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Magna Veritas é uma obra de Tiago José Galvão Moreira.

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As Coletâneas de Meinhard

Índice de Capítulos

Prólogo -------------------------------------------------------------------------------------------- 2
Capítulo 1: Natasha ---------------------------------------------------------------------------- 2
Capítulo 2: Abiram ----------------------------------------------------------------------------- 5
Capítulo 3: Símbolos --------------------------------------------------------------------------- 8
Capítulo 4: Tramas ---------------------------------------------------------------------------- 10
Capítulo 5: O Reflexo ------------------------------------------------------------------------- 11
Capítulo 6: O Salvador ----------------------------------------------------------------------- 14
Capítulo 7: Helmfrid -------------------------------------------------------------------------- 16
Capítulo 8: Elias -------------------------------------------------------------------------------- 20
Capítulo 9: Confissões ------------------------------------------------------------------------- 22
Capítulo 10: A Isca ----------------------------------------------------------------------------- 27
Capítulo 11: Fuga ------------------------------------------------------------------------------ 30
Capítulo 12: O Dízimo ------------------------------------------------------------------------ 32
Capítulo 13: A Longa Jornada -------------------------------------------------------------- 36
Capítulo 14: O Próximo Passo -------------------------------------------------------------- 39
Capítulo 15: Paixões e Revelações ---------------------------------------------------------- 42
Capítulo 16: Cláudio -------------------------------------------------------------------------- 50
Capítulo 17: Receios da Imortalidade ----------------------------------------------------- 54
Capítulo 18: Os Sinais ------------------------------------------------------------------------ 61
Capítulo 19: A Primeira Revelação -------------------------------------------------------- 67
Capítulo 20: Preparativos -------------------------------------------------------------------- 71
Capítulo 21: A Segunda Revelação --------------------------------------------------------- 73
Capítulo 22: A Terceira Revelação --------------------------------------------------------- 75
Capítulo 23: O Fim de Tudo ----------------------------------------------------------------- 84
Epílogo 1: Retorno ----------------------------------------------------------------------------- 87
Epílogo 2: Novo Começo ---------------------------------------------------------------------- 88

1
Prólogo
13 de Fevereiro de 2002.
Eu vi o céu se tornar vermelho. Uma chuva de fogo e cinzas caiu sobre o mundo. Um rosto, uma figura de
pesadelos, se formou na fumaça que era erguida. Morte e caos seguiam a tempestade, varrendo este mundo,
carregando as almas dos mortos consigo. Então, o chão se abriu. Ouvi gritos de dor, seguidos por explosões de magma
escarlate que rasgavam o solo. Eu podia sentir a dor da Terra... a dor do mundo.
E então, trombetas. Anjos alados desciam dos céus, gritando em uníssono como um exército de guerreiros
medievais rumando para a guerra. Pesadelos surgiam nas ruas e nas cidades devastadas, rosnando e urrando,
provocando a fúria celeste que descia do firmamento. E, sob o céu incandescente, quando os dois exércitos se
chocaram, a fumaça os engoliu. Trevas se seguiram, sufocando tudo o que tocavam. O rosto de horrores indescritíveis
uma vez mais se formou, e sua risada ecoou nos recessos mais profundos de minha alma.
Acordei naquele instante, gritando, meu rosto coberto por suor. A respiração ofegante era o único som em meu
quarto. Levei as mãos ao rosto. Aquilo não era normal. Eu já tinha me acostumado com os pesadelos. Eu já tinha
aprendido a agüentá-los. Já estava acostumado a receber visões infernais de demônios torturando minha alma. Mas
naquela vez... Ah, naquela vez foi diferente. Aquilo não foi um sonho. Não foi um simples pesadelo. Alguma presença
tinha tocado minha mente. Aquilo não era mais uma das visões que tenho de meu destino...
Aquilo era um sinal de que algo estava acontecendo.
Abri a janela e olhei para o céu negro da noite. A lua estava encoberta por nuvens negras e pesadas, mas
estava tudo silencioso e calmo. Ainda assim, eu podia sentir algo diferente. O mundo não era mais o mesmo. As
imagens do pesadelo ainda estavam frescas em minha mente. Eu precisava saber o que aquilo significava.
Caminhei pela escuridão até o porão da mansão. Peguei o velho giz vermelho e desenhei o símbolo de Aziz no
chão, ajoelhando-me em seu centro. Concentrado, recitei o cântico. O sonho ainda estava em minha mente,
atrapalhando minha concentração, impedindo que eu lembrasse as palavras com exatidão, nas ainda assim, o rito foi
concluído. Peguei a adaga ritual e fiz um pequeno corte em meu braço. A dor me trouxe concentração e propósito, e o
sangue que se derramou selou o rito. Restava apenas fazer a pergunta.
“O que devo fazer para compreender o que ocorreu esta noite?”
A resposta surgiu em minha mente, emitida por milhares de vozes... Vozes de crianças e adultos, deuses e
demônios. Em meio à cacofonia que invadiu meus pensamentos, a resposta ecoou.
“Procure as Coletâneas de Meinhard...”
Meus olhos se abriram. Eu podia ver claramente então.

Capítulo 1: Natasha
Escuridão.
“O momento está próximo... Você pode sentir? O mundo como conhecemos mudou. Pode sentir a sua
presença? Pode percebê-la arrastando-se pelas sombras, encobrindo cada canto obscuro deste mundo? Você sente,
como eu sinto... É impossível ignorar o que está acontecendo. Ele está caminhando entre nós.”
Então, a escuridão desaparece quando ouço aquele som se repetir em minha cabeça. O telefone toca, e meus
olhos se abrem com lentidão. Minha mente está cansada e demora alguns segundos para compreender o que está
acontecendo. Droga! Caí de novo no sono enquanto trabalhava! Levanto-me o quanto antes e corro até o telefone, que
eu fui esquecer logo no meu quarto.
E, como sempre acontece, ele pára de tocar exatamente quando atendo. Desligaram bem quando eu disse o
“alô”! Eu odeio quando isso acontece! Mas pelo menos me fizeram um favor: me acordaram. Acho que tenho
trabalhado demais naquele livro. A cada dia, estou passando mais tempo o decifrando, mas ele parece cada vez mais
confuso. Ainda estou sonolenta... Eu olho as horas: nove da noite! Nossa! Devo estar adormecida desde a seis ou sete,
acho!
Está quente, meu pescoço dói, sinto-me indisposta... É o que ganho por dormir na escrivaninha! É melhor
relaxar um pouco, penso, e vou até a sala e abro a janela para ventilar um pouco. O som da rua vem na mesma hora.
Sábado à noite é assim em São Paulo... Carros o tempo todo, as pessoas querem tudo menos ficar em casa. Mas graças
a Deus não sou como o resto das pessoas, prefiro um pouco de paz e sossego a estas badalações.
O vento que sopra está frio, mas refresca, se comparado ao calor que está o apartamento! O bom de morar num
apartamento é que às vezes é bom receber um pouco de vento no rosto e deixar os cabelos serem erguidos por ele,
como faço agora. Fecho os olhos e fico apenas a sentir o vento. A mente voa, fico pensando nas coisas.
Mas também não paro de pensar no livro... Desde que comecei a lê-lo não paro de pensar no que está escrito.
Sempre gostei de duas coisas: misticismo e mitologia. São como fontes para se entender os medos e os desejos da
humanidade. Para mim, essas superstições sempre tiveram um fundo de verdade. Há algo que motivou o homem a
criar seus monstros e heróis, deuses e demônios, bem como o fez temer um dia em que tudo isso levaria a humanidade
a seu fim. Todo povo tem suas crenças, suas divindades e, principalmente, seus demônios. E também todo povo tenta
explicar de onde veio e como tudo aquilo irá acabar. Deus e satanás, Odin e Loki, Hórus e Set... E também há os
muitos fins... O apocalipse, o ragnarok...

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É por isso que não paro de pensar neste livro, por mais difícil que seja lê-lo. Qualquer um que compreenda a
complicada escrita em latim e as anotações em alemão diria que Meinhard foi um louco. Mas para mim, há algo de
verdadeiro nessa insanidade, como se ele tivesse visto algo que não compreendemos ainda. Por isso, tornou-se meu
objetivo desvendar tudo o que ele escreveu.
Fico pensando, e algumas passagens que li me vêm na mente com clareza.
“Quando os milênios de aprisionamento terminarem.”
“Após a tempestade de fogo trazida por dois pássaros da morte.”
“Quando o rei declarar uma nova cruzada contra os povos além de Bizâncio.”
“Quando os dois povos escolhidos por Deus derramarem seu sangue sobre o solo sagrado.”
“O adversário, feito de fogo e ódio, virá a esta terra.”
“E sua gargalhada será ouvida em meio a uma tempestade de fogo.”
Abro os olhos ao sentir um calafrio percorrendo minha espinha. Essas passagens não estão contidas no mesmo
trecho da obra e não tinha reparado antes. Mas, agora que as lembrei nesta ordem, os eventos descritos parecem tão
familiares. Será? Preciso realmente pensar nisso... Um milênio terminando, torres destruídas por aviões, uma
“cruzada” contra o terrorismo, a nova Intifada no Oriente Médio. Como não tinha percebido isso antes? Mas quem é o
adversário?
Estou suada após ficar dormindo naquele escritório abafado e agora estas lembranças me deixaram confusa.
Acho que não tenho lido o livro com a devida atenção. Uma ducha vai me acalmar, deixar minha mente mais atenta.
Vou tomar um banho, relaxar, e pensar nisso sob o chuveiro.
Caminho pensativa até o banheiro. Enquanto retiro o short e a blusa, me vêm outras passagens na mente, que
também ainda não me fizeram sentido. Coisas sobre anjos, demônios e uma prisão. Seriam metáforas? Profecias? Ou
só frutos da mente insana de um monge do século XIV? Há dois meses estou tentando entender essa obra, mas agora
que me ocorreu a idéia de que ela pode estar falando sobre o mundo atual.
A pergunta me vem exatamente quando deixo a água cair sobre meu corpo. “Será que é por isso que me
pediram para estudar e traduzir a obra?”. Acho melhor buscar mais sobre as origens dela antes de prosseguir com o
estudo. E, enquanto minha mente divaga sob a água da ducha, o telefone toca novamente, me fazendo retornar à
realidade.
O telefone já tocou duas vezes e ainda estou me enrolando a toalha em mim. Corro até o quarto, molhando
todo o chão pelo caminho e atendo. Falo um “Alô?” em tom impaciente. Odeio quando o telefone toca durante o
banho! E vou odiar mais ainda se este telefone parar de tocar assim que eu atendê-lo.
“Tasha? Finalmente, hein? Eu te liguei duas vezes só esta noite, já estava ficando preocupada! O que
aconteceu? Resolveu sair para variar um pouco?”. Droga... É minha mãe.
“Não, mãe, eu acabei caindo no sono! Você ligou duas vezes? Nossa, eu só ouvi uma e, quando atendi,
desligaram!”.
Ela ri, e então comenta: “Já estava ficando alegre em pensar que você resolveu sair um pouco. Mas pelo visto
você continua enfurnada em casa, hein?”.
Odeio, odeio mesmo quando ela vem com esse papo! “Mãe, já sou adulta e não preciso ficar ouvindo isso! Eu
não gosto de sair, tá? Não sou disso!”.
“Você é a única pessoa que conheço que fica parada num sábado à noite, Tasha!”
“É o meu jeito e, além do mais, meu tempo de farrista já passou, tá? Porque você está me ligando afinal,
mãe?”.
“Não é nada, é que faz tempo que você não liga e nem aparece. Só tenho estranhado. Já faz quase um mês que
não dá nenhuma notícia. É preocupação de mãe, sabe? O que tem feito ultimamente?”.
Essa é a minha mãe: sempre preocupada. Mas acho que é normal quando se é mãe. Está certo que já tenho 26
anos, mas sempre me mantive muito próxima a ela, principalmente depois que papai morreu. E com o Carlos, meu
irmão, estudando em Curitiba, ela tem estado muito sozinha. “Ah, desculpa, mãe, eu andei meio ocupada mesmo... É
que encontrei algo para me entreter. Sabe, o pessoal lá do trabalho me passou um livro para estudar. Um livro bem
antigo e raro.”
O tom de voz dela aumenta, mas sei que está só encenando. “E isso é motivo de ficar sumida, filha
desnaturada?” Eu rio um pouco, afinal sei que ela está exagerando como sempre. Ela é assim, não está brava, só está
mostrando que também não gosta de ser esquecida.
“Desculpa, mãe! Olha, amanhã é domingo, eu prometo te visitar, tá bom? Vou te ajudar a preparar o almoço.
Vamos comer juntas e pôr a conversa em dia, está bem?”. Acho que agora ela vai se animar um pouco... “Vou aí pelas
dez, tá? Prometo não me atrasar!”
Nos despedimos logo depois. Adoro minha mãe, mesmo quando ela ainda me trata como criança. Ela anda
muito sozinha ultimamente e por isso eu estava visitando-a sempre que podia. Ela deve ter sentido mesmo a minha
falta neste último mês. Logo após desligar o telefone, eu volto ao banheiro. Ainda preciso lavar o cabelo, senão
amanhã ele estará uma droga.
Falar com outra pessoa me fez voltar à realidade. Mesmo sob a água do chuveiro, começo a pensar em outras
coisas. Nossa, ultimamente não tenho cuidado de nada direito. O apartamento está uma bagunça, só tenho comido

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porcaria e, fora as aulas, o trabalho e as reuniões com os meus financiadores, não tenho feito nada. Não tenho ido à
academia, nem saído para assistir um filme. E, desde que terminei com o Leo no ano passado, também estou sem
namorado. Preciso dar um jeito na minha vida...
Quando finalmente deixo o banho, enrolo novamente a toalha em mim e também a toalha de rosto em meu
cabelo. Saio do banheiro após pegar as roupas que joguei pelo chão, e por fim jogo-as no cesto de roupa suja e
caminho até o quarto. Retiro a toalha que cobre o meu corpo, coloco uma calcinha e uma camiseta. Gosto de ficar à
vontade em casa, e felizmente sei que ninguém vai aparecer de surpresa.
Enquanto arrumo minha cama, noto que não sinto sono algum. Ter dormido enquanto lia o livro acabou com
meu sono. Sei que a televisão não deve estar passando nada que valha a pena, então acho melhor voltar a ler. Mas
desta vez vou ler com calma, sem a preocupação de entender as complicadas passagens. Vou reler algumas partes do
começo, que pareciam mais simples. Talvez agora que eu já esteja mais avançada no estudo da obra, elas revelem
algum significado que não tinha conseguido compreender antes.
Antes que eu retorne à escrivaninha, porém, sinto a barriga reclamar. Mudo meu trajeto, indo à cozinha, onde
preparo um sanduíche natural e pego um suco que estava na geladeira. Após comer e deixar o prato e o copo sujos na
pia, junto com um amontoado de louças, volto ao escritório e fito a envelhecida capa de couro da obra. Não há título,
nem autor, nem qualquer indicação do conteúdo. Mas ainda assim, sei como este livro se chama.
As Coletâneas de Meinhard.
Tocar o livro me dá uma sensação estranha, me deixa ansiosa. É como pegar num tesouro ancestral, uma
relíquia do passado de grande valor. E é minha! Ou melhor, está comigo, sob meus cuidados! Mas, mais do que isso,
me assusta a responsabilidade. Decifrar este livro pode mudar minha vida. É emocionante pensar que estou com uma
das poucas cópias completas do livro. Nem sei quantas outras existem, mas me disseram que se houver três cópias já é
muito.
Ao invés de permanecer no escritório, eu levo o livro até a sala, fecho a janela para que o vento da noite não
me incomode e sento no sofá, abrindo o livro com calma. As páginas estão amareladas, enrugadas, às vezes rasgadas
ou borradas. Mas, ainda assim, o livro está incrivelmente bem conservado. O texto tem duas caligrafias, mas sei que
isso se deve a um estudioso alemão que fez diversas anotações e incluiu várias passagens na obra. Aliás, se não fosse
por essas anotações, eu não teria conseguido entender o mínimo da obra. O nome dele era Conrad Gottschalk.
Gottschalk era um gênio, sem dúvida. O último portador das Coletâneas de Meinhard antes de mim,
Gottschalk fez questão de anotar suas descobertas nos versos e cantos das páginas do livro. Embora muitos estudiosos
possam considerar isso uma adulteração da obra, as anotações são fundamentais para a compreensão. As anotações
estão em alemão, enquanto o texto original é latim. E, seja por coincidência ou capricho do destino, meu conhecimento
em alemão é bem superior ao que sei de latim.
Bem, sentada no sofá da sala, diante da tevê desligada, abro o livro e busco o texto que Gottschalk escreveu
para ser um “prefácio” da obra, acrescentando algumas páginas mais novas ao conteúdo do livro, visto que as
Coletâneas originais não tinham qualquer forma de introdução. É a terceira vez que leio este texto, mas é a primeira
vez que estou lendo-o sem buscar significados ocultos. Tento manter a mente relaxada, não me esforçando para
entender o significado das palavras. E, como da primeira e da segunda vez, as palavras de Gottschalk me fazem sentir
calafrios.
“Aquele que abre este livro precisa compreender o valor do mesmo. A princípio, quando comecei meus
estudos sobre a vida de Meinhard, eu mesmo não acreditava na possibilidade de seus escritos serem mais do que
apenas blasfêmias e tolices produzidas por uma mente insana. Ainda assim, meu profundo conhecimento a respeito
dos temas aos quais o livro se refere me permitiu ter uma visão ampla do que o trabalho coletado de Meinhard
realmente representa.
Para compreender os escritos de Meinhard, é preciso conhecer um pouco da lenda que o cerca. Até hoje,
poucos estudiosos se interessaram em buscar as origens deste homem misterioso. Embora a maioria concorde que ele
possa ter vivido no século XIII, há discordância quanto ao seu real período histórico. O consenso diz que Meinhard
era um monge católico germânico, mas não há qualquer prova científica disso. Não há registros que não sejam
lendas faladas ou contos escritos por poetas ou romancistas de autenticidade duvidosa.
A lenda em torno de Meinhard fala de um monge extremamente fiel aos preceitos católicos, mantendo uma
vida louvável e sendo extremamente respeitado por seus contemporâneos. Porém, a desgraça veio a seu monastério
na forma de um homem possuído, cujo fedor de carniça atraía moscas, ratos e outros parasitas. Os demais monges
sugeriram que aquele homem fosse queimado para libertar sua alma da posse do demônio, mas Meinhard se recusou,
ao invés disso sugerindo que o homem fosse aprisionado e então exorcizado através de oração e dos ritos sagrados.
Embora o próprio Meinhard conte em detalhes sua luta com o demônio nesta obra, ele o faz de forma confusa
e caótica. A lenda diz que o demônio, antes de finalmente partir do corpo do homem possuído, puniu Meinhard. A
partir de então, o sono do monge foi atormentado por incontáveis pesadelos de imagens caóticas e demoníacas. São
essas imagens que Meinhard descreve em suas coletâneas.
Ninguém pode ter certeza, porém, se este exemplar contém toda a obra de Meinhard. Após a morte do monge,
seus companheiros reuniram sua obra num único exemplar. Outras cópias foram feitas ao longo dos séculos, mas
raras escaparam das mãos da Igreja. Finalmente, a Igreja declarou o livro como parte do Index Librorum

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Prohibitorum e a maioria das cópias existentes foram destruídas. Este exemplar, compilado pela própria Igreja no
século XVII é, sem dúvida, um dos raros exemplares que sobreviveram intactos até o século XX.
Saiba, pois, que esta obra que você lê é um texto profano, contendo loucuras ou, talvez pior ainda, pesadelos
proféticos de um monge cujas lendas sugerem ter sido atormentado pelo próprio demônio. Ao contrário de supostos
profetas, Meinhard é pouco conhecido, às vezes até mesmo temido por círculos de ocultismo ou estudiosos do
assunto. Seus textos são perturbadores e suas revelações nem sempre são claras. Ao ler esta obra, aconselho cautela
e muita discrição.”
Há então uma parte borrada, sobre a qual tinta foi derramada e tornou-se ilegível. Logo após encontra-se um
parágrafo rabiscado com pressa. Apenas um trecho, bem no comecinho do parágrafo, é compreensível.
“Eu descobri o sentido”
Apenas isso... Uma frase desconexa, incompleta, interrompida por um grande borrão. Apenas mais um
mistério acerca das Coletâneas, deixado pelo último que as estudou. Talvez eu consiga ir além do que Gottschalk foi.
Espero ser bem-sucedida.
Avanço a página, e o texto original se inicia. Minha atenção se prende ao livro e começo a reler o texto em
latim. Como da primeira vez, as Coletâneas de Meinhard revelam-se para mim.
“Trovejante noite, marcas de agonia, carregando vis enfermidades na face.
Ecos de passos refletidos no umbral. Batidas e gritos anunciam sua chegada.
A tempestade profana ilumina o caminho.
Blasfêmias proferidas sob a pesada chuva.
Representantes de Deus acolheram-no no templo. Ali, livre estaria do mal que lhe acomete.
O mal em seu corpo atormenta minha alma.
Agonia transmitiu-se a todos nós.
O cheiro do Inferno preenche cada canto do templo sagrado.
Gritos ecoam no templo e na alma.
Desde aquela noite, negado-me foi o sono.
O sofrimento me vence. Preciso livrar aquele homem do mal.
Preciso aceitar meu destino.
Dou-me totalmente a ele.
Entrego-me à missão que me foi confiada.
Dou-me totalmente a ela.
Invoco o Espírito.
Que o Espírito divino conceda-me esta graça.
Que Ele faça, através de mim, Sua vontade.
E eu seja Sua ferramenta neste mundo.
Ouço os sons de tempestade.
Está tudo escuro.
A chuva parece distante.
Um sussurro. Meu pedido foi atendido.”
E há silêncio e escuridão.
...
Então, sinto o sol tocar meu rosto. Acordo, meio sonolenta. Droga! Estou no sofá, o livro está em minhas
mãos. Eu dormi de novo! Meu Deus, que horas são??? Corro até o quarto e olho o relógio: 11:13! Minha mãe vai me
matar! Prometi estar lá às dez! Droga, droga! Troco de roupa o mais rápido que posso, tomo o elevador e vou à
garagem, pegar meu carro.
E já posso ir me preparando para ouvir umas broncas de mãe...

Capítulo 2: Abiram
Finalmente, a longa viagem terminou. Após incontáveis horas mudando de aeroporto para aeroporto e
aguardando longos períodos antes de poder entrar no avião seguinte, eu chego a meu destino. Campinas, Brasil.
Enquanto as aeromoças pedem que esperemos para desembarcar no Aeroporto Internacional de Viracopos, eu,
calmamente, entre dezenas de outros passageiros cansados de viagem, levanto-me da poltrona e aguardo minha vez de
descer. Mal posso esperar para pisar em chão firme e iniciar minha busca.
Não presto muita atenção no caminho que percorro até a área de desembarque. Tudo o que sei é que o céu está
escuro. Que horas devem ser agora? Com certeza, é alta madrugada, o horário em que as trevas estão mais fortes nesse
mundo. Meus anos em contato com estas forças me deixaram atento a elas. Posso sentir as presenças e vibrações
místicas ao meu redor. Meus sentidos treinados me permitem discernir as intenções das pessoas. Alguns dos que
caminham ao meu lado estão cansados, outros preocupados ou aliviados. Pelo menos um dos passageiros é um deles,
caminhando entre homens sem ser notado. Mas isso não importa, nossos caminhos não se cruzarão. As criaturas da
noite são muitas e não tenho tempo nem interesse para me envolver com elas.

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Minhas preocupações são outras. Sete meses se passaram desde que acordei suando frio e sentindo uma
presença inigualável, algo que foi capaz de perturbar mesmo o equilíbrio forçado de minha mente. Eu ainda sinto
aquilo... Está em algum lugar lá fora, em um canto deste mundo. E sei que outros podem sentir isso também. Não sei
ao certo o que é nem quem é, mas sei onde respostas, ou pelo menos novas perguntas, podem ser descobertas.
Assim que pego minha bagagem, caminho até o saguão. A mente concentrada procura pelos homens que estão
à minha espera, e não tarda a encontra-los. Os dois estão ali, vestindo trajes casuais. Noto que alguns nos olham. Não é
para menos, somos estrangeiros, mas bem diferentes de turistas convencionais. E também não duvido que pelo menos
alguns nesta multidão não se sintam perturbados pela minha presença. Afinal, é impossível que ninguém aqui tenha a
sensibilidade suficiente para perceber um amaldiçoado.
Eu caminho até os homens, que prontamente me cumprimentam. “Salve, mestre Abednego,” o primeiro deles
diz, curvando-se sutilmente para não chamar atenção demais. “Estávamos à sua espera,” o segundo completa, também
fazendo uma leve reverência, e então continua: “esperamos que tenha sido uma boa viagem.”
“Como sempre,” respondo, “nenhum infortúnio surgiu para me incomodar, cavalheiros. Meu tempo foi
preenchido com leituras e meditação, e Aziz me revelou muitas verdades em minha viagem. Porém, um pouco de
descanso seria bom.”
“Claro, senhor. Vamos levar o senhor a São Paulo, mas a viagem irá levar algum tempo,” responde novamente
o primeiro dos homens. Seu nome é Elias, e eu o enviei a este país por confiar em sua lealdade. Ainda assim, saber que
ainda terei que viajar de carro antes de poder descansar acaba com minha preciosa paciência. Estou exausto, não de
corpo, mas mente. E apenas tragédias podem ocorrer quando minha mente se distrai.
Os dois me conduzem até o carro. O segundo deles, Andreas, é um servo mais jovem e inexperiente, mas forte
e determinado. Acredito que me será muito útil no futuro. Ambos falam um pouco sobre o Brasil e São Paulo, mas não
é nada que eu não saiba. Como faço em todas as minhas viagens, busco me manter informado sobre o local que visito.
Apesar disso, não tive o tempo que necessitava para melhorar meu português.
Enquanto as malas são postas no carro, fico a pensar uma vez mais nos estudos que fiz nos últimos meses. Eu
não teria vindo para o Brasil caso não fosse realmente necessário. Andreas pega o volante, Elias toma o assento da
frente, eu vou sozinho no banco de trás do carro. Felizmente, é um veículo espaçoso, embora eu desconheça a marca.
De fato, não me interesso muito para assuntos tão mundanos como tipos de carros.
Assim que o carro parte, faço a inevitável pergunta. “Encontraram o livro?”
Andreas hesita em responder, mas o sempre fiel Elias mostra-se resoluto. “Não, senhor. Ainda não o
encontramos, mas sua dica realmente foi fundamental para chegarmos à pista dele. Realmente, Gottschalk veio para o
Brasil após a Segunda Guerra Mundial e trouxe não só o livro que procuramos, mas muitos outros.”
“Certo, eu quero detalhes.”
“Sim, senhor,” ele responde, pausa para prestar atenção na estrada, e prossegue. “Como o senhor mesmo disse,
os nazistas se apossaram do livro durante a Segunda Guerra Mundial. Aparentemente, através da aliança entre
Alemanha e Itália, os nazistas puderam pôr as mãos num exemplar completo da obra. E foi Gottschalk o encarregado
de decifra-la.”
Elias prossegue, mas não deixo de esboçar um discreto sorriso. Como sempre, posso contar com a paranóia
nazista para facilitar meu trabalho. Durante a Segunda Guerra Mundial, os cachorros nazistas não hesitaram em buscar
poder de todas as formas possíveis. A história mostra como eles conseguiram poderio político e bélico rapidamente,
mas poucos realmente se interessam nos assuntos mais secretos da velha Alemanha. Livrarem-se dos judeus e ciganos
e apossarem-se de suas riquezas serviu tanto como forma de enriquecimento como de encontrar um “inimigo interno”
contra o qual unir a Alemanha, mas as atrocidades nazistas também serviram para encobrir as dezenas de experiências
e estudos na área do ocultismo. Sociedades secretas também foram perseguidas e seus conhecimentos roubados, assim
como sei muito bem o tipo de coisas que invocavam através de sacrifícios e ritos profanos em campos de
concentração, onde a violência e as atrocidades serviam para camuflar facilmente tais experimentos.
Não é de se surpreender que eles tenham se apossado do livro. Embora trabalhoso, pude descobrir o nome do
homem que foi encarregado de decifrar as Coletâneas de Meinhard. Um estudioso chamado Conrad Gottschalk. Após
a derrota alemã, Gottschalk, temendo uma punição internacional, fugiu para a América Latina. Foi aí que mandei meus
homens darem um jeito de descobrirem seu paradeiro.
Pergunto: “Mas então, o que mais descobriram?”
“Bem, Gottschalk morreu em 1972. Suicídio. Como não tinha herdeiros, deixou um testamento que deixava
suas posses para diversos amigos. Um desses amigos trabalhava com Gottschalk numa universidade local, a Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Tentamos achar este homem.”
“Tentaram? O que aconteceu?”
“Bem, senhor, este homem também morreu, há dois anos, vítima de câncer no pulmão. Porém, procuramos
seus herdeiros e acabamos descobrindo que ele entregou o livro para a Universidade, pouco antes de morrer. O livro
deveria ir para uma das bibliotecas da instituição, porém seus administradores ficaram incertos sobre a procedência e o
valor didático ou informativo do livro. Eles começaram a pesquisar suas origens e o guardaram, deixando-o esquecido
por quase um ano e meio. Há cerca de três meses, porém, um grupo de estudiosos identificou o livro e fez um pedido
para obtê-lo com a universidade. Eles negociaram por quase um mês e o livro foi entregue a uma pesquisadora.”

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“Espere,” eu interrompo Elias, “um grupo de estudiosos procurava o livro? Que grupo é esse?”
“Esta é a parte estranha, senhor. Aparentemente, são pesquisadores independentes. Estavam fazendo uma
pesquisa sobre mitologia, superstição e religião, para a realização de um livro sobre profecias, profetas, superstições,
lendas escatológicas e temas relacionados. Normalmente, tais trabalhos são feitos dentro da Universidade ou então a
Universidade iria manter posse do livro e permitir seu acesso aos pesquisadores. Porém, de alguma forma eles
conseguiram convencer a instituição a doar o livro. É provável que tenha envolvido alguma forma de suborno no
processo.”
“Quero o número de pesquisadores envolvidos e seus nomes,” peço com firmeza e autoridade.
“Não se preocupe, senhor. Já começamos a investigar isso. Descobrimos os nomes de dois pesquisadores. Um
deles se chama Cristiano Souza Melo, um historiador brasileiro. A outra se chama Natasha Martins Gebhard e também
é formada em História. Estamos no momento tentando descobrir onde moram.”
“Perfeito. Estão fazendo um bom trabalho, Elias. Vocês serão bem recompensados.”
“Sim, senhor.”
Então, todos silenciam e o carro prossegue viagem. Finalmente o cansaço de viagem começa a incomodar
minha concentração. Ainda assim, luto para que o sono não me vença. Não quero dormir. Não aqui, diante de lacaios e
vulnerável. Não quero ter aqueles sonhos agora. Preciso chegar logo e descansar de verdade. De repente, noto luzes
adiante. A cidade está próxima.
As luzes de São Paulo servem como alívio para mim. A luta para manter a mente desperta parece estar
chegando ao fim. Carros passam sem parar pelas ruas, mesmo a esta hora da madrugada. Eu sabia que havia cidades
tão grandes no terceiro mundo, mas estar diante de uma delas é mais surpreendente do que ler fatos em livros. Fico
imaginando os predadores que as percorrem, tanto os predadores humanos como aqueles que a ciência diz não
existirem. Meus olhos atentos analisam os locais por onde passamos, procurando. Posso sentir que este lugar tem seus
senhores ocultos, como todas as grandes cidades do mundo. Esperava menos do Brasil. É fácil imaginar, a despeito de
minhas leituras, este país como uma nação pobre de cidades pequenas e economia agrária. Porém, estou surpreso. Este
lugar, como toda grande cidade do mundo, é um inferno. Um inferno de pessoas e criaturas tentando sobreviver a
qualquer custo.
Acredito que vou gostar daqui, apesar do calor, apesar da violência. No fundo, não é diferente de lugar algum
que eu conheça. Eu gosto do Inferno. Quando você se acostuma com os jogos de poder, com as manipulações, com a
lógica do lugar, você consegue sobreviver. E quando você domina estes aspectos, você deixa de ser um lacaio e passa
a ser um mestre. Nisso, a sociedade humana e o Inferno têm muito em comum: saiba as regras, use-as a seu favor e,
acima de tudo, jogue para vencer.
Não conheço nomes ou ruas, apenas decoro o caminho que estamos percorrendo e tento memorizar os prédios
e lugares. Assim, poderei me guiar futuramente caso perca meus guias. Como sempre, não pretendo ficar dependendo
de ninguém. Após percorrermos diversas avenidas e ruas, chegamos a algum lugar. Paramos diante do hotel e não
posso deixar de admitir que meus servos escolheram bem o local.
O prédio tem cerca de 20 andares, mas não paro para contá-los. Sua entrada é bem planejada, imponente. As
fontes luminosas e plantas suspensas realmente me causam boa impressão. Porém, as lojas e bares que estão à entrada
não me interessam. Não vim aqui para fazer turismo. O carro pára e imediatamente um funcionário do hotel se
aproxima. Meus homens ajudam a descarregar as malas, enquanto sou conduzido por um segundo funcionário para o
saguão.
Aproximo-me do balcão de recepção, onde sou prontamente atendido. Como meu português não é bom,
prefiro falar em inglês. Ao perguntarem meu nome, respondo prontamente. “Abiram Abednego.” Logo após preencher
todos os dados necessários, me despeço dos meus servos. Neste hotel, apenas eu ficarei. Caminho até o elevador,
enquanto o funcionário leva minhas malas.
O quarto é uma suíte presidencial. A cama, espaçosa, como deve ser. Não preciso de luxo para viver, mas não
o recuso quando tenho condições de mantê-lo. Assim que deixam minhas malas no quarto, fecho a porta e finalmente
sento-me na cama, pensativo. Arrumarei minhas coisas amanhã. Preciso descansar agora.
Troco de roupa, vestindo algo mais leve. Assim que me deito e apago as luzes, tento relaxar a mente. A
escuridão no quarto é intensa, mesmo meus olhos treinados não vêem nada além de silhuetas. Noto as formas dos
móveis e objetos... E noto a forma dele, curvado, se esgueirando pouco adiante no quarto, em absoluto silêncio.
“E então, Abiram, você está perto?”
“Assim espero, mestre.”
“ELE está em algum lugar lá fora, Abiram. Eu preciso do livro. Eu preciso saber os passos DELE, se é que
esse tomo será o suficiente. Eu deixarei que esta noite seja tranqüila para você. Descanse, Abiram. Amanhã, porém, eu
desejarei resultados.”
Ele some. Sinto o cheiro de podridão, mas este logo desaparece. Estou sozinho, como sempre estive.
Finalmente fecho os olhos e entrego-me ao cansaço. A mente salta para além da consciência e o tempo torna-se
indistinto.
Eu durmo, mas ao contrário do que ele me prometeu, os pesadelos voltam para me atormentar.

7
Capítulo 3: Símbolos
O elevador chega ao décimo andar. Eu sorrio para a senhora que me acompanhava, peço licença e saio. A
porta se fecha assim que passo e logo estou sozinha. Caminho pelo corredor até a porta do apartamento do Cris e
aperto a campainha. Ele não demora a atender e logo abre um sorriso.
“Oi, Tasha! Estava esperando você!”
“Oi, Cris, tudo bom?”
“Tudo bem,” ele diz ao me abraçar, “entre, vamos! O que é o assunto tão importante que você queria tratar
comigo? E como anda o trabalho com o livro?”
Vou entrando e olhando ao redor. Cristiano é meu mentor. Foi ele quem me convenceu a ir estudar na Europa
após me formar em História. Ele é um historiador renomado e, ao olhar ao redor, já noto vários retratos expostos de
Cris em suas viagens. Ele conhece muita coisa, já viajou o mundo todo, e sempre que converso com ele, dá para notar
que tudo o que sei e estudei não é nada perto das coisas que Cris conhece. Cheguei a ter uma quedinha por ele, mas
nunca me envolvi por ele ser mais de dez anos mais velho que eu. Além disso, na Europa tive vários namorados e fui
esquecendo o Cris. Ainda assim, ele se manteve como um de meus melhores amigos.
“É sobre o livro mesmo que quero falar, Cris,” eu respondo enquanto me sento no sofá da sala. Ele logo se
senta ao meu lado. “Eu notei que não estava conseguindo compreende-lo bem e resolvi voltar ao início. Recomecei a
estudá-lo anteontem, mas ontem não deu para fazer nada, porque passei o dia com minha mãe. Bom, mas não é bem
isso que eu ia falar. É algo que notei há algum tempo nele, mas estava enrolando para perguntar.”
“E o que é?”
Eu abro o livro numa das páginas que marquei. Em meio aos manuscritos, nota-se letras estranhas e símbolos
complexos misturados às palavras. Eu aponto um dos símbolos e mostro a Cris. “É sobre a grafia destas palavras, Cris.
Às vezes, as letras são substituídas por símbolos, e há também alguns símbolos estranhos separando algumas linhas ou
esboçados no segundo plano da página. Veja isto.” Eu viro algumas páginas, deixando em uma em que um grande
símbolo, um círculo com rabiscos que não compreendo, foi desenhado no fundo da página.
Ele observa o símbolo, analisando-o. Após ajeitar os óculos, Cris leva a mão ao queixo e tenta explicar. “Não
sei ao certo, Natasha, mas é muito estranho. Veja bem, em alguns casos, os símbolos substituem letras semelhantes a
eles. Veja este ‘o’ aqui, substituído por um círculo com uma cruz interna. Esse tipo de grafia não está presente em
versões incompletas das Coletâneas de Meinhard. Além disso, o livro é uma das transcrições, e não o original. Se as
incompletas não os possuem, então dificilmente estes símbolos existiriam na versão original.”
“Certo,” eu interrompo, “talvez isso tenha sido acrescentado pelo tradutor, mas isso não explica os símbolos
desenhados fora do texto ou atrás do mesmo. E também não explica porque o tradutor iria colocar os símbolos.”
Ele me olha, intrigado. “Você tem razão, Tasha. Talvez os símbolos signifiquem alguma coisa, mas não
consigo me lembrar de nada que se assemelhe a esses símbolos. E você sabe que entendo bastante desse tipo de coisa.”
“Sim, eu sei, mas estou intrigada. Esses símbolos não podem estar aqui por acaso, talvez signifiquem algo.
Será que você não pode tentar pesquisar sobre isso para mim, Cris?”
“Ok, Tasha, eu vou tentar. Se descobrir algo, eu aviso você, está bem?”
“Claro, Cris! Então, acho que já vou, está bem?”
Eu já ia me levantando quando Cris me interrompe. “Ora, que pressa é essa, Tasha?”
“É que ando meio sem tempo mesmo, Cris. Hoje, não consegui descansar um instante sequer. Odeio segundas-
feiras... Além de acordar com dificuldade e sempre sair atrasada de casa, ainda choveu o dia todo. O trânsito está um
inferno! E a escola ocupa toda a minha manhã.”
Cris se levanta. Ele compreendeu que estou com pressa e resolve não me segurar mais aqui. “Ah, entendo...
mas como anda a escola?”, ele pergunta, continuando: “As aulas têm sido boas?”
Estou dando aulas de História para alunos de segundo grau numa escola particular. É um bico para ajudar a
pagar as contas, enquanto não arrumo um trabalho mais acadêmico. “Ah, bem... Estão boas... Corrigir provas é um
saco e às vezes os alunos fazem bagunça demais. Mas é até bom me ocupar”, eu respondo, rindo baixinho,
“Adolescentes dão um trabalho, não? Só fico desajeitada quando aparecem uns engraçadinhos assobiando ou
passando xavecos idiotas.”
Cris ri com gosto. “Adolescentes são assim mesmo. Eles não agüentam diante de uma professora bonita e
jovem como você.”
Fico sem graça. Droga, não me considero lá muito bonita, só me cuido bem. Se bem que nem me cuidar direito
tenho feito ultimamente. Ando com medo de engordar, só tenho comido besteira. “Pára, vai, Cris. Eu tenho que ir.”
“Certo,” ele diz, ainda rindo um pouco, enquanto abre a porta para mim. “Olha, mas toma cuidado. Ligaram
para mim na sexta, lá da PUC. Parece que uns sujeitos apareceram por lá procurando pelo livro. Pode não ser nada,
mas às vezes é bom prevenir.”
Desta vez sou eu quem ri. O Cris às vezes parece paranóico. Eu lembro, na Europa, o quanto ele cuidava de
mim, parecia um pai perseguindo a filha adolescente às vezes. “Ah, Cris, você é tão preocupado! O que pode
acontecer de tão ruim? Se estão querendo o livro, que esperem até que eu termine o trabalho e o devolva, oras!”

8
Eu então saio do apartamento e caminho para o elevador. Aperto o botão e, enquanto espero, Cris permanece
ao meu lado. Ficamos calados por algum tempo, mas então ele diz algo. “Olha, pode parecer paranóia, mas realmente
tome cuidado.”
“Tá, eu terei, viu?” O elevador chega e eu beijo o rosto dele, me despedindo e entrando no elevador. Ele
manda um “tchau” logo antes da porta se fechar. O Cris nunca muda. Lembro de quando o conheci, há quatro anos.
Além de ser inteligente e educado, ele é bonito. Alto, cabelos castanhos, olhos escuros, sempre de barba feita, bem
arrumado. E continua igual agora.
Assim que o elevador chega ao térreo, desço e caminho até a portaria. Está chovendo ainda, embora a
intensidade da chuva tenha diminuído. Por isso, guardo o livro em uma sacola que eu estava carregando e abro o
guarda-chuva. Agradeço ao porteiro quando ele abre a porta para mim, e então prossigo até o carro.
O trânsito continua um caos. Basta cair uma chuva para tudo ficar mais lento. Ainda nem é a pior hora do dia!
Quero chegar em casa antes das seis. A lentidão do trânsito irrita, mas pelo menos me dá tempo para pensar e refletir
enquanto estou no carro. E os símbolos me vêm à mente de novo.
O mais estranho a respeito das Coletâneas de Meinhard é que todos sabem tão pouco sobre elas. Cris levantou
questões importantes. Que símbolos são esses? Se algumas versões não possuem os símbolos, então os símbolos que
substituem palavras podem não ter vindo da versão original. Por que o copiador os faria então? Que significado
poderiam possuir? Tomara que Cris possa descobrir mais sobre isso...
Círculos, triângulos, símbolos de formas menos fáceis de descrever. Alguns parecem runas ou escritas
orientais, mas já tentei procurar em livros sobre o assunto e não pude achar o significado de nenhum deles. Ainda
assim, eles me vêm na mente. Um enigma, um quebra-cabeça que não consigo sequer começar a montar. Talvez o
significado esteja nas palavras que cercam os símbolos. Ou talvez os símbolos mudem o significado de cada palavra.
Será por isso que não consigo compreender as Coletâneas, por mais que as leia e releia? Talvez eles sejam a chave
para tudo.
De repente, ouço buzinas. O sinal abriu e nem reparei! Deus, há quanto tempo estou parada aqui? Fiquei tão
distraída que, mal ponho o carro para andar, o sinal fecha diante de mim. Droga! As pessoas na fila devem estar
furiosas e me xingando de tudo quanto é nome. Preciso ficar mais atenta...
Assim que o sinal abre novamente, me concentro novamente no trânsito. Saio o mais rápido possível, para
evitar outras buzinadas. Mas, a partir do momento em que o carro volta a se mover, a jornada prossegue tranqüila,
ainda que longa. A distância entre Morumbi e Jabaquara não é curta. Aliás, essa é a principal razão para eu não visitar
Cris com maior freqüência. Se morássemos mais próximos, eu viria mais vezes aqui. Talvez até estudaria o livro com
a ajuda dele.
São umas quatro e meia da tarde. Hoje o dia não parou mesmo. Acordar cedo, dar aula, ir para casa, almoçar,
ir ao banco, arrumar uns probleminhas pessoais... Estou louca para chegar em casa, tomar um banho e poder ler
sossegada. Quem me dera se o trajeto fosse mais curto. Para piorar, o trânsito só me deixa mais tensa. Tem cada
barbeiro! E com a chuva, a situação só piora, ficando tudo tão lento.
Outras questões, mais mundanas, começam a me preocupar enquanto volto para casa. Embora eu tenha uma
condição financeira boa, a maior parte dela vem da herança do meu pai. A escola serve como bico para ter uma renda
fixa e a editora que o Cris arrumou para patrocinar nosso livro está me pagando pelo serviço de traduzi-lo. Vou ainda
ganhar um pouco em cima das vendas do mesmo, mas quem irá escreve-lo, assim que eu terminar minha parte, será o
Cris. O dinheiro é até bom, mas eu queria algo melhor. Queria voltar a trabalhar no exterior como na minha época na
Europa ou então me tornar uma professora universitária e fazer pesquisas acadêmicas. Queria me tornar uma
historiadora renomada, mas acho que as coisas vêm com o tempo. Espero que o trabalho de decifrar as Coletâneas me
renda algum renome. Melhor ainda se o livro vier a vender bastante.
Apesar da mente continuar a divagar um pouco, desta vez eu consigo me concentrar no trânsito. Por outro
lado, pensar ajuda a tornar a viagem mais rápida, pois a gente não nota o tempo passar enquanto o carro está parado ou
durante trechos longos do caminho. Passou-se cerca de uma hora, por causa do trânsito caótico, mas parece que foram
uns vinte minutos. E finalmente chego no meu prédio.
Assim que estaciono o carro, pego minhas coisas e vou ao elevador. Paro no saguão e vou até a portaria para
ver se há correspondência. Jonas, o porteiro, me recebe com um sorriso. “Oi, Natasha, como você vai?”
“Tudo bem, Jonas. Só meio estressada. Já disse que odeio segundas-feiras?”
Ele ri. “Você sempre diz isso. Mas quem é que gosta delas por acaso? Eu é que não!”
Jonas é um homem simples, tem uns trinta e poucos. Ele é bem amistoso, embora eu note que ele vive
preocupado. Parece que anda com problemas de dinheiro. Mas quem não tem problemas de dinheiro hoje em dia? Se
bem que, com minha boa condição social e sou solteira, não sei bem como Jonas pode se sentir. Ele parece estar
sempre ralando para conseguir manter a família.
“Há alguma correspondência para mim, Jonas?” Eu pergunto sorrindo.
“Tem sim, Natasha,” ele responde, enquanto retira as cartas de uma sacola. “Aqui está.”
“Obrigada, Jonas! Vou subindo, ok? Um beijo!”
“Tchau, Natasha!”

