecnologias que pertencem à palavra
"cinematografia". É por isso que me considero um
"cinematógrafo", que é, como sugere a etimologia da
palavra, alguém que "escreve com a luz" no cinema, ou seja,
em movimento, com um tempo e um ritmo, a fim de contar
uma história.

FOLHA - E quanto à ópera? STORARO - Já havia tido


experiências com a música lírica quando trabalhei para
Bernardo Bertolucci, que em seus filmes quase sempre
insere referências musicais extraídas de óperas líricas, o que
é típico de um bom emiliano nascido em Parma, onde há
essa espécie de templo da música lírica que é o teatro Regio.
Na ópera, os ritmos distintos, sejam de Verdi, Puccini ou de
outro compositor, me levam a criar iluminações diversas,
que dependem da história, mas também da estrutura musical
que a sustenta, além dos movimentos ligados ao
desenvolvimento cênico, igualmente funcionais para os
ritmos da narrativa e da música.

FOLHA - Podendo escolher entre tomadas internas e


externas, quais preferiria?
STORARO - Mais que escolher entre internas e externas, a
grande diferença talvez esteja entre o espaço fechado do
estúdio e os lugares reais. Explico. O lugar onde estamos
conversando é um interior, mas está articulado ao exterior, já
que ao redor há uma relação interno/externo (janelas, portas,
entradas e saídas), tudo de algum modo ligado à luz solar
que cresce e decresce. Nossa intervenção consiste em
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acrescentar, difundir ou tentar limitar a grande energia
visível da luz solar, que muda segundo as estações, as horas
do dia e até a angulação -isto é, o ponto de vista com o sol à
frente ou atrás.
Essa variabilidade pode ser compatível ou não com nossas
escolhas prévias, em razão da cena que vamos filmar. No
segundo caso, precisamos contornar as condições adversas,
tentando modificá-las de algum modo com os meios técnicos
de que dispomos. Ao contrário, quando estamos em um
interno/interno, como em um estúdio cinematográfico,
ficamos completamente livres e podemos recriar aquele tipo
específico de visão, mesmo que se trate da reconstituição de
um espaço externo. Um exemplo: para a última cena de "Eu,
Don Giovanni", foi reconstituída uma praça com um canal
veneziano mediante um sistema especial já experimentado
em "Duna" [série de TV] e utilizado também no "Goya" de
Saura: a cenografia não é construída em três dimensões, mas
em duas, ou seja, é feita apenas de imagens fotográficas
elaboradas no computador (proporções, cores etc.),
impressas em folhas de plástico colocadas em estruturas
específicas e iluminadas de tal modo que o espaço parece
tridimensional, mesmo não sendo nada mais que folhas de
plástico com imagens impressas.
Em seguida, com a iluminação, é possível mudar a visão de
acordo com as várias necessidades. Tudo isso com uma
enorme economia de custos.

FOLHA - Mas não é melhor trabalhar em locações reais?


STORARO - As reconstituições são habituais, sempre foram
feitas e sempre se farão, mas, quando se pode, é sempre
melhor estar o mais perto possível dos lugares reais, por uma
questão de cultura.
Quando rodamos "Pedro, o Grande", estávamos num
pequeno vilarejo a três horas de Moscou, com uma
temperatura de -20C. Uma coisa é ver a respiração dos atores
se condensando enquanto falam, outra é filmar em um
estúdio aquecido. Reconstruímos certos interiores de
Moscou (e o modelo estava bem próximo de nós), já que não
era possível levar uma trupe cinematográfica para dentro do
Kremlin.
No entanto o cenógrafo era russo, falava-se russo,
circulavam revistas e livros russos, ou seja, a cultura russa
estava ao redor e dentro de nós. O mesmo aconteceu nos
filmes ambientados na China ("O Último Imperador"), na
Arábia Saudita ("O Céu Que Nos Protege") ou no Butão ("O
Pequeno Buda").