9
Chego ao elevador. Enquanto o mesmo sobe até meu andar, checo as cartas. Contas, propagandas, ofertas de
cartões de crédito, o de sempre. O mesmo que todos recebem. Deus, minha vida é tão normal. Quando criança,
sonhava em ter grandes aventuras. Virei historiadora para poder sair pelo mundo afora, visitando lugares remotos e
pesquisando assuntos a respeito de grandes civilizações do passado. Mas não, hoje estou aqui, num apartamento em
São Paulo e sendo professora para adolescentes. Pelo menos consegui um livro antigo e interessante para ler e decifrar,
não?
Mas, por outro lado, nem decifrar esse livro eu estou conseguindo. Será que sou tão medíocre assim? Não, é
claro que não. Aqui estou eu sendo pessimista de novo! Não posso nem vou desistir! Vou entender esse livro por
completo! Quero saber o que exatamente Meinhard pensava ao escrever aquelas palavras!
O elevador chega e meus pensamentos se vão. O sétimo andar: logo adiante, finalmente, meu apê. Ah, como
estou louca para comer alguma coisa, tomar um banho e relaxar! E depois, voltar a estudar as Coletâneas! Caminho até
a porta e pego a chave na bolsa. Para minha surpresa, a porta não está trancada. Será que esqueci aberta? Abro a porta.
O som seguinte é o de minhas coisas caindo no chão: a bolsa, o guarda-chuva e as cartas. Apenas a sacola em
que está o livro permanece comigo, apoiada em meu ombro. Fico paralisada com o susto, ao ver o estado do
apartamento. As coisas estão jogadas no chão, está tudo revirado. Alguns segundos se passam antes que eu controle
meu medo e volte a me mover. Entro cautelosamente no apartamento. As cortinas fechadas e o céu encoberto lá fora
me obrigam a acender a luz, mesmo sendo dia, para poder ver melhor.
Entraram no meu apartamento. Alguém entrou. Meu Deus! Um sentimento estranho me toma. Medo, pavor,
desespero. A frase de Cris aparece na minha cabeça. “Olha, pode parecer paranóia, mas realmente tome cuidado.”
Antes mesmo que eu pense no que estou fazendo, corro até o escritório. As anotações! Elas precisam estar aqui ainda!
Meus livros estão todos espalhados, alguns jogados no chão. As gavetas abertas, papéis espalhados por toda
parte. Eu reviro a papelada descontroladamente, procurando as anotações. Eu devia estar vendo se roubaram algo de
maior valor, mas por algum motivo, o instinto me diz que procuravam o livro. Droga, não é possível! Elas não estão
aqui! Alguém pegou as anotações! Tudo o que anotei sobre o livro desapareceu! Meu trabalho de dois meses foi
roubado!
Cris! Eu preciso ligar para o Cris! Corro de volta para a sala. Acabei deixando a porta escancarada, e minhas
coisas ainda estão jogadas no chão da entrada, mas nem ligo. Eu vou direto ao telefone. O nervosismo me atrapalha a
lembrar o número e as mãos trêmulas não me deixam discar direito, mas eu consigo. Ao ouvir a voz de Cris, eu falo
sem nem pensar.
“Cris, eu fui roubada!”

Capítulo 4: Tramas
“Isto é tudo?”
Andreas balança a cabeça, positivamente, ao responder. “Sim, senhor, é tudo o que encontramos. O livro não
estava no apartamento. Elias ficou de vigília, porém, e vai avisar quando houver uma oportunidade de conseguirmos as
Coletâneas.”
Eu pego a papelada. Está tudo em português. Felizmente, eu leio português melhor do que falo. Mesmo assim,
os rabiscos e anotações da garota às vezes ficam confusos. As rasuras e observações se espalham, tornando a leitura
difícil para quem não está acostumado com a língua. Infelizmente, este é meu caso.
“Senhor?” Andreas me chama. “Posso me retirar agora?”
“Sim, Andreas, vá. Me telefonem assim que tiverem boas notícias para mim.”
Andreas se retira o quanto antes. Noto certo medo dele ao tratar diretamente comigo sem a presença de Elias.
Tendo sido iniciado no Triângulo de Aziz há pouco mais de um ano, Andreas ainda não entende que o medo é o que o
impede de extrapolar seus limites, de ascender na hierarquia do culto. É por isso que o indiquei para vir ao Brasil junto
com Elias, mesmo com ele quase não sabendo falar português. Acredito que, se perder seus medos, Andreas pode se
tornar um de meus melhores agentes.
No instante em que a porta se fecha, volto minhas atenções aos manuscritos que estão em minha mão. Sento-
me na poltrona e ponho os papéis sobre a escrivaninha. Logo em seguida, pego uma caneta e meu bloco de anotações e
começo meu trabalho, tentando colocar as anotações da garota em ordem. As palavras são confusas o suficiente para
me obrigarem a levantar e procurar meu dicionário grego/português.
Assim que retorno com o dicionário, começo a anotar o que vejo. Não é preciso muito para notar que a garota
não sabe o valor do tesouro que possui em mãos. Ela tenta compreender racionalmente o irracional e explicar
cientificamente o místico. Noto em suas anotações que ela busca a verdade, mas não tem idéia de qual é. Talvez
sequer seja capaz de compreender o que é. É esta minha concorrente na busca pelas verdades de Meinhard? Minha
preocupação inicial talvez fosse equivocada, então. Não há ninguém perigoso portando o livro, só uma garota
ignorante que talvez não suporte as verdades que busca. Ela faz suposições completamente erradas, tentando ler as
palavras insanas de Meinhard como se fossem correlatas a eventos mundanos que aconteceram ou acontecerão. Ela
não sabe do real significado das palavras. Ela não sabe que se tratam de Céu e Inferno, Bem e Mal, Deus e o Demônio.

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É simples como isso. As verdades deste mundo são demais para mente mundana. As ilusões de ciência e
decência foram erguidas pela própria humanidade para se sentir segura, dona de seu próprio destino. Mas em
Auschwitz, as verdades se revelaram como uma bomba. O mundo não é um lugar seguro. Essa garota poderia entender
isso? Eu duvido.
Se ela é mesmo inofensiva para mim, então fui muito impulsivo em mandar meus homens invadirem seu
apartamento. Eu poderia simplesmente propor uma fortuna em troca do livro ou me apresentar como um estudioso e
pedir por uma cópia da obra. Mas minha ação precipitada atrairá atenção indesejada, pois ela vai tomar a decisão que
as pessoas comuns tomariam: chamar as autoridades.
Melhor pensar em como resolver meus erros depois. Se tenho essas anotações em minhas mãos, o melhor é
terminar de analisa-las. E é então que noto que a garota possui desejos de ir além do mundano, do comum.
Aparentemente, conforme ela avançou na leitura da obra, sua mente começou a cogitar opções “irreais”. Algumas de
suas anotações falam em possibilidades do fim do mundo. Isso é interessante. Ela continua a tentar compreender as
profecias de Meinhard racionalmente, mas ocasionalmente aceita que nem todas as palavras escritas possuem uma
explicação racional. Se esta garota tivesse um mínimo de conhecimento sobre o oculto, com certeza as Coletâneas
seriam mais claras para ela.
Então, a folha seguinte finalmente me desperta interesses mais profundos. Estranhos símbolos, com anotações
explicando suas origens. Os símbolos estão na obra, espalhados por toda parte, às vezes substituindo letras. Alguns
deles me parecem familiares. Juro já tê-los visto antes, mas não fazem parte da gama de ritos à qual estou acostumado.
Minha cópia incompleta das Coletâneas, escrita em francês, não possui estes símbolos, o que me faz questionar a sua
autenticidade. Eu os analiso em ordem, tentando compreender seu significado. E sinto algo.
Rapidamente, largo as folhas e as deixo de lado. Não compreendo bem o que senti. Não estou cansado, nem
me desconcentrei por um instante sequer. Eu senti uma presença, mas ela sumiu. Alguma coisa... estaria aqui? Eu me
levanto e caminho até a janela. Observo o pôr do Sol e os carros se movendo nas avenidas abaixo. Não é o mesmo que
tenho sentido nos últimos meses. É algo diferente.
Levanto-me, caminho até a cama. Minha mala está logo ao lado dela. Prefiro não desfazer a mala, visto que
posso ter de deixar o hotel a qualquer momento. De qualquer forma, eu a abro e procuro por meu livro. Ao encontra-
lo, abro o tomo com calma, sento-me na cama e começo a procurar com cuidado por qualquer símbolo semelhante aos
que estão desenhados nas anotações. A princípio, não encontro nada correlato, nem nos símbolos enoquianos, nem em
proteções cabalísticas ou nas tradições herméticas. Os símbolos não poderiam possuir origem oriental, mas então...
...então vejo os símbolos de Aziz. Uma estranha correlação, sem dúvida! Ainda assim, são apenas
semelhantes, como se tivessem a mesma origem mas não o mesmo significado. Uma possibilidade preocupante surge
em minha mente: seria a escrita demoníaca? Nenhum mortal pode compreender a língua divina, muito menos escreve-
la. Então, como tais símbolos podem ter sido feitos nas Coletâneas?
Levanto-me da cama, pensando em possibilidades e em explicações. Talvez uma tentativa de copiar a língua
divina? Talvez apenas uma coincidência? Não. Sinto uma atração estranha pelos símbolos, eles parecem me dizer
algo, mas a mente não pode compreender. Então, o telefone toca. Eu me apresso para atende-lo.
“Senhor,” a voz é de Elias, “estou na frente do prédio da garota.”
“Sim, Elias, diga.”
“Policiais estiveram aqui a tarde toda, tomando notas e verificando o que nós roubamos, mas a polícia acaba
de sair... Um homem veio aqui, ainda está com ela no apartamento. Pela descrição, é o tal Cristiano Souza. Eu andei
averiguando umas coisas, parece que ela não relatou o sumiço de papéis e anotações, e sim que roubaram algumas
jóias e dinheiro. Eu achei isso muito estranho, o que você acha?”
“Acho melhor nós tomarmos um curso mais direto de ação,” respondo.
“Hã? Não compreendi, senhor.”
“Ligue para Andreas e peça que ele venha aqui. Fique de vigília e prepare-se porque vou precisar de vocês em
breve. Por enquanto, quero que você descubra a rotina dela por completo. Onde trabalha, o que faz, quando e onde
descansa, quando se dedica a estudar o livro. Não deixe oculto nenhum segredo dela. E também quero saber o máximo
possível deste homem chamado Cristiano. Eu deveria ter concentrado minha atenção sobre ele desde o começo.”
“Sim, senhor. Algo mais?”
“Não.”
Desligo o telefone. Eu fui tolo, realmente. A garota é inofensiva, mas este Cristiano não. Algo me diz que ele
possui as respostas que quero. Assim que eu conseguir o livro, este sujeito será o próximo alvo de minha atenção.

Capítulo 5: O Reflexo
“Eles estão atrás de mim. Não deixe que me peguem. Você precisa me proteger. Você precisa me manter
junto a você. Juntos, teremos tudo o que queremos. Você terá as respostas que quer. Eu terei aquilo que quero.”
“Tasha?” A voz de Eloísa ecoou distante. Senti sua mão tocar meu ombro, me removendo do sonho e me
trazendo de volta à realidade. Meus olhos se abriram lentamente. Com o que estava sonhando? Lembro de estar no

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escuro, mas estava aconchegante, calmo. Alguém estava lá, alguém que conheço, alguém que confio. Então, erguendo
a cabeça, que estava sobre meus braços cruzados sobre a mesa, viro-me para ver Eloísa.
“Oi, Elô!” Eu sorrio, ainda meio sonolenta. Eloísa também é professora no colégio onde trabalho. Apesar de
ser quase quinze anos mais velha do que eu, somos muito amigas. Ela é simpática e calma, considero-a quase uma
confidente minha, e vivemos falando de coisas pessoais.
“Está cansada, não é? Deve ter sido difícil dar aula hoje. O pessoal me contou que invadiram seu apartamento
ontem à noite.”
“É sim, Elô... Estou tão preocupada, não sei o que fazer. Dá uma sensação de impotência quando algo assim
acontece. A polícia ficou um tempão lá, ficam dizendo que vão descobrir quem fez isso, mas me dá a impressão que
não vão fazer nada.”
Ela está com um cafezinho na mão e me entrega. “Toma. Você já deu as aulas do dia, não? Não é melhor ir
para casa? Ou está com medo de voltar para lá?”
“Medo de casa eu não tenho, Elô,” eu respondo, tomando em seguida um gole de café. “Mas não sei, tem algo
que me preocupa.” Ela sorri, dizendo que isso é medo de voltar para casa. Eu resolvo me render, respondendo logo que
“talvez esteja com medo mesmo... sei lá. Mas tenho mais medo de me roubarem uma coisa específica.”
“O que é?”
A pergunta era inevitável, acho, mesmo que eu não quisesse dar a resposta. Não sei porque, mas sentia
vergonha de admitir que o livro é tão importante para mim. É como se ele fosse uma necessidade, algo que tenho há
muito tempo. Como se fosse parte de mim. Eu olho a sacola sobre a mesa. A mesma sacola sobre a qual meus braços,
cruzados, apoiavam minha cabeça enquanto eu dormia, de forma que ninguém pudesse remove-la sem me despertar.
“É isto aqui, Elô. É muito valioso e muito importante para um trabalho que estou fazendo.”
Ela olha a sacola, estende a mão para toca-la. Eu seguro a sacola e hesito em deixar que Eloísa a tire de minhas
mãos, mas fecho os olhos e permito que ela tome a sacola em suas mãos. Sinto-me estranha ao vê-la remover o livro e
folheá-lo. Então, Eloísa se volta para mim, perguntando. “O que é este livro?”
“É um livro escrito por um monge medieval. Eu estou tentando traduzi-lo, para um projeto que eu e um amigo
estamos desenvolvendo. Acho que pode valer muito para minha carreira, entende?” Eloísa esboça um leve sorriso,
balançando positivamente a cabeça, enquanto coloca o livro de volta na sacola. Sinto um certo alívio quando volto a
segurar a sacola, apertando-a forte contra o peito e cruzando meus braços diante dela.
“Melhor você ir para casa, Tasha,” Elô sugere. “Pelo visto, de tanta preocupação, você nem dormiu hoje. Está
bem tensa. Vai lá, coma alguma coisa e descanse. Você já deu as aulas que tinha que dar mesmo!” Como sempre, ela
está certa. Melhor eu perder o medo bobo e ir para casa. Preciso mesmo descansar, pois realmente não dormi nada esta
noite.
O caminho para casa é tranqüilo. Como não é meio-dia, muitos ainda estão trabalhando, e evito ficar presa no
trânsito. Assim que chego ao prédio, algo me chama atenção. Há um homem ali na frente, lendo o jornal, sentado à
frente do edifício. Nunca o vi por aqui antes. É um sujeito estranho, não muito alto, de cabelos lisos e castanhos, bem
claros, que parecem loiros sob o sol, pele clara, parece que não faz a barba há alguns dias. Está vestindo uma camiseta
clara, calça jeans e tênis, o que lhe dá uma aparência mais adolescente, mas nota-se que é um homem formado, talvez
mais velho do que eu. Fico observando-o, enquanto o portão eletrônico da garagem se abre lentamente. Dá uma
sensação estranha olha-lo. Por quê será que sinto isso? Quando o portão já está aberto e coloco o carro em movimento
para entrar na garagem, ele vira lentamente seu rosto, me fitando diretamente, com uma calma extrema. Um calafrio
me percorre a espinha.
Adentrando a garagem o mais rápido possível, paro o carro na rampa que leva ao subsolo e faço questão de
olhar o portão se fechar. Devo estar paranóica, mas por um momento imaginei que aquele homem iria aproveitar a
garagem aberta para entrar no prédio. Droga, eu ainda estou muito assustada com o que aconteceu ontem! Estou com
medo até da minha sombra! Mas é melhor não arriscar, por via das dúvidas.
Assim que estaciono e deixo o carro, pego minha bolsa e a sacola em que está o livro e me dirijo à escada que
leva ao hall de entrada do prédio. Penso em passar pela portaria e falar um pouco com o Jonas, antes de ir para o
apartamento. A passos lentos, subo a escada, pensativa. É incrível como nos sentimos frágeis quando nossa segurança
é ameaçada. Nunca pensei que invadiriam meu apartamento. Nunca fui roubada antes, sempre tomei cuidados
extremos para nunca atrair assaltantes. Mas desta vez não são assaltantes comuns. Eles vieram roubar algo específico,
queriam as Coletâneas. E o Cris me disse para ter cuidado, mas eu não escutei, achei que era paranóia dele. Ele me
convenceu a não contar a verdade para a polícia também. Por quê? O que o Cris sabe que eu não sei?
Ao chegar à portaria, vejo Jonas sentado, também lendo calmamente o jornal. “Oi, Jonas, como você vai?”. Eu
tento sorrir quando ele me responde.
“Oi, Natasha, está melhor?”, ele pergunta, refletindo: “Depois do que aconteceu ontem, você deve estar
bastante preocupada.”
“É, Jonas, estou muito... Você não tem nem idéia de quem pode ter entrado no meu apartamento? Não viu
ninguém entrar aqui pela portaria?”

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“Não, Natasha, ontem não veio ninguém estranho aqui. Eles podem ter entrado pela garagem. A polícia andou
me fazendo perguntas ontem e também acreditam que foi por lá que entraram. Mas eu andei perguntando e parece que
nenhum outro morador viu gente suspeita. Roubaram muita coisa?”
“Bastante... Um dinheiro que eu estava guardando e algumas jóias.” Droga, menti de novo, mas o Cris me
pediu, disse que se eu contasse a verdade seria pior. Não entendo...
“Esses bandidos estão cada vez piores, né? Antigamente, a gente tinha mais segurança, hoje em dia por mais
que a gente se cuide, eles dão um jeito de roubar,” diz Jonas, completando: “e isso quando só roubam, né? Tem tanta
morte besta por aí... E a polícia nunca faz nada.”
“É, Jonas... Bom, vou subir. Tchau!” Ele se despede também, e eu me dirijo ao elevador. Assim que a porta se
fecha, me fito no espelho. Dormir na sala de professores bagunçou todo o meu cabelo e estou com olheiras enormes
porque não dormi quase nada esta noite. Acho que devo dormir um pouco, mas preciso cuidar do almoço antes. Se
dormir agora, quando acordar não estarei com a mínima vontade de ir para a cozinha.
Assim que chego ao sétimo andar, saio do elevador e caminho até a porta do meu apartamento. Eu mandei
trocar a fechadura ontem mesmo. Primeiro, tento abri-la sem destrancar, apenas para ver se não foi arrombada de
novo. O alívio me vem quando noto que ainda está trancada. Eu entro, olhando com cuidado. Está tudo arrumado,
tranqüilo. Ufa! Estou mesmo ficando paranóica. Talvez esses bandidos nunca mais voltem, eu espero... Mas, se
queriam mesmo o livro, eles vão voltar.
Sento-me na cama e deixo a bolsa e a sacola ao meu lado. Melhor trocar de roupa, vestir algo mais leve.
Afinal, não preciso ficar em casa como se ainda fosse dar alguma aula hoje. Removo logo os calçados e toda a roupa,
fora a calcinha, então abro o armário para pegar um short e uma camiseta bem folgada. Adoro usar roupas assim,
leves, soltas. Embora não as use em público, em casa estou sempre vestida assim. Isso me lembra que meu ex, o Leo,
também adorava que eu me vestisse assim. Era “fácil de tirar,” segundo ele. Lembrar disso me faz dar uma risadinha
discreta. Como o tempo voa! Já faz um ano que terminamos, na época eu estava morrendo de raiva dele. Mas agora
parece que foi tão bom... Brigávamos muito e isso acabou com a relação. Além disso, nunca perdoei aquela traição
dele. E ele sempre foi tão ciumento comigo, principalmente em relação ao Cris. Hoje em dia, vejo que realmente às
vezes pareceu que eu e o Cris temos algum relacionamento mais íntimo, mas na verdade nunca tivemos nada. Eu
acabei dando razões para o Leo ter ciúmes. Chegou um ponto em que mal nos falávamos, porque eu fugia dele para
não ouvir as reclamações constantes. Quando soube que ele me traiu, foi a gota d’água. A relação estava tão
desgastada que nem fiquei triste por terminarmos, só estava aborrecida.
Bem, mas preciso parar de lembrar o passado e ir cuidar do almoço. Após trocar rapidamente de roupa, me
dirijo à cozinha. Abro o freezer e é aí que me lembro que esqueci de fazer compras esta semana. Ia fazer ontem, mas
depois daquela confusão... Bem, pelo menos ainda tenho um pouco de filé de frango que deixei da semana passada. E
com um arrozinho e um pouco de feijão, já é suficiente para comer.
A comida não demora a ficar pronta, especialmente por ser uma porção apenas para uma pessoa. Estou
cansada. Enquanto como, não consigo pensar em nada direito. Como sem vontade. A fome é muita, mas o apetite não.
Então, coisas nas quais não andava pensando voltam à minha cabeça. O livro. Eu tenho protegido-o tanto mas não o
tenho lido. Onde foi que parei mesmo?
“Poderoso é aquele que vem a mim,
Aceito o tormento que representa
Aceito sua vontade em meu lar.
Dedicarei minha vida a ele.
Visível é o mal em sua essência,
Mas temê-lo-ei jamais.
Sua essência se desfaz diante de minha vontade.
Conheço a verdade enfim, quando ele finalmente se vai.
Aceito a verdade, proferida pela boca impura.
Tu és meu arauto. Através de mim, tu conhecerás a verdade.
Aceito o fardo, aceito a obrigação.
Quero a verdade acima de tudo.
Quero saber.
Ela será parte de mim.
Eu irei aceita-la.
E, através de mim, ela se manifestará para todas as criaturas de Deus.”
Os versos surgem naturalmente na minha cabeça. Bastou pensar e vieram. Quando noto, já comi tudo.
Levanto-me, ainda tentando me lembrar de mais versos, mas nada mais me vem em mente. Deixo o prato na pia e
tomo um pouco de suco de laranja que estava na geladeira. Vou lavar o prato e as panelas mais tarde. Prefiro descansar
um pouco agora. Melhor escovar os dentes antes de finalmente dormir, porém. Dirijo-me ao banheiro, pensativa, ainda
tentando lembrar mais versos. Alguns me voltam à mente, mas não de forma tão perfeita quanto antes. “E naquela
noite, o primeiro dos sinais revelou-se para mim.” O primeiro dos sinais... Qual foi o primeiro dos sinais? O que foi
que Meinhard viu naquela primeira noite?

13
A pergunta ecoa na minha cabeça. O que ele tinha visto? Lavo as mãos na pia e ergo a cabeça para pegar a
escova de dente. No momento em que olho no espelho, eu vejo... alguém. Fico paralisada por menos de um segundo,
mas parece uma eternidade. O reflexo. Alguém está atrás de mim. Um homem alto e magro, vestindo um sobretudo
negro, olhos negros e frios como a própria morte, feição séria, os cabelos curtos e escuros, pele morena. Mas aquele
olhar... aquela expressão... Como se não houvesse sentimentos ou mesmo humanidade nele. No momento de paralisia,
eu fitei o reflexo dos olhos dele. As órbitas negras sumiram, e vi apenas o vazio branco.
Então, menos de um segundo após fitar aquele homem que estava atrás de mim, o corpo se move. Abro a boca
e grito o mais alto possível. As pernas fraquejam, eu mal consigo me virar de tanto medo. E então fito-o de frente. Não
há nada ali. Minha imaginação? Minha paranóia? Ninguém. Nada. Estou sozinha no banheiro, não há nem sinal de que
alguém esteve ali. Mas por quê? Por que sinto que estou sendo observada? O que é isso? Eu me desespero, saio
correndo para o meu quarto naquele instante. Onde está o livro? Vejo-o ainda na sacola, deixada sobre a cama. Pego-a
e seguro-a firme, apertando-a contra meu peito, abraçando-a. O que é isso? O que está acontecendo?
Estou ofegante, nervosa, fico imaginando sons que não existem, olhando para cada canto, para cada sombra,
ainda protegendo o livro em meus braços. Então a mente começa a raciocinar. Estou nervosa por causa do que
aconteceu ontem. Eu vi coisas. Estou só preocupada demais. O estresse está muito alto. Tenho que relaxar e descansar.
Respiro fundo, tento me recompor, então me sento na cama. Vou aos poucos soltando o livro, desapertando-o,
afastando-o de meu peito. Olho a sacola. Isto é paranóia. Tenho que parar com isso, senão vou acabar ficando louca.
Preciso descansar, mas estou nervosa demais para isso. Meu coração palpita, e eu ainda me lembro da feição
fria do homem do espelho. Talvez se eu ler um pouco, consiga distrair minha mente, me desconcentrar. Olho mais
uma vez a sacola, então removo o livro de dentro dela. Fito a capa envelhecida e o abro nas páginas que marquei. O
que Meinhard viu naquela primeira noite?
“Na primeira noite, meus olhos se abriram e eu vi.
Vi cabeças decapitadas num mar de sangue.
E meus ouvidos ouviram
Ecos vindos de profundezas infernais.
Milhares de passos ecoando.
Um exército de pesadelos marchando
Para se encontrar com as forças da luz.
E vi os servos de Deus lutarem pelas almas da humanidade.
E vi as criaturas do demônio se multiplicarem e nascerem
E vi o inimigo.
O grande dragão.
Ouvi seu rugido. Seu grito de morte.
Sangue, morte e dor, repetindo-se constantemente.
Em nome da humanidade.
Em nome de nossas almas.
Uma guerra eterna.
Compreendo o sacrifício que devo fazer.
Aceito de corpo e alma, em nome da verdade.”
É aconchegante, caloroso. Sinto paz. Parece que estou flutuando. É difícil me concentrar, mas não me importo.
Pareço feliz. Devo estar feliz. Há alguém comigo, que me abraça. É uma presença boa, familiar, protetora. Mas então
um som me tira deste pequeno paraíso. A campainha toca, meus olhos se abrem lentamente. O raciocínio está lento...
Eu estava dormindo. E sonhei com algo, mas não lembro o quê. Só lembro que estava muito bem, estava em paz.
A campainha toca uma segunda vez... Eu olho para a cortina e, por uma fresta, noto que já é noite. Quantas
horas dormi??? Terceiro toque. Eu me levanto e corro para a porta, nem me lembro de colocar uma roupa melhor.
Ainda estou sonolenta, nem me importo em olhar quem é, apenas abro a porta.
E, de novo, fico paralisada de medo. O homem do espelho está diante de mim. Duas pessoas estão com ele. Os
olhos não estão vazios, mas ainda assim são frios e negros como a morte. Um deles se move. Eu tento gritar, mas não
há tempo. O mundo escurece.

Capítulo 6: O Salvador
Assim que a garota abriu a porta, meus olhos fitaram-na pela segunda vez. Como percebi através do espelho,
Natasha é uma garota jovem, de aparência saudável e cabelos castanhos escuros, lisos e não muito longos, que tocam
suas costas um pouco abaixo da altura dos ombros. Assim que ela me fitou, pude perceber seu medo. Reconhecendo-
me naquele instante, a jovem tentou uma reação, mas por um momento seu corpo hesitou. Este foi o tempo necessário
para que Andreas a segurasse e pressionasse o lenço embebido com éter contra seu rosto.
Andreas a segurou firme nos braços quando ela caiu, inconsciente. Não sei se por causa de seu estado já
sonolento, ou se o susto a fez desmaiar, mas tenho certeza que o éter não foi o único responsável por derruba-la tão

14
rapidamente. “Vamos entrar. Traga-a com você, Andreas,” Elias diz. Andreas é o primeiro a entrar, seguido por mim e
Elias, que fecha a porta. É melhor que ninguém nos veja aqui.
Andreas coloca a moça sobre o sofá, deixando-a deitada. Olha-a fixamente, atraído por seu corpo. Jovens
idiotas, só pensam em prazer. “Andreas, levante-se daí e ajude Elias a procurar o maldito livro.” Ele se levanta de
imediato, concorda nervosamente e corre para perto de Elias, que já está à procura da obra. Enquanto ambos
perscrutam os cômodos do pequeno apartamento, eu observo a garota. Ela é jovem e inofensiva para mim, mas
acredito que teremos que usa-la.
Meus dois servos se separam, um se dirigindo para o escritório, outro para o quarto da moça. Sozinho na sala
de entrada, eu sinto uma sensação estranha. Não vejo nada, apenas sinto. É a mesma sensação de antes, uma presença
que não consigo compreender. Algo sobrenatural, profundo, como se algo estivesse próximo, mas alheio a mim. Fecho
os olhos para tentar me concentrar melhor. Em meio ao silêncio da sala, ouço algo. Um sussurro, tão baixo que não
consigo compreender. Mantenho-me concentrado, tentando compreender as palavras.
“Encontrei, senhor!”. Andreas retorna do quarto com o livro em mãos. Eu abro os olhos, perdendo a
concentração, e o sussurro desaparece. Toco o livro, seguro-o e fito-o. “Chame Elias, pegue a garota e vamos sair
daqui,” eu ordeno ao jovem servo. Ele faz um sinal positivo com a cabeça e se afasta para chamar o companheiro.
Uma vez mais sozinho na sala, eu volto a fitar a garota. Ela será a isca. Quero descobrir mais sobre esse
Cristiano. Esse homem tem muitos segredos e, por algum motivo, sinto que pode ter respostas para mim. Se ele
escolheu esta garota para ser sua aprendiz, com certeza ela tem potencial para algo mais do que ler e traduzir obras
antigas. De alguma forma, a jovem deve ser importante para os eventos que se seguirão. Se quero controlar os
acontecimentos, devo tê-la em minhas mãos.
Meus servos retornam, Andreas ergue a moça nos braços. “Procure as chaves e documentos do carro dela,
Elias,” peço, “e tranque a porta ao sair. Eu e Andreas vamos descer à garagem primeiro e esperar por você. Você vai
leva-la até o ponto de encontro, enquanto Andreas me leva em nosso carro.”
“Sim, senhor,” ele responde, enquanto eu e Andreas deixamos o apartamento. Eu vou à frente, certificando-me
de que ninguém nos veja carregando a garota. Descemos pelas escadas, visto que o elevador não é seguro. Felizmente,
ninguém está em nosso caminho. Infelizmente, descer sete andares pelas escadas toma certo tempo e certo fôlego a
que meu corpo não está tão acostumado. Provavelmente encontraremos Elias já lá em baixo, com o carro da garota
pronto para partir.
Então, quando finalmente alcançamos a garagem, eu sinto algo. É diferente do que senti antes, e mais tangível.
Caminho lentamente pelo local, quando então noto o carro da garota com as portas abertas. Elias está caído no chão,
desmaiado, e um homem está em pé, diante do corpo inconsciente de meu servo.
Estamos a pouco mais de três metros um do outro. Os olhos se fitam, ambos concentrados. Analiso-o bem. É
um homem um pouco mais baixo do que eu, vestindo roupas casuais típicas de um adolescente, mas noto ser bem mais
velho do que isso. Os cabelos bagunçados e a barba por fazer indicam desleixo, enquanto a roupa tenta passar a
imagem de alguém sem seriedade ou preocupações. Os olhos, porém, são fortes, indicando força de vontade,
mostrando que ele sabe com que tipo de gente com está lidando. Mantenho meu olhar ao encontro do dele, noto certa
hesitação do homem em avançar, embora seus punhos estejam fechados. É dele a presença que senti na garagem. Ele
não é totalmente humano, mas algo mais. É então que Andreas chega, carregando a garota.
Andreas nota o homem e pára. Finalmente, o estranho resolve falar, em bom português. Posso compreender
que é uma ordem como “largue-a” ou “deixe-a aí”. Então, ele caminha em direção a Andreas. Ao passar por mim, ele
me fita novamente, esperando algum movimento meu. Prefiro não fazer nada, apenas sigo-o com o olhar,
permanecendo no mesmo local em que estava. Andreas deixa a garota no chão e então ataca o estranho, tentando
esmurra-lo. Idiota! Se confia tanto assim na própria força, merece o que vai acontecer.
O desconhecido reage à altura. Ele gira o corpo para a esquerda, deixando que o braço de Andreas passe logo
ao lado de seu rosto. Então, agarra o braço de Andreas com o braço esquerdo, enquanto desfere um golpe com a mão
direita, atingindo o cotovelo, de baixo para cima, com uma potência muito grande, forçando a articulação. Ouço o som
do braço se quebrando, seguido do grito de dor de Andreas. O estranho larga o braço quebrado de meu servo, usando a
mão esquerda para desferir um soco no rosto que faz Andreas cair.
O homem se vira para mim e se aproxima. Eu me concentro, as palavras vêm em minha mente. Fito-o, sem
hesitar. Eu agora sei o tipo de coisa ele pode fazer. Ele, ao contrário, não tem a menor idéia de quem sou, ou do que
posso fazer, e sua hesitação o faz se aproximar com cuidado. Eu me mantenho no mesmo ponto, meus olhos
encontram os dele. Ele avança lentamente, talvez pensando em me imobilizar. Então, quando vou proferir a primeira
palavra, alguém surge descendo as escadas, correndo e gritando algo como “o que aconteceu aí?” É o vigia do prédio,
atraído pelo grito de dor de Andreas. E o que ele vê é a garota desmaiada no chão, Elias caído e Andreas gemendo de
dor.
O estranho se distraído, virando-se para o vigia. O contato visual se quebra. Droga, as coisas se complicaram.
Dou um passo à frente, passo pelo homem misterioso, estendendo a mão para ele, oferecendo as Coletâneas. Ele não
entende o que quero, mas pega o livro. O vigia corre, subindo a escada. Provavelmente chamará a polícia. Caminho
apressando o passo, seguindo-o, antes que alcance algum telefone.

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O vigia chega até a portaria, pega o telefone e prepara-se para discar. Eu o surpreendo, apertando o gancho e
fazendo a linha cair. Ele me olha, eu fito seus olhos. Concentro-me para falar em português, torcendo para que obtenha
o resultado esperado e que minha péssima fluência não faça todo o esforço cair por terra. “Natasha saiu. Ninguém
mais na garagem. Nada estranho aconteceu.” Ele fica perplexo, paralisado, os olhos arregalados. Não sei se a sugestão
foi captada corretamente pelo vigia, mas tenho certeza que ele não irá mais chamar as autoridades. Agora, preciso sair
daqui.
Quando desço novamente à garagem, a garota, seu carro e o homem misterioso desapareceram. Elias está
desacordado, Andreas geme de dor, caído no chão. “Levante-se, imprestável,” ordeno ao meu servo idiota. Ele tenta
dizer algo, mas a mandíbula quebrada o impede de falar claramente. Ouço apenas seus gemidos incompreensíveis.
“Agüente a dor, idiota. Levante-se logo!”
Enquanto o imprestável tenta se levantar, eu vou até Elias. Ele caiu de bruços, o que indica que foi atingido
por trás. Nem teve tempo de reagir, para sorte de nosso atacante. Passo os dedos indicador e médio sobre seus olhos,
traço simbolicamente o sinal em sua testa e digo a palavra. “Acorda!” Seus olhos se abrem.
“Senhor?” Elias se levanta rapidamente, remove o pó do terno. “Me perdoe. O que aconteceu?”
“Ajude aquele cretino,” eu peço, referindo-me a Andreas. “Vamos sair daqui antes que mais testemunhas
apareçam. Assim que chegarmos ao hotel, explicarei tudo.”
Preciso descobrir quem é aquele homem. Agora, ele tem o livro. Se eu não o entregasse, com certeza ele me
perseguiria e me impediria de cuidar do vigia. Dando a ele o livro e a garota, dei todos os motivos para que ele fosse
embora sem mais conflitos. Não quero autoridades envolvidas nisto. Já estou com problemas sobrenaturais, não quero
a lei brasileira me perseguindo também.
Elias ajuda Andreas a se levantar. “Vamos.” O portão eletrônico do prédio funciona com chaves e com
controle remoto. Meu plano original era sairmos no próprio carro da garota, mas felizmente eu pedi que Elias trancasse
o apartamento dela. Com a chave em mãos, ele abre o portão para nós. Nos dirigimos ao nosso carro, estacionado do
outro lado da rua.
Partimos. É melhor começar a planejar melhor nossos atos. Hoje cometi minha segunda falha. Não falharei
novamente.

Capítulo 7: Helmfrid
“Você sabe qual é o segredo? Você sabe quem eu sou? Ou mesmo quem é você? Você sabe quem foi liberado
do Inferno? Eu quero saber. Eu vou te contar toda a verdade. Ele está em toda parte. Sua essência se espalha,
multiplicando-se. O Inferno está vindo para este mundo. Seu Arauto está aqui. Nós iremos encontra-lo. Venha.”
A escuridão se dissipa subitamente. Com o que eu sonhei? Não me lembro... Só sei que havia dor, muita dor, e
um rosto, o rosto frio daquele homem no reflexo. Meus olhos arregalam-se de uma só vez, minha boca abre-se num
grito: “Meu Deus!” Minha voz ecoa, e me levanto repentinamente. Diante de mim, há um desconhecido, um homem
que me observa. Eu estou numa cama, estava deitada sob um lençol que me cobria. O quarto está envolto em sombras,
noto apenas a luz vinda de um abajur ao meu lado. Está escuro lá fora, deve ser madrugada. Ouço o som de carros
atravessando continuamente, em intervalos irregulares, alguma estrada ou avenida próxima. O homem está calmo. Não
o conheço, mas já o vi antes.
“O que você disse?”, ele pergunta, meio surpreso.
Eu o olho e tento me afastar, arrastando-me na cama. “Quem é você? O que você quer comigo?”.
Ele se levanta da cadeira em que estava sentado, ao lado da cama. Mostra as mãos abertas para mim e tenta me
acalmar. “Calma, Natasha”, ele pede, “eu te salvei! Seu amigo Cristiano me pediu para te vigiar!”
Cris? O que ele quer dizer? Ele é amigo do Cris? “Não acredito em você! O que é isso, é um seqüestro?” Eu
falo gritando, estou desesperada. Meu Deus, o que estou fazendo aqui? O que aconteceu? Quem é esta pessoa? Será
que ela fez algo comigo? Como conhece o Cris? Deus, tenho que sair daqui. Quero voltar para casa, quero me ver livre
disso, quero que isto tudo acabe logo, por favor!!!
“Calma, calma, Natasha! Se quiser, ligue para o Cristiano, ele vai explicar tudo! Acalme-se!” Ele não se
aproxima, tenta manter a calma. Eu respiro ofegante, olho-o bem. É o homem que lia jornal na frente de meu prédio.
Ele não estava entre os que me atacaram em meu apartamento.
Eu gaguejo, com medo: “Posso... posso mesmo ligar para o Cris?” Ele meneia positivamente a cabeça. “Quem
é você?” A pergunta era inevitável. Já conheci vários amigos do Cris, mas nunca tinha visto este homem antes. Ele
sabe meu nome, talvez porque o Cris contou, mas tenho certeza que não o conheço.
“Meu nome é Marcos Aurélio Helmfrid, mas os amigos me chamam só de Helmfrid. Conheço o Cristiano, ele
me pediu para cuidar de você. Pelo visto, ele estava certo. Aquelas pessoas que tentaram te seqüestrar eram muito
perigosas.”
“E onde eu estou?”
“Em um hotel. Cristiano está pagando. Olha, se quiser, ligue para ele. Ele pode explicar as coisas melhor do
que eu. Só estou pagando uma dívida que tenho com ele.”
“E o livro? Eles levaram o livro?”

16
Ele ergue a obra, que estava sobre o criado-mudo, iluminado pelo abajur. “Este livro? Eu consegui pegá-lo de
volta. Estava lendo, mas não entendo latim. Os comentários em alemão foram fáceis de ler, porém. Não entendi muito
bem. Sobre o que é?”.
“É um livro de profecias,” respondo, já me sentindo mais calma. Minha respiração está mais lenta, meu
coração bate mais devagar. Sinto um pouco de alívio.
“Profecias? Toda essa confusão por causa de algumas profecias idiotas? Vocês, ocultistas, estão sempre
arrumando encrenca por coisa banal. Profecias não existem, são só ilusões de velhos loucos de tempos passados. Não
sei quem é mais insano: as pessoas que escrevem esse tipo de coisa ou vocês, que ficam buscando significados ocultos
onde não há nenhum. Ninguém pode ver o futuro.”
Fico confusa. Do que ele está falando? “Eu não sou ocultista, senhor. Sou uma historiadora. Estou pesquisando
para um livro sobre o autor dessas profecias. E não estou em busca de significados ocultos, está bem?”
“Ah, não?” Ele parece ficar um pouco nervoso. “Vai me dizer que a Amanhecer não está envolvida nisso?”.
Amanhecer? O que é essa Amanhecer? “Do que diabos você está falando? Olha, de certa forma eu estou
tentando desvendar as profecias sim, mas não tenho a menor idéia do que você está falando!”
“Esquece, falei besteira então,” ele responde, acalmando-se e me fitando nos olhos. “Acredita mesmo que
profecias existam?”
Agora ele me pegou, pois esta pergunta eu mesma não sei responder. “Não sei... No fundo, queria que
houvesse algo de verdade nelas, queria descobrir algo inacreditável sobre o presente escrito por alguém do passado.
Mas, ao mesmo tempo, sou cética. Difícil saber se isso é verdade ou não.”
“Pois vou te dizer algo. Isso não é verdade, são apenas maluquices! Já vi muitos videntes e profetas que não
passaram de farsantes e nunca puderem me trazer nenhuma resposta sobre o futuro. Quem escreve essas profecias está
só anotando suas alucinações. Quem as lê tenta interpretar insanidade. E o pior é que sempre encontram algo com o
qual fazer comparações. Aí, acabam achando que a profecia é uma ‘metáfora’ que explica algum evento atual. Isso é
balela. Não importa em que época você leia uma dessas loucuras, sempre vai encontrar alguma coisa para comparar e
achar que o texto fala sobre acontecimentos familiares.”
Quem é este tal de Marcos, afinal? À primeira vista, parece só um desleixado, mas agora parece saber de
coisas que não sei. Ele fala com muita firmeza. Então me toco. Por que diabos estou falando com este homem como se
o conhecesse? Por que estou sequer dando ouvidos a ele? É melhor cortar o papo logo e entender melhor minha
situação. “Será que posso ligar para o Cris agora? E pode por favor me entregar o livro?”
“Claro,” ele responde, estendendo o livro para mim. Eu pego a obra, e então Marcos aponta o telefone do
hotel. “Pode ligar, fique à vontade.” Marcos se afasta, dando-me espaço para pegar o aparelho e discar. Torço para que
Cris atenda. Ele tem que atender, tem que me confirmar isso tudo! Ouço os toques repetitivos na linha e, quando está
no sétimo toque e estou prestes a desistir, ouço sua voz. “Alô?”
“Cris, graças a Deus! Você precisa me dizer o que está acontecendo!”
“Tasha, acalme-se! Marcos me ligou mais cedo, disse que tinha te tirado do apartamento quando uns tipos
estranhos tentaram seqüestra-la. Acalme-se, você está em boas mãos.”
“Você conhece bem esse Marcos, Cris? Eu nunca o vi antes!”
“Ele é de grande confiança, Tasha. Eu o conheço há alguns anos, mas fazia um bom tempo que não falava com
ele. Ele é o melhor para te proteger, acredite em mim. Acalme-se, que ele vai cuidar bem de você! Vocês dois
precisam sumir por uns tempos, até darmos um jeito de resolver tudo isso.”
“Sumir? Cris, eu tenho aulas para dar, tenho que cuidar da minha vida e traduzir o livro!”
“Olha, Tasha, não se preocupe com nada disso. Eu vou pagar uma professora substituta para tomar seu lugar
por uma ou duas semanas. Dei algum dinheiro para o Marcos cuidar de você. Esqueça um pouco o projeto. Cuide-se e
cuide do livro. Leia-o, se quiser adiantar as coisas, mas não se preocupe com o projeto ainda, tá? Vamos primeiro
cuidar de você.”
“Cris, por que só não chamamos a polícia?”
“Acredite em mim, Tasha, não é bom. Essa gente é perigosa e vai ficar ainda pior se as autoridades se
envolverem. Eles têm dinheiro, controlam muita gente. Vão dar um jeito de descobrir onde você está, se não ficar
escondida. Você não pode chamar atenção, entendeu?”
“Cris,” eu gaguejo, tento segurar o choro. No fundo, estou desesperada, confusa. Não entendo. “Por que isso
está acontecendo, Cris? Por quê?”
“Não sei ainda, Tasha. Cuide-se! Deixe que do resto, eu vou resolver tudo! Olha, preciso desligar. E não se
preocupe com o Marcos, ele não vai te fazer mal algum.”
Eu insisto para que ele não saia, mas não adianta. Desligamos o telefone, eu choro. Marcos, até o momento
sentado do outro lado da cama, levanta-se, dá a volta na cama, caminhando até mim, e toca em meu ombro. “Calma,
moça.” Mesmo assim, não consigo me controlar. Por quê? A pergunta se repete em minha mente. Eu não queria nada
disso. Não queria ter que me esconder, nem que alguém me substituísse em meu trabalho. Não queria atrasar o projeto.
Droga... Droga!
...

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Umas duas ou três horas se passam. Aos poucos, as lágrimas secam e fico mais calma. Não estou cansada. Na
verdade, acho que passei mais tempo desacordada do que consciente nas últimas 18 horas. Marcos, porém, parece
exausto, pois após dar um jeito de separar os lados da cama com uma mochila e um lençol enrolado, dormiu feito
pedra. Eu ligo o abajur e fico pensando. São quatro da manhã. Estranho... quando liguei para o Cris, ele não parecia
sonolento. O que será que ele estava fazendo? O que será que ele vai fazer? Apesar de mais calma, ainda estou
preocupada, incerta. Sinto-me frágil, desprotegida.
Então olho o livro. Olho novamente Marcos dormindo. Bem, não tenho nada para fazer mesmo... Pego o livro
e o abro, nas páginas marcadas. O que Meinhard fez no segundo dia?
“Sol, rei do céu, ilumina com luz meus olhos.
Olhos que ardem com a dor da revelação.
Traz mais visões, mais verdade.
Vi a grande cidade, grande centro do mundo.
Vi o império que a abriga, conquistador de todos os povos.
Um reino erguido sobre conquistas e trapaças.
Nas suas sombras, figuras indistintas caminham,
Bebendo o sangue da humanidade.
Este reino, eu sabia, seria consumido pela guerra.
Vi as chamas se espalharem sobre ele.
O vi entrar em grandes conflitos.
Este império expandiu-se sobre o mundo.
As intenções sombrias se espalharam através dele.
Representante de civilização, temido por todos os outros povos,
Odiado pelos que conquistou.
E ao leste, na terra do salvador, muitos tentaram lutar contra ele.
Sendo, aos poucos, destruído por si próprio.
O império caiu, vítima de seus governantes, de seus inimigos.
Vítima das sombras que caminham incógnitas nele,
Espalhando fogo e terror.
Seus prédios foram derrubados pelos bárbaros.
Seu sangue, consumido pelos inimigos.
Eu vi. Vi e entendi a verdade. Isto acontecerá novamente um dia.
Quando a grande sombra, anunciada por uma tempestade de fogo e fumaça,
Trouxer guerra e ódio sobre todo o mundo.
Então, as hostes celestes descerão.
Eu sei. Sei que isto acontecerá. Passo a verdade a você. Aceite-a.
O Sol iluminou meus olhos.”
Vários símbolos estão nestas páginas. Um deles me lembra o Sol... ou seria um olho? Será que o texto e as
imagens têm mesmo correlação? Outros não compreendo ao certo. Uma cruz? Mais círculos com rabiscos estranhos.
Tento entender, olho-os fixamente. Então, inexplicavelmente, um dos símbolos parece fazer sentido. O sol... ou olho...
Ou talvez ambos juntos numa só figura... “O Sol iluminou meus olhos.” É isso o que o texto dizia... “Passo a
verdade...” Para mim?
Observo as anotações de Gottschalk. “Que reino seria este? A falta de qualquer espécie de datas ou eventos
claros torna difícil a compreensão. Trata-se de um tempo atual? Ou de algum reino do passado? Porque isso me
lembra a Inglaterra vitoriana a princípio, mas mais para o final da visão parece-se com a França na revolução?
Talvez durante o império de Napoleão? Ou seria um evento que sequer ocorreu ainda?”
Um evento que sequer ocorreu? Porque isso me lembra a destruição do World Trade Center no ano passado?
“Sombras que espalham fogo e terror.”, “Sombra anunciada por uma tempestade de fogo e fumaça, trazendo guerra e
ódio.” Seria isso? Ou estou só imaginando coisas? Olho Marcos, que ainda dorme profundamente. “E o pior é que
sempre encontram algo com o qual fazer comparações,” ele disse. Será que ele estava certo?
Então, uma mensagem final de Gottschalk, quase escondida no fim da página. “Ou será que isso é apenas
uma metáfora?”
Eu continuo a ler, mas não consigo por muito tempo. A inconsciência logo vem e adormeço.
...
A próxima coisa que vejo é a luz do sol, ofuscada pela cortina. Meus olhos se abrem lentamente e noto estar
deitada na cama. Marcos deve ter me posto aqui ao me ver dormindo apoiada no criado-mudo. Achei que não estava
cansada, mas na verdade os sustos e o desespero estavam disfarçando o cansaço. Procuro por Marcos, mas ouço
apenas o som de água, vinda do chuveiro. Eu me levanto, busco o livro com os olhos, e o encontro, ainda aberto, sobre
o criado-mudo. Ao lado dele, o rádio-relógio indica: sete da manhã. Para quem estava tão cansado, Marcos até que
acordou bem cedo.

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Olho o livro e noto que está algumas páginas adiante de onde parei. A marcação indica a página atual e não a
que eu li por último. Estranho... Será que Marcos andou lendo? Então noto um espelho logo na frente da porta do
banheiro. Vou até ele e me olho. Estou horrível! Sem maquiagem alguma, suja, suada, cabelo desgrenhado e ainda
com a mesma camiseta e o short que estava usando em casa.
Enquanto me olho no espelho, a porta do banheiro, logo atrás de mim, se abre. Marcos sai, vestindo calças
jeans, uma camiseta negra e tênis. Será que ele sempre se veste assim? Eu me viro para ele. Pelo menos ele fez a
barba. “Se quiser usar o banheiro, é todo seu,” ele diz.
“Obrigada. Preciso mesmo de um banho.”
Ele vai até a cama, pegando sua mochila, e coloca a roupa suja na mesma. Eu o olho, ele parece sério, distante,
e não parece estar gostando muito de bancar o meu protetor. Mas agora reparando bem, até que noto que ele é bonito.
É atlético, mas não é nem magro demais, nem musculoso. É uma pessoa saudável, apenas isso. Dá para notar que
cuida do corpo, mas também noto que não tem vaidade nenhuma pela maneira que se veste, como se o visual não
importasse para ele.
Enquanto Marcos arruma suas coisas, eu entro no banheiro e tranco a porta. Ainda estou meio preocupada com
toda a situação, apesar de, após ter dormido um pouco, esteja mais calma do que esperava. Marcos parece ser uma
pessoa reservada e me inspira certa confiança. Até o momento, não fez nada comigo, só me ajudou, e parece não
querer saber nada de minha vida. Isso é bom. Eu me assustaria se ele tentasse qualquer outra coisa, ou se tentasse se
aproximar demais.
Logo após me despir, deixo que a ducha morna me relaxe. Como sempre, o banho é um momento de me
afastar do mundo, pensar com calma. Estou com uma dezena de perguntas na cabeça. Quem eram os homens que
tentaram me seqüestrar? Por que afinal Cris não quer que eu avise a polícia? Por que de repente comecei a ter medo de
Cris, como se ele estivesse escondendo coisas muito sérias? O que devo fazer agora? E mais... E minha mãe? E se ela
me procurar? E se meus colegas e alunos tentarem descobrir porque sumi? Que desculpa Cris vai usar para “eu” ter
enviado uma substituta para a escola? E o pessoal do prédio, será que vai notar meu sumiço?
Então, meu momento de paz cessa. Não posso ficar sob a ducha o resto da vida! Eu a desligo, enxugo o corpo
e visto novamente a calcinha, o short e a camiseta, enrolando uma toalha seca na cabeça logo em seguida. Saio do
banheiro e procuro por Marcos, que está naquele momento desligando o telefone. Não demoro a perguntar: “Estava
falando com quem?”
“Com seu amigo Cristiano. Bem, há umas lojas de roupas próximas daqui. Nada muito especial, são roupas
simples de baixo custo, mas serve para você vestir algo melhor. Vou te entregar um dinheiro para ir lá, mas depois
volte imediatamente para o hotel, está bem?”
Devo fazer o que ele me pede? Ou será que é melhor aproveitar e ir embora, procurar a polícia? Droga, por
que esse tal de Marcos parece ser tão confiável? Eu normalmente não sinto empatia nenhuma por desconhecidos, mas
esse sujeito me traz confiança. “Está bem, eu volto logo para cá. Mas o que você vai fazer?”
“Vou até seu apartamento. Vou aproveitar e trazer uma mala com mais roupas para você, bem como sua bolsa,
porque será bom que você tenha seus documentos. Não vou levar você comigo porque podem estar vigiando,
entendeu?”
Podem estar me vigiando? Afinal, quem está atrás de mim? Alguma espécie de máfia? Por que isso parece um
filme idiota de Hollywood, cheio de eventos irreais? Ao invés de perguntar essas coisas a Marcos, porém, eu resolvo
encurtar o papo. “Está bem, mas como vai entrar no apartamento?”
“Vou dar um jeito. Acho que eles deixaram a porta aberta. Senão, vou ter que arrombar. Mas não se preocupe,
vou tentar não quebrar nada.”
“Olha, eu tenho uma chave sobressalente guardada na gaveta do escritório. Será que dá para trancar quando
sair e me trazer a chave?”
“Está bem, Natasha. Vou fazer isso sim.”
Quando ele está saindo, eu lembro do livro com as páginas viradas. “Ah, Marcos, você leu o livro? Não está na
parte em que deixei aberta.”
Ele se vira, olhando-me como se não soubesse do que falo. “Não, nem toquei nesse livro mais. Eu não entendo
o latim, só as partes em alemão.” Aí que percebo: ele sabe alemão? Ele já tinha dito isso antes, mas nem tinha
reparado. “Você sabe alemão, Marcos?”
“Pode não parecer, mas sou alemão. Aliás, estou mais acostumado que me chamem pelo sobrenome,
Helmfrid.”
Alemão? Mas ele fala português fluentemente, e seu nome, Marcos Aurélio, soa bem brasileiro. Talvez tenha
vindo para o Brasil quando era ainda criança. Mas chamar ele de Helmfrid seria estranho para mim. “Bem, prefiro
chamar você de Marcos mesmo. Tem problema se chamar assim?”
“Não,” ele responde, “problema algum.” Ele se prepara para sair, quando então pára novamente. “Ah, me
lembrei de algo. Ontem, quando você acordou gritando, você gritou em alemão. ‘Meu Deus,’ você disse, alto e claro,
em alemão. Aquilo foi inesperado.”
Ahn? Do que ele está falando? “Eu não falei em alemão! Falei? Eu nem percebi! Ai, nem lembro o que fiz
quando acordei, estava totalmente confusa e assustada. Tem certeza que eu falei em alemão?”

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Ele responde sem hesitar. “Sim, falou.”
Eu balanço a cabeça negativamente e ergo os ombros. “Não sei de nada, Marcos! Nem me lembro direito do
que disse!”
“Ah, está bem, então. Bom, volte para o hotel o mais rápido possível, certo? Vou indo.” Ele logo sai. Eu
permaneço no quarto por algum tempo, esperando o cabelo secar um pouco mais antes de sair para comprar roupas.
Fico pensativa novamente, tentando refletir sobre as últimas horas. Eu falei em alemão? Faz tanto tempo que não falo
a língua, desde que fui para a Alemanha com o Cris.
Olho para o livro. Folheio as três páginas que foram “saltadas” durante a noite. Falam sobre os dias seguintes
de visões de Meinhard. É estranho, mas conforme leio os primeiros versos, minha mente parece já saber de antemão os
que virão a seguir. Volto para a página que estava marcada e olho a última estrofe. Novamente, eu sei de antemão o
que ela diz, como se a tivesse lido ontem. Mas tenho certeza que não as li. Recito as palavras, em latim mesmo,
enquanto as leio.
“Pesadelos atormentam meu sono.
Gritos me revelam imagens do que está por vir.
Após a tempestade de fogo trazida por dois pássaros da morte,
Quando nova guerra começar entre os filhos de Abraão,
Então iniciará o começo do Fim..
Mas o dia da revelação chegou.
Agora eu sei, de antemão, o que fazer.
Aceito esta verdade.”
Por que tudo isto me parece tão familiar?

Capítulo 8: Elias
Assim que deixo Natasha no quarto do hotel, dirijo-me ao elevador. Quando Cristiano me pediu para manter
vigilância sobre a garota, eu sabia que isso significaria confusão. E, mesmo estando acostumado com essas coisas, eu
nunca me conformo com os rumos de minha vida. Parece que, mesmo querendo fugir dos meus pecados, eles sempre
voltam para me assombrar. Gostaria de saber quando, afinal, eu vou poder ter um pouco de paz. Mas, mesmo não
querendo me envolver, não pude ficar parado ao ver a moça em perigo. É da minha natureza. Só não sei se fico feliz
ou me amaldiçôo por ter esse coração mole.
O elevador chega ao saguão do hotel. Vou até a garagem, onde pego o carro da garota. Agora, resta o longo
caminho de volta para Jabaquara, onde ela mora. Preciso pegar as coisas dela e retornar ao hotel, conforme combinei
com Natasha. Ela parece ser uma boa moça, mas muito ignorante a respeito do mundo. A princípio, pensei que ela
seria a nova aprendiz de Cristiano, mas vejo que não. Será que Cristiano e ela possuem alguma relação mais íntima?
Eles não são parentes, então só um relacionamento íntimo poderia explicar a preocupação que o desgraçado tem por
ela.
Também penso no que estou me metendo. Não sei se é pior fazer a vontade de Cristiano ou deixar que ele
cumpra sua chantagem. Cada vez que ele me pede “favores”, eu acabo me envolvendo exatamente no tipo de coisas
que sempre quis evitar, e mortes e seqüelas sempre vêm em seguida. Ainda assim, após conhecer a garota, não posso
deixar uma pessoa tão vulnerável a mercê daqueles homens. Deu para notar que o que me atacou era apenas um idiota,
mas o outro... Aquele parecia ser o líder, e seu olhar tinha algo de estranho.
São dez para as oito da manhã quando chego no prédio de Natasha. Eu uso o controle remoto para abrir a
garagem e estaciono o carro ali mesmo. Desta forma, não preciso passar pela portaria. Pego o elevador e vou direto ao
sétimo andar. Cristiano disse que o apartamento de Natasha é o 702, se não me engano. Vou me preparando para ter
que forçar a fechadura, mas para minha surpresa, a porta está aberta. Será que os seqüestradores deixaram-na aberta
mesmo?
Mas então noto que há alguém lá dentro. Ouço som de gavetas sendo abertas e objetos sendo mexidos. Será
que é algum deles? Caminho com cuidado para não fazer barulho e me escoro em um canto, olhando pela quina entre a
parede da sala e a do corredor que leva aos demais cômodos. Noto um homem mexer nas gavetas de Natasha. Ele tem
algo na mão, que parece ser uma agenda. É um dos seqüestradores, como eu suspeitava. Não é nem o líder, nem o
outro em que bati, mas o terceiro, o que eu derrubei primeiro, atacando-o pelas costas. Ele é um homem um pouco
mais alto que eu, deve ter um metro e setenta e cinco, mais ou menos. Seus cabelos são louros, o corpo é esguio e
veste-se com paletó, sapatos e calça social.
Eu penso em me aproximar, quando então ele pára de repente e se vira. Eu recolho a cabeça, escorando-me na
parede da sala e torcendo para que ele não tenha me visto. Silêncio. Não posso ver o que ele está fazendo, mas sei que
não está mais mexendo nas coisas, nem está andando. Permaneço ali, parado, tento me esgueirar, ainda apoiado na
parede, para longe da quina, mas o armário da TV não permite que me afaste muito. O silêncio continua.
De repente, um pequeno som. Ele pegou algo metálico e com peças. Passos lentos, caminhando na minha
direção, cautelosamente. Som de uma pistola sendo destravada, bem ao meu lado. Preciso sair daqui, rápido! Eu me
preparo para sair dali o mais rápido possível, dando um impulso adicional com os braços apoiados na parede, mas

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neste momento ele passa pela quina, apontando a pistola para minha cabeça. “Ora, ora,” ele fala claramente em
português, mas num sotaque extremamente carregado. “Hora da revanche, pelo visto.”
Ele me encara nos olhos. A pistola está encostada na minha testa. Ao contrário do líder, seus olhos mostram-se
vibrantes, ainda que atentos, e um sorriso esboça-se em seu rosto. Ele está confiante demais, mas ainda assim não puxa
o gatilho. Eu me preparo, erguendo lentamente as mãos, preparando para atacar assim que seus olhos mostrarem um
momento de hesitação. Mas o momento não vem.
“Nenhum de nós quer que autoridades se envolvam, não é mesmo?”. É ele quem inicia a conversa. Eu não
respondo, mas ele sabe que, de fato, a polícia iria só atrapalhar as coisas aqui. Há coisas acontecendo que as pessoas
normais não compreenderiam, e eu, entre todos os envolvidos, sou quem mais tem a perder com intervenções policiais.
“Então, considere-se com sorte por hoje. Não vou puxar o gatilho e sei que você não vai me atacar. Afinal, se a polícia
vier e formos presos, como explicaremos o fato de dois estranhos estarem se atracando no apartamento de uma moça
desaparecida?”.
“Ela está do meu lado. Se formos presos, podemos provar quem é o invasor aqui,” respondo, ainda buscando
um momento de hesitação dele.
“Ah, mas para isso você vai precisar tira-la do esconderijo. E aí meus companheiros irão atrás dela. Qual a
vantagem de ter pego apenas um de nós?”. Ele continua sorrindo. O maldito está certo, não posso fazer nada agora,
mas talvez possa descobrir algo.
“Afinal, porque tudo isso? O que querem com a garota?”, pergunto.
“Com ela,” ele responde, “não queremos nada. É o livro que desejamos, mas precisamos dela para
compreender certas coisas.”
“O que há de tão importante neste livro, afinal de contas?”
Ele me olha incrédulo. “Você realmente não sabe? Não é mais um atrás das Coletâneas? Por que será que não
acredito em você?”. Por um instante, ele move o braço, e a pistola pende ligeiramente para a minha esquerda. O olhar
dele se desvia por um instante. É o momento! Preciso de um décimo de segundo apenas. Sinto meu sangue ferver,
como das outras vezes, e uma força sobrenatural corre pelo meu corpo. O olhar dele muda, como se ele percebesse
essa força, e ele tenta reagir, mas sou mais rápido e forte. Num movimento rápido do braço esquerdo, removo a arma
que aponta para minha testa, forçando-a a apontar para a parede à minha esquerda.
Ele se assusta, mas não puxa o gatilho, ao invés disso largando a arma e afastando-se para trás. Eu estava
pronto para o caso dele atirar ou tentar me golpear. Ao tomar distância, porém, facilitou as coisas para mim. Aproveito
para pegar a própria arma com a mão direita e aponta-la de volta ao meu agressor. “Quem é você,” eu pergunto, agora
tendo a vantagem.
“Vai atirar em mim?”. Ele continua sorrindo. Afinal, qual é a dele? “De qualquer forma, meu nome é Elias.
Mas nomes aqui não significam muita coisa.”
“E por que querem o livro, afinal?”
“Você realmente não sabe, não é? Está bem, eu vou falar.” Ele espera um instante antes de abrir a boca
novamente. “O apocalipse está começando. O livro pode ser chave para para-lo.”
Ah, ele só pode estar de gozação! Não acredito que exista gente com uma mentalidade destas, capaz de matar,
roubar e seqüestrar porque acredita numa baboseira de fim de mundo. “Você é burro ou algo parecido?” Eu retruco por
pura revolta. Como pode haver gente fanática e ignorante assim, que faz barbaridades por acreditar em superstições?
“Não, você é o idiota aqui, por ser manipulado tão facilmente.” Ele avança. Não tenho tempo para pensar e,
mesmo a contragosto, puxo o gatilho várias vezes. Posso fugir antes que a polícia chegue, e aposto que Cristiano vai
dar um jeito de limpar a barra para Natasha. Então, não hesito. Disparo, apontando para a cara do desgraçado.
E nada acontece. Nenhuma bala é disparada. Mal tenho tempo para arregalar os olhos de espanto, e então sinto
o soco dele atingir meu estômago, com uma força que não condiz com seu físico. Eu perco o ar, caio de joelhos sem
conseguir respirar. Então, ele une e ergue as mãos, descendo-as com força. Sou atingido na nuca pelo golpe. A
consciência quase se esvai, mas eu tento me manter desperto.
O tal Elias ri, fala algo que não consigo ouvir, então se abaixa, e fala em alemão: “Caro Helmfrid, a partir de
agora, eu estou sempre um passo adiante de você. Considere-se sortudo por eu não querer chamar atenção hoje, ou sua
cabeça estaria separada do seu corpo.” Então, ele abre as mãos, deixando cair no chão as balas que deveriam estar no
pente da arma. As balas caem contra o piso de madeira, causando um ruído repetitivo. Elias pega a arma, que larguei
ao ser derrubado. Em seguida, levanta-se e sai, calmamente, assobiando.
Minha cabeça dói. Eu tusso um pouco enquanto tento recuperar a fôlego. Com dificuldade, me ergo, olhando
as balas caídas. Eu me sento no chão, esperando a dor passar. Desgraçado! Como fui pego assim tão fácil? Como ele
sabia que eu iria pegar a arma? Quando retirou as balas? Esse é um homem perigoso. E ele sabe meu nome...
Levanto-me, assim que me sinto recuperado. Olho ao redor, mas ele realmente foi embora. O que será que
veio fazer aqui? Só sei que bagunçou todo o apartamento em busca de algo. Bom, de qualquer forma, tenho coisas a
fazer. Antes que mais problemas apareçam, vou até o quarto de Natasha, abro os armários a procura de alguma mala e
não tardo a encontrar uma. Abro-a sobre a cama e começo a escolher roupas aleatoriamente. Não entendo nada de
gosto feminino, então não me importo muito com o que pego: algumas blusas, uma saia, calças, meias, uma sandália,
um calçado... Só tenho o cuidado de arrumar tudo para não amarrotar demais a roupa.

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Em seguida, procuro a bolsa dela. Novamente, não tardo a encontrar. Olho dentro para ver se os documentos
estão lá, e logo confirmo que sim. Falta agora a chave do apartamento, que ela disse estar no escritório. Procuro entre
as gavetas do local e acabo por encontra-la. Pego tudo e me preparo para sair.
Quando estou descendo pelo elevador, olho o relógio em meu pulso. Oito e meia. Chego à garagem, vou até o
carro de Natasha, coloco a mala e a bolsa no banco traseiro, então dou a partida e saio. Assim que chego à rua, presto
atenção para ver se acho o tal de Elias, mas não o vejo. Saio o quanto antes, com certo medo de estar sendo seguido.
Fico atento pelo resto do caminho, dando muitas voltas para despistar qualquer perseguidor. Meu instinto me
diz que não há ninguém me seguindo, mas é melhor não arriscar. Assim que tenho a certeza que ninguém me segue,
dirijo-me direto de volta ao hotel.
...
Minha primeira boa surpresa do dia vem quando retorno ao quarto. Assim que entro, a primeira coisa que noto
é Natasha sentada na cama, calma, ainda lendo o tal do tão precioso “livro do apocalipse”. Assim que nota alguém
entrar, ela se levanta num pulo e tenta ver quem acaba de chegar, ficando aliviada ao me ver. “Ah, é você, Marcos!”
Ela sorri.
Eu levo a mala e a bolsa até a cama. “Aqui estão suas coisas.” Ela agradece. Então, paro para olha-la. Está
usando um vestido de peça única, daqueles de alça e tecido leve, deixando os braços e ombros expostos. Usa sandálias,
não está de maquiagem, mas prendeu o cabelo num rabo de cavalo. Está muito bonita, apesar da simplicidade das
roupas. “Pelo visto, arrumou algo melhor para vestir. Bem, eu trouxe mais roupas para você.”
“Muito obrigada!”, ela agradece, “E sim, consegui comprar uma roupa melhor do que a que eu estava usando.
Só que comprar não foi fácil. Quando entrei daquele jeito na loja, todos ficaram me olhando.” Ela tenta rir um tanto
forçadamente, mas parece genuinamente calma ao me ver. Então, ela abre a mala para ver o que eu trouxe. “Será que
podemos comer alguma coisa? Não como nada desde o almoço de ontem.”
Ela está certa. Também estou com fome. Minha cabeça estava tão voltada para os problemas que nem parei
para pensar nisso. “Bem, o hotel serve café da manhã até as dez.” Então, eu paro para olhar o relógio. “Bem, são nove
e meia. Que tal tomar café?”
“Claro! Vou só guardar o livro.” Ela se afasta, pega o livro, marca a página em que parou e então o guarda na
mala, fechando-a em seguida. Natasha se aproxima de mim. “Vamos?” Ela parece bem mais calma. Posso notar que
ainda tem um pouco de desconfiança de mim, o que é natural, e que disfarça um pouco o desconforto da situação. Ela
sorri, mas sempre brevemente, e noto que se esforça bastante para isso. O resto do tempo está séria, atenta, como se a
qualquer momento pudesse aparecer um dos seqüestradores, saltando de algum canto escuro para vir busca-la. Apesar
de tudo isso, ela está controlada, o que é bom. Já vai ser difícil o que acho que teremos que passar nos próximos dias,
até que tudo se resolva. Pior ainda seria se ela estivesse tomada por desespero.
Como será que ela estaria se tivesse visto o que vi em seu apartamento? Ela acredita num mundo seguro e
racional, e não nesta loucura em que vivo, e é melhor deixá-la com esta ilusão. Ou será que eu devo contar tudo? Cedo
ou tarde ela vai me perguntar coisas que eu não devia contar. O que farei então?

Capítulo 9: Confissões
Enquanto descemos pelo elevador, esperando que chegue ao saguão, noto que Marcos e eu ficamos de lados
opostos, um mal olhando para o outro. Ele, tanto quanto eu, não deve estar gostando de nossa situação atual. A idéia
de ficar me escondendo não me agrada. Tento parecer mais alegre, mas na verdade estou chateada com tudo isso. A
uma hora destas, eu devia estar dando aula para meus alunos e me preocupando com o que faria para o almoço mais
tarde. Ao invés disso, estou aqui, com um homem que mal conheço e com medo de minha própria sombra.
Marcos me parece ser uma boa pessoa. O jeitão adolescente de se vestir é só um engano, pois ele é sério e
calado. Ele olha fixamente a porta do elevador, parece distante. Fico imaginando o que se passa na cabeça dele e
porque ele está se arriscando para me ajudar. Como será que ele e Cris se conheceram?
Então, o elevador chega ao saguão. Nos dirigimos para o restaurante do hotel, onde no momento servem o café
da manhã. O hotel é bonito, embora simples, provavelmente tem três estrelas. Há belos quadros nas paredes, tudo está
limpinho, mas nada é muito luxuoso. Gosto de coisas assim: nem luxuosas, nem rústicas demais.
Chegando ao restaurante do hotel, vamos direto pegar os pratos e talheres, e então nos servimos. Eu pego pão,
queijo, geléia, algumas frutas e suco de laranja. Já Marcos prefere algumas bolachas, café com leite e pães de queijo.
Ele acaba de se servir primeiro, e se dirige a uma mesa próxima, que se encontra vazia. O restaurante está bem vazio,
visto que o horário do café da manhã está quase no fim. Marcos coloca a bandeja sobre a mesa e espera que eu venha,
e então toma uma atitude que até me surpreende, puxando uma cadeira para mim! Gosto da atitude cavalheira, embora
ele continue calado e sério. Tento sorrir, mas noto que ele nem prestou muita atenção. Bah, deixa pra lá! Nem ando
com vontade de sorrir mesmo, só quis ser educada.
Eu o olho comer, calado. Ele parece mais preocupado do que quando saiu para pegar minhas coisas no meu
apartamento. Por que será? Será que aconteceu alguma coisa por lá? Eu o olho bem, tentando entendê-lo. Marcos
parece ser uma pessoa solitária. Devo puxar assunto com ele? Sobre o que falar? Talvez o óbvio... Acho que não custa
muito tentar. “Marcos?”

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“Hmmm?”. Ele pára de comer para me fitar. “Que foi, Natasha?”
“Como você conheceu o Cris?”
Ele me olha. “Faz muito tempo. Acho que foi em 89, se não me engano. Nos encontramos em Minas Gerais
quando ele estava fazendo uma pesquisa por lá.”
“Pesquisa? Que pesquisa?”
“Ah, você não entenderia.”
“Não? Por quê? Eu sou historiadora, como ele. Duvido que ele estivesse fazendo algo que eu não compreenda.
Era alguma pesquisa histórica, não era?”
Marcos desvia o olhar. “Não exatamente. Natasha, o que você sabe sobre a Amanhecer?”
Amanhecer? É a segunda vez que Marcos toca nesse assunto. Antes, ele pensou que eu pertencia a essa tal
Amanhecer, mas não tenho idéia do que seja. “Olha, Marcos, não sei o que é isso.”
“A Fundação Amanhecer é um grupo de estudiosos, que reúne cientistas, ocultistas, pensadores, artistas e
gente dos mais diversos grupos culturais. Ela tem uma face pública, apoiando movimentos culturais, pesquisas
científicas e trabalhos acadêmicos. Mas pouca gente realmente sabe sobre os motivos e a influência deste grupo,
porque ele é como uma sociedade secreta. Se não me engano, o nome real deles é ‘Sociedade Amanhecer de Ciências
Ocultas’ e seus membros são estudiosos e pesquisadores de todo o tipo. Eles realizam reuniões secretas e possuem
algumas formas de ritos e tradições próprias.”
Isso me pega desprevenida. Marcos está falando sério? “Esse grupo existe mesmo? O que o Cris tem a ver
com isso?”
“Esse grupo existe mesmo, Natasha, e não é o único. Você ficaria espantada com o número de sociedades
secretas que existem nesse mundo. Já ouviu falar em teorias de conspiração? Bom, é besteira, mas às vezes ter um
pouco de paranóia é bom. Cristiano é um estudioso da Amanhecer, Natasha. Ele estava em Minas Gerais fazendo uma
pesquisa para a organização e esta pesquisa foi tão bem sucedida que o colocou como um dos membros de destaque do
grupo no Brasil.”
É difícil de acreditar nisso. O Cris... a gente nunca ficou guardando segredos um para o outro. “O que esses
estudiosos fazem, afinal?” Eu gaguejo um pouco.
“Alguns se interessam por ciência e por exploração do mundo, enquanto outros gostam de coisas mais
abstratas, estudando fenômenos paranormais ou, como você está fazendo atualmente, tentam desvendar profecias e
encontrar significados ‘místicos’ nas coisas. Me diga uma coisa... Pode parecer que estou mudando de assunto, mas é
importante”, ele diz, dando uma pausa antes de perguntar: “Vocês namoram? Sei que ele não é casado. Você parece
gostar muito dele. Há algo entre vocês?”
De novo, alguém tem a impressão de que eu e o Cris temos algo. Será que parece tanto assim? “Não, Marcos,
não temos nada. Ele é só meu mentor e sempre me ajudou muito.”
“Então, ele deve querer que você seja iniciada na Amanhecer. Deve ter te dado o livro para estudar para que
você prove sua capacidade. Provavelmente, assim que terminar seu trabalho, deve ser iniciada na Fundação como
pupila dele. Por isso ele quer te proteger tanto.”
Eu? Pertencer a essa “fundação”? Nossa, do jeito que Marcos fala, parece ser um grupo eclético, respeitável.
Mas porque cientistas e estudiosos preferem trabalhar às escondidas? Fico pensando nessa questão, mas acabo
mudando de assunto repentinamente, fazendo outra pergunta que tem se repetido em minha cabeça: “E você, Marcos,
como entrou nisso tudo?”
“Bom, eu conheci Cristiano durante esta pesquisa dele. De certa forma, eu estava envolvido com o alvo da
pesquisa, e ele descobriu coisas do meu passado. Até hoje fica usando isso para me pedir ajuda.”
Eu noto um tom áspero na voz dele. “Você não gosta do Cris, não é, Marcos?”
“Natasha,” ele diz, ficando mais sério, “cuidado com o Cristiano.”
“Por quê? Afinal, o que exatamente ele fez? Você o está ajudando não?”
“Estou pagando dívidas. E não estou ajudando ele, estou ajudando você! Olha, se eu falasse, você não ia
entender. Notei que gosta muito dele e vai acabar ficando com raiva de mim se insistir nesse assunto. É melhor esperar
e você vai descobrir com o tempo. Mas, por favor, tome cuidado com ele.”
Eu paro de conversar por um momento. Olho para o prato, assim desviando o olhar enquanto minha mente se
enche de mais perguntas. Por que Marcos não gosta do Cris? Apesar do tom áspero, não parece que ele tem ódio, mas
sim alguma espécie de ressentimento. Marcos me parece uma boa pessoa, mas está me dizendo para não confiar na
pessoa em que mais confio? Gostaria que ele falasse as coisas com mais detalhes, porque não consigo entender nada.
Ele nota meu silêncio, então resolve falar mais. “Olha, Natasha, eu não devia estar contando estas coisas, mas
estou falando porque acho que você vai entender melhor a situação assim. Nós não podemos avisar a polícia porque
não sabemos quem está atrás do livro. Pode ser gente influente. Pode ser que fiquem ainda mais perigosos se notarem
que as autoridades se envolveram. Ou podem até mesmo ter muita influência na polícia, quem pode ter certeza? Eles
poderiam usar a polícia para achar você ainda mais facilmente.”
Eu não digo nada, prefiro ficar calada. Isto tudo é absurdo, mas não posso fazer nada. O pior é que estou tão
confusa, que por mais que tudo pareça uma história mal-contada, as palavras de Marcos fazem sentido. O Cris
realmente se comportou de forma estranha. Ele me pediu para ter cuidado antes das coisas começarem a acontecer, me

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convenceu a não chamar a polícia, mandou Marcos cuidar de mim e disse que ia resolver tudo sem envolver
autoridades. Droga, pensando bem, eu me lembro que, quando ele me convenceu a estudar as Coletâneas, disse que
isso poderia ser minha “passagem para um futuro promissor.” Cris me ensinou tanta coisa desde que nos conhecemos,
sempre atiçando minha curiosidade, me fazendo estudar mais e mais. Por mais absurdas que sejam as coisas que
Marcos diz, elas fazem algum sentido.
“Não é fácil entender, não é?”. Pela primeira vez desde que voltou do meu apartamento, Marcos muda o tom
de voz para algo mais leve, mais compreensivo.
“Não, não é,” eu respondo. “Parece um filme, daqueles com trama bem ruim.”
Ele esboça um leve sorriso, para variar. “É a sensação que todos têm quando descobrem. Isso é, quando
descobrem. Esses grupos não permanecem secretos à toa. Você é uma das poucas que pelo menos tem idéia do que
está acontecendo. Tem muita gente que é manipulada, usada ou mesmo morta em situações assim, e no fim nem soube
do que se tratava.”
Olho-o nos olhos. “E como você sabe de tudo isso? É um deles?”
“Eu?” Marcos desvia o olhar. “Não, um dia, fui envolvido contra minha vontade, como aconteceu com você. E
um amigo me contou. Ele sim pertencia a um desses grupos. O que eu quero é ficar o mais longe possível de tudo isso,
mas agora que sei, eles me procuram. É o que aconteceu no caso do seu amigo Cristiano. Ele sabe que eu sei, então
tratou de ter formas de me manter na linha. Mas não se preocupe, enquanto não souberem que você sabe, estará
segura.”
“Mas então porque contou? Como você pede para eu esconder o que sei? Droga, agora que você me falou tudo
isso, eu quero saber mais. Quero tirar a prova com meus próprios olhos, Marcos!”
“Natasha,” ele baixa a voz, “desculpe. Pelo visto, não devia ter falado. Mas pense bem... Se você não
soubesse, Cristiano usaria você como bem entender e você nem desconfiaria. Agora que você sabe, pode se defender
dele, pode tentar descobrir mais. Só não deixe que ele descubra que você sabe. Se isso acontecer, uma entre três coisas
pode acontecer.”
“Que coisas são essas?”
“Se ele realmente quer que você entre para a Fundação, então é isso que acontecerá. Você será iniciada na
sociedade. Essa é a melhor das possibilidades. Uma vez lá dentro, é uma deles. Agora, se não quiser entrar, ou se eles
não quiserem você no grupo, então duas coisas podem acontecer. Ou você vai ter que fazer o que eles querem, como
fazem comigo, ou vão querer eliminar você.”
Arregalo os olhos. O pensamento me assusta... “Me... eliminar? O Cris... nunca iria fazer isso...” Eu gaguejo.
De repente, o medo volta forte.
“A Fundação Amanhecer não é disso. Eles são uma sociedade humanitária, pacífica, mas existem facções
dentro dela, assim como existem facções em qualquer grupo. Nunca se sabe o que eles podem decidir. Sempre que
alguém descobre demais sobre a Fundação, os membros tentam comprar o silêncio, fazer acordos ou, se sentirem que
você não vai prejudica-los, simplesmente deixam tudo como está. Mas... às vezes alguns dos líderes não são tão sutis.”
Cris... No que você me meteu? Eu abaixo a cabeça, pensativa. Que loucura. Até anteontem, minha vida era
calma, pacata e eu reclamava dela. Eu queria algo mais, queria aventura, mas não isso. De repente, me sinto
vulnerável, tenho meu lar invadido, sou obrigada a me esconder, descubro algo maluco sobre sociedades secretas... E
meu melhor amigo, meu mentor, uma pessoa que amo muito, pode estar escondendo tudo isso de mim.
“Natasha...” Marcos me chama, eu o olho, não consigo esconder uma lágrima que rola por meu rosto. Não
quero chorar, não quero mesmo. Mas esse tipo de situação está me desgastando. E quando acho que estou me
recuperando, uma nova bomba me atinge e me sinto fraca de novo. “Desculpe estar contando tudo. Espero que tudo
isso acabe logo.” A voz dele está mais suave, ele tenta me consolar. “E não se preocupe, vou proteger você.”
De repente, minha cabeça se enche de mais dúvidas ainda. Marcos me contou tudo isso, mas é tudo tão
absurdo. Será que posso mesmo confiar nele? Droga, quero minha vida de volta. Quero acordar disso e ver que é um
sonho. Quero o Cris me ligando e que ele seja apenas meu mentor de novo. Fico em silêncio, e assim permanecemos
até terminarmos nosso desjejum.
...
Logo subimos de volta ao quarto e eu volto a ler o livro, ainda que sem muito interesse. Marcos assiste TV,
mas estão passando apenas algumas bobagens e programas infantis. Ele zapeia entre os canais, sem nunca permanecer
muito tempo em um só. Tento esquecer um pouco a conversa que tivemos hoje mais cedo. Minha atenção se volta para
os textos.
“Reinará o tempo da hipocrisia,
Quando demônios reinam sobre os homens.
E os farão, em nome da virtude, destruir seus próprios irmãos.
Os Arcanjos descerão dos Céus, mas nada farão.
Pois a humanidade não mais acreditará neles.
E aceitaremos o mal e o chamaremos virtude.
É isso que vejo: Mentiras se espalharão pelo mundo.
Sei que uma guerra está ocorrendo, longe das vistas de todos.

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Mas eu a vejo. Vejo os demônios caminharem pelas sombras da cidade sagrada.
Vejo-os espalhando fogo e terror.
Vejo almas inocentes incineradas por seus atos.
Mas os demônios não lutam, eles destroem e fogem.
É assim que agem: nas sombras, evitando o confronto direto,
Pois sabem que não vencerão os defensores da cidade.
Mas ainda assim querem toma-la.
E isto iniciará uma nova guerra.
Eu sei o que eles querem.
Quando os anos de aprisionamento terminarem,
Quando o selo for quebrado,
Então começará.
Aqueles que agem em nome do terror
Finalmente empunharão armas,
Gritarão sobre a terra devastada, marchando aos milhares
E iniciarão a Grande Guerra, a maior de todas.
Aquela que trará fogo e morte a todo o mundo.
Não haverá como fugir quando o fim começar.
Mas, enquanto os anos de aprisionamento não se findam,
Estaremos sob a ilusão de segurança.
Mas eu sei. Eu vi.
É através do terror que eles pretendem destruir o selo da paz.”
Os comentários de Gottschalk falam sobre a Guerra Fria. Não é de se admirar, visto que ele morreu em 72. Ele
compara os “demônios que espalham terror” com as manobras dos Estados Unidos e da União Soviética, explicando
que “quando o terror terminar, começaria uma nova guerra mundial”. Dá de notar um claro medo no texto de
Gottschalk, no qual ele diz temer que a profecia se cumpra. Mas ele não consegue explicar o que seriam “os anos de
aprisionamento”, nem sabe se Meinhard se referia aos americanos ou aos soviéticos como sendo “os demônios.”
Engraçado... Vendo este mesmo texto, agora que a Guerra Fria terminou, eu o interpreto de forma bem
diferente. “Demônios que caminham nas sombras e espalham o terror” poderiam ser terroristas, e os “anos de
aprisionamento” podem estar relacionados à questão da Palestina. Porém, não estou certa disso. O que poderia ser?
Então, outra conotação me vem em mente. Os que caminham nas sombras poderiam ser sociedades ocultas?
Não, eu é quem estou muito preocupada com isso, não deve ter nada a ver com o texto. O que será que Meinhard quis
dizer com essa passagem?
Então, Marcos me interrompe. “Afinal, de onde veio esse livro que você tanto lê?”
Eu o olho. Ele parece entediado com a TV e estava me observando enquanto eu lia. Normalmente, quando me
fazem essa pergunta, eu costumo simplificar a história e cortar o papo o quanto antes. Desta vez, porém, acho que
devo contar a história toda. “É um livro escrito por um monge do século XIII, chamado Meinhard. Por muitos anos, foi
considerado um livro proibido. Praticamente todas as cópias completas foram destruídas. Esta é uma das poucas cópias
completas que sobram, por isso é tão valioso.”
Ele me interrompe com uma pergunta. “E o livro trata de profecias, não é isso?”
“É,” eu respondo, “é o que todos acham. Mas ao contrário de Nostradamus ou outros que diziam ver o futuro,
Meinhard nunca se tornou conhecido. Pouquíssimas pessoas realmente ouviram falar dele ou conhecem sua obra.
Ainda assim, o livro é de valor inestimável. Mesmo entre os que já estudaram suas profecias, nunca se tem qualquer
consenso sobre o que se tratariam essas visões. Eu estou tendo muita dificuldade em compreende-las.”
“É porque não foram feitas para serem compreendidas,” ele responde. “Eu já disse, cada um vai ler isso e
achar que é uma coisa diferente.”
Eu fito Marcos. “Você é sempre tão cético assim? Primeiro fala em sociedades secretas e coisas que parecem
ficção, mas não acredita em profecias?”
“Ah, eu acredito em profecias, Natasha, mas não em qualquer texto que se diz profético. Eu acredito em muita
coisa absurda, simplesmente porque as vi, porque afetaram minha vida. Mas não acho que um livro vá conter tanta
coisa sobre o futuro. Uma pessoa pode ter visões, imaginar eventos, mas isso não significa que irão ocorrer. Por acaso
o tal Meinhard sequer dá pistas de quando suas visões se tornarão realidade?”
“Não. Ele cita eventos que ocorrerão e só, mas muitos de seus escritos parecem relatar mesmo fatos que
ocorreram séculos depois da morte dele.”
“Nada disso, Natasha,” ele me interrompe. “Nostradamus ficou famoso porque ele dá um pouco de pistas que
permitam às pessoas identificar datas aproximadas. Por isso tantos o conhecem. Se ele só ficasse descrevendo visões
desconexas, ninguém iria ligar para o que ele diz. E olhe bem: nem tudo o que Nostradamus profetizou se concretizou.
Então, não considero as baboseiras dele verdadeiras, pois sempre há a chance dele estar simplesmente errado. Como
eu disse, quem lê os textos sempre acha algum fato semelhante para comparar, não importa a época. Se eu falar, hoje,
que no ano que vem ‘uma terrível tempestade de fogo ocorrerá na terra do povo orgulhoso,’ com certeza algum fato,

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no ano que vem, vai poder ser atribuído a isso. Ao dizer palavras imprecisas, abro muito o leque de possibilidades. É
assim que essas ‘profecias’ funcionam.”
O que ele disse faz sentido. “E em que tipo de profecias você acredita, Marcos?”
“Um dia, um homem me disse algo que realmente aconteceu no dia em que ele disse que ocorreria. Isso eu
considero uma profecia.”
“Que fato foi esse?”
“Você não entenderia. Olha, Natasha, tem muita coisa estranha nesse mundo, acredite em mim.”
“Depois daquele papo de sociedades secretas, Marcos, não sei mais no que acreditar”, respondo.
“Falando nisso, foi Cristiano quem entregou o livro para você estudar, não é mesmo? Então, talvez esse livro
tenha mesmo algum sentido especial.”
“Como assim?” A última afirmação de Marcos me surpreende. Que tipo de sentido? “Podem ser profecias de
verdade?”
“Talvez sim, talvez não,” ele diz. “Só sei que não deve ser o que aparenta, mas se a Fundação Amanhecer tem
interesses nesse livro, então há algo de importante nele. Algo que não seja apenas besteiras.”
Olho o livro por um instante. O que será que ele significa então? “Tem muita coisa estranha nesse mundo,” eu
resmungo, repetindo a frase que Marcos falou há pouco. Ele ouve e responde: “Coisas que vão além do que você acha
verdade.”
De repente, uma idéia maluca me vem na cabeça. “E se o livro não estiver falando em metáforas?”
“O quê?” Marcos se surpreende, levantando-se da cama. Eu nem reparei, mas não tinha só pensado, mas sim
resmungado, e ele pôde me ouvir claramente.
“Nada não, Marcos, só besteira minha.”
Ele vira o olhar, pensativo. “Talvez não seja só besteira.”
“O quê?” Fico espantada. “Como assim?”
“Sei lá, Natasha. Só sei que esse livro tem alguma coisa de importante. O quê exatamente, não tenho como
saber. Então, qualquer possibilidade, por mais absurda que for, pode ter um fundo de verdade, entendeu?”
“Não, acho que não.” Realmente, isto está confuso. Se isto não é um livro de profecias, então é o quê? Uma
coletânea de poesias? Um monte de alucinações? Se eu for ler esse livro literalmente, tudo o que encontraria seria
loucura de um homem que fala em guerras de demônios e anjos, fogo e enxofre consumindo a Terra, cidades sendo
destruídas e coisas assim.
“Bom,” Marcos responde, “então deixa para lá. Acho que você não entenderia mesmo, Natasha.”
Humpf! O que ele quer dizer com isso? “Está me chamando de burra, é, senhor-sabe-tudo?” Eu me levanto,
pego um travesseiro na cama, que está logo ao meu lado, e jogo contra ele. Ele ri, defendendo-se com os braços. “Não
estou falando isso! Só digo que você não tem como entender por enquanto, está bem?” Olha-lo rir é, no mínimo,
estranho. Até o momento, Marcos esteve sério o tempo todo. Eu acabo sorrindo ao vê-lo assim. Olho o livro
novamente, e então volto a fitar Marcos. Ele parece ser um sujeito interessante. Não um erudito como Cris, mas parece
saber muitas coisas que não sei. Seriam todas essas coisas verdadeiras, ou será que Marcos está me enganando?
Quando se pára para pensar, eu e ele somos apenas estranhos dividindo o mesmo quarto e, se não fosse o Cris quem o
indicou para me proteger, eu não aceitaria de maneira alguma dividir um quarto com ele. Eu devia estar com medo de
Marcos, mas não estou. Talvez... talvez seja melhor eu conhece-lo mais a fundo. Acho que vou deixar o livro de lado
por hoje e tentar descobrir mais sobre ele. O que tenho a perder? Talvez ganhe uma amizade nova.
“Ei, o que está olhando?” A face de Marcos volta a ficar séria, ao notar que estou pensativa, sorridente e
olhando fixamente para ele.
“Nada não,” respondo. “Só pensei em uma coisa.” Então, o telefone toca. Marcos se apressa em atende-lo, fala
brevemente com a pessoa do outro da linha e então passa o fone para mim. “É para você,” diz, “é seu amigo
Cristiano.”
Sorrio. “Obrigada,” agradeço, enquanto pego o fone. “Alô, Cris?”
“Oi, Tasha, como está? Acordou melhor?” Cris parece sério, meio distante, mas finge estar calmo e alegre. Ele
pode tentar me enganar, mas o conheço bem demais para esconder seus sentimentos de mim, mesmo por telefone.
“Estou melhor sim, Cris. Estou mais tranqüila, e seu amigo Marcos me parece uma boa pessoa.” Eu olho para
Marcos ao falar dele, ele me olha, sem demonstrar qualquer outra reação, nem um sorrisinho sequer. “Cris,” eu digo,
meio relutante, “quero perguntar uma coisa.”
“O que é, Tasha?”
Eu quero perguntar sobre a Fundação Amanhecer. Quero saber o que é, conhecer a verdade. Quero confirmar
se tudo o que Marcos disse é verdadeiro. Eu preciso saber, mas ao mesmo tempo tenho medo, medo de que a verdade
não seja o que eu espero, de que Cris não seja a pessoa que penso que é. Então, hesitante, eu faço uma pergunta, mas
ela não sai como deveria. “Quando isso vai acabar, Cris?” Eu não tive coragem de perguntar. Simplesmente não fui
capaz.
“Se Deus quiser, Tasha, hoje mesmo. Descobrimos onde o chefe dos seqüestradores está. Se der tudo certo,
hoje você volta para sua casa e tudo ficará bem, eu prometo! Olha, descanse no hotel hoje, que amanhã entramos em

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contato, está bem? O Marcos vai cuidar de você só por mais um dia. Aí, você volta a lecionar, a estudar o livro e à
tranqüilidade de sempre.”
Eu tento sorrir com a boa notícia, mas Cris está estranho. A preocupação é transparece em meu rosto, a ponto
de Marcos notar. “Está bem, Cris,” respondo, sem ânimo.
Cris nota meu desânimo e tenta me consolar. “Calma, Tasha, amanhã você estará em casa. Tenho que desligar.
Beijos!”
“Beijos, Cris... Até...” Ele desliga, ouço o sinal da linha ocupada. Fico segurando o fone, parada, por alguns
instantes, então olho Marcos ao colocar o fone no gancho.
Marcos não demora a perguntar: “O que aconteceu?”
“Ele disse que descobriu onde o chefe dos seqüestradores está. Disse que talvez isso tudo acabe hoje mesmo...
Que amanhã já devo voltar para casa.”
Marcos me olha. “E por que está assim tão perturbada? Devia estar feliz em poder voltar para casa!”
“Marcos, você não entende, não é? O que ele quis dizer com acabar com isso hoje? O que o Cris vai fazer? Vai
matar o sujeito? Se ele não quer a polícia, o que significa acabar com tudo isso?”
Marcos parece frio, distante. “Não me diga que está com pena do seqüestrador! Ah, Natasha, tenha dó! Ele
tentou te seqüestrar e Deus sabe lá o que faria depois!”
Eu ergo a voz, nervosa, mais por descontrole do que raiva. “Droga, Marcos! Eu não tenho dó daquele filho da
puta! Acontece que esse não é o Cris que conheço! Eu não quero que façam justiça com as próprias mãos! Como
diabos o Cris é capaz de descobrir onde o seqüestrador está? Como diabos ele tem capacidade de ‘acabar com isso
hoje’???”
“Provavelmente, Natasha,” ele responde, “ele usou os contatos da Amanhecer para vigiar seu apartamento e
seguiu os malditos. Deve estar vigiando os passos deles. Agora, como vai acabar com isso, não sei.”
Amanhecer! Essa história de novo! Não, o Cris não pode pertencer a algo assim! “Esses da Amanhecer por
acaso matam quem quiserem, assim, impunemente?”
“O Fundação Amanhecer não faz justiça com as próprias mãos,” Marcos responde. “Na verdade, é política
deles não fazer esse tipo de coisa a menos que a sociedade em si esteja em risco. Mas Cristiano é um homem influente.
Sei disso muito bem. Ele tem poder na divisão brasileira da Fundação, e não duvido que às vezes quebre as regras e
use a Fundação para fazer sua vontade.”
O Cris não é assassino. Não é! Não pode ser! Ele não faria isso!
Faria?