FOLHA - O sr. poderia falar sobre os problemas discutidos


em "Escrever com a Luz"?
STORARO - Trata-se da obra que resume as fases
fundamentais da minha pesquisa. Como não concluí estudos
específicos, senti a necessidade de preencher minhas
lacunas, sobretudo no campo da história da arte e dos
problemas da arte, trabalhando como autodidata. Daí as
leituras, audições de música, leitura de poesia, filmes e
história do cinema, arquitetura etc. Tomava notas, tentava
instruir-me também em filosofia, comecei a freqüentar mais
os museus e as galerias e tudo isso me ajudou a compreender
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melhor não só o significado das coisas, mas também o
porquê da emoção que a luz me suscitava e, de maneira
diversa, a sombra; as várias vibrações na presença de várias
cores... Tudo isso eu aproveitei à medida que avançava em
meu trabalho e depois incluí em minhas observações,
redigidas quando filmávamos "Pedro, o Grande" na Rússia,
recuperando inclusive reflexões de quando rodei filmes mais
antigos, como "O Conformista" ou "O Último Tango em
Paris".
E, como sou um escritor de imagens, me dei conta de que
deveria inserir imagens naqueles textos sobre a luz, de modo
que se pudesse entender melhor meu pensamento. Então
organizei o material escrito incorporando muitas fotografias
e referências a textos filosóficos, a começar por Platão e indo
até os ensaios mais específicos de Eisenstein,
enriquecendo-os com observações minhas.
No final dos anos 70, após ter filmado "Apocalypse Now",
de Coppola, parei para refletir sobre meu trabalho, todo ele
centrado nos valores da luz, e então descobri a cor e passei a
estudá-la, escrevendo e me respaldando em muitas outras
obras. Trabalhando com Bernardo Bertolucci e mais tarde
com Coppola ("Tucker - Um Homem e Seu Sonho"), pude
utilizar com maior conhecimento de causa a simbologia e a
fisiologia da cor. Continuei minha pesquisa sobre o
equilíbrio dos elementos, como nos filmes de Beatty
("Reds", "Dick Tracy", "Politicamente Incorreto"), buscando
expressar emoções e caracterizar as personagens numa
espécie de vocabulário visual. Concluído "O Último
Imperador", senti a necessidade de refletir mais um pouco e
retomei meus estudos, partindo do conceito de equilíbrio dos
filósofos gregos, que Aristóteles e Tales viam como o
conjunto harmônico dos elementos da vida. Fiz um trabalho
de investigação sobre o equilíbrio entre elementos opostos,
como homem e mulher, consciente e inconsciente, sobre as
cores vermelha, verde e azul, sobre a luz e a sombra.
Um terceiro percurso leva diretamente ao "Pequeno Buda",
com as considerações sobre todos os estilos aplicados às
imagens dos filmes que fiz -imagens que pus ao lado do
texto. Desse material surgiu a idéia de montar uma mostra
fotográfica com as fotos mais significativas do meu trabalho
no cinema.
Assim nasceu a exposição itinerante "Escrever com a Luz
-Duplas Impressões entre Fotografia e Cinema", que, depois
de percorrer algumas cidades italianas, irá para a Suíça, a
Grécia e a Espanha. Espero levá-la também ao Brasil.

FOLHA - A luz pode transformar um estado de espírito?


Qual é a cor que lhe propicia uma maior harmonia com a
vida?
STORARO - Antes de tudo penso que a luz, sendo uma
energia cuja parte visível é captada pelo órgão da visão,
chega até nós ainda que não a busquemos.
Somos como placas sensíveis, e, segundo o tipo de luz que
recebemos, altera-se nosso metabolismo, nossa pressão
sangüínea, nossa emoção.
Fazendo um paralelo entre vida e luz, digamos que a vida é
feita de muitos momentos, de muitas e variadas emoções,
várias etapas. Se quisesse representar a vida com a luz,
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poderia usar a luz branca. Mas, se quisesse representar um
momento particular da vida, poderia usar, para o nascimento,
a cor vermelha, que é a primeira cor do espectro cromático; a
infância poderia ter uma cor laranja, a segunda cor do
espectro, remetendo ao calor familiar, aos abraços maternos;
o amarelo é a consciência, representa bem os nossos 12 anos,
os anos da puberdade, da percepção de nossa sexualidade; o
verde é indicado para os nossos 20 anos, os anos do
conhecimento, do aprendizado por meio dos estudos.
Para a maturidade, dos 30 aos 50, há o azul, quando se
desenvolvem nossas potencialidades, a agudeza do espírito e
da inteligência e, se quisermos, o sentido da liberdade.
Quanto mais usamos a inteligência, mais estamos livres para
fazer o que queremos. O índigo pode representar bem a vida
entre os 50 e os 70 anos, pelo menos para mim. É o período
da classe dirigente, do poder.
Tenho 67 anos e aos poucos estou me deslocando para a
última cor, que é o violeta, a cor da última etapa de nossa
vida terrena, o momento em que transferimos nossos
conhecimentos para os outros...

FOLHA - Quais são as diferenças entre as tomadas em


preto-e-branco de muitos anos atrás e as tomadas de hoje,
com película em cores?
STORARO - Em minha opinião, seria preciso começar do
preto, que é um pouco o início de tudo, uma espécie de
matéria bruta, como uma mãe que contém em si todas as
coisas, todas as energias, todas as cores e emoções.
Leonardo [da Vinci] dizia que as cores são simplesmente os
filhos da sombra e da luz, do preto e do branco.
Se houvesse uma escada, o preto seria o primeiro degrau, e
em seguida viriam todas as cores, como escreveu Isaac
Newton, que ainda dizia que o preto representa a matéria, o
passado, enquanto as cores representam o presente.