Capítulo 10: A Isca


“Parece-me que você perdeu o tato, Abiram.”
A voz dele ecoa na escuridão, enquanto eu, de costas para ele, observo a janela e o céu noturno, nublado, da
cidade grande. O cheiro pútrido inunda minhas narinas, sinto minha pele coçar e queimar por inteiro, mas mantenho-
me parado. Ele me tenta, buscando perturbar minha concentração, como se quisesse testar minha capacidade, mas não
demonstrarei fraqueza. Minha mente se inunda de pensamentos desconcertantes, lembranças da época de sofrimento,
mas a mantenho concentrada. Uso a calma paisagem do céu nublado como forma de equilibrar as imagens horríveis
em minha mente. Concentro-me nessa calma, deixo as atrocidades do passado para trás. Não quero lembrar daqueles
fatos.
“Cometi erros, meu senhor,” respondo a ele, ainda sem fita-lo. “Admito que errei duas vezes ao subestimar
nosso inimigo. Primeiro, errei por considerar a mulher mais perigosa do que ela realmente é. Segundo, errei por
subestimar o poder daquele que a manipula. Mas tenha paciência, em breve teremos o livro.”
“O que o faz ser tão confiante, Abiram?”
“Elias identificou o homem que salvou a garota. Estamos à procura de informações sobre este homem e,
possivelmente, devemos encontra-lo muito em breve. Segundo Elias, ele se chama Marcos Helmfrid. Eu sei que ele
não é um simples mortal. Pelo pouco que sabemos, ainda é cedo para especulações sobre a sua natureza, mas eu e
Elias temos suspeitas sobre a verdadeira natureza dele. De qualquer forma, ele vai ser a chave para chegarmos ao
livro.”
“Que assim seja, Abiram Abednego.” A voz dele ecoa tanto em meus ouvidos como em minha mente. “Eu
estarei esperando. Há algo que precise para concluir sua missão?”
“Os símbolos, senhor. Preciso compreender o que são os símbolos que encontrei nas anotações da garota.”
“Você está certo. Trata-se mesmo da escrita divina. Porém, cada símbolo tem significados que vão além do
que a mente humana poderia compreender. Porém, posso simplifica-los em apenas algumas palavras.”
“E quais seriam, meu senhor?”
“Prisão, escuridão, verdade, aceitação, união, chamado.”
“Apenas isso? Eu imaginava que seriam símbolos ritualísticos, não apenas palavras divinas.”
“É um idiota, Abiram Abednego. Cada palavra contém poder, cada símbolo pode ter dezenas de outras
propriedades. Na língua divina, não há certo ou errado, mas incontáveis significados entre ambos. ‘Claro’ pode ser luz,
mas também pode ser certeza, ou mesmo calor e fogo. ‘Fidelidade’ pode ser confiança, medo, grilhão, fé ou

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escravidão. E cada sentido tem uma propriedade, um poder. Estes símbolos podem significar muito, mas sem o acesso
ao original, não é possível discernir o verdadeiro sentido. Por terem sido copiados por mãos humanas, os símbolos não
possuem as afinidades que deveriam. Eles estão falhos, sem as sutilezas que apenas os seres divinos podem
compreender.”
“Entendo...”
“Espero que sim. Novamente pergunto... Há algo mais que precise para concluir sua missão? Peça, e terá
aquilo que desejar.”
“Não, senhor, eu não ousaria pedir mais nada, nem preciso de qualquer ajuda no momento. Creio que posso
controlar a situação.” E mesmo que não pudesse, eu jamais pediria algo, pois sei o preço a pagar mais tarde. Eu já
estou cansado de minhas dívidas. Com os anos, tornei-me forte, independente. Não necessito de favores mais. A única
coisa que me prende agora é o pacto.
“Não se esqueça do dízimo, Abiram. Eu desejarei sua parte em breve.”
O cheiro desaparece, minha mente limpa-se das memórias, minha pele acalma-se. Viro-me para o quarto
escuro e não noto sua silhueta. Então, resmungo uma resposta, mesmo sabendo que Abla-Aziz não a ouvirá. “Sim,
Lorde Aziz.”
Enquanto caminho pela escuridão, tentando sentir as sombras ao meu redor, fico pensando nas noites do
passado. Lembro-me do medo que sentia no começo, do pavor que essas visitas noturnas me causavam. Perdi
incontáveis noites para os pesadelos que me atormentam, as visões que revelam meu destino. Ao mesmo tempo,
aprendi com tudo isso. Não há nada em minha vida passada que não tenha sido ódio, morte, dor e sofrimento, mas
cresci a ponto de estar acima de tudo isso. Eu aprendi com as adversidades.
Mas ainda assim, os grilhões da escravidão ainda me acorrentam e me forçam a me desviar de meus desejos.
Não me arrependo de nada do que fiz, de nenhum dos meus crimes. Fiz tudo para sobreviver. Aprendi que as ilusões
da sociedade de nada valem quando se presencia a morte de sua antiga vida e quando a única mão que estendem a
você é a mesma que o acorrenta. É por isso que não me arrependo. Se não tivesse feito o pacto, eu estaria morto há
mais de cinqüenta anos. Porém, também aprendi que nada é eterno. Nem mesmo minha escravidão. Nem mesmo
minha alma.
Ouço o vento lá fora e os gritos que o acompanham. Ao mesmo tempo, continuo sentindo a presença que tem
caminhado neste mundo desde o dia daquele sonho. Sei que, enquanto as pessoas vivem suas ilusões diárias, há uma
guerra no horizonte, seus ecos sendo trazidos por estes ventos. Dois exércitos mais antigos que a nossa civilização em
breve se chocarão com espadas flamejantes e garras ensangüentadas. A culpa é dessa presença. Por isso Lorde Aziz
está tão preocupado. Ele sabe que o conflito vindouro pode significar sua própria destruição. E pode significar minha
liberdade também.
Então, em meio às minhas divagações, sinto um calafrio, como se mãos invisíveis e geladas tocassem meu
ombro, e uma boca morta se aproximasse de meu rosto. Um sussurro passa por meu ouvido, ecoando nos recessos de
minha mente. “Está perto.” O calafrio desaparece. Acho que receberei visitas hoje.
Todos me subestimam porque sou humano. Ainda assim, sempre fui precavido o suficiente para aprender a
fazer o impossível. Como prender os mortos a mim para me guardarem. Infelizmente, neste hotel, eu não tenho a
liberdade para realizar meus ritos, mas ainda assim pequenas invocações são possíveis. Antes de realiza-las, porém,
convém usar uma artimanha bem mundana. Eu coloco travesseiros e um lençol enrolado sob o cobertor da cama,
fazendo parecer, no escuro, que alguém dorme.
Em seguida, após pegar um pedaço de giz e três velas em minha mala, eu removo o tapete e me ajoelho no
centro do quarto. Acendo as velas e as coloco ao meu redor, formando um triângulo no qual eu sou o centro. Então,
com o giz, desenho o triângulo e esboço o símbolo correto diante de mim. Não importa a qualidade do hotel, sempre
há criaturas indesejáveis caminhando por ele. E, neste caso, uma barata atendeu ao chamado. Não vejo de onde ela
vem, mas ela corre direto para o símbolo. Eu a pego nas mãos e analiso sua forma. Lembro-me de quando fiz isto pela
primeira vez. Eu vomitei naquela ocasião. Mas hoje em dia, faço sem hesitar, especialmente por saber que minha vida
está em jogo. Eu devoro o inseto, mordendo-o e sentindo-o desfazer-se em minha boca. Sinto sua vida acabar e seus
líquidos viscosos se espalharem sobre minha língua. Mas, mais importante, sinto um tremor em meu corpo, e a
sensação de centenas como ele crescendo dentro de mim, suas patas caminhando por meu estômago, pelas minhas
artérias e veias, saindo por meu nariz e minha boca. Concentro-me para abafar a sensação. É apenas uma ilusão, mas é
extremamente real. A parte difícil do ritual não é devorar o inseto, mas conter a sensação de que eles se multiplicam
dentro de você. Por fim, engulo os pedaços e invoco as palavras, numa língua que muitos considerariam morta:
“Desapareçam, pois em breve libertarei vocês. Desapareçam, pois em breve acharão um hospedeiro. Desapareçam,
pois eu sou seu mestre e a mim vocês não causarão mal.” A sensação desaparece e o rito se conclui. Levanto-me,
apago as velas com as pontas dos dedos, e então as retiro, cobrindo os símbolos de giz com o tapete. Enfim, com o rito
completo, caminho para a janela, olhando novamente o céu nublado, esperando pelo meu visitante.
É meia-noite. Menos de cinco minutos após o rito ser concluído, ouço sons quase imperceptíveis, vindos da
porta do quarto. Ela é destrancada cautelosamente e então aberta sem fazer ruído. Pelo reflexo da janela, noto o feixe
de luz vindo do corredor do hotel invadir a sala. Como o quarto é adjacente à sala do apartamento, e as portas não são
alinhadas, não vejo quem poderia estar entrando, mas noto a sombra do mesmo contrastar-se com a luz do corredor.

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Ele caminha pelo tapete, abafando seus sons. Faço silêncio também. As luzes estão apagadas há horas, então se este
homem tem me vigiado, ele deve imaginar que estou dormindo.
Então, pelo reflexo da janela, noto a silhueta do homem adentrar o quarto. Ele carrega uma arma, uma pistola,
e, pelo que reparo no comprimento do cano da mesma, ela tem um silenciador. Ele caminha em direção à cama,
ignorando-me por completo. Faz isso porque assim eu quero, porque sua mente é frágil demais para me ver. Então, ele
se aproxima da cama, aponta a arma em direção ao travesseiro, mas não a dispara. Ao invés disso, cutuca o cobertor,
descobrindo a enganação. O sussurro dele não é nada sutil: “Merda!”. Um palavrão como esse eu posso compreender
mesmo em português.
Então, me revelo, virando-me para ele, dando um passo à frente, calmamente, e chamando sua atenção. “Posso
ajuda-lo?” Ele se assusta, apontando a arma para mim. Sei que não vai atirar, ou teria sido mais agressivo na cama. Ele
deve querer me fazer perguntas antes de me matar. Isso é bom. Bom para mim. Se enviaram este homem a mim, ele
deve pelo menos saber minha língua. Então, falo em grego mesmo.
“Levante as mãos onde eu possa vê-las,” ele fala, mas em inglês. Os idiotas que o enviaram nem se
preocuparam com a linguagem, ou então não tinham ninguém mais apropriado para o serviço. Eu obedeço, erguendo
minhas mãos, mostrando que estou completamente desarmado. “Abiram Abednego, eu presumo,” ele diz.
“Quem enviou você?” Eu faço a pergunta, enquanto reparo no homem, discernindo os detalhes que posso ver
na escuridão. Ele veste roupas de funcionário do hotel, tem bigode e cabelos curtos e escuros. Não é musculoso e é até
um pouco gordo, mas noto que é uma pessoa forte, mais do que eu, provavelmente. Ainda assim, sei que é apenas
humano. Ele empunha a arma com convicção e frieza e tenho certeza que não hesitará em atirar.
“Você não está em condições de fazer perguntas, Abednego. Quem enviou você e o que querem com o livro?”
“Eu enviei a mim mesmo. E o quero pelo mesmo motivo de vocês, eu presumo.”
Ele continua o interrogatório. “O que sabe sobre as Coletâneas de Meinhard?”
Talvez eu possa descobrir algo com esse interrogatório. Convém responde-lo e tentar descobrir tudo o que for
possível. “Sei que foram escritas por um monge germânico em algum momento entre os séculos XII e XIV. O livro
contém pistas sobre o apocalipse iminente”. Então, após uma breve pausa, concluo com a sugestão que finalmente
conclui meu ritual: “E também fala sobre o que está acontecendo, sobre as criaturas que estão vindo. Você pode senti-
las?”
“Nos preocupamos à toa, então.” Antes que eu possa fazer algo, ele puxa o gatilho, sem hesitação alguma. É
como se eu ouvisse com antecedência o som abafado do disparo. Seria um tiro certeiro, não fosse que seu corpo
começasse a convulsionar no instante do disparo, desviando sua pontaria. Ele se engasga na própria saliva e larga a
arma, tossindo incontrolavelmente, sem conseguir respirar. Seus gritos são abafados pelo próprio muco que seu corpo
forma nas vias respiratórias. Ele cai de joelhos, sufocando-se. Então cospe desesperadamente as baratas que nascem
em seu interior.
Tudo não passa de uma ilusão, à qual apenas os de vontade mais fraca são vulneráveis. Mas, para este homem,
as baratas são reais, caminhando em seu interior, querendo sair, inundando sua boca, nariz e pulmões, rasgando sua
pele e buscando liberdade, espalhando-se sobre ele e pelo chão ao seu redor. Centenas, milhares de patas caminhando
dentro dele e sobre ele. Seu corpo reage, tentando eliminar as “coisas” em seu interior, produzindo muco, fazendo-o
tossir e até mesmo vomitar. Por mim, eu o deixaria neste estado pelas próximas horas, mas tenho pressa. Pego a arma
que ele largou no chão e desfiro uma coronhada em sua nuca. Ele cai no chão, desacordado, sobre o próprio vômito.
Quando acordar, a ilusão terá sumido, mas ele vai preferir que ainda estivesse neste sofrimento. Tenho planos
melhores para este idiota.
É hora de saber mais, de responder algumas perguntas. Ele deve ter algumas respostas para mim. Apesar de eu
ter usado minha resposta para concluir o ritual, eu fui sincero ao dizer que o livro se tratava do apocalipse. O que,
então, ele quis dizer com o fato de terem se preocupado à toa? O que eles sabem sobre o livro que eu não sei? Eu tenho
uma versão incompleta das Coletâneas, a li com cuidado e identifiquei diversos dos sinais apontados, mas eu preciso
dos capítulos perdidos para compreende-la por completo. Eu sei que fala do apocalipse, a menos que haja outro
sentido oculto nas palavras escritas por Meinhard.
Eu me preparo para sair, pegando giz, velas e minha adaga, bem como a arma do próprio assassino,
guardando-as em minha maleta, e então troco a camiseta do homem desmaiado, pondo nele um paletó nele para
disfarçar o uniforme do hotel. Aproveito e removo um pouco do vômito que impregna a face do sujeito. Logo depois,
ligo para a portaria do hotel e peço que me chamem um taxi. Eles me avisam que já há vários de prontidão na frente do
prédio. Perfeito! Digo que mandem um funcionário para cá, para me ajudarem com um amigo que desmaiou. Qualquer
pessoa estranharia o fato de um “amigo” que ninguém viu entrar no hotel estar me visitando a meia-noite, mas não me
importo. Não preciso dar respostas a ninguém e, de qualquer forma, sei que não farão perguntas.
Assim que o funcionário chega, eu peço que entre e me ajude a levar meu “amigo” até o táxi. Eu digo que ele
tem diabetes e que precisa de um médico urgentemente. O funcionário nem pensa duas vezes antes de já se prontificar
a carregar o homem. Ambos o levamos até o saguão. Assim que chegamos ao táxi, eu agradeço, fingindo um sorriso, e
dou uma generosa gorjeta ao funcionário, além de dar um curto recado: “Você não viu nada.” Nossos olhos se
encontram, e a mente em breve não se recordará de nosso encontro.

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O taxista pergunta aonde iremos. No meu português falho, respondo que vá ao endereço de um papel que
entrego a ele. Dou uma versão diferente a ele, falando que meu “amigo” bebeu demais e que vou leva-lo para casa. Na
verdade, o local é o cativeiro onde planejávamos manter a garota presa. É uma casa pequena em um bairro de classe
média, que Elias e Andreas alugaram utilizando-se de identidades falsas. É o local perfeito para me livrar deste traste.
Enquanto o táxi prossegue em sua viagem, eu pego o celular e telefono para Elias. “Onde você está?”
“Senhor, encontrei a garota e o tal Helmfrid. Não foi muito difícil, na verdade. Apenas procurei sobre
Helmfrid e descobri onde mora. Como não estava em casa, busquei parentes e não encontrei nenhum vivendo na
cidade, então me pareceu óbvio que ele estava em algum hotel ou hospedaria. Acabei fazendo uma procura rápida e
achei, por pura coincidência, o nome dele como estando hospedado num hotel aqui na cidade mesmo. Eu estou no
local agora mesmo, já descobri o quarto onde os dois estão, mas estou apenas de vigilância.”
“Muito bom, Elias. Onde está Andreas?”
“Está no ponto de encontro, senhor. O deixei descansando por causa do braço e mandíbula quebrados.”
“Certo. Ligue para ele e avise que estou indo para lá, com uma pessoa indesejável. Peça para arrumar corda.”
“Sim, senhor, o farei imediatamente. Isto é tudo?”
“Sim.” Eu desligo logo em seguida. Noto que o taxista não entendeu nada da conversa, o que é bom.
Felizmente, embora todos aqui pareçam saber um mínimo de inglês, grego não deve ser uma língua que usem muito.
Olho o sujeito desmaiado. Pelo visto, pagarei o dízimo a Lorde Aziz antes do esperado...

Capítulo 11: Fuga


“Você precisa compreender o que está acontecendo, não é? Precisa saber o sentido das coisas. O mundo não
é o que você imaginava ser? As pessoas não são quem você pensava conhecer? Juntos, teremos as respostas. Aceite-
me, pois eu sou a verdade. Você aceita a verdade?”
Está escuro, mas me sinto leve, como se flutuasse pela imensidão. Tudo está em paz, me sinto bem. Estou
calma e não me lembro de nada. Não sei quem sou, nem como vim parar aqui. Mas então, a paz é quebrada por um
som repetitivo.
Meus olhos se abrem, estou deitada novamente na cama do hotel. O abajur está aceso, iluminando o quarto.
Noto movimento à minha esquerda. É Marcos, levantando-se da cama. O telefone está tocando. Será o Cris? A esta
hora? Não quero levantar. Está bom aqui. Estava tudo tão calmo.
Marcos atende ao telefone, enquanto eu me viro para a esquerda, dando as costas para a luz do abajur. Fico
olhando o lado da cama em que Marcos estava. Os lados continuam separados por travesseiros e alguns lençóis
enrolados, dividindo o espaço de cada um. Então, ouço Marcos falar.
A conversa é rápida, mas parece que Cris tem muito a dizer. Marcos fala sucessivamente:: “Alô? Cristiano?
Como? Agora? São duas da manhã! Falhou? Não, espere! Sim... sim... Vou chamá-la...”
Marcos se volta para mim. “Natasha, seu amigo quer falar com você. Não são boas notícias.” Droga! Por que
será que eu já esperava por isso? Levanto-me com desgosto, os olhos lutando para permanecerem abertos. Após uma
tarde e uma noite calmas, comigo e Marcos conversando, assistindo TV e, no geral, nos distraindo, a madrugada tem
que ter uma má notícia.
Fico sentada na cama e pego o fone. “Alô?”
“Tasha, as coisas saíram errado. Você precisa sair daí. Já falei tudo para Marcos, se arrumem para sair o
quanto antes.”
“O quê? Cris, o que aconteceu? O que saiu errado? Eu já estou cansada de fugir, Cris! Estou exausta!” Sem
notar, eu aumento o tom de voz. Estou nervosa, cansada! “Já faz três dias que não tenho uma noite decente de sono!
Por que não chama a porra da polícia de uma vez e acaba logo com tudo isso? Merda, Cris, não agüento mais!!!”
“Calma, Tasha. Olha, eu tenho uma chácara em Araçatuba. Sei que é longe de São Paulo, mas vocês dois
precisam ir para lá. Estarão seguros e poderão descansar. Embora eu não ache que demorará tanto para resolvermos
tudo, fiquem lá por uma semana. Descansem, deixem o tempo passar. Tudo vai ficar bem, Tasha. Prometo!”
Droga, não acredito nisso! O que você pode estar fazendo, Cris? Como pode querer pegar essa situação e
cuidar dela assim, ignorando a polícia e tudo o mais? Por que isso tudo, afinal? Eu estou nervosa com ele,
decepcionada. Nem me dou ao trabalho de responde-lo. Já ia desligar o telefone quando ele pede que eu passe o fone
para Marcos. Eu o faço, e então me deito na cama, de bruços, e abraço o travesseiro. Respiro forte, quero chorar, mas
nenhuma lágrima cai. Talvez eu esteja cansada de tanto chorar.
Marcos anota os dados da tal chácara numa folha de papel. Logo em seguida, Marcos desliga o telefone.
“Natasha, arrume suas coisas.”
“Não, Marcos. Eu cansei. Não agüento mais. Vamos à polícia, por favor...” Eu o olho, fazendo uma cara de
gato pingado na tentativa de convencê-lo. “Vamos fazer as coisas da maneira certa! Se todos têm tanto medo de
envolvimento com a polícia, isso não iria parar se a procurássemos? Por favor.”
Ele hesita por um momento. “Natasha, tem certeza disso? Podemos fazer isso, mas não sei se seria realmente o
melhor para você. Quer saber minha opinião? Finja de boba e faça o que ele quer. Eu também estou de saco cheio e só

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quero que isso termine, mas se quiser, eu ajudo você a descobrir o que está acontecendo. Para isso, infelizmente temos
que fazer o que o Cristiano quer.”
“Está bem, Marcos... Está bem.” Eu me levanto, sem ânimo algum. “Me dá um tempo para trocar de roupa...”
Pego uma calça jeans e uma camiseta vermelha e vou para o banheiro. Estava dormindo de bermuda e usando uma
camiseta mais velha. Quando fecho a porta do banheiro, paro para pensar novamente.
Fico me olhando no espelho, enquanto troco de roupa. Fico imaginando o que “falhou” no plano de Cris. Será
que ele tentou matar o sujeito e este escapou? Ou será que quem morreu não foi o tal seqüestrador, mas outra pessoa?
E porque temos de sair daqui, se estávamos seguros? Será que nos descobriram? Será que é por isso que Cris ligou
durante a madrugada?
Marcos bate na porta, pede que eu me apresse. Ainda nem comecei a me vestir, ainda estou de frente para o
espelho. Encosto a cabeça no espelho, fitando meus próprios olhos. Estou com sono, acabo fechando-os por um
instante, tento pensar. Só me vêm preocupações em mente. Então, juro ouvir algo. “Isso está para terminar. O livro
contém a resposta...” Abro os olhos de repente. Olho para os lados, procurando quem possa ter falado ali ao meu lado,
como se sussurrasse em meu ouvido. Olho para o espelho, mas apenas eu estou no reflexo. A voz era familiar, já a
ouvi antes. Ela era profunda, ecoante, mas ao mesmo tempo doce, calma, feminina. Parecia... parecia minha própria
voz.
De qualquer forma, Marcos bate novamente na porta. Eu entendo o recado e me visto o quanto antes. Abro a
porta e o vejo já de roupa trocada, usando uma calça jeans e uma nova camiseta. Será que ele só tem isso no guarda-
roupa? “Desculpa a demora, Marcos.” Ele pega a mochila dele e minha mala, então caminhamos juntos até o elevador.
Enquanto esperamos o elevador, olho para Marcos. Uma coisa me vem em mente. Que tipo de dívida é essa
que ele tem com Cris, a ponto de se arriscar para ajudar uma desconhecida, de ter que ficar fugindo e se escondendo?
Ele não gosta de Cris, mas ainda assim me ajuda fielmente, e tem me tratado bem. Na última tarde, conversamos tanto,
e pude ver o quanto ele é uma pessoa inteligente, viajada, cuidadosa. Notei o zelo que tem ao cuidar de mim. Apesar
de sério, rimos muito, contamos piadas. Ele me contou um pouco sobre a vida dele, mas nada do lado profissional ou
familiar. Ficava falando de lugares que visitou, como a terra natal dele, a Alemanha, bem como a Grécia, a Itália,
Portugal. Contou histórias que muita gente não conheceria, sobre lendas e mitos de cada local que conheceu. Mas em
momento nenhum falou sobre seu trabalho, ou formação acadêmica, ou parentes. Disse que “vive de renda” e não
trabalha, apenas isso. Mas ele não parece ser o tipo de pessoa que fica curtindo a vida. Parece mais alguém sem
destino.
Eu fico a olhar o rosto de Marcos. Ele parece distante de novo. Então, ouço um som vindo do corredor. Uma
porta se abre. Marcos fica surpreso e, logo após, nervoso. Eu olho para a direção do corredor, e vejo um homem sair
do quarto ao lado do nosso. Meu coração dispara. Eu já vi esse homem antes! Um homem mais alto que Marcos, de
cabelos louros, magro, sorridente... Os olhos azuis me fitam. Ele se veste bem, de calça, sapatos e camisa social. É um
dos homens que tentaram me seqüestrar.
O elevador chega, Marcos me empurra para dentro dele, usando de uma força até exagerada. Marcos entra em
seguida, e o homem corre até nós. Então, quando a porta está se fechando, o homem coloca a mão na frente, e a porta
do elevador abre-se novamente. “Tenham calma, vocês dois,” ele diz, sorridente, num português muito bom, mas de
sotaque carregado.
Marcos se põe entre mim e o homem. Estou assustada, tenho vontade de gritar, mas o homem apenas diz:
“Calma, não vou fazer nada agora.”
“O que você quer?” Marcos é quem faz a pergunta, mostrando clara raiva.
“Quero dizer para tomarem cuidado. Não sou só eu quem está mantendo vigilância sobre vocês. Tem mais
alguém aqui. Não há outra maneira para terem me descoberto. Querem um conselho? Cuidado com seus amigos.”
Ele larga a porta, que se fecha. A última coisa que vejo deste homem é ele dar as costas e retornar ao seu
quarto. Por quê? Por que ele fez isso? Por que se mostrar e depois desaparecer? “Eu... não entendi...” Murmuro,
gaguejando.
“O nome desse desgraçado é Elias,” Marcos revela. “Eu o encontrei em seu apartamento quando fui buscar
suas coisas, mas tenho certeza que ele não me seguiu para cá. Então, como nos encontrou?” Marcos se vira para mim.
“Está tudo bem, Tasha?” É a primeira vez que ele me chama assim. Quando conversávamos à tarde, eu pedi que ele
me chamasse assim, mas ele continuou me chamando pelo nome.
“Eu estou bem, mas não entendi. Por que esse tal Elias fez isso?”
“Não tenho a menor idéia.”
Essa questão permanece se repetindo na minha cabeça. Assim que chegamos ao saguão, passamos pela
portaria e fechamos nossa reserva. Marcos paga tudo em cheque e então nos dirigimos ao estacionamento. Lá, um
homem nos espera, bem ao lado de meu carro. Nunca o vi antes, e a primeira sensação que me dá é medo. Outro
seqüestrador? Eu cutuco Marcos e aponto o sujeito. Marcos pede que eu me afaste e espere na portaria e vai sozinho.
Eu volto à portaria, mas fico observando pela porta que leva à garagem.
Marcos se aproxima do homem. Então, ouço novamente a voz do tal Elias. “Ia ser muito fácil levar você
agora...” Meu coração dispara e me viro repentinamente. “Mas isso ia chamar atenção demais,” Elias fala. O
desgraçado estava logo atrás de mim. “Não quero escândalos, mas preste atenção no que eu disse a vocês. Aquele

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homem é um conhecido do seu amigo Cristiano. Ele estava vigiando você e Helmfrid o tempo todo, para ter certeza
que fariam tudo o que Cristiano manda vocês fazerem. Se olhar com cuidado, vai ver que Helmfrid não está nada feliz
em encontrar esse sujeito.”
Eu observo. Realmente, Marcos parece revoltado, fala com raiva, mas baixo o suficiente para que eu não possa
ouvir a esta distância. Ainda assim, noto que ele não esconde nada, é uma conversa que qualquer um mais próximo
poderia ouvir. O homem misterioso está calmo o tempo todo e então entrega algo a Marcos.
“Não sei o que ele quer falar com Helmfrid, infelizmente. Minha audição não é tão boa, menina. Além disso,
tenho que ir enquanto esse homem está distraído, senão ele vai ficar vigiando meus passos. Como eu disse, ele vigiava
vocês. Quando descobri onde estavam, vim acompanha-los de perto e esse homem me reconheceu. Por isso seu amigo
Cristiano resolveu tira-los daqui. Mas só tinha uma forma de terem me reconhecido. Eles teriam que estar vigiando seu
apartamento desde o início.”
“O que você quer dizer com tudo isso, droga?”, pergunto, e em seguida faço um pedido vazio, uma tentativa
de afastar o tal Elias de mim: “Me deixe em paz!”
“Quero dizer que meu mestre não é o único que quer o livro, menina. Por algum motivo, seu amigo Cristiano o
quer com você. E a situação mostra que não quer que o livro esteja ‘protegido’, senão só pediria o livro de volta e o
esconderia, e nós a deixaríamos em paz. Cuidado com suas amizades, garota. Meu mestre pode ser o menor dos seus
problemas.”
O tal Elias se afasta, se dirigindo para a portaria, provavelmente para fechar sua reserva, como disse que faria.
Enquanto isso, o homem misterioso se afasta de Marcos, indo em direção à portaria também. Marcos entra no carro e
dá partida. Ele sai e vai para a rua. Ele vai sair sem mim? Não, não pode! O Marcos não ia me abandonar assim!
O homem misterioso passa por mim. É um negro bonito e vigoroso. Agora de perto, tenho a impressão de já
tê-lo visto antes... Sim! Já o vi com Cristiano! O nome dele é Cláudio! Cris já me apresentou esse homem, dizia ser um
velho amigo de faculdade! Ele tem me vigiado? Ao passar por mim, noto uma expressão fria e cansada em seu rosto.
Ele realmente parece estar acordado há horas, mas isso não o pára. Ele me cumprimenta com um gesto e se dirige para
o elevador. Quando olho para a portaria, o tal Elias já desapareceu.
Marcos! Espera, cadê o Marcos? Acabei me distraindo! Será que ele foi mesmo embora? Eu me acalmo ao vê-
lo esperando por mim no carro, na entrada do hotel. Eu pego a mala e a mochila dele e corro até lá. Jogo as coisas no
banco traseiro mesmo, nem me incomodo com o porta-malas, e então entro no veículo. “Graças a Deus, por um
instante pensei que você ia sem mim,” eu confesso a ele.
“Calma, eu não ia ser um canalha tão grande,” ele responde. “Bem, temos que pegar a SP-280 para seguir para
Araçatuba. Só que, como estamos ambos cansados, não acho bom seguirmos viagem sem parar. Vamos parar no
primeiro hotel decente em qualquer cidadezinha que acharmos e dormir, antes de prosseguirmos, está bem?”
“Está bem”, respondo, “o que aquele homem queria com você? Eu o conheço, chama-se Cláudio, é amigo do
Cris.”
“Eu também o conheço. Amigo de Cristiano? Não diria que é um amigo dele, e sim um subordinado. Ele é um
dos ‘homens sujos’ do Cristiano. De qualquer forma, ele me entregou as chaves da tal chácara.”
“As chaves da chácara? Como? Alguém veio até o hotel apenas para entregar as chaves a ele e repassa-las para
você?”
“Sim. Quando se tem poder dentro de uma sociedade secreta, Natasha, isso é o mínimo que se pode fazer. Dá
de notar que agem com muita coordenação.”
Meu Deus! Encarando esses fatos, fica cada vez mais difícil duvidar desse papo de sociedade secreta. Tudo se
encaixa muito bem. E ainda tem o que o tal Elias me disse. O que será que ele quis dizer que, se o livro fosse para
estar seguro, ele não estaria mais comigo? Por que Cris quer que o livro fique comigo e com mais ninguém?
Estou confusa. Enquanto o carro prossegue para fora da cidade, minha cabeça fica zonza de tanto tentar juntar
as peças desse quebra-cabeça. Deus, o que está acontecendo? As respostas não vêm, mas nós prosseguimos em nossa
viagem, rumo a Araçatuba.

Capítulo 12: O Dízimo


O som da corda balançando ao prender algo pesado é um tanto irritante. A dor que sinto no braço também.
Mas ainda assim, nenhum dos dois é o suficiente para distrair minha mente e me desviar do objetivo. É hora de
conseguir respostas, finalmente.
Andreas observa a uma distância segura. Com o braço engessado e a mandíbula imobilizada, ele não será de
grande ajuda para mim. O local está escuro, iluminado apenas pelo círculo de velas que nos cercam no chão. A luz é
projetada de baixo para cima, dando ao ambiente uma aparência incomum. Estamos no liminar entre trevas e luz, onde
as trevas subjugam e triunfam, e a luz se arrasta rente ao chão. Este é o significado do círculo.
Eu toco a testa do homem que tentou me matar. Uno os dedos indicador e médio, simbolicamente desenhando
o símbolo em sua testa. “Acorda!” Os olhos do homem lentamente se abrem. Ele deve estar confuso, para dizer o
mínimo. Sua última memória envolvia insetos crescendo e reproduzindo-se no seu interior, querendo sair
violentamente. E agora, ele sente o sangue de todo o corpo se concentrando em sua cabeça, enquanto uma corda

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incômoda mantém suas pernas unidas e o dependura de cabeça para baixo, amarrado ao teto. Suas mãos estão
amarradas também, presas a um peso que está no chão. E com certeza, a nudez, a ardência no peito e o sangue que
escorre do mesmo para a sua face devem ser desagradáveis. Eu precisava marcar o símbolo de Aziz em algum ponto
de seu corpo, afinal.
Eu estou atrás dele, então a primeira coisa que ele deve notar é o círculo de sangue de gato, sobre o qual as
velas foram postas, e que cerca todos os que estão nesta sala. “Onde estou?” É a primeira coisa que fala.
“Você está na porta do Inferno, entre a sombra e a luz, de onde as almas condenadas não escapam.” Minha
resposta pode parecer dramática, mas há um fundo de verdade nela.
Ele se desespera, perguntando o que desejamos. “Eu farei perguntas. A cada resposta que eu não gostar, vou
querer em troca um pequeno pedaço de você. Você tem duas escolhas agora. Me responder ou sofrer. Só prometo uma
coisa a você: você não vai morrer, em nenhum dos casos, pelo menos não rápido o suficiente para escapar da dor.”
Olho para Andreas. “Venha, vou precisar de sua ajuda.”
“Eu posso gritar,” ele diz. “Alguém vai acabar me ouvindo e chamando a polícia.”
“Resposta errada.” Eu saco a minha adaga ritual, uma bela arma ornada, mostrando-a a nosso “hóspede”. As
formas do cabo representam faces demoníacas, enquanto a lâmina curva apresenta o tom escarlate que comprova usos
anteriores em corpos humanos.
“Não! Espere por favor!” o homem tenta me convencer a parar, mas não antes que rasgue a carne de sua coxa
direita. Ele grita, sem parar. Ou é extremamente sensível à dor, visto que nem comecei o que pretendo fazer, ou então
tenta chamar atenção.
“Idiota,” resmungo, me abaixando para que meus olhos se encontrem com os dele. “Olhe o círculo ao nosso
redor. Luz delimitando trevas! Além deste círculo, há apenas escuridão e vazio. Este é o significado do rito. No vazio,
o som não se propaga. Nada que você disser ou gritar será ouvido além dos limites deste ritual. Grite o quanto quiser,
isso é música para meus ouvidos!”
Ele sua frio. O desespero é claro em seus olhos. O sangue continua a se concentrar em sua cabeça, com
exceção, é claro, daquele que sai pelas feridas na perna e no peito. “Você deve estar nauseado, a cabeça deve estar
tonta, querendo desmaiar. Mas eu fiz questão de acorda-lo também usando meu conhecimento arcano. Tente desmaiar.
Tente fechar os olhos e abraçar a inconsciência. Você não vai conseguir. A única forma de perder os sentidos agora é
morrendo. Pelas próximas seis horas, nada do que eu fizer poderá deixa-lo inconsciente.”
Ele tenta engolir em seco, mas apenas tosse. Então, fala, gaguejando. “Que tipo de gente é você?”
“Eu sou do tipo que não hesita, nem teme, nem desiste. Olhe nos meus olhos e me diga qual de nós dois está
perdido aqui. Fale o que quero ouvir e a dor terminará.”
“Você vai me matar, mesmo que eu fale?”
“O que você acha?”
“Então, por que eu devo falar qualquer coisa, se não vou sair vivo daqui?”
“Isso você vai me responder, condenado.”
Andreas se aproxima com um maçarico em mãos. “Marque-o,” eu ordeno. Andreas hesita um pouco, mas em
seguida marca o símbolo de uma cruz nas costas de nosso prisioneiro, tomando apenas cuidado para que o maçarico
fique a uma distância segura e não queime nada além do necessário. Os gritos se repetem, mais altos. É a primeira vez
que Andreas explora os domínios da crueldade humana, e noto que ele não gosta de descobrir essa parte de sua alma.
Ainda assim, isto é uma parte de nós. Somos todos condenados, não precisamos temer retribuição divina, pois
sabemos aonde vamos parar quando morrermos. Nosso destino está selado, mas isso apenas significa que não
precisamos ter dúvidas, nem precisamos nos acorrentar em virtudes. Não há perdão para nós. Todos vendemos a alma
ao diabo, e ele um dia virá para pegar o que é dele por direito. Em compensação, jamais precisaremos responder a
Deus por nossos atos, nem precisamos viver com a incerteza de nossos destinos. Nós vamos para o Inferno, e
levaremos muitos conosco.
Eu me mantenho abaixado, vendo frente a frente o rosto deste homem. Seus gritos não significam nada além
de um incômodo para mim. Apesar de aceitar minha própria crueldade, não tenho prazer algum em fazer isso. Não
sinto nenhuma espécie de êxtase. Mas ao mesmo tempo não me sinto sujo. A única coisa que sinto é pena. Posso notar
que Andreas está claramente perturbado pelo que acabou de fazer. Um dia eu já fui assim. Sei que muitos como
Andreas acabarão se tornando sádicos que se divertem com a dor alheia. Eu, durante a minha vida toda, jamais me
permiti sentir prazer enquanto outros sofrem. A pena que eu sinto é a mesma que eu sentiria ao matar um macaco ou
esmagar um pássaro, nada mais. Mas, se minha sobrevivência exige isso, então é o que farei, e não vou hesitar um
instante sequer.
Assim que o maçarico é apagado, ouço os gemidos e o respirar ofegante do hóspede. “Não consegue perder os
sentidos, não é? Por mais que tente, o sofrimento não irá passar, eu disse a você. Agora, as respostas. Você vai dá-las a
mim?”
Apenas uma palavra sai de sua boca, acompanhada por murmúrios de dor. “Sim.” O tom de voz é de desespero
e fraqueza.
“Muito bem. Quem mandou você para me matar?”
“Meu superior. Cristiano.”

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“Cristiano Souza Melo, correto?”
“Sim, ele mesmo”, ele fala com dificuldade.
“A quem vocês servem?”
“Não servimos a ninguém, nós estamos...”
Prefiro não esperar o fim da resposta. É uma mentira, uma simples distração. Ele finge que está cooperando e
mistura verdades e mentiras. Então, não preciso ouvir. “Andreas,” eu chamo, em um tom de voz mais forte. Andreas
larga o maçarico no chão e então pega a pistola que roubei de meu próprio hóspede. O primeiro tiro atinge o joelho
esquerdo, o segundo atravessa seu pé direito, quase amputando um de seus dedos. Meu prisioneiro grita novamente,
enquanto o sangue do pé jorra sobre seu corpo.
“Vocês servem a alguém,” eu falo, enquanto gotas de sangue caem sobre minha face. “Se não a um homem, a
alguma organização ou a alguma entidade. Vocês sabem sobre o valor das Coletâneas de Meinhard, vocês são
organizados demais para serem um grupo independente e ignorante. A quem vocês servem? A qual grupo pertencem?”
“A Fundação! A Fundação Amanhecer!” Ele grita chorando. A Amanhecer... Eu esperava outros grupos.
Talvez a maldita Cruz Arcana ou alguma seita demoníaca, mas, pensando bem, eu não deveria estar surpreso em me
deparar com a Fundação Amanhecer. Quem, se não eles, estariam tão interessados em tomos voltados ao ocultismo?
Quem mais teria uma rede de informações tão boa? Mas ainda assim, tenho dúvidas.
“Você está mentindo,” eu murmuro, mesmo sabendo que ele pode estar falando a verdade. Há algo que não
faz muito sentido. “A Fundação não mantém assassinos. A sociedade exige que seus membros não se envolvam
diretamente com assuntos que possam compromete-la.”
“Não! Eu falo sério!”, ele murmura aos prantos. “A Fundação de boa parte da região sudoeste brasileira está
sob o comando de Cristiano! Ele tem uma influência tremenda e, desde que ganhou tanto prestígio, tem mantido
assassinos e espiões a postos para cuidar de seus assuntos pessoais!”
Interessante. De fato, embora a Fundação seja pacífica, nada impede que indivíduos dentro dela comecem a
agir fora de suas leis. Ainda mais quando esses indivíduos detêm grande influência. “Próxima pergunta. O que sabe
sobre as Coletâneas de Meinhard?”
“Eu não sei muito, é sério! Sei que é um livro, que ele contém informações que Cristiano deseja, mas não sei o
porquê. Ele disse que as Coletâneas fazem parte de um experimento. Eu juro! Isso é o que sei!”
“Um experimento? Que tipo de experimento?”
“Já disse que não sei muito.”
Eu me levanto, começo a caminhar em círculos em torno do homem. “Ao tentar me matar, você me perguntou
exatamente a mesma coisa. Que tipo de idiota pensa que sou? Afinal, se vocês ‘se preocuparam comigo à toa’, é óbvio
que sabem mais do que eu a respeito da obra.” Paro de frente para ele, fito seu órgão sexual, seguro-o com força,
esticando-o... e então o corto com a adaga. O grito de dor do homem se repete. Eu jogo seu órgão contra a sua face.
Novamente, sangue sai, escorrendo por sua barriga e peito.
Abaixo-me novamente. “Estamos sendo gentis até o momento.” Eu olho sua face, sinto a fraqueza em seu
corpo. Qualquer pessoa neste estado estaria inconsciente, à beira da morte. Mas o rito o mantém vivo. Enquanto
houver um mínimo de força em seu corpo, ele não conseguirá perder os sentidos. Por mais que o maltrate, enquanto
não atingir um órgão vital, ele não morrerá. Acredito que eu tenha pelo menos uma hora antes que ele perca sangue o
suficiente para morrer. Noto que Andreas, logo atrás do homem, já não suporta as cenas, evita olhar. Mas eu já estou
acostumado com a imundice humana.
“O livro...” Ele fala sem forças. “O livro não foi escrito por um monge... apenas compilado por um... Seu
nome... jamais foi Meinhard! Esse homem nunca existiu...” Ele chora, a dor o faz falar lentamente. “Não se descreve
o... apocalipse... Apenas fatos que já ocorreram. O livro não trata... do futuro da humanidade.”
“E do que tratam?” Eu fito seus olhos, que mal conseguem se manter abertos. Ele pode fecha-los se quiser,
mas isso não significa que perderá os sentidos...
“De Céu... e Inferno. Anjos e Demônios. Deus e Satanás. Mas nada disso é claro... nas palavras do livro.”
“O que quer dizer?”
“O livro... não vale nada... E sim quem o lê...”
“Quem o lê? É por isso que o Cristiano colocou uma menina ignorante para decifrar o livro? Está me dizendo
que há algum sentido nisso? O que o livro realmente contém? E o que esta garota tem de especial?”
“Eu... não sei... Só sei que tivemos ordens... para garantir que ela lesse a obra. Parece que a própria ignorância
dela... é que a fez perfeita para ler o livro... Só Cristiano sabe com certeza o que o livro contém.”
A ignorância é a chave. Então talvez por isso eu não consiga compreender os sentidos da minha versão
incompleta das Coletâneas? Será isso? Ou será algo mais? Espere! Os símbolos! Minha versão não os possui. E eles
estão na língua divina. “Sobre Céu e Inferno, Anjos e Demônios!” Foi o que ele disse! E eu me lembro que, ao lê-los,
eu senti algo poderoso. Os símbolos são a chave, mas se eu não posso decifra-los, como uma pessoa ignorante como a
garota poderia? Talvez meu hóspede saiba! “Os símbolos na obra! O que significam?”
“Não sei... nunca os vi... Cristiano sabe...” Maldito! Eu poderia feri-lo mais, mas não acho que ele realmente
saiba de algo. Então, é melhor mudar o assunto “E o tal Helmfrid? Qual o envolvimento dele nisto tudo?”

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“Ele é só... uma ajuda. Cristiano precisava de alguém para proteger Natasha... Não queríamos arriscar um dos
nossos... Então ele chamou Helmfrid. Helmfrid não pode morrer... Nada que vocês façam pode mata-lo...”
Como eu e Elias suspeitávamos, Helmfrid não era algo comum, mas sim uma abominação, uma raridade
sobrenatural. Eu me lembro dos tomos alemães de ocultismo... Alguns confundiam imortais com os Einherjar, os
mitológicos heróis que morreram com grande bravura, mas então treinam em Valhalla esperando pelo Ragnarok,
quando então lutarão ao lado dos deuses. Sendo Helmfrid um sobrenome alemão, não duvido que ele próprio acredite
que sua imortalidade o torna um Einherjar... Devo tomar cuidado com esse homem. Como tantas outras abominações
deste mundo, é impossível prever o que ele é realmente capaz de fazer.
“Helmfrid não é um de vocês, segundo o que me disse. Por que está ajudando vocês? Que pagamento está
exigindo?”
“Cristiano controla Helmfrid. Parece-me que Cristiano tem informações que podem matar Helmfrid, e cobra
favores em troca do silêncio... Acho que ouvi dizer... que Helmfrid tem muitos inimigos à sua procura... Mas...
escolhemos Helmfrid... não por causa disso... Mas por causa do próprio... altruísmo dele... Sabíamos que ele iria
simpatizar... com Natasha... e que isso se tornaria... pessoal para ele...”
Então, Helmfrid é desligado da Fundação e tem motivações pessoais para manter-se com a moça. Isso é ótimo.
Sentimentos podem ser manipulados e motivações podem ser distorcidas. Eu vou usar Helmfrid se tiver a
oportunidade.
O homem tosse, e desvio minha atenção para ele novamente. Ele está quase morto, sinto sua fraqueza. Ele
respira pouco, seu corpo está frio, mas continua incapaz de perder a consciência. Não preciso perguntar mais nada. Sei
quem está por trás disso tudo, sei que o livro tem mais significados do que eu poderia imaginar. Acima de tudo,
porém, sei como conseguir mais respostas. “Sem mais perguntas. É hora de pagar o dízimo...”
“Dízimo?” A voz dele está rouca, muito fraca.
“Sim. Não trouxe você aqui apenas para fazer perguntas. Como eu disse, você morreria de qualquer forma. Se
não cooperasse, eu estenderia seu sofrimento por mais algumas horas. Mas você me foi útil, então vai poder descansar,
assim que me fizer um último favor.”
Eu me viro para Andreas. “Apague as velas! É hora de chamá-lo!”
Andreas lentamente move-se, apagando cada uma das trinta velas que nos cercam. Eu me ajoelho diante de
nosso prisioneiro, que reúne suas forças para me fazer uma última pergunta. “O que vocês estão fazendo?”
Ele não deve estar entendendo muito bem minhas palavras. Afinal, aparentemente não fala grego. Eu prossigo
com o cântico, enquanto a luz lentamente desaparece desta sala.
“Aqui, humildemente, representamos a morte da luz.
Abrimos o caminho para a caverna escura.
Por onde teu poder pode tocar este mundo.
E por onde nossas oferendas possam também chegar a ti.
Uma alma, aqui perdida, encontrará teu abraço.
Oferece-a a ti, como meu presente,
E em troca, exijo proteção.
Tua proteção, para que nossos inimigos sejam esmagados.
E com teu poder, possamos superar desafios.
Minha alma já é tua, aceita a oferenda.
Abra os portões de tua morada.
Pise em meu lar.
Abençoe-me com tua presença.
Venha a mim, ó meu Lorde,
Senhor do Sangue Negro, Mestre das Lágrimas
Mostre tua face, Poderoso.
Venha a mim, Abla-Aziz.”
Andreas está nervoso. É normal estar, mas eu já estou acostumado demais com o rito. Continuo o cântico até
sentir que ele está aqui, em algum lugar. É uma presença pútrida, corrupta, seu cheiro inunda nossas narinas
novamente. Eu o busco com os olhos, noto a sua silhueta me observar. Andreas se afasta, incapaz de ver na escuridão
densa.
Eu fito a silhueta. “O dízimo será pago com sangue este ano, meu senhor, para uma vez mais selarmos nosso
pacto.”
“A oferenda será aceita,” sua voz ecoa em minha mente.
Cravo a adaga ritual na barriga daquele homem, corto-a verticalmente, removendo a arma repentinamente. O
sangue espirra, as tripas caem, ouço um último grito de dor, sufocado pela fraqueza do corpo. Um segundo golpe da
arma corta a sua garganta. Como prometi, ele não sentiria mais dor. O sangue espirra sobre mim. É uma sensação
desagradável e nojenta.
Acendo as luzes da sala e olho os resultados de meu próprio serviço. O corpo torturado é tudo o que resta, e
Andreas me olha com medo. Abla-Aziz desaparece com a escuridão, deixando apenas seu fedor para trás. Eu cumpri

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meu pagamento anual a ele, meu “dízimo”. Como já disse, não sinto prazer nisso. Faço porque devo, não porque
gosto. Faço porque sou um escravo, não tenho direito de escapar da vontade de meu mestre. Mas o livro vai me dar
compreensão. Eu ainda vou me livrar dessa prisão.
Paro então para pensar. “Vamos sair daqui, Andreas.” É hora de sair e conseguir um novo esconderijo. Meus
interesses no livro tornaram-se secundários. Há alguém que precisa me responder algumas perguntas antes que eu
continue a procurar a obra. Cristiano começou uma guerra e vai pagar por ter entrado em meu caminho...

Capítulo 13: A Longa Jornada


O sol está forte no céu e a estrada nos aguarda. O carro já foi abastecido, e agora estamos no restaurante do
posto, comendo alguns pastéis e tomando refrigerante, aproveitando a parada para descansarmos. Natasha está um
tanto silenciosa hoje, o que é estranho. Ontem passamos o dia todo conversando e pude conhece-la melhor. Finalmente
entendi o quanto ela é inocente, e fico imaginando onde um cretino como Cristiano a conheceu. É um absurdo ver a
devoção com a qual Natasha o trata. O Cristiano que ela conhece nem parece ser a mesma pessoa que tem infernizado
minha vida nos últimos 12 anos.
Natasha é o tipo de pessoa que sempre tive prazer em proteger. Foi tentando levar uma vida calma e pacata
que aprendi o quanto ela é preciosa. Sempre surgiu alguém em meu caminho tentando destruir a paz que eu buscava e,
no final das contas, nunca obtive aquilo que eu queria por muito tempo. Sempre acontece algo, sempre alguém me
procura, mesmo quando quero apenas ser esquecido. Desde que começou esse pesadelo de vida, meu contato com as
pessoas boas como ela foi o que me salvou de enlouquecer e me tornar um monstro como tantos outros que já
encontrei. Por isso valorizo quem vive em paz, quem não sabe que tipo de inferno o mundo realmente. A ignorância os
protege, os torna menos atraentes àqueles que andam nas trevas. Eu diria que é uma pena eu tê-la conhecido em tais
circunstâncias, mas na verdade eu conheço as pessoas boas sempre da mesma forma. Elas sempre estão sendo vítimas
dos predadores.
Ainda que eu deseje uma vida pacata, também sei que dentro de mim está a sede de poder comum a todos que
são como eu, abominações neste mundo de sombras. Às vezes, as vidas ao meu redor parecem ser nada mais do que
velas, perto da conflagração que é minha energia interior. Por mais que eu tente manter contato com as pessoas, sei
que, ao contrário de mim, suas existências são efêmeras e passageiras. Os sentimentos são temporários, as amizades
também. Talvez seja por isso que, com o tempo, a solidão nos vence, e tudo o que resta é a sede por poder. A partir
daí, as vidas humanas tornam-se insignificantes. Você passa a usa-las para seu próprio benefício.
Porém, eu evito pensar nisso. Eu não quero me tornar uma dessas aberrações que se julgam superiores ao resto
da humanidade e se matam sem controle, uma roubando o poder da outra, lutando num joguinho demente que nem
mesmo elas compreendem. Enquanto for possível, eu vou conviver com as pessoas e proteger suas vidas. Antes uma
vida de sacrifícios do que me tornar um monstro como tantos outros que já encontrei.
E Natasha é a mais nova vida inocente que tenho em mãos. Às vezes, minha consciência fraqueja. Eu penso:
“Vamos, largue-a aí, isso não tem nada a ver com você, fodam-se as ameaças do Cristiano.” Ainda assim, não é isso
que eu realmente quero. O dia em que eu abandonar alguém como Natasha vai ser o dia em que eu me tornarei como
as coisas que já vi. E aí eu vou ser menos do que humano, mas estarei me enganando, dizendo a mim mesmo que sou
superior.
Às vezes ela me fita com um olhar diferente, e isso basta para que meus pensamentos voltem ao presente. Ela
deve estar notando minha preocupação, minha inquietação. Eu desvio o olhar o máximo que posso. Ao mesmo tempo
que quero conviver com as pessoas, também tenho o medo da perda. Elas um dia morrerão, mas eu não. Mas no final,
minha vontade de ser humano, de ser mortal, vence, e eu acabo olhando nos olhos dela. E nossos olhos estão inseguros
e inquietos.
“No que você tanto pensa aí, Marcos?”
“Nada que você não saiba, Tasha...” Eu minto. Não há maneiras de explicar melhor as coisas sem que ela
perca um pouco da inocência. Eu já arrisquei muito contando a ela a respeito da Fundação. Não quero ir além disso.
“Por que não liga para sua filha, Marcos? Ela não está preocupada com você? Desde que nos conhecemos, não
vi você ligar para ninguém.” Natasha se refere à minha filha adotiva, Melissa. Não sou casado, mas há alguns anos
adotei uma menina órfã. Foi a terceira vez que servi de pai para alguém, desde que minha maldição começou. Faço
isso exatamente para me sentir humano novamente, já que nunca fui capaz de ter filhos de verdade. Não sei se é minha
maldição que me impede de ser pai, ou se apenas tive azar, mas já faz um bom tempo que desisti de ter um
relacionamento com uma mulher.
“Não se preocupe, Natasha,” respondo, “falo com Melissa uma vez por semana. Ela está em Belo Horizonte,
estudando e cuidando de sua própria vida. Acho que contar a ela sobre minha situação atual só iria preocupa-la.”
“É...”, ela murmura, reticente, “Você tem razão.”
“E quanto à sua mãe, Natasha? Será que ela não está preocupada também?”
“Vou ligar para ela quando chegarmos em Araçatuba.”
“E o que vai dizer a ela?”

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“Ah... Um pouco da verdade.” Ela tenta sorrir, mas o desânimo a vence. “Vou dizer que estou dando um
tempo nas coisas e que saí para viajar com um rapaz."
“Boa idéia, Tasha.” Natasha acaba sorrindo de verdade, ainda que timidamente, ao me ouvir. “Bem, está
pronta para pegar a estrada?”
“Claro... temos que ir, né...”
Ambos levantamos e nos dirigimos para a saída. Eu faço questão de pagar pelo lanche, e então caminhamos
até o carro recém-abastecido. “Faz tempo que não viajo de carro,” Natasha diz, “me desacostumei. Sabe, se não fosse a
situação estranha em que estamos, eu estaria me divertindo. Eu sempre quis um pouco de aventura na minha vida, mas
isso já é um pouco demais.”
“Concordo,” eu murmuro. “Você disse que faz tempo que não viaja de carro? Prefere avião? Ônibus?”
Ela pensa um pouco antes de responder. “Não é isso. simplesmente faz tempo que não viajo a lugar algum!
Não tenho me dado ao luxo de sair por aí me divertindo ultimamente!” Ela ri um pouco. Ao chegarmos ao veículo,
Natasha imediatamente se prontifica: “Pode deixar que eu dirijo! Você está dirigindo desde que saímos de São Paulo!”
“Está bem. Preciso descansar um pouco mesmo,” respondo.
“Descansar? No hotel em que paramos, no caminho, para dormir um pouco, não conseguiu dormir?”
“Só um pouco, Natasha. Dormi, mas ainda estou cansado.”
“Então sente aí, relaxe e descanse! Deixe que eu cuide do resto!” Ela pisca. Parece estar um pouco melhor do
que há pouco. Já estava estranhando o quanto ela andava calada! Ao entrarmos no carro, ela reclama um pouco a
respeito do calor e do sol forte, e logo voltamos à estrada.
A viagem parece tranqüila. No fundo, eu gosto da idéia de fugir, de ir para um local distante e permanecer
algum tempo lá, distraindo a mente. Na verdade, eu diria que minha vida inteira tem sido baseada nisso. Em algum
momento, eu sempre fujo, mudo meu nome e tento descobrir um novo destino para mim. Tem sido assim pelo último
século, e não acho que vou parar. Mas, devido às circunstâncias atuais, não acho que a “fuga” seja algo bom. Tenho
certeza que, mesmo em Araçatuba, não vou poder relaxar e esquecer as preocupações. Algo me diz que os problemas
nos seguirão até lá.
“A estrada parece interminável, não é?” Natasha vira-se para mim, rapidamente, sorri, e volta a atenção à
estrada. Eu fico a observa-la.
“Parece sim. Essa é a parte chata de uma viagem de carro,” eu respondo, “ficamos a ver a estrada que parece
interminável, por horas a fio, mas não podemos fazer muito além de olhar. O tempo até parece correr mais lento.”
“Eu gosto,” ela responde, “dá tempo de pensar. Claro, dirigir cansa, mas como tenho que prestar atenção no
caminho, não penso besteira. E aí, muita coisa importante vem em mente e a gente começa a refletir.”
“Você acha? E no que está pensando agora?”
“Algo que não tinha pensado antes. Por que aqueles sujeitos, os seqüestradores, estão atrás do livro. O tal Elias
não pareceu tão hostil ao falar comigo no hotel.”
“Acho que são fanáticos religiosos de alguma seita ou culto por aí. Está na cara que são estrangeiros europeus.
Devem ter vindo de longe só para encontrar o livro.”
“Sim,” ela responde, “mas a questão é: por quê?”
“Em seu apartamento, Elias me disse algo sobre o livro conter informações sobre o apocalipse iminente. Ele
também falou sobre usarem o livro para impedi-lo. Parece-me besteira, coisa de idiotas que acreditam em qualquer
coisa na qual seus pastores ou líderes falam.”
Ela novamente me fita por um curto instante, antes de voltar a prestar atenção na estrada. “Você acha isso
besteira mesmo?”
Eu cruzo os braços atrás da cabeça, apoiando-a sobre os mesmos e relaxando sobre o banco do carro. “Claro
que sim, Natasha! Apocalipse... É só o medo das pessoas. Basta passar um milênio que esse tipo de besteira ocorre.
Ouvi dizer que no fim do primeiro milênio também se espalharam notícias de fim do mundo e histeria na Europa! Eu
não acredito no fim do mundo!”
“Eu sei lá,” ela responde, “eu sempre gostei de escatologia, de lendas, mitos, sabe? Sempre fiquei intrigada
com a capacidade dos povos em explicar seu mundo através disso, de passar lições e ensinamentos através de histórias
fantásticas. Acho que, no fundo, tudo isso tem um fundo de verdade.”
Eu fico intrigado. Será que ela...? “Fundo de verdade? Acredita nessas lendas? Acredita no sobrenatural?”
Ela fica meio sem graça e ri, rapidamente, para tentar disfarçar, e então responde. “Tipo, no sobrenatural... ah,
sei lá... Às vezes acho que a razão não explica tudo não. Mas... sei lá, Marcos. Queria que o mundo tivesse um pouco
de magia, sabe? Mas não, não acho que as lendas sejam verdadeiras. Só acho que é possível encontrar alguma
explicação por trás delas.”
“Entendi. Uma explicação mais razoável, algo que deu origem à lenda. Você não está longe da verdade.”
“Como assim, Marcos? O que quer dizer com isso?”
“Quero dizer que todas essas histórias têm alguma razão para existir, só isso.” Melhor parar o papo por aqui.
Se ela perguntar demais, vou acabar falando mais do que devia. Eu não sou bom para esconder as coisas dos amigos.
“Disso eu sei, Marcos, mas parece que você tem mais alguma coisa a falar mas não quer.”

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“Ah não, Natasha, eu não sei de mais nada. Mas voltando ao assunto original, porque não acha que a ‘teoria do
livro do apocalipse’ talvez não seja besteira?”
“Bem, é o que eu estava falando: se há um fundo de verdade em toda história, quem garante que eles não
saibam de algo que não saibamos?”
“Natasha, não acredito que ouvi isso!” Eu rio um pouco. “Acreditar em apocalipse iminente? Não me lembro
de ver o céu caindo ou Deus vindo julgar a humanidade. Você acha mesmo que o apocalipse ou algo parecido está
começando?”
“Não, não é isso. Mas talvez eles vejam o apocalipse de uma forma diferente, tenham alguma razão especial
para acreditar nisso, e essa razão tenha um fundo de verdade. Afinal, eles crêem nisso, não?”
“Não, Natasha, eu realmente acho que não é nada disso. Seitas fanáticas não precisam de motivos verdadeiros
para fazer o que fazem ou acreditar no que acreditam!” Sem reparar, eu acabo tornando meu tom de voz mais forte.
Não gosto desse tipo de assunto, porque no fundo, eu mesmo não posso dizer o que é verdade ou mentira. Mas eu
acredito nas coisas que eu vejo, não no que loucos clamam. “Para mim, qualquer um que seqüestre, roube ou espione
os outros para conseguir um livro, só por acreditar que o mundo está acabando não passa de um louco varrido e
deveria estar num hospício.”
“Está bem, não precisa falar assim.” Ela baixa o tom de voz, parece constrangida.
“Desculpe, só me empolguei. Eu tenho certa aversão a fanáticos de qualquer espécie. Para mim, esses malditos
não só fanáticos.”
“Tudo bem, Marcos, talvez você tenha razão.”
Acho que acabei deixando-a sem graça. Ela se cala, concentrando-se apenas no volante. Eu penso em algo
para puxar assunto, mas nada me vem em mente. Então, o tempo vai passando, vou ficando entediado... Os olhos
fecham... E, quando menos noto, velhas lembranças voltam à tona...
...lembranças de um passado distante...
...o som de lâminas se atingindo em meio a uma batalha...
...canhões disparando, elevando poeira e corpos aos ares...
...gritos de coragem e terror elevados aos céus...
...o cheiro de sangue...
E eu me lembro dos meus próprios gritos, quando acordei da morte pela primeira vez. Quando foi? 1864? Eu
não me lembro sequer do ano com exatidão, mas me lembro que foi após uma ocasião sangrenta, quando eu, um
soldado prussiano, despertei em meio aos mortos de uma batalha em Schleswig. Num instante, eu estava caindo, ferido
demais para prosseguir. No momento seguinte, a negritude e frieza da morte me envolviam.
Como se a mente se tornasse mais afiada e sagaz neste momento de devaneio, uma visão esquecida retorna à
minha mente nos sonhos. Eu me lembro de flutuar no vazio da eternidade. A escuridão era total, mas eu podia ver
meus braços e pernas como se fossem iluminados pelo dia. Não havia chão sob meus pés, mas eu estava leve,
flutuando pela imensidão. Uma sensação de medo e, ao mesmo tempo, grandiosidade me tomou. Por um instante jurei
ver figuras de luz vindas da eternidade, movendo-se pela negritude e deixando rastros de luz dourada. Mas antes que a
luz chegasse a mim, senti meu corpo ser puxado, como se uma rede invisível me agarrasse e começasse a me puxar de
volta. Naquele momento, me desesperei e gritei. Vi a criatura de luz, à distância, estender a mão a mim, mas era tarde
demais. Eu tentei alcança-la, mas algo me puxava de volta, distanciando-a de mim. No momento seguinte, eu despertei
gritando, sentindo o corpo doloroso e fraco, coberto de feridas próprias e sangue alheio. Alguns soldados prussianos
ouviram meus gritos e me encontraram. Disseram ser um milagre eu estar vivo ali, em meio aos mortos na batalha. As
marcas dos tiros mortais que sofri tinham desaparecido. Confuso e ensangüentado, eu não conseguia compreender.
Ainda assim, os ferimentos não letais, todos os cortes, todos os tiros superficiais, ainda estavam ali. As feridas de
morte não mais existiam, mas o sangue derramado por eles ainda se agarrava à minha roupa.
Desde então, minha vida se transformou por completo, e eu sequer entendo o porquê. Desde então, vi coisas
que mais ninguém via, e sentia sensações que mais ninguém sentia. Batalha após batalha, eu comecei a vagar pelo
mundo, acompanhando as diversas mudanças do mesmo. A princípio, a idéia de imortalidade era maravilhosa, mas
logo descobri que o meu caminho é lavado com sangue. Apenas uma vez encontrei outro como eu, mas encontrei
muitas outras abominações, outros predadores infernais. Foi com eles que aprendi o quanto eu poderia decair, o quão
monstruoso eu me tornaria por dentro. Um amigo, um grande estudioso que encontrei em Vienna, no limiar do século
XX, dizia que eu era Einherjar, um dos guerreiros mortos, escolhido pelos deuses para me aprimorar até o Ragnarok, o
fim do mundo. Ele teorizava que apenas decapitação, ou algo tão sério quanto isso, que separasse cabeça e coração,
mente e vida, poderia pôr fim à minha existência. Eu nunca tive coragem de testar essa teoria, mas infelizmente, uma
vez descobri o quanto ela é verdadeira.
E assim a vida se seguiu. Conheci diversos países europeus e, durante a Guerra, finalmente me aventurei nas
terras além-mar. Adotei nome após nome, apenas o sobrenome sempre se manteve. É por isso que gosto que me
chamem Helmfrid: é meu elo com o passado. Local após local, eu caminhava sozinho, sem encontrar ninguém que
fosse como eu. Mas às vezes, as coisas da noite podiam me sentir, ou estudiosos me procuravam. Por algum motivo,
minhas andanças me levavam a inocentes como Natasha, e a monstros que os perseguiam. Talvez eu seja mesmo um
Einherjar, e encontrar essas coisas talvez seja meu destino.

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Esse tem sido um caminho solitário e doloroso. Colecionei inimigos na Europa e aqui. Alguns deles eu mesmo
enterrei. Outros ainda estão por aí, em algum lugar, buscando vingança. Minhas muitas associações com sociedades
secretas fizeram de mim um ilustre em vários centros europeus. Alguns de meus antigos associados ainda me devem
favores, mas muitos também querem minha cabeça. Cruz Arcana, a Fundação Amanhecer, a Sociedade de Tobit...
velhos nomes que eu temo e respeito. Tenho amigos e inimigos em todas elas.
Por isso valorizo tanto as pessoas. Se meu caminho é solitário, e aqueles que sabem querem minha cabeça ou
minha força, então só posso confiar nas pessoas que levam vidas simples e vulneráveis. Apenas elas podem me fazer
me sentir como era antes da transformação, antes de despertar. Eu sempre quis voltar a viver como antes, na
ignorância. Eu quero voltar a ser humano, a ser mortal, antes que me torne o que eu temo.
A memória da única vez que verdadeiramente desejei a morte a outro... Foi quando encontrei o outro. Eu me
lembro da luta, dos ferimentos que sofri, dos motivos que me levaram à vingança. Uma cabeça decapitada, e então
senti algo que nunca senti antes. Levantar-me após sofrer ferimentos mortais, vendo seu corpo sem cabeça apodrecer
diante de meus olhos. Eu me senti poderoso, me senti bem, como se matar me desse mais vida, tirasse a melancolia e
me desse forças. Foi por causa dele que eu comecei a temer tanto a sede de poder. E eu percebi que poderia tirar a
mesma euforia dos mortais, estender minha vida matando. Calei aqueles pensamentos, e os tenho reprimido até então.
Um grito faz minha mente despertar.
Natasha grita. O sonho se vai e meus olhos se abrem. Vejo o carro sair de controle. Ela larga o volante e fecha
os olhos, perturbada com algo. Eu agarro o volante o mais rápido possível, guiado mais pelo instinto, por algo dentro
de mim que quer protege-la, do que pela minha consciência. E então puxo, com a mão livre, o freio de mão, reduzindo
a velocidade numa derrapada violenta. Natasha recupera o controle, joga o carro para o acostamento, para-o por
completo.
Eu me recupero do susto, olho Natasha, que está ofegante, assustada. “Deus, Natasha, o que aconteceu?”
Ela me olha, desesperada. “Eu vi aquele homem de novo, Marcos! Eu o vi!” Ela me abraça, então chora. Após
alguns instantes, ela fala, soluçando: “Quando olhei o espelho retrovisor... eu o vi... Ele estava sentado no banco de
trás, Marcos! Eu juro... Foi como no espelho do banheiro! Os olhos dele estavam vazios, Marcos! Ele estava olhando
para mim, eu juro, Marcos!”
Eu olho para o banco de trás. Nada. Abraço Natasha. Uma alucinação? Efeito do estresse? Ou algo mais real?
“Quem, Natasha? Quem foi que você viu?”
“O líder dos seqüestradores, Marcos. Eu o vi. Ele também me viu. Ele estava me olhando. Ele ainda está
observando a gente.” Ela se afasta de mim, nossos olhares se encontram. Sua face está cheia de lágrimas. “Ele está
vindo atrás de mim de novo!”

Capítulo 14: O Próximo Passo


A imagem no espelho desaparece, eu me levanto, em meio ao círculo de velas. O quarto está escuro, com as
cortinas pesadas tapando a janela. Eu apago as velas, uma a uma, e então abro a porta. A luz do dia penetra no
aposento. Logo adiante, sentados no sofá, assistindo televisão, estão Elias e Andreas. Assim que me vê, Elias se
levanta. Andreas, porém, prefere permanecer sentado.
“Senhor? Descobriu algo?” Elias, meu fiel servo, pergunta. Andreas apenas observa, pois a mandíbula
imobilizada o impede de falar qualquer coisa.
“É como você disse, Elias, eles estão fora da cidade. Estão viajando de carro, mas eu não pude descobrir nada
além disso. Você sabe aonde estão indo?”
“Sim, senhor,” Elias responde. “Eu consegui remover a informação da mente da moça, ao falar com ela. Estão
indo para uma cidade no interior do estado, chamada Araçatuba. Iremos atrás deles?”
“Você irá. Eu e Andreas ficaremos e cuidaremos de descobrir mais sobre o tal Cristiano. Você é o mais hábil
com a língua portuguesa e as dádivas de Abla-Aziz o tornam o melhor para reunir informações e vigiar a garota sem
chamar atenção. Quero que os vigie sem interferir, mas ao mesmo tempo tente descobrir como exatamente Cristiano
está mantendo vigilância sobre a garota e o imortal.”
“Sim, senhor. Vou partir para Araçatuba ainda hoje.”
“Assim espero, Elias. Agora, tenho algumas perguntas. Você pegou minhas coisas no hotel, como pedi?”
“Sim, senhor, estão em seu quarto. Também fechei sua reserva lá e está tudo pago.”
“Tem certeza que ninguém o seguiu?”
“Certeza absoluta. Eu identifiquei uma pessoa me seguindo, mas consegui despista-la no trânsito. Também
verifiquei sua mala. Eles chegaram a mexer nela, como você imaginava, mas suas ferramentas ainda estavam lá,
inclusive o Olho de Aziz. Foi uma boa idéia tê-las colocado em bolsos secretos na mala. Minha única preocupação foi
o pagamento de seu dízimo ao Magister. Tem certeza que o assassinato não nos trará problemas? Acabo de ver
comentários sobre um ‘assassinato bárbaro’ na televisão.”
Como sempre, Elias, mostra sua fidelidade e preocupação. Ele é meu braço direito no Triângulo de Aziz e eu o
treinei para ser mais leal a mim do que até mesmo ao nosso Senhor Abla-Aziz. Embora ele não se dedique tanto às
Artes quanto eu, Abla-Aziz lhe deu muitos dons, que o tornam meu melhor espião e assassino. “Não estou

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preocupado, Elias. Todos os que me ajudaram a levar o sacrifício até aquela casa tiveram suas memórias alteradas. A
única coisa que pode me comprometer são as câmeras do hotel, mas levará tempo até que a polícia chegue a tal pista,
se é que conseguirão encontra-la. Não há nenhum testemunho que possa nos comprometer, e a casa estava alugada
para pessoas fictícias. Até que alguém, que não a Amanhecer, desconfie de nós, estaremos de volta à Grécia.”
“Sim, senhor.”
Eu me viro para o meu servo mais jovem, chamando-o. “Andreas!” Ele se levanta imediatamente, então me
encara, calado. “Vou precisar de você. Com Elias fora, você será meu braço direito, então me escute. Não faça mais
burrices! Seu braço quebrado e sua mandíbula deslocada foram causados porque você se precipitou. A menos que
aprenda a agir com a cabeça e menos com os punhos, você não vai sobreviver por muito tempo. Estamos entendidos?”
Ele balança positivamente a cabeça.
“Elias,” eu me viro novamente para ele, “venha comigo, por favor. Precisamos discutir nossos próximos
passos.”
Elias me segue, enquanto caminhamos pelos aposentos da casa. Este é o local em que Andreas e Elias têm
vivido desde que vieram em missão para o Brasil. Agora, este lugar se tornou meu novo lar temporário. Embora o luxo
do hotel seja mais agradável, aqui tenho uma pequena vantagem. Há um quarto vago, o qual transformei num local
para praticar meus ritos. Deixei minhas ferramentas ali, e mandei colocarem cortinas pesadas para barrar a luz solar. O
quarto será uma arma a mais para mim.
É exatamente para o quarto escuro que levo Elias. Ali, ajoelho-me num pentagrama desenhado em giz, no
chão. “Feche a porta, por favor.” Elias obedece imediatamente, e logo o quarto está às escuras novamente. Elias
permanece em pé, próximo à porta. A negritude seria total, não fosse a pouca luz que vence as pesadas cortinas ou que
passa por baixo da porta.
“O que deseja de mim, senhor?”
Eu fecho os olhos, me concentro, mas ao mesmo tempo divido um pouco de atenção para responder as
perguntas de Elias. “Daqui, nenhum som escapará, e é mais seguro para conversarmos. Acenda as velas para mim, por
favor.” Elias obedece novamente, calmamente acendendo as velas com seu isqueiro. Quando a luz das chamas ilumina
o local, tornando-se mais e mais forte a cada nova vela acesa, eu volto a falar. “Assim que chegar em Araçatuba, tente
localizar a garota. Porém, quero que a observe. Tente notar qualquer mudança nela, qualquer comportamento estranho.
Acho que começo a entender do que se trata o ‘experimento’ que estão fazendo com as Coletâneas.”
“O que acha que está havendo, senhor?”
“Não tenho certeza, mas o verdadeiro conhecimento do livro não está escrito. Pelo que pude entender, por ela
ser ignorante, sua mente, através dos símbolos contidos na obra, poderá receber mais facilmente a mensagem. Acredito
que, conforme ela avança na leitura, mais e mais sua mente se abre aos segredos do livro. A Fundação Amanhecer
deve estar atrás de respostas como eu. Se a garota as tiver, eu irei querer a garota. Senão, quero apenas a obra. Fique
atento, observe, traga-me respostas, mas não haja diretamente até que eu dê a ordem.”
“Está bem, senhor.” Elias termina de acender as velas. “Irá realizar algum rito agora?”
“Ainda não. Há outras perguntas a fazer, sobre Cristiano. Você estava encarregado de reunir informações,
embora tenha concentrado seus esforços em torno da garota, sei que descobriu algumas coisas do mentor dela.”
“Sim, senhor, mas já contei ao senhor praticamente tudo. O nome dele é Cristiano Souza Melo, 36 anos, é um
historiador, possui remuneração considerável. Tenho o endereço dele, bem como um de seus telefones. Vou passa-los
ao senhor assim que sairmos desta sala.”
“Acha que este homem possa ser algo diferente de um simples mortal?”
“Não sei com certeza, senhor, mas desconfio que ele seja apenas mortal. Não encontrei qualquer indício do
contrário, mas não posso ter certeza. Eu presumo que, sendo um membro tão influente no Legado, ele deve possuir
conhecimentos bem profundos sobre as sombras do mundo.”
“Sim, também desconfio disto, Elias. Passe-me minha adaga, sim? Eu a deixei sobre a mesa à sua direita.”
Elias caminha até a mesa, onde encontra minha adaga ritual. Ele então retorna a mim e a entrega, expondo o
cabo da arma diante de mim. “Aqui está, senhor.”
Eu abro os olhos por um instante para pegar o implemento ritual. “Obrigado, Elias,” respondo. “Está
dispensado. Vá se preparar, pois ainda hoje quero vê-lo num ônibus para Araçatuba.”
“Não se preocupe, senhor.” Elias logo sai do aposento, fechando a porta após deixar o cômodo. Estou sozinho
e na escuridão, iluminado apenas por velas. Ouço os sons abafados da cidade lá fora, mas tento ignora-los. Preciso de
silêncio para prosseguir. Concentro-me no nada, busco me isolar de todas as sensações mundanas. Preciso enviar meus
sentidos para além do mundano, para o local onde os pensamentos fluem e não existe forma, no limiar entre a Criação
e o Abismo Além.
Eu anuncio as palavras. “Ouçam-me, vozes do conhecimento perdido, almas destruídas pela sede de poder. Eu
tenho questões a fazer e exijo descobrir as respostas. Ofereço um pedaço de mim em troca de conhecimento. O sangue
que cai será o selo de nossa troca. Mostrem-me o que desejo ver.” No fundo, sei muito bem que são apenas palavras
vazias, destituídas de poder, mas esta é a essência dos ritos. O poder não vem dos símbolos ou das palavras, mas do
ritualista. O poder vem de mim. Os gestos e símbolos apenas são uma forma de focalizar nossa mente e construir a
base correta para a execução do rito. Por isso eu uso um pentagrama de giz ao invés de sangue de gato, pois sei que o

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que importa é a essência do símbolo, e meu sangue substitui o sangue felino com perfeição. Nos tratados e livros de
ocultismo que li, este ritual é chamado de “Destrancar os Portões do Conhecimento”, onde o ritualista, protegido numa
prisão limitada pela essência da vida, ergue meus pensamentos para além deste mundo, tocando algo além.
E então, o resultado aparece. Os sons abafados da cidade se vão, substituídos pelo uivar de uma ventania
furiosa e os gritos de dor que ecoam dos reinos além da vida. De repente, ouço vozes. Centenas, milhares, milhões de
vozes, cada uma falando separadamente, em línguas diferentes, numa cacofonia insuportável. Vozes infantis e adultas,
divinas e demoníacas. Embora muitos ocultistas acreditem que são as almas dos mortos que dividem seu
conhecimento com o ritualista, a realidade é que estou acessando o plano de pensamentos da humanidade. Cada
pensamento de cada pessoa que já caminhou sobre a Terra ainda está perdido aqui, ecoando eternamente num local
entre Céu e Inferno, Sonho e Sombra. Infelizmente, quanto mais se utiliza o acesso a este plano, mais sujeito à loucura
está o ritualista, pois pensamentos que não os seus começam a invadir sua mente. Por isso, devo ser breve.
Enquanto as vozes continuam sua eterna sinfonia dissonante, eu faço a pergunta. “Qual é o objetivo de meu
inimigo, Cristiano?”
A cacofonia se mantém, mas então uma voz fala mais alto que as demais. “Ele quer decifrar o indecifrável,
controlar o incontrolável.” Como sempre, as vozes me dão uma resposta incompleta. Como quando me ordenaram
procurar as Coletâneas de Meinhard, apenas me apontam pistas para a resposta, nunca a solução completa. No fundo,
sendo este um rito infernal, não duvido que as vozes mintam ou revelem meias-verdades. Não duvido que algo tente
tirar proveito delas para manipular os ritualistas que tentam acessar o conhecimento oculto. Ainda assim, quando não
tenho pistas, as vozes são a única fonte de conhecimento que posso ter.
“O que ele deseja decifrar?”
Então, mais e mais vozes falam em uníssono, ecoando profundamente em meus ouvidos. “O mesmo que você
deseja, Abiram Abednego.” O mesmo que desejo?
“Ele deseja saber mais sobre o apocalipse iminente?”
Mais e mais vozes unem-se ao coro, respondendo-me. “Não, Abiram Abednego. Ele quer saber sobre a
presença que caminha na Terra.” Isso é incomum. As vozes nunca falaram em unissonância, sempre foram coros
dissonantes, idéias opostas, nunca respostas únicas. O que está acontecendo? Por que o plano dos pensamentos parece
tão... ordenado?
“Afinal, onde está essa presença?”
Silêncio. Somente o som do vento distante pode ser ouvido. As milhões de vozes simplesmente desaparecem.
Sinto-me num vazio interminável, mas também sinto alguma outra coisa além de mim ali.
“Quem está aí?” Nenhuma resposta. Eu repito, gritando: “QUEM ESTÁ AÍ???” Silêncio.
Eu me concentro. Há algo diferente, algo inominável aqui. Algo poderoso o suficiente para interromper e
manipular os pensamentos que flutuam por este plano infinito. Algo grande, forte como só a senti uma única vez. É a
presença que senti desde aquele primeiro dia, desde que tive aquele sonho. É o Arauto do Apocalipse em si que se
manifesta para mim, calando até mesmo o plano que nunca se cala. Perto desta criatura, eu não sou nada. Eu fiz a
pergunta que não podia fazer, e com isso a trouxe até mim. Preciso desfazer o rito! Preciso abrir os olhos, perder a
concentração, remover meu contato com este plano! Abla-Aziz me falou sobre esta... coisa... e eu não tenho intenção
alguma de confronta-la, direta ou indiretamente.
Então, tento abrir meus olhos. Tento movimentar minha mão, para apagar pelo menos uma parte do
pentagrama. Tento me levantar. Nada, não estou no controle de meu próprio corpo. Estou na escuridão, sozinho,
sentindo que estou sendo observado. Fico imaginando o que esta criatura é capaz de fazer. Eu sabia que devia ter
evitado este rito, pois ao mesmo tempo em que abre as portas do conhecimento da humanidade, também abre nossa
alma para outros observarem-na.
Estou perdido no vazio. Não sinto o corpo, não sinto nada a não ser o vento espectral. Concentração! Preciso
recobrar a concentração! Tentar vencer esta força que me segura! Sinto o olhar da criatura me fitar e, então, meus
olhos se abrem. Eu grito, apoio minhas mãos no chão. Estou suado, tremendo. O que foi isso? O fiel Elias está diante
de mim.
“Senhor, você está bem? Eu senti algo aqui neste quarto! Você não reagia quanto eu o tocava ou o chamava.
Achei melhor desfazer o rito!”
“Elias...” Estou ofegante, assustado. É a segunda vez que senti a presença de maneira tão forte. A primeira vez
foi em meu sonho. “Elias, o que você sentiu?”
“O mesmo que temos sentido nos últimos meses, senhor. Porém, senti que, de alguma maneira, estava aqui,
próximo. Não pude deixar de me preocupar com seu bem-estar! O que aconteceu durante o rito de destrancar
conhecimentos?”
“Ele veio até mim, Elias, fez questão de assegurar que eu não descobriria nada além do que já sabemos.”
“Então, foi bom eu ter desfeito o rito...”
“Talvez...” Eu começo a me recuperar do choque, tento me levantar. “Se ele quisesse me destruir, com certeza
eu estaria morto agora. Isso mostra o quanto a situação é perigosa. A única pista que ainda temos é o livro. Eu não
ousarei utilizar este rito novamente.”

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“Sim, senhor. Minhas malas estão prontas. Liguei para a rodoviária, o ônibus sai apenas às cinco. Tenho
algumas horas ainda antes de ir a Araçatuba. Deseja que eu faça alguma coisa?”
“Não... De qualquer forma, obrigado, Elias...”
“Sim, senhor.”
Elias se afasta, eu olho ao redor. A presença está distante agora, mas ainda a sinto nesse mundo... e sei que
estou sendo observado. Uma vez que chamei a atenção da presença, sei que estarei sob sua vigilância de agora em
diante. Eu duvido que ele faça alguma coisa contra mim, afinal sou pequeno demais para que ele se importe comigo.
Mas tenho certeza que, se alguma oportunidade surgir, serei usado em seus planos, assim como qualquer outro
feiticeiro que tenha chamado sua atenção.
Preciso decifrar logo o mistério das Coletâneas! Se serei um peão na guerra, então quero pelo menos ter
conhecimento suficiente para sobreviver a ela.

Capítulo 15: Paixões e Revelações


O sol ainda está alto no céu quando finalmente chegamos. O portão, uma grade de metal de pouco mais de um
metro e meio de altura, está fechado, e Marcos desce do carro para abri-lo com a chave que recebemos no hotel. Uma
vez que o portão se abre, eu ligo novamente o carro. Marcos espera até que o carro entre na propriedade para trancar o
portão novamente. Sinto uma certa paz em ambientes assim, campestres. A casa está adiante, e o caminho até ela é
pavimentado com ladrilhos. Fora a casa e o caminho, há apenas um campo verde cheio de árvores. Ouço o som dos
pássaros e a luz do sol é filtrada pela folhagem. Espero Marcos entrar no carro para então prosseguirmos até a
garagem, que está logo ao lado da casa.
Eu sorrio. Sinto-me bem. Após a viagem, na qual pude pensar muito, parece que chegar a um local desses
acalma. Por um instante, até mesmo esqueço-me do susto que tomei ao ver a imagem daquele homem no espelho.
Enquanto entramos na garagem, que aliás é bem espaçosa, podendo caber até uns quatro carros, eu olho para Marcos.
“Sabe, Marcos, adoro esse tipo de lugar! É tão calmo!”
Marcos sorri também. É raro ver o “senhor seriedade” sorrir assim, tão gratuitamente. Ele logo concorda
comigo: “Pois é, me lembra muita coisa. É bom estar longe da cidade grande, longe do caos.”
“E longe dos problemas, não?”
“É, isso mesmo,” ele responde, animado. É bom ver Marcos animado. É bom eu mesma estar animada! Espero
que tudo se resolva e eu não tenha que passar por mais nenhuma daquelas situações absurdas. Torço por isso, torço
mesmo!
Logo que pegamos minha mala e a mochila de Marcos, caminhamos em direção a casa. É uma casa grande,
bem cuidada, nem parece uma simples casa de campo. Cris de fato deve ter bastante dinheiro para manter este lugar.
Além da construção, vejo apenas a mata limitada apenas por cercas baixas de arame e madeira. Marcos abre a porta e
entra primeiro. Eu o acompanho, vamos explorando o local, que é realmente grande, tem dois andares. No superior,
estão um quarto, uma suíte, um banheiro e a sala de estar, com televisão e sofás. No andar inferior, há cozinha, um
banheiro, mais dois quartos e uma área de serviço com máquina de lavar roupa. Não me surpreendo ao encontrar um
pequeno escritório no segundo andar também, logo ao lado da suíte. Cris deve vir aqui para fazer estudos em paz,
aposto! E é óbvio que vou usar este local para ler tranqüilamente as Coletâneas.
Eu fico com a suíte, é óbvio! Marcos decide ficar com o outro quarto que está no segundo andar. Nos
trancamos em nossos respectivos aposentos, para arrumarmos nossas coisas. Uma vez sozinha, abro a janela do quarto
e olho a paisagem atrás da casa. É um local realmente bonito! Há um córrego de águas limpas adiante, um poço
artesiano, uma área verde muito bem cuidada e com belos jardins, e bons locais de lazer, incluindo uma piscina e uma
quadra polivalente. É um local perfeito para se fazer festas ou promover um grande churrasco para toda a família e os
amigos. Estranho como Cris nunca tinha me dito a respeito desse local. Se algum dia ele deu alguma festa aqui, com
certeza não me convidou!
Ah, estou exausta! Embora a viagem, com exceção daquela visão no espelho, tenha sido tranqüila, ficar horas
e horas num carro realmente é exaustivo. Por isso, eu apenas abro a mala e tiro uma bermuda, uma calcinha e uma
camiseta de lá. Vou tomar um banho e depois me vestir confortavelmente, como faria em minha própria casa.
Antes de tirar a roupa, verifico se há sabonete e xampu. Felizmente, parece que Cris pensou em tudo. Eu então
deixo a água cair. A ducha morna parece relaxante. Só então removo minha roupa e relaxo sob a água. E, como
sempre, deixo minha mente divagar um pouco. Vou esquecer o mundo lá fora, me centrar em mim, nesta chácara e no
livro. Nada mais importa! Aqui é um local tão bonito. Depois quero nadar um pouco na piscina, ler ao ar livre,
explorar o campo... Ah, vai ser bom!
De olhos fechados, ergo o rosto para receber a água, que cai forte em minha pele. Sinto as milhares de gotas
tocarem meu corpo e deslizarem sobre ele. Ouço apenas o som da água caindo. Estou em paz, afastada de tudo e todos.
E então, começo a ver...
...
Onde eu estou? Não é mais a chácara! Campos verdejantes, paisagens intocadas pelo homem. Um céu azul,
infinito, iluminado por um sol forte. Porém, não há calor excessivo. Eu estou aqui? Eu estou caminhando num sonho,

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sentindo uma paz intensa. O que é isto? Porque estou tão feliz? Mas então, ouço gritos, e o som de uma manada
correndo. O chão treme e noto fumaça no horizonte.
Eu corro, rumo ao sons. Sons de metal batendo contra metal. As nuvens negras tapam o sol, e ouço
relâmpagos vindos do céu obscurecido. Logo além, vejo dois exércitos se chocando. A paisagem, antes intocada,
torna-se infernal. Chamas se espalham rapidamente, consumindo a vegetação e deixando um deserto avermelhado.
Nas raras brechas entre as nuvens negras, noto que um sol negro e um céu vermelho. Gritos de dor e de bravura se
misturam. Então noto quais são as facções que se digladiam caoticamente na paisagem diante de mim.
De um lado, um exército de pesadelos avança. Criaturas de aparência inumana derrubam os guerreiros do
exército rival, rasgando-lhes a carne com garras e presas bestiais. Outros cavalgam cavalos decrépitos e negros, com
olhos de fogo, e vestem armaduras de negritude obsidiana. Espadas de chamas negras rasgam a carne inimiga e
incendeiam mais a paisagem. Monstros alados tomam o céu, direcionando relâmpagos contra o exército opositor.
Então, fito os guerreiros do outro exército. Eles protegem uma formação de sábios, que oram em um círculo de
luz. Adiante, uma parede de luz brilha intensamente, trazendo mais monstros ao campo de batalha. Os guerreiros de
luz empunham espadas de fogo azulado e possuem grandes asas que brotam de suas costas. Eles lutam com bravura e
comandam o fogo, a terra, o ar e a água. Ventos fortes surgem para derrubar o exército de pesadelos, enquanto
criaturas celestiais lutam para proteger os sábios. E, conforme o conflito titânico prossegue, a terra racha e o céu ruge.
Então, ouço uma voz sussurrar para mim. Minha própria voz, falando calmamente, me revelando o significado
da visão. “Isto é o que aconteceu, mas também o que acontecerá. Em breve, o conflito virá para a Terra. Aceite a
verdade e descobrirá mais.”
...
Eu abro os olhos. Estou sob a água da ducha, sentindo-a cair sobre mim novamente. O que aconteceu? O que
eu acabei de ver? Não me sinto diferente. Não estou nervosa e sim totalmente calma. Alguns detalhes da visão me
escapam, não consigo me recordar direito de tudo. Mas a essência se mantém em minhas memórias. O que acabei de
ver? Qual o significado disso? As frases do livro voltam à minha mente, recitadas por minha própria voz:
“Aqueles que agem em nome do terror
Finalmente empunharão armas,
Gritarão sobre a terra devastada, marchando aos milhares
E iniciarão a Grande Guerra, a maior de todas.
Aquela que trará fogo e morte a todo o mundo.”
Por que consigo me lembrar com tanta exatidão? O que há comigo? Ainda assim, sinto-me calma, como se
isso fosse natural. Continuo a recitar passagens, enquanto ensabôo meu corpo e lavo meus cabelos. E me lembro de
uma frase de Marcos: “Elias me disse algo sobre o livro conter informações sobre o apocalipse iminente.” Ele me disse
isso no carro, quando estávamos a caminho de Araçatuba. Poderia isso ser uma verdade? Não, isso é loucura! Não
existe apocalipse, certo?
Quando saio do banho, enrolada nas toalhas, nem paro para me vestir. Ao invés disso, sento-me na cama, pego
o livro, que estava em minha mala, e abro-o aonde tinha parado de ler. Volto a lê-lo, tentando entender mais. As frases
vêm, eu pareço conhece-las de antemão, como se já tivesse ouvido estas palavras antes. Os comentários de Gottschalk
começam a tornar-se mais crípticos também. Ele começa a fazer menos comparações com a realidade, tenta interpretar
o texto de uma forma mais simbólica. Para minha surpresa, um de seus comentários é idêntico ao meu pensamento.
“Por que quanto mais eu leio o livro, mais parece que ele não está escrito em metáforas?”
Três páginas e vários comentários adiante, nas quais Meinhard descreve devastação se espalhando lentamente
sobre várias cidades, encontro um pedaço de texto ainda mais surpreendente.
“E vi, então, uma paisagem celestial,
Vida e paz reinam aqui.
A imensidão esmeralda, iluminada por um aconchegante Sol,
Acomoda minha alma,
Agrada meus olhos.
Pode o tormento ter terminado?
Mas então, a terra abriu-se,
Cuspindo fumaça que cobriu os céus.
Horrores nasceram do solo, espalhando fogo e morte,
E o pesadelo recomeçou,
Marchando, sobre a terra devastada,
Um exército de pesadelos, carregando o estandarte infernal,
Choca-se com os defensores da Terra.
Sangue e morte, caos e dor.
Corpos dilacerados por garras bestiais,
Cabeças decapitadas por fogo celeste.
E, ao centro do conflito, a união entre dois reinos,
Ilumina o campo de batalha.