FOLHA - Gostaria de filmar a biografia de algum outro


pintor, antigo ou moderno?
STORARO - Entre os muitos pintores, sou atraído
particularmente pela vida e a obra de Paul Gauguin
[1848-1903], um artista que estabelece uma forte relação
com a natureza, que foi viver no Taiti, nos distantes mares
do Sul, que foge de Paris, centro do impressionismo, para se
confrontar com a vida e a natureza daquele que é
considerado o "último paraíso". De certo modo, sua pintura
une dois mundos distantes, duas culturas diferentes. Um
pouco o que aconteceu comigo quando fiz "Apocalypse
Now", que tratava justamente de duas culturas distintas e
distantes, duas civilizações: a ocidental dos EUA e a oriental
do Vietnã. Talvez, sim, gostasse de poder fazer uma obra
que redescobrisse a natureza com os olhos cheios das tantas
imagens que atravessaram minha vida, das artes egípcias às
assírio-babilônicas, greco-romanas, renascentistas, até
chegar aos nossos dias. É uma viagem que eu gostaria de
fazer.

FOLHA - Como se articula sua relação com o diretor no


set? Os cineastas têm idéias precisas sobre o papel da
fotografia, põem o problema em discussão ou acatam as
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propostas dos responsáveis pela fotografia?
STORARO - Às vezes me pedem um parecer, perguntam se
estou de acordo ou se acho melhor rodar mais uma vez. Em
geral é o diretor quem toma a última decisão. Mas às vezes
surgem ocasiões específicas. Por exemplo, com certos atores
(foi o caso de Marlon Brando no "Último Tango em Paris" e
em "Apocalypse Now", ou de Elisabeth Taylor em
"Identikit", de Giuseppe Griffi). Nesses casos, pedi que
fizéssemos as cenas pelo menos duas vezes, para ter certa
segurança técnica, digamos assim, e dispor de um duplo
negativo, aliás muito útil, já que mesmo em fase de
tratamento as películas em cores estão sujeitas a possíveis
rasgos e arranhões.

FOLHA - Os efeitos especiais, e mais particularmente as


tomadas em digital, lhe apresentam problemas específicos?
A manipulação que essa técnica permite também interessa
ao seu trabalho? O que pensa sobre isso?
STORARO - Junto com o diretor Giuliano Montaldo, fui o
primeiro na Itália a usar aquilo que então se denominava
"alta definição" e que, por ser analógica, ainda não levava o
nome digital. Mas o digital será a tecnologia avançada que
substituirá o analógico das películas. Mas hoje ainda não
atingimos níveis decisivos, já que as diferenças entre os dois
procedimentos não são muito expressivas -aliás, hoje as
películas analógicas ainda são melhores. O sistema digital dá
a possibilidade de manipular a imagem mais facilmente, com
uma extensão da fantasia. Como se não bastasse, permite a
checagem imediata do que foi filmado, sem precisar esperar
os processos de revelação e reprodução do laboratório -ainda
que, repito, as películas analógicas produzam um resultado
final melhor e apresentem mais durabilidade. Quanto aos
efeitos especiais, eles sempre foram usados no cinema, desde
os tempos de Georges Méliès [1861-1938], mas com as
possibilidades daquela época. Hoje, com as tecnologias
digitais, os efeitos foram ampliados e aperfeiçoados,
conferindo uma maior riqueza à expressão.

FOLHA - A que obra se sente mais ligado?


STORARO - Uma escolha desse tipo seria realmente
dramática, porque é como um livro ou uma sinfonia: não se
pode extrair uma página ou uma nota, porque sem o resto
não se teria mais o livro ou a sinfonia. De qualquer modo,
citando sem uma ordem específica, poderia indicar
"Juventude, Juventude", que é meu primeiro filme, e depois
passar para "O Conformista" e "Apocalypse Now", que são
os filmes com os quais comecei a desenvolver minha
reflexão sobre a luz, enquanto "La Luna", "O Fundo do
Coração" e "O Último Imperador" são os três filmes
fundamentais para minhas idéias sobre a cor. Quanto à
relação entre os elementos, citaria "O Pequeno Buda" e a
série sobre a Roma antiga de Luigi Buzzoni, "Roma - Imago
Urbis". Para a última fase de minha vida artística,
mencionaria "Tango", "Goya" e "Eu, Don Giovanni", o mais
recente projeto que estou fazendo com Carlos Saura.

FOLHA - Mas o filme de Saura ainda está em preparação?


STORARO - Sim, ainda estamos filmando. Completamos a
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primeira parte, sobre a história de Lorenzo da Ponte, o
libretista do "Don Giovanni" de Mozart, e sua vida em
Veneza. Em junho iremos rodar a segunda parte do filme,
sobre sua temporada em Viena, onde ele encontrará Mozart e
ambos vão compor o "Don Giovanni". É um projeto que me
apaixona muito.

Tradução de Maurício Santana Dias .

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