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Relâmpagos, cavalgados por pesadelos,
Chocam-se com os furacões trazidos pela luz.
E, enquanto os sábios oram por paz,
Protegidos pelo exército da luz,
Os pesadelos avançam.
Ouvi então choro e lágrimas.
Minha visão foi ofuscada.
Isto é o que aconteceu.
Isto é o que acontecerá.
Em breve, o conflito chegará até nós.
Aceite a verdade e descobrirá mais.”
Não deixo de me surpreender com o que leio. As imagens do sonho voltam completas à minha memória. Eu vi
o que Meinhard viu. O que isso significa? Um símbolo fecha a página. O símbolo significa revelação. Espere! Como
eu sei disso? São apenas rabiscos, uma elipse cheia de estranhos riscos. Sequer consigo descrever o símbolo, mas
simplesmente me passa a idéia de revelação. Olho o último comentário de Gottschalk nesta página: “Este livro está
mexendo com minha mente... Não vou prosseguir com sua leitura até descobrir se é seguro... 17 de Novembro de
1944”
Sinto um pequeno calafrio. Não estou assustada, nem nervosa. Continuo calma. Por quê? Pareço ter
encontrado um tesouro, mas não sei defini-lo direito. Este livro não fala de profecias, nem fala em metáforas. É real.
Mas ao mesmo tempo em que pareço aceitar isso, minha mente racional nega. Nada disso é possível! Estou só sendo
uma sonhadora, fantasiando a realidade! Então, no auge de minhas divagações, um som me traz de volta à realidade. O
som de batidas na porta.
“Natasha?” É Marcos. “Ainda está aí? Estou estranhando!”
Olho o relógio. estou aqui há quase duas horas! E ainda nem me vesti! Meu cabelo já está seco, mas ainda
enrolado na toalha! “Só um instante para eu me vestir direito, Marcos!” Eu me visto o quanto antes. Ponho a calcinha,
visto a camiseta e coloco a bermuda. Vou descalça até a porta, enquanto penteio os cabelos. Assim que a abro, já vou
pedindo desculpas. “Desculpe, Marcos, eu comecei a ler o livro e nem vi o tempo passar!” Sorrio.
Ele sorri de volta. Parece que também tomou um banho, está vestindo uma roupa diferente, embora continue
sendo o conjunto de calça e camiseta. Ele deve adorar vestir-se assim. Pelo menos não é uma calça jeans! Também fez
a barba, já que esta manhã não teve tempo para isso, e o cabelo está molhado ainda. “Você e seu livro, hein? Esqueça
isso um pouco. Encontrei o caseiro da chácara, ele estava fora para comprar comida, pois não tinha nada na geladeira.
O Cristiano já havia avisado que nós viríamos. Quer comer alguma coisa?”
Realmente, estou com um pouco de fome. Só tomamos café da manhã no hotel, depois que saímos de São
Paulo, e comemos um lanchinho durante a viagem. “Você leu meus pensamentos, né, Marcos?” Eu rio um pouco.
“Estou com muita fome mesmo!”
Ele responde, rindo: “Vamos preparar algo para comer. Também vou apresenta-la ao caseiro.” Logo em
seguida, ele se vira e anda na frente. Ele sempre faz isso, mas desta vez não estamos mais em perigo e ele não precisa
mais ficar bancando o protetor!
“Espera, Marcos!” Eu caminho até ele, apressando o passo até chegar ao seu lado, e o acompanho, lado a lado.
“Não precisa ficar querendo pegar sempre a dianteira, sabia?” Ele logo se desculpa, dizendo que “é o costume!”
Parece ficar meio sem graça com minha bronca. Eu dou uma risadinha. Ele é durão, mas parece ser bem desajeitado
socialmente. Aliás, eu já tinha reparado isso em São Paulo, quando ficamos uma tarde toda nos conhecendo. Marcos é
meio caladão, demorou um pouco até conseguir fazê-lo se sentir à vontade para falar.
Enquanto descemos as escadas, em direção à cozinha, eu resolvo puxar papo. “O que achou do lugar,
Marcos?”
“É bom, parece tranqüilo. Dei uma explorada pelo campo, é bem amplo. Há outras chácaras e fazendas por
perto. Acho que vai ser bem tranqüilo enquanto ficarmos aqui.” É bom ver que Marcos pensa igual a mim. Como ele,
eu torço para que tudo permaneça tranqüilo até o fim de nossos problemas. “Você já ligou para sua mãe, Natasha?”
Ih! Eu tinha me esquecido! “Não, Marcos! Nossa, eu me esqueci completamente! Preciso ligar logo, que ela
deve estar muito preocupada! Vou fazer isso depois que comermos!”
“Está certo,” ele responde. “Viu só como esse livro está te fazendo esquecer de tudo? Aposto que, se eu não a
chamasse, você nem se lembraria que estava com fome!”
“Não é nada disso, viu!” Eu me faço de brava, mas na verdade ele está certo. Eu esqueci completamente do
resto do mundo enquanto lia! Tenho que parar com essa mania, mas o livro está ficando cada vez mais interessante.
Quero dizer, quanto mais o leio, mais misterioso fica e mais dúvidas tenho, mas ao mesmo tempo parece que vou
reunindo possibilidades e expectativas inéditas. E quanto mais perguntas faço, maior é minha vontade de responde-las.
Por isso preciso chegar ao fim o quanto antes.
Chegando à cozinha, eu abro a geladeira e começo a fuçar para ver o que temos. Há muita comida aqui. “O
que vamos comer?”
Marcos observa, respondendo: “Não sei. Estava pensando em preparar algo. Sei cozinhar um pouco, e você?”

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“Eu? Na cozinha? Bom, não sou lá muito boa nisso não. Mas digamos que consigo fazer meu próprio
alimento.” Viro-me para ele, ainda sorridente. “O que você está pensando em fazer? Eu ajudo!”
“Não sei, algo simples. Estou cansado da viagem e não queria fazer nada pesado. Que tal preparar uma salada
ou algo assim?”
“É uma boa idéia!” Na verdade, eu estava querendo algo mais pesado. Fazer o quê, se estou com vontade?
Mas a idéia da salada até que é boa. Vai ser melhor comer algo leve mesmo. Eu volto a olhar o que há na geladeira.
Tomate, alface, azeite, azeitonas... hmmm, mas também tem ricota, maionese... “Ei, Marcos, sabe se tem pão
integral?”
“Acho que sim, Natasha, deve haver aí na geladeira!”
Eu olho bem. Realmente, tem, mas melhor ainda, o caseiro trouxe duas baguetes, o que é perfeito! “Ei,
Marcos, quer provar um dos meus sanduíches naturais? Eu gosto de fazer quando não estou com vontade de cozinhar
nada, eu faço alguns para encher a barriga. São gostosos e leves!”
“Está bem,” ele sorri, se aproximando, “mas eu vou ajudar você, ok?”
“Claro! Pegue esta baguete aqui e corte em pedaços menores, para fazermos vários sanduíches.” Eu então
pego o pão e passo-o para Marcos. “Enquanto isso, vou ver tudo o que temos aqui e ver o que posso ou não usar.”
Enquanto vou pegando os ingredientes na geladeira, fico pensando no Marcos. Ele é um homem educado, amigável,
confiável, calmo... Meio sério, meio calado e um pouquinho distante, mas acho que as qualidades superam os defeitos.
Normalmente não me aproximo tanto das pessoas tão rapidamente, mas, se formos considerar com cuidado, não é
sempre que você passa quase 48 horas seguidas convivendo com uma pessoa, dormindo no mesmo quarto e tendo
ninguém mais para conversar. Em condições assim, não é difícil a gente logo discernir os pontos fortes e fracos de
uma pessoa e ter um julgamento mais claro do que teríamos, por exemplo, em relação a alguém que você conheceu em
uma festa ou no trabalho.
Ele me ajuda a cortar o tomate e a preparar os sanduíches. Noto o quanto é cuidadoso com o que faz.
Novamente, a imagem de “meninão” que a aparência passa contrasta com a impressão de que estou lidando com um
homem maduro, experiente, inteligente e educado. Mas porque estou pensando nisso tudo? No fundo, acho que ando
solitária demais... Um ano desde o último namorado, não é surpreendente que de repente me sinta atraída pelo Marcos.
Ainda assim, eu seria uma irresponsável se fosse me deixar levar logo agora. Seria melhor manter contato com ele e
esperar tudo passar.
Assim que terminamos de preparar os sanduíches, que aliás não foram poucos, Marcos os coloca numa
bandeja e sai da cozinha, por uma porta que leva para fora da casa. Lá fica uma mesa ao ar livre, sobre um piso de
ardósia logo ao lado da piscina e ao gramado onde fica a churrasqueira. A mesa é coberta por um toldo que parte da
casa, assim criando uma sombra generosa e agradável. Eu pego dois pratos, guardanapos e dois copos, mas então
lembro que não fizemos nada para beber! Corro até a mesa, levando tudo e lembrando a Marcos: “Esquecemos de
pensar no que beber! Vou fazer um suco, está bem? Me espere aí!”
“Está bem,” ele responde. “Vou cobrir os sanduíches com uma toalha e esperar você terminar. Deve ter polpa
de fruta congelada no freezer.”
Eu dou uma olhada no freezer e Marcos está certo. É verdade, há mesmo polpa congelada aqui. De abacaxi,
laranja e maracujá. Estranho como tem tanta coisa nessa cozinha. Cristiano se superou em preparar tudo isso para nós.
Bom, acho que vou fazer de laranja mesmo. Marcos me aguarda na porta da cozinha, enquanto coloco a polpa, um
pouco de água gelada e açúcar, nesta ordem, no liqüidificador, e então bato tudo. Não demora mais do que um
minutinho para estar pronto.
Finalmente, nos sentamos para comer. Marcos exclama o quanto gostou do sanduíche após a primeira
mordida, mas logo ficamos sem assunto para conversar e ficamos comendo calados. Eu resolvo puxar algum assunto.
“Onde está o tal caseiro que você falou?”
“Ele deve estar arrumando algo por aí. O nome é José. Logo mais eu o apresento a você.”
“Está bem! O que pretende fazer hoje, Marcos?”
“Ah, não sei, Natasha. Por enquanto não tenho planos, mas estou feliz por estar longe de um hotel onde não há
muita liberdade. Aqui vai dar de relaxar melhor. Provavelmente, devo fazer alguns exercícios quando cair a noite. E
você?”
“Não sei também. Devo ler um pouco, mas é só.”
“Esse livro é tão bom assim, Tasha?” Ele me olha, intrigado.
“O livro é interessante. Aliás, interessante até demais. Não sei explicar, Marcos. Mas quanto mais leio, mais
quero ler. Parece que ao mesmo tempo que certas idéias clareiam na cabeça, surgem muito mais perguntas, e fico
muito ansiosa por respondê-las.”
“Mas esse tipo de livro não traz respostas, traz? Pelo que sei, o texto todo é críptico, difícil de interpretar. Pelo
menos é assim com a maioria dos livros ‘místicos’ ou textos ‘proféticos’. Raramente eles trazem idéias concretas, e
cada um interpreta como quer.”
“Ah, isso é verdade. Mas este livro... esse livro traz verdades.”
“Que tipo de verdades?”
Eu murmuro. “Sobre o passado...”

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“Não entendi. Que passado? Não eram profecias?”
“Sim, são... mas... não sei explicar. O livro fala sobre o passado. Sobre guerras. E como elas irão afetar o
mundo no futuro. As visões de Meinhard não são exatamente visões.”
“E o que seriam?”
“A Revelação.”
“O quê?” Os olhos de Marcos de repente se arregalam por um instante. “Por que falou assim?”
“O quê?” Não entendo o que Marcos quis dizer. “Falei assim como?”
“Você falou em alemão.”
“Falei?”
“Sim, falou. Ouvi claramente!”
“Mas...” Eu não entendi. Eu falei em alemão? Eu falei claramente. “O apocalipse,” em bom português. O que
Marcos ouviu? “Ah... vai ver que... sei lá, de tanto ler os comentários em alemão que Gottschalk escreveu no livro,
acabei falando sem querer.”
“Gottschalk? Quem é esse?”
“Lembra-se dos comentários em alemão espalhados pelo livro? Foi um homem chamado Conrad Gottschalk
quem os fez. Ele foi a pessoa que estudou o livro por toda a vida e o trouxe para o Brasil.”
Marcos parece se interessar. “Mesmo? E porque não o procura pessoalmente para pegar as opiniões dele? Ele
já está morto?”
“Sim, ele morreu. Na verdade, suicidou-se em 1972. Parece que se envenenou e cortou os próprios pulsos, mas
ninguém sabe exatamente o motivo. Ele foi professor de ciências sociais na PUC de São Paulo. Um outro professor
conseguiu o livro logo depois. Ao morrer, há alguns anos, deixou o livro nas mãos da universidade. Foi lá que o
conseguimos.”
“Esse segundo homem morreu por suicídio?”
Eu rio um pouco. “Calma, Marcos! O livro não faz o dono se suicidar não! Ele morreu de câncer, se não me
engano. Acho que nem sequer chegou a interessar-se pelo livro.”
“E que tipo de revelação traz o livro? Por que aqueles malucos acham que se trata do apocalipse?”
“Ah, fala muito em guerra, destruição, corrupção, morte, violência... E também toca muito no assunto de anjos
e demônios.”
“E você acredita em algo do que o livro fala?” Ele me fita nos olhos, parece um pouco preocupado. Por que
será? Será só impressão minha?
“O que há para acreditar, Marcos? Não vi nada que me convença.” Eu estou mentindo. Na verdade, por algum
motivo, acho que o livro não fala metáforas. Fala fatos. Não sei, pode ser loucura, pode ser porque no fundo eu queria
que o mundo fosse algo além do científico, do provado. Talvez eu queira acreditar nisso. O que vi era real demais...
Melhor não preocupar o Marcos com isso.
Então, um homem sai da casa, vindo pela porta externa da cozinha. É um sujeito baixo, mais velho do que eu
ou Marcos, provavelmente com uns quarenta e poucos. Não tem barba, mas o cabelo negro começa a esbranquiçar e
recuar. Ele sorri, já liberando um galanteio. “Então, essa é a garota que Cristiano me disse que viria. Ele disse mesmo
que era muito bonita.” Eu sorrio meio forçado. Odeio esses galanteios.
“Esse é o José, Natasha. É o caseiro.”
“Prazer!” Sorrio, desta vez sendo um pouco mais verdadeira, e me levanto para cumprimenta-lo com um
aperto de mão.
“Olha, Srta. Natasha, pode ficar à vontade. Eu venho aqui a cada três dias para manter tudo em ordem. Minha
casa não é longe daqui. Se quiserem usar a piscina ou fazer um churrasco, ou qualquer outra coisa, não se acanhem!
Cristiano disse que podem considerar essa chácara como sendo a casa de vocês!”
“Obrigada!”
“Com licença! Qualquer coisa, podem me chamar. Também tem o meu telefone anotado na agenda que está na
sala de estar. Só que a propriedade não tem telefone, vocês vão precisar usar um telefone público ou celular.”
José se afasta, dizendo que precisa cuidar dos jardins. Mas já devem ser umas cinco da tarde. Provavelmente,
ele não deve demorar a ir embora. Eu e Marcos ficamos ali mais um pouco, jogando conversa fora. O assunto logo
muda, começamos a falar de trivialidades. Ele fala de situações engraçadas em suas viagens, eu comento sobre meu
trabalho e minhas “desventuras” diante das piadas e brincadeiras dos alunos. Rimos um pouco enquanto o tempo
passa.
Após algum tempo, finalmente nos levantamos dali. Marcos se oferece para lavar os pratos e copos, já que eu
fiz o suco. Fico conversando mais um pouco, enquanto o observo lavando e guardando as coisas na cozinha. Então,
por fim, ele pede licença, dizendo que vai arrumar suas coisas, pois até o momento não o fez. Eu também resolvo
voltar ao meu quarto, mas antes, dou um recado a ele. “Olha, mais tarde, vamos arrumar algo para fazer. Senão, a noite
será um tédio.” Ele concorda. Logo em seguida, subimos, cada um para meu próprio quarto.
Assim que entro, fecho a porta e me dirijo à janela. Apoio meus ombros no parapeito e cruzo os braços,
ficando a olhar o céu adiante. Está anoitecendo, mas o pôr-do-sol não é visível daqui. Só vejo o horizonte adiante

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escuro, enquanto o céu acima ainda está relativamente claro. Ouço o som de água, pássaros e grilos. Parece tão
tranqüilo...
Então, viro-me para o interior do quarto e focalizo o criado-mudo onde deixei o livro. Acho que vou lê-lo um
pouco mais, por que não? Deixo a janela aberta, mas tomo o cuidado de fecha-la com a tela para evitar que os
mosquitos invadam durante a noite. Deve haver muitos mosquitos por aqui. Aliás, como está escurecendo, é melhor
acender a luz também.
Deitando-me finalmente na cama, volto a ler o texto. O silêncio me ajuda a me concentrar. Em poucos
instantes, não há mais nada ali, só eu e o livro, e busco compreender as palavras. Logo que viro a página, um novo
símbolo de revela. PASSAGEM. Logo em seguida, continuam as revelações de Meinhard. Mas então, noto que os
símbolos, antes misteriosos, parecem soprar palavras em meus ouvidos. Como se de olhos abertos pela primeira vez,
eu continuei a ler.
“O choro dos inocentes,
As orações dos sábios,
O cântico dos guardiões da morte,
Foi ouvido pelo senhor.
CHAMADO
Os dois exércitos trovejaram,
O campo de batalha se abriu,
E os céus clamaram vingança
A porta de luz gritou.
A escuridão foi expulsa
E todos foram iluminados por um único instante.
VINDA
Então, as forças da luz dizimaram os pesadelos.
Olhos se abriram.
ABRA-SE
As trevas foram consumidas em fogo purificador.
Isto é o que aconteceu.
Isto não acontecerá de novo.
NUNCA MAIS
Quando as trombetas tocarem novamente,
O mundo estará mudado.
Os pesadelos voltarão.
Ouça o que devo contar.
ESCUTE
A prisão se rachará.
E haverá guerra novamente.
Pois ele virá até nós.
E sua chegada será anunciada por um tempestade de fogo.”
ACEITE
Sinto uma leve tontura, não sei bem o por quê. Então noto um comentário de Gottschalk. “Quem é este que
virá? Que prisão é esta que se racha? Eu procurei em meus livros, tentei encontrar um significado. Fiz uma loucura.
Procurei nas mais diversas fontes de demonologia, arrisquei tudo. E ainda assim não obtive respostas. Só sei que há
várias possibilidades, segundo uma das minhas menos confiáveis fontes. A ‘criatura’ me disse alguns de seus nomes.
Mæphistos, Ashtoreth, Belberith, Næbyrus, Shaytanach.”
Sinto algo... Não sei ao certo o quê. Um arrepio estranho, trazido talvez por um vento gelado que vem pela
janela. Deve ser só minha imaginação. Viro a página e prossigo. Noto que a temática do livro se alterar, pois Meinhard
deixa de descrever cenas de batalha, e o livro toma um rumo diferente a partir de então.
“Eu os conheço. O fim não será breve.
Nem sequer serão notados de imediato.
Mas a presença deles poderá ser sentida.
SINTA
A revelação não virá imediatamente,
Os anos passarão,
As pessoas inevitavelmente esquecerão os pesadelos
Que anunciaram a chegada.
Os conflitos serão velados, distantes dos olhares mortais.
VEJA
Apenas aqueles que vêem a verdade saberão o momento.
Aceite a verdade que trago.

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ACEITE
Você pode ver?”
Nada mais nesta página. Talvez seja o texto mais estranho que vi até agora no livro. Não há nenhum
comentário de Gottschalk, nada. O que será isso? Talvez a página a seguir contenha algo. Viro a folha, Novamente, o
tema muda, começa a se tornar algo mais profético.
“Eu conheço as lendas.
Conheço os sinais que precederão o momento.
Então, busquei em meus sonhos por cada um deles.
Abri minha mente e minha alma
Para receber os sinais.
ABRA-SE
Orei pela revelação divina,
Clamei-a para mim.
E ela iluminou-me.
CHAMA-O
E então testemunhei o primeiro dos sinais.
Vi legiões descerem dos céus, trazendo espadas de luz,
Em direção à grande montanha.
VEJA
A terra tremeu conforme o céu se abriu
E os urros do destruidor ecoaram pelo mundo
O dragão confrontou o guerreiro
E novamente a terra tremeu.
GUERRA
Milhões despertaram
E toda a humanidade acordou liberando gritos de terror.
Quando o último urro do dragão foi proferido.
PRISÃO
Este foi o primeiro sinal.
Foi o princípio.
Marcará o fim.”
LIBERTA-O
Não é a primeira vez que Meinhard fala a respeito de um dragão e de uma guerra. Na verdade, ele já havia
comentado isso antes nos primeiros textos do livro. Então, noto o comentário de Gottschalk. “Leviathan.” Apenas
isto. Não compreendo! Talvez, se eu retornasse aos textos mais antigos...
É isso que resolvo fazer. Eu marco a página e procuro pelos textos que originalmente falam sobre o dragão.
Leio-os com meus novos olhos. Eles falam sobre a corrupção da humanidade, uma batalha nos subterrâneos do mundo
e o urro do dragão. Agora me lembro. Trata-se da primeira revelação que Meinhard teve. Aquilo que ele viu na
primeira noite! Mas desta vez, eu compreendo os símbolos.
“Na primeira noite, meus olhos se abriram e eu vi.
VERDADE
Vi cabeças decapitadas num mar de sangue.
E meus ouvidos ouviram
Ecos vindos de profundezas infernais.
OUÇA
Milhares de passos ecoando.
Um exército de pesadelos marchando
Para se encontrar com as forças da luz.
E vi os servos de Deus lutarem pelas almas da humanidade.
TOLOS
E vi as criaturas do demônio se multiplicarem e nascerem
E vi o inimigo.
O grande dragão.
LEVIATHAN
Ouvi seu rugido. Seu grito de morte.
Sangue, morte e dor, repetindo-se constantemente.
Em nome da humanidade.
Em nome de nossas almas.
SACRIFIQUE-SE
Uma guerra eterna.

48
Compreendo o sacrifício que devo fazer.
Aceito de corpo e alma, em nome da verdade.”
ACEITE-ME
O nome ecoa em minha mente. “Leviathan”. O nome ecoa várias vezes. Então, sinto-me tonta. Ponho o livro
de lado por um instante, fecho os olhos. Tudo escurece, parece uma calma eternidade.
...
Sinto-me em paz, realmente me sinto em paz. É quente, confortável, meus olhos estão fechados, mas sinto
alguém me abraçar. Toca meu rosto, acaricia-o. O toque me traz prazer e segurança. Sinto ser um corpo feminino que
me envolve. Sua boca se aproxima de meus ouvidos, enquanto seu abraço me entorpece. Quando ela começa a
sussurrar, algo mais me toca. Ouço uma voz masculina: “Natasha?”
Abro os olhos. Estou deitada, o livro ao meu lado, e Marcos toca meu ombro, me acordando. “Está cansada,
hein? Desculpa incomodar, mas você parecia perturbada.”
“O quê?” Movendo-me lentamente, sento-me na cama, baixo a cabeça e levo a mão direita à minha testa.
“Perturbada? Como assim?”
“Como estava muito silêncio, estranhei. Resolvi ver o que estava fazendo e a encontrei aqui. Você estava
dormindo, mas falando coisas em alemão. Não pude compreender direito, mas falava algo sobre retorno, verdade,
guerra...”
“Eu... Não sei...” Eu olho o livro. Está aberto e marcado em uma página diferente daquela em que parei. Pego
a obra rapidamente e dou uma olhada no texto. Passaram-se três páginas desde a última que li. Eu as folheio
rapidamente, e os versos parecem já estar em minha cabeça. Não há nenhum comentário de Gottschalk, a não ser na
página marcada. “Eu havia prometido parar de ler este livro. Não consegui cumprir, mas preciso parar. Se você o
está lendo, não vá adiante! Não ouse ir adiante! Ele está brincando com minha mente. Preciso parar. Quanto mais
tempo eu ficar longe dele, mais fácil vou resistir. 25 de Janeiro de 1968: que este seja o último dia.”
Eu fito Marcos. Estou assustada. “Esse livro não está fazendo bem a você.” Ele tenta tocar o livro, mas não
deixo. “Não,” eu grito, fechando o volume e apertando-o contra o meu peito. Ninguém vai tirar o livro de mim!
Ninguém! O livro é meu! Eu preciso dele! “Não, Marcos! O livro não tem nada a ver!”
Ele pára, parece contrariado. “Então pelo menos o deixe de lado por hoje.”
Deixar de lado? Claro! sem problemas, não é? Eu posso fazer isso! “Tá bem, Marcos...” Eu ponho o livro
dentro da mala e a fecho. “Pronto, satisfeito?”
“Bem, um pouco. Agora falta só você parar de franzir a testa!”
“Ahn...” Eu acabo rindo um pouco. “Desculpe, é que você parece a minha mãe me dando bronca!”
“Falando nisso, ligou para ela?”
Droga, droga e droga! “Ai, não! Onde tem um telefone?” Minha mãe vai me matar. Ai!
“Boa pergunta, não sei.”
Saímos à procura de um telefone, porém parece que não há nenhum no local. Então nos lembramos que o
caseiro disse que não havia telefone na casa. Estamos isolados! Após a procura, vamos para a sala de estar, eu me
sento no sofá. Marcos fica em pé, mas apoia as costas na parede. “E aí, Natasha, o que vai fazer?”
“Ah... amanhã vamos à cidade e eu procuro um orelhão.”
“Está bem”, Marcos se cala e fica um silêncio incômodo por algum tempo. Fico pensando no livro, mas me
esforço para esquecê-lo por um momento. Olho Marcos, fitando-o diretamente. Ele é bonito, está de bermuda e
camiseta diferentes, parece que tomou outro banho. Talvez tenha feito os exercícios que disse que faria. Como será ele
sem camiseta? Ele olha para os lados, evitando me fitar, talvez por notar que eu o esteja observando. Então, sem saber
muito bem o que falar, ele pergunta: “Quer assistir TV, Natasha?”
“Televisão? Não, hoje não. O que íamos assistir? Jornal e novela? Ou algum daqueles programas
sensacionalistas ridículos? Tipo, Marcos... quer dar um passeio lá fora?”
“Por mim, tudo bem.”
Apenas colocamos chinelas, e saímos a caminhar pela propriedade. Saímos pela cozinha e caminhamos ao
lado da piscina. As únicas luzes vêm do interior da casa. Existem luzes externas, mas ainda não descobrimos qual
interruptor as liga. A noite está bonita e calma, a lua está linda no céu, quase cheia. “Há tantas estrelas.”
“É, longe da cidade é assim mesmo. Nossa, antigamente eu adorava ficar olhando as estrelas, mas elas foram
sumindo com o tempo.”
“Antigamente? Ora, Marcos, falando assim parece que você é velho.” Eu rio.
“Ah, mas é que já viajei a muitas partes, você sabe. E longe das cidades, é sempre muito estrelado.”
“Sei, sei.” Eu sorrio para ele. “Vamos até o córrego ali adiante?”
“Não fica meio afastado da casa? Está escuro lá agora.”
“Acha que tenho medo do escuro? Ainda mais com um guarda-costas como você para me proteger?” Mais
risos, mas ele parece ficar sem-graça. Eu seguro sua mão, puxando-o. “Vem logo, medroso!” Logo estamos andando
no escuro, usando a pouca luz que chega da casa e do luar para nos guiarmos. Felizmente, o riacho não é distante, nem
há obstáculos no caminho. Logo chegamos até o pequeno córrego, onde a água gelada reflete o luar. O som da água é
relaxante. Eu removo as chinelas, sento-me na beira do córrego e coloco meus pés na água. “Aqui é lindo!”

49
“Sim, é.” Marcos senta-se perto de mim, à minha esquerda, e então abraça as próprias pernas, olhando a água
correr e o reflexo da lua ser deformar pela correnteza.
“Você, como sempre, está distante, hein, Marcos?”
“Desculpe-me, Natasha. É que vivo pensando em um monte de coisas.”
“Olha, você me pediu para deixar o livro de lado uma noite. Fiz meio a contragosto, mas fiz. E sabe que estou
até gostando de relaxar a mente um pouco? Então, vamos fazer um trato: assim como eu deixei o livro de lado, deixa
as preocupações de lado, está bem?”
Ele ri um pouco. “Está bem. Combinado!” No que será que ele estava pensando? Aliás, a distração me fez
esquecer completamente do livro. Estranho. Quando estou lendo, parece que nada mais importa e é difícil parar. Mas
agora, nem consigo me lembrar direito das palavras do livro. Só agora que falei nele é que me veio um pouquinho na
cabeça. Ao invés do livro, são outros pensamentos, todos repentinos, que me vêm à cabeça. Sinto-me emocional, meu
coração bate forte.
“Tipo, lá em São Paulo, você disse que não é casado nem namora, Marcos”. Droga, por que diabos fiz essa
pergunta? Minha cabeça parece confusa, como se eu o quisesse agora para mim.
“É. Por quê, Natasha?” Ele não me olha diretamente. Com certeza é uma pessoa experiente e não parece ser
tímido, só distante. Qualquer um notaria que estou interessada nele, fazendo uma pergunta dessas. Aposto que ele
também notou, mas tenho reparado que ele sempre evita falar de assuntos pessoais.
“E você tem alguém que goste?”
“Não, faz muito tempo que não me envolvo com ninguém.”
“Por quê? Alguma decepção amorosa?”
“Não... é que é sempre passageiro.” Ele parece triste agora. Posso notar certa melancolia na sua voz. Será uma
memória de alguém do passado?
“Ah.” Eu me levanto. “Vamos voltar? Aqui é legal, mas... Acho que vou voltar.”
Ele sorri. “Está bem, vamos lá!” Então, Marcos se levanta, eu estendo a mão e ele, meio a contragosto, resolve
segura-la. Então, caminhamos juntos, de volta para a casa. Eu estou animada, até parece que esqueci tudo o que passei
nos últimos dias. Mas não, não esqueci. São só meus pensamentos que agora me fazem querer outra coisa. Resolvi
aproveitar o tempo que tenho. Parece até que estou de férias, mas não só estou deixando o emprego de lado, como todo
o resto: o medo, a preocupação, tudo.
Então, quando estamos passando ao lado da piscina, eu reparo no quanto a água está limpa. O caseiro deve ter
limpado quando Cris o avisou que viríamos. “Marcos, que nadar um pouco?”
“Melhor não, Natasha. Eu não trouxe nenhum calção. Amanhã vamos à cidade e eu compro um.”
“Não seja por isso!” Eu sorrio, olhando nos olhos dele. “Também não tenho biquíni algum. Já somos adultos e
estamos sozinhos.” Nem sei como tive coragem de falar uma coisa dessas! Ai, meu Deus! Eu deveria estar vermelha
de vergonha, mas não estou! Falei de propósito, para ver o quanto ele ficaria embaraçado ou tentaria desconversar.
“Olha, Natasha, assim também não!” Ele não fica vermelho nem nada disso. Eu sabia que ele está é me
evitando, e não é timidez.
“Bobo! Não estou falando de tirar a roupa!” Eu rio. “Estou falando disso aqui!” Antes que ele reaja, eu o
empurro, fazendo-o cair vestido na água. “Não tem nada de mal você nadar de bermuda, seu lerdo! No que estava
pensando?”
Agora sim ele fica sem graça, como eu imaginei que ficaria! Eu rio descontraída. Ele estava já pensando em
outra coisa. Se bem que se ele topasse, eu é quem ficaria sem graça. Ou talvez não. Minha cabeça está pensando em
um monte de besteiras. Lembro-me que eu e o Leo nadamos nus uma vez, num hotel. A diferença é que quase
morremos de medo de alguém nos pegar. Aqui não tem esse problema.
“Ora, sua!” Marcos entra na brincadeira, me puxando pelo braço, jogando-me na água. Touché! Era o que eu
queria: desinibi-lo. Ao cair, mergulho, e saio rindo da água. Eu lembro que estou usando uma camiseta branca, sem
sutiã por baixo. Nossa, com a camiseta, semitransparente e colada ao meu corpo, meus seios podem ser vistos
facilmente. Fico morta de vergonha por um instante, mas aí penso melhor. Somos adultos. Não sou mais uma
adolescente tímida, não preciso mais ter vergonha de ser sensual nem preciso esperar a iniciativa de nenhum rapaz.
Sou dona do meu destino e tomo minhas escolhas. É isso mesmo! Eu beijo Marcos, antes que ele possa sequer pensar
em alguma outra coisa! Vou curtir esse tempo, longe do mundo e de todos. Se for só uma aventurazinha, pelo menos
vou ter boas lembranças!
A princípio, Marcos resiste, como se não quisesse me beijar, mas conheço os homens. Ele logo cede. Gosto do
Marcos, é um cavalheiro, que me salvou a vida e evitou a todo custo se aproveitar de mim. Ele não tentou nada, nem
no hotel, nem aqui. Mas agora eu quero beija-lo, quero mesmo. E, sentindo que ele não está mais resistindo,
começamos uma noite que espero que dure muito, muito tempo.

Capítulo 16: Cláudio


A noite está convidativa hoje: a lua se obscurece pelas nuvens e poluição, e as ruas parecem ligeiramente
menos movimentadas do que costumam ser. Uma grande cidade nunca pára, porém, mesmo num país de terceiro

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mundo como este. São 23 horas, a noite é uma criança. Eu dirijo pelas avenidas, rumo ao bairro conhecido como
Morumbi. Sinto meu sangue ferver. É à noite que meu potencial é maior, após uma tarde de sono. Sinto-me
descansado, meus sentidos estão plenos. Estou animado, mas minha expressão facial não muda. Jamais permito aos
outros saberem o que sinto, seria dar a eles uma vantagem sobre mim. É quando o céu escurece que os amaldiçoados
saem para caçar. Eu, mesmo ainda sendo humano e mortal, não sou exceção.
Minha maior dificuldade é me guiar por esta cidade. Eu consultei um mapa, mas com a ajuda de Andreas, que
está sentado no banco ao meu lado, e confiando em minha própria memória das direções a seguir, não é difícil chegar
ao endereço dado por Elias antes de partir. Logo entramos em uma rua secundária e seguimos rumo ao prédio azul-
escuro no qual está nosso alvo. Eu nem sequer tenho um plano em mente ainda, apenas sei que quero chegar até o tal
Cristiano e questiona-lo. Sem Elias e sem tempo, porém, não posso contar com o conhecimento prévio dos obstáculos.
Confiarei em minhas próprias habilidades, então.
Assim que passamos na frente do prédio, viramos a esquina seguinte e paramos. Esta também é uma rua
secundária e não parece muito movimentada. Eu estaciono o carro e desço, pedindo que Andreas fique e permaneça
atento. Então, prossigo até o prédio, colocando as mãos nos bolsos do paletó. No bolso direito, minha mão toca o Olho
de Aziz, minha arma favorita, meu símbolo de poder.
Quando paro diante do edifício, observo os detalhes. Não é um prédio muito largo, dado o tamanho dos
prédios próximos. Este é um prédio menor que seus vizinhos, mas ainda assim parece luxuoso. A entrada fica a um
nível mais alto que a rua, com uma curta escadaria que leva ao portão de acesso. A portaria fica adiante do portão, e a
entrada da garagem fica à direita da entrada do edifício. Uma câmera de vídeo vigia a garagem, impossibilitando-me
de entrar por ela. Outra câmera vigia o portão de entrada, e tudo é muito bem iluminado. A portaria está a uns três
metros afastada da entrada, exigindo que primeiro me identifique por interfone antes de ser permitida a minha entrada.
O prédio todo é cercado por muros de quase dois metros, e sobre eles grades de cerca de um metro e meio de altura.
Com algum esforço, posso alcançar o topo do muro, porém serei facilmente visível através das grades. Não daria
tempo de escala-las sem ser visto, a menos que o porteiro seja distraído.
Caminho para o outro lado da rua, avaliando a situação. Eu procuro pelo porteiro. A boa iluminação ajuda a
minha visão, mas o vidro escuro da portaria me permite apenas fitar seu vulto. Um carro passa. Outros dois estão
vindo, além de alguns jovens que descem a rua. Preciso de silêncio. Logo, por alguns minutos a rua fica deserta. Fito
novamente o porteiro, que parece ler uma revista que não consigo identificar. Sua mente está distraída, e posso
presumir a posição de seu ouvido. Perfeito! Eu sussurro ao vento, : “Um som estranho na garagem.”
De repente, o porteiro ergue a cabeça, olha para os lados, largando a revista. Então, sai da portaria e se dirige
para os fundos. Por um instante, expresso um sorriso discreto, mas logo volto a me centrar em minha tarefa. Corro,
atravessando novamente a rua, chegando até o muro. Com um alto, minhas mãos alcançam seu topo, e me puxo para
cima, com esforço. Tenho pouco tempo, e meu físico não tem sido dos melhores. Embora o pacto me mantenha com
essa aparência de meia idade, minha idade real às vezes pesa, faz meu corpo fraquejar onde um jovem poderia
facilmente triunfar. Em alguns segundos, alcanço o topo do muro, mas ainda tenho ainda que passar pela grade. O
muro do prédio vizinho é mais baixo que a grade e me ajuda, servindo de degrau. Noto pessoas virando a esquina e
subindo a rua. Preciso ser rápido! Ouço o som de porta se fechando. O porteiro está voltando! Esforço-me para superar
as limitações do corpo, alcançando o topo da grade. Fito o piso abaixo. Pelo lado de dentro, o muro não é tão alto,
tendo de meio metro de altura em relação ao piso. Um carro passa. Passos vindos pelo corredor adiante. Eu seguro
firme no topo da grade e me jogo para o outro lado. Fico dependurado, assim reduzindo a altura em relação ao piso, e
me solto, caindo e fazendo algum barulho. Então, me abaixo e me dirijo para junto da parede da portaria. O porteiro
finalmente chega.
Ouço o assobio do porteiro, que logo retorna à sua cadeira e volta a folhear sua revista. Permaneço abaixado,
logo à frente da portaria, escorando-me logo abaixo da vidraça pela qual ele enxerga o portão de entrada. Esgueiro-me,
adentrando o corredor, ainda me mantendo rente à parede da portaria. Ele folheia a revista tranqüilamente, o que me
permite passar para o corredor sem que ele perceba. Assim que estou fora do alcance de sua visão, me levanto, e
caminho para o interior sombrio do edifício.
Passo pela porta de um salão de festas e então, chego aos elevadores. Há também as portas que levam para as
escadas, bem como a entrada para uma área de lazer de tamanho razoável, com uma pequena piscina, uma quadra
polivalente e espaço para churrasco. Não há ninguém à vista. Entro no elevador e aperto o botão para chegar ao
décimo andar.
Tudo continua silencioso. Felizmente, o elevador não pára em nenhum andar durante sua ascendência. Eu
observo meu reflexo no espelho, fito meus próprios olhos. O silêncio chega a ser perturbador. O que é isso? Por que
estou tão nervoso? Não estou tremendo, mas estou tendo um pressentimento ruim. Fazia muito tempo que não tinha
esse tipo de sensação. Estou com medo? Talvez por estar sozinho, após tantos anos contando com um culto para fazer
as minhas vontades. Estou fazendo o trabalho sujo como há muito não fazia, e isto é, ao mesmo tempo, assustador e
excitante. Apesar do medo e da ansiedade, porém, minha expressão facial continua imutável. Eu me esforço para
mantê-la assim, para mostrar controle e manter a concentração.
Então, o som de uma campainha indica que o elevador chegou ao andar desejado. Caminho para uma saleta,
onde há duas portas apenas. Como Elias me avisou, este prédio possui um único apartamento por andar. Um estalo

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indica que o detector de movimento me notou, acendendo automaticamente a luz. Por um instante, fico apreensivo,
mas logo noto que não há nada a temer aqui. Uma das portas deve levar à área de serviço do apartamento, a outra deve
levar à sala. É fácil identificar qual é qual: a que está mais próxima ao elevador e à campainha é a da sala. É melhor,
portanto, que eu entre pela área de serviço.
Seguro a maçaneta da porta e a giro. Então, puxo o molho de chaves-mestras que Elias deixou comigo. Tento
uma a uma, mas a cada falha minha impaciência aumenta. Infelizmente, não tenho nenhum rito que possa me ajudar
nesta situação. Então continuo tentando, chave a chave, enquanto os minutos passam... Em uma das últimas tentativas,
finalmente a porta se abre. Eu a empurro lentamente, olhando com atenção. Está escuro, mas meus olhos logo se
acostumam à escuridão, acostumando-se às luzes da cidade que entram pelas janelas. Caminho até a cozinha,
adjacente à área de serviço. Ninguém, nenhum som, nenhuma luz, nada. A sala de jantar está logo adiante, mas
novamente não vejo ninguém. A adjacente sala de televisão está às escuras, e noto pela porta de vidro da sacada que
esta também está vazia. Não há som de TV ou música, nem nenhum barulho que não seja feito por mim ou que não
venha da rua. O apartamento está vazio. Pelo visto, não será hoje que encontrarei Cristiano, mas talvez esta incursão
possa me ser vantajosa.
Caminho pela escuridão, guiado pela pouca luz que entra pelas janelas e passa pelas cortinas. Noto uma forma
num canto, me observando, mas sei quem é. Uma vez mais, ele surge para me observar com seus olhos frios, enquanto
sua forma se funde às sombras locais. Embora ele permaneça em silêncio, sinto seu cheiro pútrido e o sorriso
malicioso que tem em sua face. Prefiro ignora-lo e seguir em frente.
Chego ao quarto, na verdade uma suíte, e acendo a luz. Olho uma vez mais para o canto, agora iluminado
indiretamente pela luz projetada do quarto, mas nada mais está lá. Aziz se foi, ou era apenas fruto de minha
imaginação, de meu medo. Volto minha atenção para a suíte. É melhor verificar isso com calma. Abro o armário e
noto que há poucas roupas. Além disso, o local está um pouco desorganizado, indicando que Cristiano saiu com
pressa. Um retrato sobre o criado-mudo o mostra ao lado da garota. Ela parece mais jovem, mas eu guardo as feições
do homem. Não quero esquecer o rosto de um inimigo! Então, usando luvas exatamente para não deixar impressões
digitais, mexo no armário, retirando roupas e gavetas, procurando papéis, buscando pistas. Não acho nenhuma mala,
nenhum papel importante, nenhum documento pessoal. Teria Cristiano deixado a cidade?
Volto-me para o criado-mudo. Removo as gavetas e continuo a procurar, achando alguns papéis. São contas e
anotações sem importância aparente, mas encontro uma agenda de telefones. Eu a folheio rapidamente, tentando achar
qualquer anotação suspeita. Novamente, nada. O telefone sobre o criado-mudo tem secretária eletrônica. Eu faço com
que toque as mensagens recebidas. Enquanto as mensagens são passadas, eu noto os livros que estão sobre uma
instante, de frente para a cama. Mantendo o ouvido atento às mensagens repetidas pela máquina, vou até os livros e
folheio-os, um a um. São apenas enciclopédias, mas talvez tenham páginas marcadas ou papéis importantes guardados
entre as páginas. Mais uma vez, nada encontro.
Mas então, ouço um recado interessante na secretária eletrônica, após algumas mensagens aparentemente
inúteis. “Senhor Cristiano, entreguei a eles a chave da chácara, como o senhor mandou. Depois, quando fui procurar
pelo homem de Abiram que os estava seguindo, não o encontrei. Acho que ele me descobriu e fugiu enquanto eu
conversava com Marcos. De qualquer forma, fora esse pequeno descuido meu, está tudo seguindo de acordo com o
plano. Espero que o senhor já esteja pronto, pois estou indo busca-lo.”
Depois, as mensagens voltam a ser de pouca importância. Há poucas mensagens, mas elas cobrem
praticamente todo o dia de hoje, indicando que Cristiano não esteve em casa nas últimas horas. Talvez tenha estado o
dia inteiro fora. Será que ele foi para Araçatuba?
Então, ouço som de chaves e uma porta se abrindo. Corro para desligar a secretária eletrônica e a luz da suíte,
e então me abaixo, logo atrás da cama. A luz da sala se acende. Ouço passos, indo em direção à cozinha. Eu me
levanto, fico rente à parede, esgueirando-me até chegar à porta da suíte, então olho cuidadosamente. As luzes da sala e
da cozinha estão acesas e alguém mexe na geladeira. A porta de saída, na sala, está fechada, de forma que não posso
correr para sair daqui antes que a pessoa me veja. Ouço o som da porta da geladeira sendo fechada e então a pessoa
caminha de volta para a sala. Assim que noto o recém-chegado passar pela porta da cozinha, eu volto a me escorar
contra a parede, evitando ser visto, mas ainda permaneço ao lado da porta, tentando ouvir seus passos e deduzir seu
intento.
Embora eu o tenha visto apenas por um curto instante, o homem que está aqui não é o mesmo que do retrato.
O recém-chegado é um homem negro, alto, vestindo um terno. Parece-se com a descrição que Elias me deu do espião
de Cristiano que vigiava a garota e o imortal. De repente, noto que os passos desse homem tornam-se cada vez mais
próximos. Ele está vindo para cá! Meus olhos vasculham o quarto. Droga! Eu não tive tempo de arrumar a bagunça
que fiz! Embora a suíte esteja às escuras, a porta escancarada permite que a luz da sala revele o armário aberto e as
gavetas e roupas espalhadas! O recém-chegado percebe que algo está errado e se aproxima. Penso em correr até o
banheiro da suíte, mas não há tempo. O homem passa pela porta.
Não tenho tempo para ações sutis, nem para realizar qualquer truque refinado. Assim que vejo este homem,
mais alto do que eu e com certeza mais forte, a única coisa que posso pensar é em apelar para a violência. No instante
em que ele atravessa a porta e seu rosto está vulnerável, eu fecho meu punho e desfiro um direto de direita em sua
face. O impacto o pega de surpresa, ele perde o equilíbrio, cambaleia, mas apoia-se na parede, evitando cair. Eu

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aproveito o breve instante de confusão dele para, com a mão esquerda, segurar sua cabeça e batê-la contra a parede. O
impacto é forte, mas o homem e resistente. Mesmo atordoado pelos golpes, ele agarra meu braço e me puxa, me
jogando no chão. Ele realmente é forte, e eu não estou exatamente bem condicionado para uma briga.
Tento me erguer o mais rápido possível, mas o homem também está se recuperando da surpresa inicial.
Levantando-me, coloco a mão no bolso direito do paletó. Chego a tocar o objeto metálico que guardo ali, mas então,
assim que ergo a cabeça, tudo o que vejo é um punho atingindo o minha face esquerda. Sinto dor, e o impacto me faz
perder o equilíbrio. Fecho os olhos, tento apalpar algo para me segurar e evitar cair, e minhas mãos encontram a
superfície de madeira do armário. Eu evito a queda, mas então sinto um novo golpe. Antes que eu conseguisse abrir
meus olhos, o punho dele atinge meu estômago. A boca expele todo o ar que estava em meus pulmões, e a dor chega a
me desconcentrar. As pernas fraquejam e, novamente, estou caindo. Sequer consigo me apoiar em algo para evitar a
queda desta vez, mas ele me segura, me forçando a permanecer em pé.
Sinto o aperto firme de suas mãos em meus braços. Minhas pernas estão fracas, de modo que, se não fosse
meu oponente, eu não estaria em pé agora. Tusso, tentando recuperar o ar, e abro lentamente os olhos. Então, ele me
empurra para trás, e minhas pernas bambas me fazem tombar. Tudo parece lento durante a queda. Vejo-o preparar um
outro soco. Ele me quer desmaiado, provavelmente para me levar a algum lugar e me interrogar. Eu estou sem
condições para reagir. Meu rosto é atingido novamente. Meus dentes doem, minha boca fica quente. Os olhos se
fecham, e sinto outro impacto quando minhas costas e minha nuca batem contra o chão. Tudo enegrece.
Por um instante, a dor parece sumir. A consciência lentamente se esvai, e me sinto flutuar no nada. Há um
curto momento de paz, como no começo de todos os meus sonhos. Tento me manter desperto, mas a inconsciência
parece vencer... Os sucessivos impactos deixaram a mente confusa. Não! Não posso deixar isso acontecer! Eu preciso
me concentrar! Estou em perigo! Preciso recuperar a consciência, lutar para retomar o controle do corpo! Não vou
desmaiar! Não vou permitir que as limitações do corpo me superem! E, como que por obra de minha força de vontade,
eu libero um gemido e abro meus olhos. Estou no chão, o homem se aproxima. Meus braços estão moles, não sinto
direito minhas pernas, mas, se eu alcançar o Olho, o oponente estará em minhas mãos.
O inimigo ainda se aproxima. Novamente, é como se tudo estivessem em câmera lenta. Dois passos... apenas
mais dois passos o separam de mim. Tento mexer os dedos de minha mão direita, sinto-os responderem, e ergo o braço
o mais rápido que posso. A resposta é lenta. Resta apenas mais um passo. Minha mão alcança o bolso do paletó. Vejo-
o se abaixar, estendendo as mãos para me imobilizar, ou talvez para me golpear novamente. O homem agarra-me pelo
colarinho, puxando-me para me atingir novamente a face. Minha cabeça pende para trás com o movimento. Nesse
instante, meus dedos sentem o frio do metal em meu bolso. Eu agarro o objeto circular ali guardado, removendo-o do
bolso o quanto antes.
Meu corpo pode estar lento, mas minha consciência trabalha. Em minha mente, repito as palavras necessárias,
enquanto me concentro. O homem nota meu comportamento estranho e apressa-se em me golpear, mas consigo
colocar minha mão, segurando o Olho de Aziz, diante de minha face. Ele fita o objeto: um pequeno disco de cobre,
com um símbolo de um olho diante da marca triangular de Aziz. Mesmo na penumbra do quarto, os olhos dele se
encontram com a imagem, com o olhar do demônio, e seu corpo reage de imediato.
Há muitas décadas, o antigo mestre do Triângulo de Aziz me mostrou o poder deste simples objeto. Eu me
lembro de meu corpo sofrer, como se meu sangue fervesse e minha pele se rachasse. São apenas ilusões de uma dor
fantasmagórica tão intensa que você perde o controle de seu corpo. O homem diante de mim sofre o mesmo. Ele solta
um grito de dor, sentindo seu corpo todo arder. Ele perde suas forças e tomba sobre mim, mas uso a própria mão que
segura o Olho para joga-lo para o lado. Meu corpo ainda está mole, mas estou um pouco melhor. Ele, por outro lado,
parece estar em agonia, como se sua alma fosse torturada, rasgada, dilacerada e reconstituída, apenas para sofrer
novamente. Esse é o poder do Olho de Aziz: toda a dor que você sentiria no Inferno manifesta-se aqui na Terra.
Levanto-me com dificuldade, apoiando na cama para facilitar. O homem pára de gritar e respira com
dificuldade. Sua exposição ao Olho foi muito breve, e o efeito foi brando. Ainda assim, ele vai ficar fraco por alguns
minutos. Assim que consigo me erguer, caminho, ainda com um pouco de dificuldade, para fora do quarto. Minha
boca dói, sinto gosto de sangue, mas felizmente ainda tenho todos os dentes em seus devidos lugares. Sinto certo alívio
ao sair da escuridão do quarto e adentrar na sala iluminada. Então noto, no caminho, sobre a mesa de jantar, um
caderno de capa escura. Parece uma agenda, mas não estava ali antes. Provavelmente, o meu oponente veio traze-la.
Pego a agenda e a folheio. Anotações e mais anotações, com diversas atividades realizadas. Nomes, endereços,
datas... E, mais interessante, informações sobre as atividades que este homem realizou nos últimos dias. Há dados
sobre o hotel em que a garota e o imortal se hospedaram, e meu nome e o meu hotel também estão especificados aqui.
Melhor ainda, há a informação que eu desejava: o endereço de um hotel em Araçatuba, com um número de reserva e
dados de quarto, localização e preços. E também indicações sobre um lugar no campo, com nomes de duas pessoas
deixadas para vigiar a garota e o imortal. Perfeito! Acho que encontrei tudo o que vim procurar! Este homem deve ser
o braço direito de Cristiano, pelo que noto aqui. Assim como confio em Elias para resolver a burocracia e organizar
minhas operações, Cristiano deve usar esse tal “Cláudio”, segundo a agenda, para resolver todos os seus problemas
mais banais. Viro-me novamente para Cláudio, que ainda geme no chão do quarto, tentando reunir forças para se
levantar. Ele logo estará bem.

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Se esta agenda é usada pelo próprio Cláudio, com certeza ele não veio deixa-la aqui. Provavelmente, veio
pegar algo, talvez para levar para Cristiano. Mas o que poderia ser? Eu poderia interroga-lo, mas acho que não tenho
tempo, nem posso leva-lo daqui sem ser visto. Por outro lado, posso vigia-lo, como fiz com a garota. Esta agenda terá
uma dupla utilidade para mim! Sendo pertencente a ele, e aposto que ele possui um elo forte com este objeto, posso
usa-la para vigia-lo pelos espelhos, assim como usei as anotações da garota para poder seguir seus passos.
Antes que eu perca mais tempo, eu me dirijo à saída. O tal Cláudio deixou a chave na porta, felizmente. Eu a
destranco e saio e, enquanto espero a chegada do elevador, ouço a sua voz. “Pare bem aí”, Cláudio diz. Sua voz é a
mesma que ouvi na secretária eletrônica. O som de uma pistola sendo destravada acompanha seu alerta. Estou de
costas para o desgraçado, mas me viro lentamente, erguendo meus braços, um deles segurando ainda sua agenda. O
efeito do Olho sobre ele foi muito mais breve do que eu imaginava. Sua voz está muito fraca, ainda ouço sua
respiração ofegante, e ele se apóia na parede para permanecer em pé. Este homem tem uma ótima resistência, de fato.
“Coloque a agenda no chão, com cuidado!” Ele me olha fixamente, pronto para reagir a qualquer movimento
meu. “Mantenha as mãos onde eu possa vê-las!” Eu fito seus olhos, notando o quão atentos estão. Nossos olhares se
encontram. Embora eu esteja ferido e ainda um pouco fraco, ele está muito pior. Eu recebi alguns socos, ele recebeu
agonia impensável, mesmo que por um mísero instante. Então, tendo certeza de que estou em vantagem, apenas
respondo-lhe, em meu português falho. “Você não está em condições de me dar ordens!” Estalo os dedos da mão livre.
O som deve ter ecoado nos ouvidos dele, apenas uma distração para a mente dele perder o foco e se distrair. Então, o
contato entre nossos olhares permite que eu o subjugue: seus olhos se fecham, suas pernas fraquejam, a arma escapa
de suas mãos, e ele desmaia, caindo inofensivo sobre o carpete da sala. Eu posso não ser grande coisa fisicamente, mas
quando o assunto é a mente humana, posso explorar todas as suas fragilidades.
Jogo Cláudio de volta para dentro do apartamento, fecho a porta e chamo o elevador, que não demora a
chegar. Enquanto desço, olho-me novamente no espelho. Minha boca está um pouco inchada, e sei que meu rosto vai
ficar todo roxo. Apenas meus olhos permanecem os mesmos, inalterados. Eu não ligo para aparências, mas sei que
andar por aí com o rosto ferido chama a atenção, e não tenho rito algum para resolver isso. Eu sou um mestre da
mente, não da vida ou do corpo, infelizmente. Quando o elevador chega ao térreo, percorro o corredor, passo pela
portaria e até tenho a cara de pau de acenar para o vigia. Ele sequer pára para me olhar, continuando a ler suas revistas.
Vigias sempre prestam atenção em quem entra em um prédio, mas raramente se preocupam com quem sai. Eu
aproveito isso para sair tranqüilamente pela porta da frente.
Virando a esquina, Andreas está fumando, apoiado a uma parede, diante do carro, à minha espera. Ele destrava
o alarme do carro e entramos no mesmo. “Apague o cigarro e vamos embora.” Eu odeio fumaça. Ele joga o cigarro
fora, resmunga algo com dificuldade e caminha em direção ao carro. Eu me sento no banco do motorista e entrego a
agenda a ele. Dando a partida, ele fuça a agenda, sem entender bem o que ela contém. Ele tenta falar, apesar da
mandíbula imobilizada. Eu não espero ouvir a pergunta para respondê-la. “Vamos voltar, arrumar nossas coisas e
então nos prepararemos para uma curta viagem. Vamos encontrar Elias em Araçatuba.”
“Por quê?” Andreas fala com dificuldade, sua voz sai quase incompreensível.
“Cristiano também foi para lá. Por algum motivo, ele quer estar próximo à garota. Algo me diz que, o que quer
que Cristiano esteja esperando que aconteça com ela, acontecerá em breve.”

Capítulo 17: Receios da Imortalidade


São pouco mais de seis horas da manhã quando desperto. O sol começa a surgir no horizonte, iluminando o
quarto, dissipando trevas mas criando penumbra. Sinto os braços dela me envolvendo, seu corpo nu tocando o meu.
Levanto-me, tomando cuidado para não despertá-la. Felizmente, ela permanece dormindo. Eu a observo enquanto me
visto. Natasha é tão bonita, eu penso, mas logo afasto esse pensamento. Passamos a noite juntos, e isso foi um erro
terrível. Quando ela me beijou na piscina, fiquei sem reação. Eu não queria isso! Na verdade, era a última coisa que eu
poderia querer! Ainda assim, meu corpo... eu mesmo... sentia falta disso. Quanto tempo faz que não compartilho a
noite com uma mulher, sentindo o prazer das carícias e da paixão? Não posso negar que eu gostei, que eu não resisti,
que sequer tentei impedi-la. Mas agora, vem a incômoda sensação de culpa. Eu não estou apaixonado e não quero
brincar com os sentimentos dela. Tenho medo do que pode acontecer de agora em diante.
Dormimos no próprio quarto dela. Saio sem fazer barulho, descendo as escadas, pensando em ir até a cozinha.
Estou com fome. Natasha provavelmente também vai estar com fome quando acordar. Vou arrumar a mesa do café da
manhã, depois tomar um banho e aí... bom, aí penso no que fazer. Arrumo a mesa um pouco distraído, pensando
apenas na noite passada, em tudo o que fizemos. Estou inseguro agora que tudo ficou incerto. Minha vida não é fácil, e
meus segredos são perigosos, não queria me envolver com ninguém nunca mais, para que a dor não se repetisse.
Assim que a mesa está arrumada, eu me sento. Penso em me servir, tomar um bom café com leite, comer um
pãozinho com geléia. Mas aí penso que seria falta de educação não esperar que ela acorde antes. Droga! Por que penso
nisso? Se fosse ontem, antes de tudo isso, eu comeria sem hesitar. Éramos apenas amigos. Mas agora, fico com medo
de magoa-la, de faze-la pensar que me aproveitei dela. Termos passado a noite juntos não muda o fato de que somos
apenas amigos, certo? Nestes tempos de hoje, isso é normal, não é mesmo? Droga, onde estou com a cabeça? Vou
tomar um banho e tentar relaxar, esquecer isso, e me concentrar em tudo o que realmente deveria me preocupar.

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Subo as escadas novamente, em direção ao meu quarto. Mexo em minha mochila e noto que estou pegando a
última camiseta limpa que trouxe. Vou ter que reaproveitar a bermuda que estou usando. E felizmente eu trouxe
bastantes cuecas e meias. Ainda assim, vou precisar ir à cidade e arrumar mais roupas. Natasha disse que iria à cidade
hoje. Vou aproveitar e comprar algumas coisas.
Tomo um banho frio e rápido, mas não é o suficiente para parar de pensar nela e na noite passada. O que devo
fazer? Sei que, no fundo, a situação não é ruim. Sei que posso aproveitar isso, que ainda sou um ser vivo, uma pessoa
com necessidades, como qualquer outra. Mas também sei que não sou como ela, que cedo ou tarde isso vai acabar e
tenho medo que o fim seja numa tragédia. Tenho muitas lembranças ruins, de doze mulheres com as quais me envolvi
desde que voltei da morte. Vi oito delas morrerem. É terrível saber que você não irá envelhecer, enquanto a pessoa ao
seu lado sim. É pior ainda quando os inimigos que atraí, querendo ou não, fazem questão de prejudicar as pessoas ao
meu lado. E, mesmo quando esses relacionamentos não terminaram em morte, eles sempre terminaram em decepção.
“Ser feliz para sempre” é um sonho difícil para mortais e impossível para mim. “Viver o momento” pode ser fácil para
uma pessoa, mas quando se sabe que sua vida não tem fim, os momentos parecem tão efêmeros... Queremos um pouco
de estabilidade, de certeza, e não sei se devo “viver o momento” com Natasha. Por um lado, sei que cedo ou tarde os
momentos serão apenas lembranças distantes de séculos passados. Por outro, também sei que, se ficar sempre evitando
me envolver, eu vou perder os laços emocionais com as pessoas comuns. Já tenho dificuldade em criar amigos, estou
sempre preocupado com o destino deles, com o fato de que um dia presenciarei suas mortes, enquanto minha vida
continuará. O que devo fazer? Natasha sequer imagina o que realmente sou...
Quando saio do chuveiro e me visto, volto a caminhar pela casa. Com as dúvidas ainda me atormentando, eu
acabo indo até a porta do quarto de Natasha. Entro na penumbra do local, onde ela ainda dorme, tranqüila, deitada de
bruços e coberta. Sento-me ao seu lado na cama e olho seu rosto, seus olhos fechados e um sorriso discreto em seus
lábios. No que ela pode estar sonhando? Eu toco sua face, sentindo a forma de seu rosto enquanto deslizo gentilmente
os dedos por sua face. Ela é bonita, não como essas modelos ou atrizes por aí, mas uma beleza mais simples, mais
natural. É uma pessoa comum, sem nenhuma característica excepcional, mas isso a torna tão bonita para mim...
Então, desvio o olhar para o criado-mudo. Sobre ele, está o tal livro, as Coletâneas de Meinhard. Não entendo
nem um pouco do texto em latim, mas ainda assim eu o pego e o folheio. As anotações em alemão me são claras, mas
não conseguem passar o contexto da obra. Qual será o real valor dela? Eu não acho que Cristiano entregou o livro a
Natasha sem ter segundas intenções. O que ele quer que Natasha descubra?
Eu viro as páginas aleatoriamente, às vezes parando em uma ou outra para ler as anotações que o tal
Gottschalk escreveu. A princípio, ele parece tentar decifrar as metáforas e supostas profecias, mas então eu avanço
diversas folhas, caindo na página marcada por Natasha. Eu observo as anotações: “Eu havia prometido parar de ler
este livro. Não consegui cumprir a promessa, mas preciso parar. Se você o está lendo, não vá adiante! Não ouse ir
adiante! Ele está brincando com minha mente. Preciso parar. Quanto mais tempo eu ficar longe dele, mais fácil vou
resistir. 25 de Janeiro de 1968: que este seja o último dia.”
Um arrepio percorre minha espinha. Viro a página e vejo mais um comentário. “O segundo sinal, eu vi o
segundo sinal. Deus, o que eram aquelas imagens? Havia morte, peste, guerra e fome. Eu vi o Inferno. Eu estava lá. E
me sentia em paz.”
Duas páginas adiante: “Eu tentei evitar esse livro por seis meses, mas os sonhos estão cada vez mais fortes.
Ontem, Ele veio me visitar novamente. Ele está me dizendo que estou perto da verdade. Deus, ele não me deixa
descansar! Preciso saber que verdade é essa!”
Viro quatro páginas de uma só vez e, novamente, leio mais uma anotação assustadora. “Esta noite, comecei a
ouvir vozes. Não mais minha própria voz, sussurrando os mistérios que sempre quis ouvir, mas uma segunda voz. Ele
está mais próximo, agora o sinto perto de mim a cada instante. Ele pede que eu o aceite. Não posso. Vou trancar este
livro, escondê-lo de mim mesmo. É minha última chance. Ele está tentando me dominar, está me atormentando dia e
noite. Se eu não parar de ler este livro, eu vou ceder cedo ou tarde. Vou entregar este livro a alguém que nunca irá
lê-lo. Vou pedir que destrua o livro, pois eu não consigo. E aí, vou calar as vozes, de qualquer maneira. Infelizmente,
eu tentei colocar um aviso no início do livro, mas ele não permitiu. Quando despertei ontem, o aviso tinha sido
destruído! Eu vou calar essas vozes. Eu vou me livrar do livro e calar as vozes, antes que elas me vençam.”
Não posso deixar de sentir medo ao ler este trecho. As palavras estão todas rasuradas, como se ele estivesse
escrevendo com mãos trêmulas. Há diversos borrões de tinta, e parte do trecho do livro em si está borrada. Este livro...
há algo estranho nele, algo sinistro. Então, ouço um gemido. É Natasha, que começa a se mexer na cama, inquieta.
Fecho o livro e volto minha atenção para ela. “Natasha? Natasha?” Toco seu ombro e tento despertá-la, mas não
adianta. Ouço-a murmurar certas palavras, todas em alemão. “Não,” Tasha repete várias vezes. Parece estar tendo um
pesadelo. De repente, ela desperta. Os olhos se abrem de uma só vez, e ela se levanta gritando: “Largue isso!”
Novamente, suas palavras foram ditas em alemão.
“Calma, Natasha! Calma!” Ela me abraça e eu a envolvo nos braços. Natasha chora. “Marcos... eu tive um
sonho horrível! Estavam roubando algo de mim! Eu estava presa, gritava para escapar! Foi horrível!”
“Calma, Tasha, calma!” As palavras dela me atormentam. Alguém a estava roubando? O livro? Será que ela
teve o pesadelo porque eu peguei o livro? Seria porque eu, por um instante, pensei em não deixar que ela continue a lê-
lo? Ela chora, mas logo se controla. “Foi só um pesadelo, Tasha, não se preocupe.”

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Ela me olha, já está mais controlada. “Nossa, Marcos, foi algo tão real. Meu Deus!”
“Sim, calma, já passou!”
Ela logo se afasta e fica sentada na cama. Leva a mão à cabeça, pensativa. O cobertor cobre-lhe até a cintura
apenas, revelando para mim seu busto nu. “Melhor você ir se vestir, Natasha.” Eu desvio o olhar.
Ela ri um pouco. “Que foi? Sei muito bem que você não é tímido, e ontem à noite você não evitou me olhar.”
Ela parece bem mais calma agora. Foi apenas um sonho, afinal de contas, nada que deva preocupa-la. Mas, por outro
lado, minhas próprias preocupações se intensificam. O livro ainda está em minha mão, fechado. Ela nota e o pega.
“Estava olhando o livro, hein? Pensei que não conseguia ler.”
“Já disse que entendo os comentários em alemão”, respondo, enquanto ponho-me de costas para ela, mas então
sinto os braços dela me envolvendo, e seu corpo tocando minhas costas.
Ela murmura em meu ouvido: “Tinha esquecido que sabe ler alemão.” Então, sinto sua mão carinhosa tocar
meu peito por cima da camiseta. Sinto-me desconfortável, não quero ceder ao carinho, mas também não sei como
evita-la sem ofendê-la. De maneira alguma quero arriscar ofendê-la.
“Natasha...” Eu paro e penso no que dizer. Ela me pede que fale, sussurrando em meu ouvido. Então, apenas
desvio o assunto. “Preparei o café da manhã para nós. Você deve estar com fome, não?”
Ela continua a murmurar em meu ouvido. “É, estou. Mas antes vou tomar um banho. Não quer vir comigo?”
“Eu já tomei um banho, Tasha.” Preciso arrumar alguma desculpa, rápido! “E além do mais, as camisinhas que
você tinha acabaram esta noite, não? Eu não trouxe nenhuma comigo.” Nunca trago, na verdade. Faz muitos anos que
evito relações sexuais. E, no fundo, mesmo que levasse uma vida promíscua, eu não precisaria de preservativos de
qualquer tipo.
“Verdade...”, ela murmura pensativa. “Quando formos à cidade hoje, temos que comprar mais.”
Ela beija minha nuca e se levanta, enrolando-se no lençol. “Pode ir descendo, que logo estarei lá.” Então, vai
até o banheiro, fechando a porta. Procuro o livro e noto que não está no quarto. Será que ela o levou para o banheiro?
Será que o fez sem notar ou foi para escondê-lo de mim? Ou talvez ambas as hipóteses? Eu me levanto da cama e
caminho para fora do quarto, fechando a porta assim que saio. Então, volto a pensar no livro. Estou ficando paranóico?
Gottschalk era só um louco? Ou será que este livro realmente tem algo estranho, sobrenatural, ligado a ele?
Caminho até a escada e sento-me no chão, abraçando minhas pernas, enquanto espero Natasha terminar seu
banho. Preciso convence-la, de alguma forma, a parar de ler aquele livro. Mas agora me vêm outras perguntas. Será
que Cristiano sabe o que o livro realmente é? Se sim, porque o entregou a Natasha? O que ele quer? “O livro fala sobre
o apocalipse,” foi o que aquele seqüestrador maluco chamado Elias me disse. Eu não acredito nisso, nem acredito em
apocalipse, mas acredito no sobrenatural, afinal eu mesmo não sou uma pessoa comum. Eu já vi coisas muito
estranhas ocorrerem, muitas delas tão bizarras que desafiavam a própria racionalidade. Então, qual o verdadeiro
sentido do livro?
A porta do quarto se abre. Eu me levanto rapidamente e viro-me para fita-la. O cabelo ainda molhado,
enrolado numa toalha, e tudo o que veste é uma camiseta cinza e um short branco. “Você veste esse tipo de roupa
sempre?”
Natasha responde de forma irônica: “Só quando quero ficar bem à vontade. E olha só quem fala! O senhor
calça-ou-bermuda-com-camiseta.” Ela ri.
“Tem razão!” Eu sorrio brevemente. Ela se aproxima e segura minha mão. De novo, me sinto um pouco
desconfortável, mas felizmente ela não tenta me beijar. Falamos umas poucas palavras e então descemos as escadas
juntos, calados. Penso em comentar sobre a noite passada, mas acabo perdendo a coragem. O que devo fazer? Estou
me sentindo, como dizem, um “adolescente”, indeciso e com medo de algo tão simples quanto um relacionamento.
Mas, ao mesmo tempo, tenho a questão do livro para me preocupar. Assim que chegamos à cozinha e nos sentamos à
mesa, eu não deixo de querer puxar esse assunto: “Como vai a leitura do livro?”
“Bom, li bastante ontem, mas parei depois que você me pediu. Nossa, nos primeiros meses que fiquei com o
livro, eu mal pude compreende-lo. Mas agora, em menos de uma semana, parece que tive um progresso enorme! As
palavras estão entrando facilmente na minha cabeça e estou passando cada vez menos tempo em cada página. Está
certo que eu estava cheia de problemas com a escola e que estava desenferrujando meu latim no começo, mas antes eu
mal consegui chegar na metade do livro. Agora, porém, tudo parece fazer sentido! Tudo mesmo!”
“Interessante,” eu digo, pausando em seguida para tomar um pouco de café, antes de voltar a falar:: “Acha que
pode termina-lo em breve?”
“Se eu continuar neste ritmo...” Ela pára, pensa um pouco antes de continuar. “Não sei. Acho que mais uns
dois ou três dias...”
“Só isso? Tão rápido assim? Mas você não ficou mais de um mês com o livro e não conseguia entendê-lo?”
“É, mas é como eu falei. Eu estava desenferrujando meu latim e tinha outras preocupações. Além disso, estava
tudo muito confuso. Acho que avancei rápido demais sem prestar atenção nas primeiras páginas e aí me perdi. Quando
recomecei a lê-lo, tudo parecia mais claro, sabe? Não sei explicar direito, mas é como se as idéias contidas fossem
mais fáceis de assimilar. Acho que é porque eu me acostumei a ler em latim, ou porque estou melhor preparada para
ler agora do que antes. O livro não é realmente muito longo, e como há apenas versos, e não textos muito longos, às
vezes leio várias páginas sem nem notar.”

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“E o que acha do texto? Sobre o quê fala?”
Ela me olha, estranhando um pouco. “Não falamos disso ontem mesmo?” É verdade! Eu conversei sobre isso
com ela ontem.
“É verdade. É que... Natasha, eu estive folheando ele esta manhã, estava vendo os comentários de Gottschalk e
me pareceram um tanto estranhos. Especialmente os comentários a partir da segunda metade da obra.”
“É mesmo?” Ela parece se interessar. “Eu ainda não li os comentários que estão além de onde marquei o livro.
Estou lendo tudo com calma, na ordem, e vou vendo os comentários conforme leio os trechos do livro. Do que os
comentários tratam?”
“Escute. Ele parece ter ficado cada vez mais perturbado. Eu não acho que esse livro seja uma boa leitura.”
“Ah, Marcos! Não vai me dizer que logo você, o cético que não acredita em profecias, vai ficar com medo de
um livrinho qualquer!”
Fico envergonhado com o comentário dela. Como posso explicar? Como eu posso falar de um assunto que eu
devia manter longe de pessoas comuns? Será que devo confessar a ela o que sei sobre o sobrenatural? Será que ela
estaria pronta para isso? “Natasha, não é bem assim. Eu disse que já vi muitas coisas estranhas, não disse?”
“É, mas nunca falou direito nesse assunto. Que tipo de coisas estranhas?”
“Acredita no sobrenatural?”
“Não. Quer dizer... Um pouco. Não muito. Você já tinha me perguntado isso quando estávamos vindo para
Araçatuba, não se lembra? Eu queria acreditar, mas acho que tudo pode ser explicado. Ia ser tão bom se houvesse mais
do que o cientificamente possível, algo além do imanente, do concreto... Se houvesse um pouco de magia no mundo...”
“Bem, existe...” Eu falo hesitante, mas de imediato prendo a atenção dela. “Sabe o porquê da existência da
Fundação Amanhecer? Entre outras coisas, eles estudam o sobrenatural. Me envolvi com Cristiano durante um
acontecimento incomum em Minas Gerais.”
“Que tipo de acontecimento?”
Como explicar sem parecer irreal? Como explicar aqueles eventos? “Um culto. Encontramos um culto que
estava seduzindo jovens e realizando orgias e rituais estranhos. No começo, parecia ser uma espécie de sociedade ou
clube em que os membros se reuniam para beber, transar e usar drogas. Mas aí começaram a ficar violentos, a agir de
forma estranha. Houve muita atenção da imprensa quando uma garota foi encontrada morta. Eu morava em Belo
Horizonte na época e conhecia a menina. Era amiga de um amigo meu.”
“Certo, e o que aconteceu?”
“Aconteceu que a polícia não deu muita atenção ao caso. Apesar do escândalo inicial, logo a imprensa calou.
Estava na cara que tinha gente importante e influente metido nisso, só que as provas iam sumindo. Os culpados pelo
assassinato, todos membros do culto, foram presos, mas o culto em si não foi investigado, e pôde continuar a operar
livremente. Foi por isso que resolvi saber mais. Meu amigo estava com raiva e eu quis ajudar. Cristiano era um
membro jovem da Amanhecer e também começou uma investigação. Nossos caminhos acabaram se cruzando.”
“Afinal, o que era esse culto?”
“Eles acreditavam ser bruxos. Digo, não os adolescentes do culto, mas os chefes. Um deles era vereador, outro
advogado. Eles estavam literalmente treinando os jovens mais promissores nas crenças doentias deles. Em nenhum
momento cheguei a ver mágica mesmo, nada de bolas de fogo ou raios caindo dos céus, mas...”
“Mas o quê?”
“Mas aconteciam coisas estranhas. Gente morria de forma misteriosa, tínhamos pesadelos à noite, sentíamos
ser vigiados, víamos coisas que não estavam lá. Meu amigo mesmo morreu de forma misteriosa.”
Os olhos dela se arregalam de espanto. Natasha leva a mão à boca, surpresa. “Meus Deus... O que aconteceu a
ele?”
“A polícia disse ter sido suicídio. Ele se cortou com uma faca várias vezes, até morrer por perda de sangue. Os
pais diziam que ele estava fora de si, gritando que estava coberto por cobras. Mas eu o conhecia! Ele era uma pessoa
normal, alegre, e não usava drogas, apesar de gostar de beber além da conta e fumava bastante. Ele nunca se mataria.”
“Deus! O que aconteceu no fim?”
“Eu encontrei os líderes do culto, Cristiano me ajudou nisso. Nós conseguimos roubar diversos livros que
tratavam de magia, espíritos e outras coisas e fizemos uma armadilha. Um dos líderes morreu nas mãos do outro, que
fugiu para não ser preso pela polícia. Tentamos encontra-lo, mas ele conseguiu desaparecer. Até hoje deve nos odiar.”
“Então, você e o Cristiano foram amigos no passado.”
“Mais ou menos... Fomos companheiros. Cheguei a considera-lo um amigo, mas nunca fomos muito
próximos. Porém, comecei a desconfiar quando ele desapareceu com os livros que tínhamos conseguido. Depois,
quando ele me procurou novamente, descobri que estava me vigiando, descobrindo tudo sobre minha vida, e que tinha
subido muito na hierarquia da Fundação após o caso do culto. Parece que o prestígio dele estava em alta, e ele
começou a me ameaçar para conseguir minha ajuda em seus projetos e pesquisas. Foi aí que comecei a odiá-lo.”
“Essa história não faz sentido. Tá, o Cris é um pesquisador da tal da ‘Fundação Amanhecer’, disso eu já sei.
Mas e você? Por que arriscou sua vida daquele jeito? Você também investiga esse tipo de coisa?”
“Não, eu...” Como explicar que não sou exatamente humano? “Eu... eu sempre fui aventureiro. Sempre viajei,
passei por muitos lugares e situações. Já faz mais de dez anos, mas quando tudo aquilo aconteceu, eu fiquei revoltado

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com o descaso da polícia, da mídia, e tinha um amigo chocado com tudo aquilo. Começou pequeno, não achei que
seria algo tão grave. Mas acabou marcando minha vida para sempre. Não é como se eu achasse que iria virar herói. Eu
só queria ajudar.”
“Entendo... Nossa, Marcos, queria ter um pouco da coragem que você tem.” Ela sorri, me fita nos olhos.
“Estou admirada com você!”
Tudo o que falei não deixa de ser verdade. Mas também não disse que eu sinto a necessidade de fazer algo
com as dádivas que possuo, como se precisasse me dar um sentido para não cair na barbárie. Se eu não fizer isso pelas
pessoas que conheço e prezo, o que farei? Não quero ser como aquele devorador de vidas que encontrei, o único outro
imortal com o qual cruzei meu caminho. Nem quero ser como aquelas coisas que já presenciei, os sugadores de sangue
e feiticeiros que se deixam controlar pelo poder que têm, que manipulam vidas e mentes para se aproveitarem das
pessoas, para se sentirem superiores. No fundo, eu queria ser uma pessoa comum. É estranho... Apesar de tudo, eu
tenho muito medo da morte final, mas eu também quero fazer algo de útil em minha vida.
“Mas, voltando ao assunto, Tasha, sobre o livro...”
O sorriso de Natasha desaparece quase que imediatamente. Ela desvia o olhar, parece ficar mais distante,
menos interessada. “Está bem, diga.”
“Eu estou sinceramente com medo desse livro. Você devia parar de lê-lo.”
“Não, Marcos.” Ela não me olha diretamente ao falar. “Eu quero ir até o fim disto. Estou tão perto!”
“Perto de quê, Natasha?”
“De entender tudo. Eu não falava por vergonha, por medo de você achar que eu sou louca, mas o livro tem
algo de especial e eu quero saber o que é. Têm acontecido coisas estranhas, vejo gente me vigiando pelos espelhos e
tive visões sobre Céu e Inferno como as descritas no livro. Quero saber, quero descobrir! Quero aprender o máximo
que puder! Sempre sonhei com um pouco de mágica neste mundo, algo transcendente, espiritual, e parece que estou
tão perto de descobrir que isso realmente existe! Não posso parar agora!”
Eu ergo a voz, tentando convence-la. “Gottschalk também queria! Natasha, ele se suicidou, e algo me diz que
o livro está relacionado à morte dele! Pelo que vi, ele tentou parar várias vezes, tinha medo do que o livro estava
causando a ele! Você precisa...”
Antes que eu continue, porém, Natasha me interrompe. “Gottschalk era um idiota!” A voz dela parece mais
firme, mais forte, e imediatamente me faz parar de falar. Ela continua, mas parece outra pessoa. Há algo errado em sua
voz. “Ele achou que poderia extrair o conhecimento aos poucos, mas não quis aceita-lo de verdade. Ele resistiu. Ele
tentou destruir o livro, mas não conseguiu.”
“O quê? Natasha?” Estou espantado. Não sei explicar, mas não era Natasha falando! Não a Natasha que
conheço! A voz era a mesma, mas o tom era diferente, mais firme, mais cheio de raiva e ressentimento.
Ela não responde. Fica um certo silêncio no local por alguns segundos. Então, ela me olha, parece ter um
pouco de medo, como se estranhasse a reação que ela mesma teve há pouco. A voz dela volta a ficar receosa: “Eu não
sei... Eu não sei, Marcos! Só sei que Gottschalk fez isso. Algo me diz que ele tinha medo. Não quero ter medo como
ele. Quero descobrir tudo o que puder!”
“Mesmo que isso seja perigoso? Que possa custar sua vida?”
Ela ergue o tom de voz novamente. “Eu não acho que Gottschalk se suicidou por causa do livro, está bem? Eu
não acho que uma simples leitura, por mais obscura que seja, vá fazer as pessoas se matarem ou cometerem loucuras!
Eu NÃO vou parar de ler o livro, entendeu? NÃO VOU!” De repente, ela cala-se e leva a mão à boca. Parece surpresa,
assustada, fala timidamente, evitando me olhar. “Desculpa, não sei o que deu em mim. Eu vou subir...” Natasha se
levanta, eu tento impedi-la, falo que espere, mas ela me ignora. Assim que sai da cozinha, apressa-se em subir as
escadas, correndo diretamente para seu quarto, onde se tranca. Eu fico ali na cozinha, parado. O que devo fazer? Como
posso convence-la?
...
Após alguns instantes ali, indeciso, eu resolvo sair para pensar. Abro a porta que leva para fora da casa e
caminho, pensativo, sem um rumo evidente. Passo ao lado da piscina, cabisbaixo. Os pensamentos estão confusos.
Será que preciso revelar mais a ela para que entenda? Será que eu devo contar a verdade sobre mim? Como ela
reagiria se soubesse minha real idade? E se soubesse que Cristiano usou os ritos que roubamos daquele culto para
conseguir muita da influência que possui? Que tenho inimigos na Europa querendo minha cabeça? O que aconteceria
se eu contasse que Cristiano me mantém sob controle porque sabe que pode levar esses inimigos seculares até mim? E
se eu contasse sobre as coisas com as quais me deparei em minha vida? Será que ela riria de mim? Será que me levaria
a sério? E, mesmo que levasse, ela desistiria do livro?
Desistir do livro. Talvez seja esse o ponto. Enquanto caminho pela grama, pensativo, uma idéia me vem em
mente: e se ela não tiver um interesse sincero no livro, mas sim for uma influência? E se é o livro que a torna tão
obcecada? Ela parece uma pessoa diferente quando fala sobre as Coletâneas, como se ela se tornasse mais agressiva,
mais paranóica. Se for isso, então nada do que eu disser irá convence-la. Minha única opção é destruir a obra. Mas
como o choque poderia afeta-la? E como seria sua reação comigo após isso? Iria me odiar? Droga, quantas dúvidas!
Acho que só uma pessoa pode me ajudar a soluciona-las, e é logo o desgraçado do Cristiano. Eu tenho certeza que ele
sabe mais sobre esse livro e quero descobrir exatamente de que se tratam essas Coletâneas.

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É caminhando sem rumo que chego até o córrego que passa nos fundos da propriedade. Não fossem os sons da
natureza, estaria tudo silencioso. Eu me sento sobre uma pedra, abraço novamente minhas pernas e penso. Ontem à
noite, foi aqui que começamos a entrar em um “clima” amoroso. E agora, depois daquela reação por causa do livro, o
que acontecerá?
Olho para trás, fitando a casa, agora bem distante. Ela deve estar lendo aquela porcaria agora. Preciso
conseguir uma maneira de falar com Cristiano. Talvez eu possa usar o caseiro, José, para isso. Ele disse que deixou o
número de telefone na sala de estar. E se lá também estiver o endereço? Ele mora aqui perto, pelo que me lembro e, se
ele tem telefone, então posso usa-lo para falar com Cristiano. Só me preocupa como aquele bastardo irá reagir quando
eu começar a perguntar demais.
Corro de volta à casa e me dirijo à sala de estar, onde encontro a agenda. Há alguns números e nomes, bem
poucos, mas vou direto à letra “J” e encontro não só o número, como o endereço de José. Ele não tinha carro, pelo que
eu me lembro, então deve ser possível ir andando até lá. É o que farei. Natasha pode estranhar se eu pegar o carro dela
sem avisar. Isto é, se é que ela vai sair daquele quarto hoje.
Eu pego um boné, troco a bermuda por uma calça jeans, calço tênis e finalmente pego a estrada. O sol da
manhã ainda não está muito forte, mas acho que vai ficar bem quente hoje. Eu caminho por uns 30 a 45 minutos, não
sei ao certo, mas acabo chegando a uma estrada secundária de terra batida. Sigo-a, por entre várias outras chácaras, até
chegar a uma casa murada. Pelo portão, noto que parece ser bem cuidada. Na verdade, é até estranho que um caseiro
tenha dinheiro para comprar uma casa tão bonita. Não é luxuosa, nem grande demais, tem apenas um andar e há uma
pequena área verde, com uma pequena garagem. É uma casa bonita, parece ter sido reformada recentemente. A menos
que ele tenha outras fontes de dinheiro, José não pagaria por algo assim. Mas então, como ele pode ser um caseiro se
pode ter uma profissão melhor? Estranho...
Não há campainha. Eu bato palmas, tento gritar para chamá-lo. Nada. Quando estou para desistir, um carro
vem descendo a estrada de terra batida. É uma velha parati, toda suja de pó e de lataria arranhada e amassada. José a
dirige. Ele pára próximo de mim, abre o vidro e põe a cabeça para fora. “Oi, Marcos! Que surpresa encontrar você
aqui!”
“Oi, José, como está? Eu preciso usar o telefone e resolvi vir até aqui. Onde você estava?”
“Ah, eu fui à cidade comprar algumas coisas! Dei uma boa passada no supermercado, sabe? Pode abrir o
portão para mim?” Ele estende as chaves para abrir o cadeado. Mas um detalhe me vem em mente. Supermercado?
Não são nem nove horas da manhã... Que supermercado estaria aberto a uma hora destas, ainda mais levando em conta
que precisaria de uns trinta minutos para chegar da cidade até aqui?
Ele entra com o carro e eu fecho o portão logo em seguida, caminhando pela pequena área verde até chegar à
garagem. José está saindo do carro naquele momento. “Para quem vai ligar, Marcos?”
“Eu vou ligar para o Cristiano, José. Preciso tratar de uns assuntos muito importantes com ele. Você se
importa se eu fizer uma ligação interurbana?”
“Não, vá em frente. Só tente não demorar muito, está bem? Venha por aqui!”
“Está bem.” Ele me caminha na frente, pede a chave do portão quando chegamos à porta. Depois que guarda a
chave, entramos na casa. É realmente um lugar bonito, bem cuidado. Os móveis são novos, a casa está bem limpa, mas
noto a falta de decoração. Não há quadros e há poucos tapetes, como se fosse uma casa nova e só tivesse o essencial
para se viver, sem a personalidade de uma casa de família. Ainda assim, esse “essencial” está todo novo e parece ser
caro. Será que ele se mudou para cá recentemente? E como pode ter conseguido dinheiro para tantas posses?
A entrada dá direto na sala de estar. Sobre uma mesinha, está o telefone. Na mesma sala estão dois sofás, uma
prateleira quase totalmente vazia e a televisão. Caminho até o telefone. Enquanto disco o número de Cristiano,
estranho a razão de haver dois sofás. “Você é casado, José?”
“Não, senhor. Eu era, mas estou divorciado. Minha ex mora em outra cidade e nosso único filho está com ela.
Eu moro sozinho aqui.”
Então, porque a necessidade de dois sofás, ambos bem espaçosos, nesta sala? Se ele mora sozinho, porque não
se preocupar apenas com um? Bem, talvez eu esteja sendo paranóico. De qualquer forma, minha atenção se volta para
o telefone, quando ouço alguém responder: “Alô?” A voz parece estar assustada, mas não é Cristiano, porém. A voz é
familiar. Demora um instante, mas logo me lembro. É o homem que nos entregou as chaves da chácara em São Paulo,
o tal Cláudio.
“Cláudio, aqui é o Marcos. Chame o Cristiano imediatamente.”
Ele responde, sua voz agora está mais calma, mas noto que ele parece atordoado, como se tivesse acabado de
acordar. “Na verdade, eu pensei que seria ele quem estaria ligando!”
“O que aconteceu aí? Sua voz está estranha.”
“Nada! Nada, realmente! Não se preocupe!”
“E onde está Cristiano? Preciso falar com ele!”
“Ele não está aqui, com certeza!”
Começo a ficar nervoso. Se Cristiano saiu de casa, então aonde foi? E se aconteceu algo e esse idiota não quer
me contar? Cristiano não sumiria de casa a uma hora dessas por nada. E muito menos um subordinado dele,
aparentemente atordoado, iria atender. “Onde, Cláudio? É importante!”

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“Se é importante, fale comigo, e passarei a ele quando puder!”
“Muito bem. Que livro é aquele que deixaram com Natasha? O que diabos vocês sabem sobre o livro?”
“É só um livro, idiota! O que você acha que um livro poderia fazer?”
“Eu sei muito bem o que um livro pode fazer! Já esqueceu dos livros que conseguimos em Belo Horizonte,
naquele caso em que...” Então, noto que José ainda está na sala. Eu ia falar mais do que devia, diante de uma pessoa
que não precisa ser envolvida nessa situação. “Bom, a questão é que sei o que esse tipo de livro pode conter!”
“Você não sabe de nada, Helmfrid! Você só precisa proteger a moça até ela terminar o livro, apenas isso!”
“O QUE HÁ NESSA PORCARIA DE LIVRO?” Eu grito. Droga, como eu queria que estivéssemos falando
pessoalmente! Está na cara que ele sabe mais do que quer me falar! Se eu estivesse cara a cara com ele, eu ia mostrar a
esse merdinha o quão persuasivo eu posso ser!
“Não há nada no livro!”
“Então me explique sobre as anotações de Gottschalk! O que ele quis dizer ali?”
“Gottschalk era maluco, Marcos. Era um gênio, mas também era maluco! Você está ficando paranóico,
pensando em besteiras, Marcos! Gottschalk tinha mania de perseguição, acreditava ver coisas, era muito influenciável!
O livro não fez nada com ele! Agora, vá cuidar de Natasha! Os seqüestradores estiveram aqui e roubaram uma agenda
que possui o endereço da chácara! Eles podem acabar encontrando vocês!”
“Como é que é?” A linha cai, ou melhor, ele desliga o telefone na minha cara. Filho da puta! Mas será verdade
que os seqüestradores sabem onde estamos? Ou ele só comentou isso para me confundir, para que eu me preocupe
com outra coisa que não seja o livro?
“Está tudo bem?” É José, que se aproxima. “A conversa pareceu meio estranha.”
Eu tento me acalmar. Baixo o tom de voz, fingindo estar mais tranqüilo. “Está tudo bem, não se preocupe,
José. Vou voltar para a chácara.”
“Está bem. Se quiser, posso dar uma carona a você.”
“Obrigado...”
Enquanto estamos saindo, tenho a clara impressão de ouvir passos. Não os meus passos ou os passos de José,
mas de uma terceira pessoa. “Você mora sozinho, não, José?”.
“Sim, moro sozinho,” ele responde enquanto tranca a porta da casa. Estranho, pois jurei ter ouvido passos.
Mas agora é tarde para olhar. José me leva até o carro, mas algo aqui me incomoda. Estou ficando paranóico?
...
O caminho de volta para a chácara é rápido. De carro, leva-se menos de dez minutos. No caminho,
conversamos um pouco, ele pergunta como estamos indo na chácara, se está tudo bem, e também fala um pouco sobre
seu trabalho, comentando que cuida de diversas chácaras nas proximidades. Ele parece ser uma pessoa simples, sem
muitas aspirações nem sonhos, apenas vivendo o dia a dia.
Assim que chegamos, José me deixa na frente da chácara, dizendo que tem coisas a fazer. Nos despedimos e
eu entro, trancando o portão em seguida. Tudo parece estar como deixei. Acho que Natasha sequer saiu do quarto.
Estou preocupado com tantas coisas: os seqüestradores, Cristiano, o livro e a própria Natasha. Entro pela sala de estar
e olho a hora no relógio que está na parede: nove e dez. Acho que vou esperar uma hora e ir à cidade. Vou convidar
Natasha. Quem sabe assim ela não se distancia um pouco do livro? Sempre que ela está distante daquela obra,
Natasha parece mais tranqüila, mais viva.
Sento-me no sofá para ver o que passa na televisão. Se bem que, neste horário, acho que o melhor que
encontrarei serão programas infantis. Ia ser bom eu ter algo para ler, mas infelizmente não tenho nada para ler aqui.
Não há muito o que se fazer por aqui. Já estou cansado de pensar e não sei ao certo o que posso fazer para mudar as
coisas. Estou ficando paranóico? Não, eu não acho. Na verdade, para pessoas como eu, um pouco de paranóia é até
necessário, mas não cheguei a um ponto em que me sinto perseguido por tudo e todos. Já tenho experiência suficiente
para entender quando algo está errado e não preciso ficar duvidando de meu instinto. Aquele livro não é uma obra
normal. Eu tenho certeza absoluta disso.
A televisão não tem nada que consiga me manter interessado. Lembro-me muito pouco a respeito de minha
infância, mas não havia televisão naquela época, e essas besteirinhas que mostram às crianças de hoje, embora eu
admito serem curiosas e até engraçadas, realmente não me atraem nem um pouco. Eu acabo cochilando no sofá, após
mudar de canal algumas vezes.
...
Não sei quanto tempo permaneço adormecido, mas então sinto um toque suave em meu ombro. Os olhos se
abrem lentamente. “Marcos...?” É a voz de Natasha, que está logo adiante de mim, ajoelhada diante do sofá, e me
observando.
“Marcos, me desculpe por hoje mais cedo,” ela diz. “Acho que exagerei, né?”
Eu me sento no sofá, movendo-me lentamente. Fito seus olhos. “Não se preocupe, Tasha...”
“Desculpa. Acho que realmente estou meio obcecada com aquele livro. Vou tentar maneirar um pouco, tá?
Não queria ter gritado com você.” Ela parece estar meio triste, talvez arrependida. Uma reação estranha, se comparada
com o fervor com o qual ela defendeu o livro. Eu não sei o que pensar. Estou convencido de que o livro tem algo

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sinistro ligado a ele, mas talvez não tenha toda a influência sobre o leitor que eu imaginava ter. Não sei ao certo o que
pensar. É melhor esperar e observar antes de tomar qualquer conclusão.
“Esquece isso, Natasha. Acho que fui muito brusco também. Devia conversar com mais calma.” Eu tento
parecer calmo, despreocupado.
“Não, você só está preocupado comigo. Desculpe mesmo.” Ela senta-se ao meu lado no sofá.
“Tudo bem.” Meu olhar se encontra com o dela e tenho a impressão que ela pretende me beijar, apenas espera
que eu, como homem, tome a iniciativa. Prefiro que não, pelo menos não agora! Não estou com clima nem com a
mínima vontade para isso, então busco uma distração qualquer. “Que horas são?” Uma distração ridícula, admito, mas
serve para que eu desvie o olhar e busque o relógio da parede. “Nossa, são quase dez! Tasha, não quer ir à cidade
comigo? Preciso comprar algumas roupas, e você precisa ligar para sua mãe.”
Ela parece desanimada com a minha reação. Responde, com um tom de voz de reprovação. “Está bem... Vou
me trocar, espere aqui.” Então, Natasha se levanta e sai da sala, subindo as escadas e retornando a seu quarto. Eu
espero por uns quinze minutos, quando então ela desce. Veste calça jeans, uma blusa azul e pôs um pouco de
maquiagem, sem exageros. Carrega consigo a bolsa. Eu me levanto, estendendo a mão para ela e sorrindo: “Vamos?”
Ela segura minha mão e em seguida saímos da casa, indo em direção ao carro dela.
Por um lado, fico tranqüilo por ela estar mais calma, mas por outro, ainda penso muito no livro. Queria poder
entender latim o suficiente para ler aquilo. Que tipo de mensagem a obra realmente passa? Esta noite, quando ela
dormir, vou tentar pegar o livro. Quero ver com cuidado as anotações de Gottschalk e julgar com calma se devo ou
não destruí-lo, mesmo que isso possa custar nossa amizade, prefiro zelar pelo bem-estar dela. Além do mais, o que é
uma amizade com uma mortal quando sei que, cedo ou tarde, a imortalidade irá me separar dela? Não, não posso
pensar dessa maneira, não devo ser fatalista.
De repente, uma possibilidade diferente surge em minha mente. E se eu corresponder aos sentimentos dela?
Não poderia vencer a influência do livro? Entrando no carro, penso bem em nossos momentos juntos. Sempre que está
comigo, ela se esquece por completo da obra. E se eu tentasse distraí-la, se desse a ela algo para conforta-la, para
afasta-la da obra? Devo brincar com seus sentimentos dessa maneira? O quanto isso pode me custar?

Capítulo 18: Os Sinais


Conforme observo o pôr-do-sol, sentada à beira da piscina, com meus pés na água, fico apenas pensando no
quão estranho foi o dia de hoje. Depois da noite maravilhosa que tive, acordei mal-humorada, tendo mais um pesadelo
estranho. E meus sonhos antes disso estavam tão excitantes... Não me lembro deles direito, mas dormi tão bem, tão
relaxada, que me lembro de ter sonhos às vezes tranqüilos, às vezes prazerosos. Eu não me recordo dos eventos que vi,
nem do que me disseram em meus sonhos, mas me recordo de sentir-me bem, cheia de vida e paixão. E aí veio o
pesadelo, que não sai da minha cabeça...
Eu estava acorrentada e via alguém, um vulto não identificado, roubando algo de mim. Eu gritava e gritava e,
quanto mais o vulto se distanciava, levando consigo aquele pedaço de mim, mais dor e solidão eu sentia. Era uma
agonia estranha, indescritível. Eu sentia meu peito sangrar e estava vazia por dentro. Acordei desesperada, mas Marcos
estava lá, ao meu lado. Graças a Deus foi apenas um sonho, mas parecia tão real, a dor era tão verdadeira! Não posso
dizer com certeza se foi o pesadelo quem tirou meu humor, mas fiquei nervosa após aquilo. Eu estava irritadiça,
aborrecida. Quando Marcos tocou no assunto do livro, eu tentei me controlar, mas não consegui. Eu acabei me
exaltando. Por que será que todos se preocupam com este livro? Cris me colocou nesta enrascada por causa disso, os
seqüestradores estavam atrás dele, e agora Marcos está começando a se preocupar. Por quê?
Agora, olhando o pôr-do-sol, fico lembrando das palavras de Marcos no café da manhã, a respeito do
sobrenatural, de magia, de cultos. Isso ficou me atormentando o dia todo. A história do culto parece fantasiosa demais
e eu não acreditaria se não estivesse ocorrendo tanta coisa estranha ultimamente. Será que aquela história é real? Eu
fico lembrando dos meus próprios sonhos, do homem no espelho, dos símbolos espalhados nas páginas das Coletâneas
de Meinhard... Olho o céu alaranjado, sentindo uma brisa gostosa. Esse mundo não deve ser apenas o que vemos. Pode
existir algo oculto, não pode? Um ano atrás, eu acharia isso apenas um sonho, mas hoje em dia, especialmente desde
que tudo isso começou, não acho que possa ser apenas um pensamento maluco. Às vezes sinto coisas estranhas e
arrepios sem motivo. Normalmente, eu os ignoraria, como faria qualquer pessoa racional. Mas ultimamente, tenho
prestado atenção nesses sentimentos de medo sem motivo, na sensação de ser observada, nas horas em que notamos
que há “algo errado” mas nada parece acontecer. Será que todas essas sensações e premonições são falsas? Ou será
que pode haver algo muito real que as causa, mas não percebemos? Tenho às vezes a impressão que alguém me vigia e
me toca ou que uma pessoa invisível passa ao meu lado na rua. Aqui mesmo, sob o céu que lentamente escurece,
diante de uma paisagem tão natural, tão calma, às vezes sinto algo, como se espíritos estivessem logo adiante,
dançando em meio às árvores, na penumbra, onde não posso vê-los.
E, pensando nisso, eu me lembro que, na primeira vez que vi Marcos, eu senti algo. Senti mesmo, uma
sensação estranha, de medo. Eu estava paranóica, pensando na invasão de meu apartamento que havia ocorrido na
noite anterior, e imaginava que aquela sensação era apenas nervosismo ao ver um desconhecido diante de meu prédio.
Será que era? Será que não senti “algo mais” em Marcos, como se ele fosse de alguma forma especial?

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Mas não sei ao certo, pode ser que eu esteja pensando apenas em besteiras. Aprendi a confiar em Marcos e
talvez isso tenha me feito acreditar na história dele. Eu não acho que ele mentiu, não acho mesmo! Mas talvez ele
mesmo esteja iludido, acreditando em superstições. Não é? Se magia existisse, então por que ninguém conseguiria
provar sua existência? Fico confusa, perdida, ao tentar conciliar meu lado emocional e meu lado racional. Eu sinto que
há mais do que podemos ver, mas sei que esse sentimento é bobagem. E se eu pudesse conciliar sentimento e razão? O
que seria? Se eu tivesse a certeza de que há o inexplicável e admitisse isso racionalmente, então meu lado emocional
tentaria explica-lo. Eu iria querer saber mais, iria me aventurar para descobrir tudo aquilo que não sei. É a minha
natureza: estar sempre em busca de mais, do desconhecido. Por isso estou tão interessada nas Coletâneas, por causa da
possibilidade de serem profecias ou revelações reais. E, de repente, me surge uma questão que eu ainda não tinha
formulado... Será que é por isso que Cris está interessado em mim?
De qualquer forma, após a manhã de hoje, após ter ouvido aquilo tudo de Marcos e de ter brigado com ele, eu
me tranquei no quarto. Eu estava arrependida, mas também meu orgulho me impedia de descer e fazer as pazes
imediatamente. Eu resolvi me acalmar antes, então comecei a ler. Devo ter passado umas duas horas inteiras lendo as
Coletâneas, e ainda lembro bastante do conteúdo.
Meinhard continuou a descrever os sinais. Li o segundo, o terceiro, o quarto e o quinto sinal, mas ainda me
pergunto: sinais para o quê? O que viria ao fim de todos eles? Meinhard apenas diz que são os sinais da “revelação”,
mas interpreto isso como “apocalipse.” Pelo que pude perceber, são nove sinais, pois em alguns trechos o número
nove é repetido constantemente, como em “o terceiro dos nove sinais.” Pela quantidade de páginas que faltam, eu diria
que o livro deve terminar ao falar do último sinal, mas ainda não sei. Estou tão intrigada com o livro que não tenho
coragem de lê-lo fora de seqüência.
De qualquer forma, quando li os sinais, eu tive outra visão, desta vez do segundo sinal. De alguma forma, eu
me lembro das palavras principais...
“Então, eu vi o grande reino,
Reino construído em rocha e sangue,
Onde chamas e trevas se espalharam,
E vi que seus súditos entraram em guerra
Vi dois exércitos de pesadelos então,
Monstros ferindo monstros.
Garras e fogo chocaram-se por sete gerações mortais.
Dividido pelos Feudos que o formam,
Vi o reino decair.
Vi suas chamas apagarem-se.
Suas almas desaparecerem.
Então, vi o maior dos Lordes do Reino,
O Antigo de imenso poder.
Vi o Lorde derrotar seus rivais.
Mas, então, o filho ilegítimo retornou,
O 13o. Filho, o filho da Guerra.
Eu o vi, trazendo fogo e destruição em seu caminho.
E o Lorde tombou ante ele.
Este foi o segundo sinal.
O sinal de que o mal derrotado retornaria.”
Eu não sei como consigo lembrar-me tão perfeitamente das palavras, mas sei o que vi assim que terminei este
trecho. Ouvi gritos de dor, de agonia, espalhando-se por corredores escuros de uma caverna interminável. Um homem
gentil me levava por essa caverna e, ao lado dele, eu me sentia em paz, tranqüila, alheia ao sofrimento de milhões que
eram torturados ao meu redor. Não me recordo de suas feições, só sei que havia alguém ali. Então, caminhamos até um
grande salão, onde vi uma besta indescritível. Naquele grande salão, cercado por chamas, diante daquele ser sentado
em seu trono, dois exércitos guerreavam ferozmente. E os soldados desses exércitos, mal equipados e desprotegidos,
eram estripados e desmembrados por seus inimigos, caindo aos milhares e tornando o solo vermelho.
Quando penso nessa visão, me assusto com minha frieza. Enquanto aquela pessoa estava ao meu lado, toda a
dor, todas as cenas horríveis que presenciei, eram nada. Eu me sentia bem, intocável, superior a tudo aquilo. E, quando
penso no homem sentado no trono, no “13o. Filho”, fico mais perturbada ainda. Não vi seu rosto, mas sabia que não
era uma pessoa, mas sim alguma coisa diferente de um homem.
E eu continuei a ler. Os sinais indicavam outros eventos que pouco pude compreender, e nenhum deles eu
conseguia traçar um paralelo com eventos reais. O que levaria ao apocalipse então? De qualquer forma, logo em
seguida, eu comecei a cansar um pouco. Já estava calma, resolvi parar para pensar no que tinha feito mais cedo. Estava
muito arrependida por discutir com Marcos e finalmente resolvi descer. Foi quando o encontrei cochilando na sala.
Ele foi meio frio, mas depois acabamos saindo e indo para a cidade. Finalmente conversei com minha mãe,
por telefone. Já estou acostumada com os chiliques dela, mas hoje ela foi particularmente exagerada! Quando ela
soube que eu estava numa chácara em outra cidade, sozinha com um rapaz bonito, quase teve um troço, mas no fim

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acabou me dando umas palavrinhas de apoio, dizendo que eu andava muito solitária e uma aventurazinha dessas seria
boa para mim. Concordo, mas essa “aventura” começou mal, com invasão de domicílio, seqüestro e fugas. Só espero
que a partir de agora tudo continue a correr bem.
E então resolvemos passar um tempo na cidade, passeando e visitando algumas lojas. Comprei o biquíni que
estou usando agora, e Marcos comprou algumas roupas. Também comemos fora e fomos ao cinema. Marcos e eu
ficamos bem mais tranqüilos após um dia assim. Junto dele, sinto como se namorássemos, embora ele evite tocar no
assunto. Sei que ele ainda me evita, e acho que, assim que tudo isso terminar e tivermos que voltar às nossas
respectivas vidas, nós dois vamos acabar nos separando. Mas eu sei muito bem o que quero, e quero aproveitar
enquanto posso. Mesmo que no fim não dê certo, vou aproveitar minha estadia aqui e terei boas memórias para o
futuro. Até comprei mais camisinhas, para o caso de “rolar” alguma coisa como ontem à noite... Aliás, eu aqui na
piscina, com meu biquíni novo e aquele cara está fazendo o quê lá dentro? Ele estava fazendo ginástica agora há pouco
e disse que entraria um pouco, que logo voltaria para nadar, mas até agora nada...
Já está ficando escuro. Eu saio da piscina, pensando em acender as luzes da área externa, já que logo será
noite. Enquanto, caminho em direção à porta entre a cozinha e a área exterior, pego a toalha, que deixei sobre uma
cadeira de praia, e a enrolo em minha cintura, cobrindo a porção inferior do meu corpo. Quando estou na metade do
caminho para a cozinha, as luzes se acendem. Eu paro e espero, já sabendo que Marcos está vindo. Assim que ele vem
pela cozinha, eu já me preparo para dar uma bronca por causa de sua demora.
Eu levo as mãos às cinturas e me esforço para fingir descontentamento. Já estava pronta para dizer: “Que idéia
é essa de me deixar esperando, senhor Marcos?” Porém, noto que ele carrega algo nas mãos. Pratos? Ele os coloca
sobre a mesa da área externa, sorridente.
“Sente-se, Natasha, preparei algo para você!”
Eu fico boba. Ele preparou o jantar para mim? Nossa, é o primeiro que me faz uma surpresa dessas! Eu fico
sem jeito. Por isso ele estava demorando? Eu vou até a mesa, enquanto ele traz os talheres. “O que você estava
preparando?”
“Você vai ver!” Ele sorri. Está de sunga e camiseta, para combinar com minhas roupas de banho. Não preciso
nem dizer que acho que esta noite será ainda melhor do que a anterior! Fico sonhando acordada, esperando ele voltar
trazendo a comida. Porém, ao piscar meus olhos, volto a lembrar das palavras principais que revelam o terceiro sinal...
“E então, vi um tremor, sob solo sagrado.
E ergueu-se na terra uma grande fortaleza.
Ao mesmo tempo proteção e prisão.
Vi uma promessa de conhecimento e fartura
Que escondia um segredo sombrio.
Vi, sob seus corredores obscuros,
Segredos sombrios e gritos de dor.
Onde se ocultaria a chave.
E sob o qual seria posto um selo.
Este é o terceiro sinal.
É o surgimento da fortaleza.
A fortaleza que será invadida e derrubada,
Quando os tambores de guerra soarem.
E todo o conhecimento, toda a prosperidade
Não será nada, frente à tempestade
Que precede a Revelação.”
Meus olhos se abrem. Por que me lembrei disso agora? Marcos está diante de mim, colocando uma bela
macarronada sobre a mesa. O cheiro e a aparência estão divinos, mas ele não deixa de reparar em mim. “Tasha? Há
algo errado?”
“Ah... só uma tonteira repentina...” Eu levo minha mão à cabeça. “Devo ter pegado sol demais à tarde.”
“Está com dor de cabeça?”
“Não, não, já passou.” Eu sorrio. “É este o nosso jantar? Parece maravilhoso!”
Ele sorri. “Não terminei ainda. Comprei uma coisa na cidade para acompanhar. Espere aí!” Ele se afasta. Olho
a macarronada, um autêntico espaguete italiano, com bastante molho de tomate. Eu sabia que Marcos sabia cozinhar,
mas ele parece ser muito bom nisso! Será que aprendeu em suas viagens? Então, ele retorna com duas taças e uma
garrafa de vinho tinto. Um jantar romântico, ao pôr-do-sol, numa chácara beeeem longe de nossa cidade! Estou
adorando!
“Onde aprendeu a fazer uma macarronada tão deliciosa, Marcos?”
“Com uns amigos na Itália, há bastante tempo. Achei que ficaria ruim, pois há anos não fazia algo assim.”
...
Conversamos, comemos, rimos. Sinto-me tão bem! O vinho me deixa alegre, me sinto quente, feliz. Não bebi
muito: o que me deixa assim é Marcos. Ele sempre é tão gentil e cavalheiro! Eu fico à vontade perto dele, embora ele
continue meio distante. Marcos evitou qualquer intimidade comigo o dia todo, até aparecer com esta idéia de jantar,

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mas isso apenas me atrai mais. Estamos há tanto tempo aqui, conversando, nos divertindo, enquanto a lua e as estrelas
no céu acima embelezam toda a paisagem.
Assim que estamos satisfeitos, eu uso o guardanapo para limpar minha boca e me levanto, caminhando
lentamente, levando a taça de vinho, quase vazia, comigo. “Marcos, venha cá...”
Ele se levanta, está alegre, mais animado do que jamais o vi antes. Talvez seja influência do vinho, talvez seja
influência minha, quem sabe? Assim que ele está próximo, eu dou as costas a ele. “O que foi, Tasha?”
“Eu estou adorando passar meu tempo com você. Já estou achando uma benção quase ter sido seqüestrada,
sabia? Esses dias com você têm sido inesquecíveis.” Ele está tão próximo de mim, que posso sentir sua respiração.
Sinto o calor que vem dele. Então, dou um passo para trás, minhas costas tocam seu peito e pressiono meu corpo
contra o dele. Por reflexo, ou talvez desejo, ele envolve minha barriga com os braços. Estremeço com o toque e me
viro para encara-lo, sem afastar-me dele. Ele me olha, parece um tanto indeciso. Ah, Marcos... se ele não quisesse,
nem mesmo teria sido tão gentil, não teria me tocado, nem se aproximado tanto. Ele quer, mas o que ele teme? Eu o
beijo, e ele não mais resiste.
Nos beijamos, a princípio carinhosamente, um nos braços do outro, sem emitir uma única palavra. Mas há
também o calor do corpo que nos excita, tornando nossos beijos e carícias cada vez mais lascivos. Deixo a toalha
enrolada em minha cintura cair enquanto removo a camiseta de Marcos. Ao mesmo tempo, vou empurrando-o
sutilmente até a cadeira de praia ao lado da piscina, onde eu tinha deixado duas camisinhas sob minha blusa, para caso
algo acontecesse na piscina durante a tarde. Quando faço Marcos sentar-se, eu me sento sobre seu colo e continuo a
beija-lo. Sinto sua mão deslizar por minhas costas, tocando a alça do biquíni. Eu o ajudo a remover a parte superior de
minha roupa de banho, e prosseguimos, sob o luar, os corpos em atrito. As carícias continuam, sinto seus lábios
tocarem meus seios, beija-los. Suas mãos os tocam, os acariciam. Sinto-me tão viva, tão bem, como se os problemas
sumissem e estivéssemos à parte de todo o mundo. Minhas mãos deslizam pelo corpo dele, beijo seu pescoço e toco
seu peito. Podemos fazer o que quisermos, longe da sociedade, de olhares invejosos ou de nossos problemas
cotidianos, como se fosse uma pausa em nossas vidas, com o tempo imóvel. Então, dou um beijo demorado em sua
boca e começo a descer por seu corpo, segurando sua sunga e removendo-a lentamente. Afasto-me um pouco dele,
ponho-me em pé diante da cadeira. Ele toca minha cintura com ambas as mãos, removendo a parte inferior do biquíni.
Logo estamos nus, um sentindo o suor, o calor e o corpo do outro. E é tão bom...
...
Quando estou com ele, não vejo o tempo passar. Não sei quantas horas se passaram, mas me lembro de cada
ato, cada momento de prazer. Mas o importante é que o tempo passou. Nós entramos na casa, fomos ao quarto e
continuamos ali, e após uma noite que espero nunca esquecer, acabamos dormindo juntos novamente. No momento
em que perdi a consciência, ainda abraçada a ele, na cama, tudo escureceu.
...
Na escuridão, eu ainda me sinto bem. Em meus devaneios durante a inconsciência, me sinto embriagada de
prazer. Sinto-me feliz, livre, plena, como se flutuasse no nada eterno. Há alguém mais comigo, que me observa. Noto
seus olhos atentos sobre mim e, de repente, inexplicavelmente, sinto vergonha por estar nua. Não é mais a presença de
Marcos, é algo mais. Não vejo, está escuro, tenebroso. Começa a ficar frio! Eu me encolho, mas então uma voz gentil,
minha própria voz, sussurra para mim: “Você quer a verdade, não quer? Não é isso o que busca?” Sim! Eu quero! Mas
o que está havendo?
Minha voz volta a ser sussurrada. “Eu me sinto como eles...”
Eles quem?
“Como aqueles que foram aprisionados. Eu quero me libertar!”
Quem é você?
“Eu sou a verdade. Você pode me libertar. E quando fizer isso, estará plena realmente.”
O que devo fazer?
“Aceite-me! Aceite-me em si e sussurrarei todas as palavras que você deseja ouvir. Você se sente feliz agora?
Não está. Só saberá o que é a felicidade quando me aceitar. Aí entenderá o que é ser plena.”
Eu aceito.
“Você ainda não está pronta. Precisa continuar a ler. Não nota o frio? Há calor na leitura. Entenda que estou
próxima de você. No momento em que me aceitar, seremos uma só. Você e toda a verdade contida nas Coletâneas de
Meinhard.”
Sim, eu vou ler. Eu vou ler!
“Eu vou ler!” Eu desperto repetindo isto. Sinto o calor do corpo de Marcos ainda abraçado ao meu. Ele está
dormindo profundamente e não ouviu minhas palavras. De repente, não penso em mais nada a não ser no livro! Onde o
deixei? Onde?
Levanto-me da cama, ainda nua, e então tento me lembrar onde o pus. Sinto-o chamar por mim! Está em
minha mala! Eu corro para pegá-la! E, a cada passo, as lembranças do quarto sinal voltam à minha mente.
“E então, vi uma terra devastada,
Onde os mortos caminhavam,
Condenados, por toda a eternidade.

64
Lamentos eram proferidos constantemente
E senti um grande pesar.
Havia ódio ali, um ódio profundo.
Um ódio proporcionado pela derrota.
Vi então os fragmentos espalharem-se.
Fragmentos de Alma.
E ouvi os gritos do dragão.
E, no momento em que o Selo foi fechado,
A prisão foi erguida.
E os Nove Irmãos aprisionados em seus próprios lares.
E o dragão de nove cabeças foi arremessado
No poço eterno, que queima em fogo e enxofre.
E ali permaneceria trancado por milhares de anos,
Até o momento em que a prisão se rompesse.
Este é o quarto sinal,
O sinal de que a prisão se levantou.
Mas, quando a prisão rachar,
Quando o Selo for quebrado
E os urros do dragão forem ouvidos novamente,
Então o momento da Revelação estará próximo.”
Eu pego o livro, retirando-o da mala. Meus pensamentos estão confusos, parecem mover-se rápido demais
para serem acompanhados. Levanto-me, aperto o livro contra meu peito nu, sinto certa sensação de segurança
repentina, mas então, as palavras que anunciam o quinto sinal surgem em minha mente, mais vivas do que nunca.
“E então virá um tempo,
Em que os jovens se voltarão contra os adultos
E o mundo será consumido por guerras.
Irmão apunhalará irmão
E a inocência será consumida.
O sangue puro será derramado no solo sagrado
Eu vejo os sinais que virão,
E o Tempo da Discórdia será o quinto sinal.
Quando mesmo os inocentes serão vítimas da Luz.
A revelação estará próxima.”
Mesmo desperta, ainda sinto um olhar malicioso sobre mim. Estou nervosa, assustada. Que sensação é essa?
Por que estou assim? Para esconder minha própria nudez, puxo da mala a primeira camiseta folgada que eu acho, uma
camiseta masculina cinzenta velha minha, que gosto de usar em casa, e a uso para esconder minhas partes íntimas.
Então, saio correndo do quarto, como se tentasse fugir desse olhar.
Quando desço as escadas, estou ofegante, mas sinto-me estranhamente mais calma. O que foi isso que senti?
Era como um impulso, algo não natural. Por quê? Eu acendo a luz externa e saio, pela cozinha, para a área externa.
Sento-me à mesa onde mais cedo comemos o belo jantar que Marcos preparou. Ponho o livro sobre a mesa e toco meu
peito. O coração, disparado, começa a se acalmar.
Olho ao redor, mas tudo parece tranqüilo. Ignorando-se os grilos, há apenas silêncio. A noite está um tanto
quente, de forma que a temperatura não me incomoda, mesmo comigo vestindo apenas uma camiseta. Eu abro o livro
na página marcada, a última que li. Então, passo adiante a página e começo a ler o texto. Mais uma vez, é como se eu
já o conhecesse de antemão. Mas como? Isso me irrita. Como sei tanto? Eu começo a folhear as páginas, parando
apenas para fitar os símbolos nelas presentes, um a um. Sinto uma estranha sensação, um calafrio ao mesmo tempo
incômodo e prazeroso. Meu corpo treme por um instante. Toco meus seios e deslizo as mãos por minha barriga. Que
sensação é essa?
Meus olhos voltam-se novamente para a leitura. Esta parte eu não consigo recordar, como se ela não estivesse
já em minha mente. Eu a leio com cuidado, ainda observando os símbolos.
“A terra se partirá e as paredes da fortaleza se racharão.
Misturando-se aos urros do dragão, virão os gritos de guerra
Do exército de pesadelos que retorna ao paraíso.
Eu vejo agora o sexto sinal.
A Grande Guerra, a penúltima guerra.
CHORE
E os caminhos do Céu e do Inferno
Cruzarão-se uma vez mais.
Os céus chorarão fogo!
As águas tornar-se-ão sangue!

65
SINTA-ME
E os portões do Paraíso se quebrarão,
Diante da força das legiões infernais!
E a fortaleza ruirá,
Fazendo a terra tremer.
OUÇA-ME
E o Senhor da Guerra,
Pisará sobre o mundo sagrado.
E suas garras ferirão a terra
E os céus.
E os Arcanjos erguer-se-ão para confronta-lo.
ESTA É A VERDADE
E diante do Caos,
A Revelação estará próxima.”
SOU A VERDADE
O sexto sinal. Faltam apenas mais três e conhecerei todos eles. Sim, saberei toda a verdade. O que é a
revelação? O que o livro ensina? Eu quero saber! Eu continuo a folheá-lo, observando cada símbolo. A cada um deles,
é como se eu aprendesse algo mais, sem a necessidade de ler o texto. Não leio as palavras, mas sei seu conteúdo, como
se fosse um conhecimento instintivo, parte de mim. Eu entendo que os sinais ocorreram. Todos os nove. Mas quais são
os três últimos? Ouço minha própria voz ser sussurrada em meu ouvido. “Leia e irá compreender.” Então, após três
páginas, chego ao momento de conhecer o sétimo sinal.
“E abriu-se, entre as trevas e a luz,
O último portal.
EU VIREI
E vi, então, dois exércitos opostos,
Marchando um em direção ao outro.
Outra Grande Guerra, a última guerra,
Quando o reino das trevas será invadido
E o reino da luz será cercado.
ACEITA-ME
E o dragão, Lorde do Sangue,
Despertará, rugindo uma vez mais.
E, diante de seu grito de ódio,
Os dois exércitos entrarão em choque.
E EU VIREI
Ouvi o som de metal contra metal,
Ouvi os trovões no céu e os tremores na terra!
E um estrondo tão grande foi emitido,
Que mesmo os homens puderam senti-lo.
O MOMENTO
O sétimo sinal.
O prelúdio da Revelação.”
ESTÁ CHEGANDO
Sinto uma estranha euforia, sem um motivo aparente. Logo em seguida, uma tonteira repentina impede meu
progresso. Levo a mão ao rosto. Será sono? Minha mente está ativa, mas meu corpo está exausto. O dia hoje foi
cansativo. Eu quero ler, mas pareço não conseguir. Mas então ouço um som. Um passo? Marcos? Eu me viro, achando
ser Marcos, mas não é ele. Eu não tenho tempo de gritar, quando o homem tapa minha boca, pressionando um pano
umedecido e de forte odor contra meu rosto. Ele me puxa, tentando me imobilizar. Um segundo homem corre até o
local, pegando o livro que está sobre a mesa. É José, o caseiro. O que está havendo? O que eles querem?
O que me segura então sussurra em meu ouvido. “Calma, Natasha, não vamos fazer mal a você. Mas está na
hora de terminarmos de ler o livro.” Ele me puxa, meu braço dói. Tento morder sua mão, mas não consigo, por causa
do pano. José larga o livro por um instante para ajudar a me segurar. Sentindo o cheiro forte do pano umedecido,
começo a ficar mole, vou perdendo a consciência. Ele larga minha boca. Tento gritar, mas não consigo. Tudo vai
escurecendo lentamente...
“Não se preocupe,” minha voz sussurra em meus ouvidos. “Eles não nos farão mal. Eles apenas querem a
verdade, como você também quer.” No limite da consciência, noto me levarem até um carro, estacionado logo além do
portão da propriedade. “Não se preocupe,” minha voz fala novamente, mas então noto que ela, pouco a pouco, torna-se
mais masculina. “Eu ensinarei a eles muito mais do que desejam saber, eu prometo.” Então, tudo escurece, e sinto
alguém, um corpo quente com braços fortes, me abraçar nas trevas.

66
Capítulo 19: Primeira Revelação
O quarto está escuro, mas o calor e a fraca luz que passam pela pesada cortina indicam que o sol já está alto no
céu. Eu tive um sono mais pesado do que o normal esta noite. Fazia tempo que não dormia tão profundamente. Abro
os olhos lentamente, mas logo noto que estou sozinho na cama. “Natasha?” Eu me sento, olho ao redor, e noto que ela
não está no quarto. Olho o relógio de pulso dela, que está sobre o criado-mudo. São onze da manhã. Nossa!
Realmente, dormi demais hoje! Levanto-me, procuro minhas roupas, mas então me recordo que a última peça de roupa
que vesti ainda está lá fora, no mesmo local em que as jogamos ontem à noite. Ah, de novo eu acabei permitindo que
acontecesse, mas admito minha culpa desta vez. Queria tanto distraí-la e faze-la se sentir bem que não só não evitei,
como também encorajei. E, apesar da culpa, me sinto bem. Da primeira vez, eu estava tão preocupado com o dia
seguinte, com o que poderia acontecer, que acabei não notando o quanto é bom compartilhar o tempo com uma
mulher. Ainda não sei o que farei com esse relacionamento no futuro, mas por enquanto prefiro não pensar nisso,
senão vou acabar enlouquecendo. Sempre que penso, me julgo sujo, como se brincasse com os sentimentos dela.
Ela não está no banheiro. Estaria lá embaixo, talvez? Vou tomar um banho, vestir algo mais decente e procura-
la. Será que está lendo o livro? Estará na piscina? Ou talvez tomando café? Não importa agora. Preciso de um banho.
Tomamos banho juntos ontem, mas agora quero outro, para esfriar o corpo, para relaxar e esquecer um pouco tudo
isso.
Assim que ligo o chuveiro e a água morna cai sobre minha cabeça, começo a pensar um pouco mais nos
eventos de ontem. Como se a água limpasse as incertezas, as lembranças voltam claras. Ontem, logo que terminei de
fazer meus exercícios, eu subi para trocar de roupa. Natasha estava na piscina, e agora me lembro que entrei no quarto
dela para ver o livro. Não me lembro ao certo o que houve a seguir. Eu me lembro de tocar o livro e abri-lo? Mas... e
depois? Resolvi descer e tive a idéia do jantar. Preparei a macarronada para Natasha e peguei o vinho que tinha
comprado pensando usar numa oportunidade como aquela. Mas o que aconteceu quando toquei o livro? Não me
recordo. Eu me lembro de abri-lo e só...
Saio do banho, ainda pensativo, mas paro e olho minha barba no espelho. Não a cortei ontem e começa a
aparecer. Eu devia tê-la raspado antes do banho e não estou lá com muita vontade de fazer a barba agora. Melhor
deixar para mais tarde. Agora, preciso me vestir e procurar Natasha. A casa está silenciosa demais. Escolho uma
bermuda e uma camiseta e desço, descalço mesmo, procurando por ela. Nem sinal de Natasha na cozinha ou na sala,
então talvez esteja lá fora.
Chegando à porta da cozinha para fora, noto que está apenas encostada, e que as luzes externas estão acesas.
Estranho, eu jurei tê-las apagado quando entramos ontem. Procuro por Natasha, mas não a encontro. Será que ela saiu?
Vou à garagem, mas o carro dela está lá. Estaria passeando pelas redondezas? Acho difícil. O livro! O livro está no
quarto? Eu corro de volta para dentro, subo as escadas e adentro no quarto. Abro a cortina, dissipando as sombras que
ainda o obscureciam, e então procuro pelas Coletâneas de Meinhard. Nada! Será que ela saiu para ler? Por que deixar a
propriedade apenas por causa disso?
Estou preocupado. O que pode ter acontecido? A última vez que a vi, ela estava dormindo ao meu lado!
Lembro-me do que Cláudio disse ao telefone. Os seqüestradores poderiam ter descoberto este lugar? Será que
estiveram aqui??? Merda! Merda! Então, ouço um som. O portão está sendo aberto. Eu desço correndo e abro a porta
da frente. Natasha? Não, não é ela, mas José. Ele não viria só amanhã? Mas amanhã é domingo, talvez por isso tenha
aparecido um dia antes do normal. O carro dele está parado em frente ao portão e um outro homem está com ele.
Cláudio? É Cláudio quem está com ele! Ele não estava em São Paulo?
Corro até eles. Cláudio está com o rosto um tanto inchado, como se tivesse sofrido uma pancada forte. “O que
está fazendo aqui, Cláudio?” O encaro, um tanto sério, mas ele parece calmo.
“Calma, Helmfrid. Eu vim para Araçatuba depois que invadiram o apartamento do Sr. Cristiano. Cheguei
ontem à tarde. Tínhamos que ter certeza que os seqüestradores não iam chegar até Natasha a tempo. Fique calmo!”
“Mas Natasha desapareceu na última noite! Não consigo encontra-la!”
“Não se preocupe,” Cláudio diz, passando por mim e caminhando, com uma tranqüilidade irritante, em direção
à casa. “Cristiano mandou busca-la. Ela está segura!”
“Por que não me avisaram?” Eu me viro para fita-lo, acompanhando-o com o olhar. Ele pára, de costas para
mim.
“Estávamos com pressa, você estava dormindo. Mas logo irá vê-la, não se preocupe.” Ele se vira, ainda muito
calmo para meu gosto, calmo demais para quem devia estar com tanta pressa para tirar Natasha daqui.
“Mentira!” Eu avanço sobre ele, agarro-o pelo colarinho do terno, puxando-o para próximo de mim, forçando-
o a me encarar. “Ela não ia sair daqui sem mim! Muito menos sairia sem ao menos me avisar! O que vocês estão
planejando?”
“Nada, seu idiota!” Ele me empurra para trás. Isso só me deixa mais nervoso. “Seu idiota paranóico, as
pessoas com quem estamos lidando são perigosas demais! Nós pesquisamos sobre elas! Você sabe quem diabos é
Abiram Abednego?”
“Não. O nome não significa nada para mim.”

67
“É porque você saiu da Europa há muito tempo. Ele ganhou certa fama na Europa oriental e na Grécia a partir
da década de 70.”
“Quem é ele?”
“Lembra-se do líder dos seqüestradores? Era ele. O desgraçado veio pessoalmente para o Brasil atrás desse
livro! Nós descobrimos o nome dele no registro do hotel onde ele estava. Aí, resolvemos descobrir mais e acabamos
encontrando muito mais do que queríamos.”
“Como assim?” Eu seguro um pouco minha raiva. Isso parece muito sério.
“Ele é judeu, nasceu em 1908 na Polônia. Viveu num gueto a maior parte da vida. Tinha família e era,
basicamente, uma pessoa normal. Pelo menos é o que as histórias contam. Sabemos muito pouco sobre a vida dele
nessa época, pois ele tinha um outro nome.”
“1908? Ele parecia ter uns 40 anos, não 90!”
“Deixe-me terminar! Em 1942, Abiram, sua mulher e seus dois filhos foram presos pela polícia alemã e
conduzidos a um campo de concentração. Auschwitz, Marcos! O desgraçado foi parar em Auschwitz! Ninguém tem a
menor idéia do que aconteceu lá com ele, mas a família dele morreu ali e ele saiu totalmente mudado. Segundo as
histórias que rolam entre alguns grupos de ocultismo, e tenha em mente que não são histórias confiáveis, ele escapou
do campo com as próprias mãos, dizimando uma dezena de soldados alemães.”
“Ele não me parecia ser tão durão assim.”
“Não sabemos ao certo. Como eu disse, são só histórias. Depois da guerra, Abiram adotou seu nome atual e
passou a servir num grupo chamado o Triângulo de Aziz.”
“E o que é isso?”
“Um culto, Marcos, como aquele que desmontamos em Belo Horizonte, mas ainda pior. Ninguém que não seja
do Triângulo pode dizer com certeza, mas histórias não faltam. Pesquisamos o nome do Triângulo com a Amanhecer
grega. Falam que os cultistas do Triângulo veneram um deus-coisa chamado Abla-Aziz, que sacrificam pessoas para
ele. Estão envolvidos com a alta sociedade, influenciam tráfico e prostituição e roubam crianças para inicia-las no
culto. Você sabe o que os cultistas de Aziz acreditam sobre seu deus? Falam que traz prosperidade, mas exige sangue e
escravidão em troca! Abla-Aziz, o Senhor do Trono de Espinhos!”
“Que merda de culto é esse? Como ninguém ainda não acabou com esse bando de filhas da puta?”
“Eles são poderosos e sutis, Marcos! Não é como em Belo Horizonte! Eles sabem esconder muito bem seus
passos. Acredite, a lista de inimigos do culto é imensa, mas ele sobrevive desde o século XI! O pior é que Abiram se
tornou o cabeça do culto por volta de 1970. Ninguém sabe com exatidão quando e como ele fez, mas ele logo se
tornou o preferido de Abla-Aziz.”
“Então, ele é importante e resolveu cuidar do caso pessoalmente...”
“Isso é para você entender a importância do livro! Abiram é um fanático por ocultismo e magia. Fez muitos
inimigos entre os feiticeiros gregos, alemães e israelenses. O Triângulo é famoso por roubar obras de ocultismo e eu
não duvido que Abiram seja uma das mentes mais brilhantes em magia negra no mundo. Nos últimos dias, ele escapou
de uma tentativa nossa de elimina-lo. A polícia encontrou o corpo dependurado, estripado, cheio de ferimentos e
marcas de tortura, dentro de um círculo de velas. Depois, o desgraçado aparece pessoalmente no apartamento de
Cristiano e consegue me subjugar. Ele está fora do território dele, só isso que o impediu até agora de conseguir o que
queria!”
“E ele aparece em espelhos,” eu murmuro, me lembrando que, na viagem para Araçatuba, Natasha disse tê-lo
visto aparecer no espelho retrovisor do carro.
“O quê?”
“Nada. O tal Abiram é problema de vocês. Eu quero saber a respeito de Natasha! Agora, onde está ela? Eu
quero vê-la agora mesmo!”
Eu fico encarando-o. Cláudio tenta evitar responder, pensa por alguns instantes. “Não, você vai ficar aqui!
Vamos esperar Abiram aparecer e tentar pegá-lo, entendeu?”
Eu ergo o tom de voz. “Abiram que se foda! Entreguem o livro para ele logo! Eu só quero saber se ela está
bem! Agora, me diga onde ela está!”
“Você vai ficar AQUI!”. Cláudio também ergue a voz, encosta o dedo indicador em meu peito. “Entendeu?
Isso são ordens de Cristiano!”
“Cristiano?” Minha paciência se esgota. Fecho o punho, deixo que a emoção me guie. Eu grito: “Que o
Cristiano se foda junto com Abiram!!!” E então, atinjo o rosto de Cláudio com um soco. Cláudio é grande e forte, até
mesmo maior do que eu, mas isso não é nada. Ele é só mortal. Eu sou imortal, e nenhum mortalzinho de merda vai me
dizer o que fazer! Eu posso quebrar seus ossos se quiser. Ele cambaleia para trás, perdendo o equilíbrio. Eu preparo
um outro golpe com o outro punho, dou um passo à frente, antes mesmo que Cláudio comece a se recuperar do
primeiro ataque. Mas então, noto, na periferia da visão, José me atacar. Eu tento me virar, mas é tarde. Um golpe de
forte impacto, usando alguma ferramenta dura, me atinge na nuca. Eu caio, atordoado, tento me apoiar para reduzir o
impacto da queda. Antes que possa me levantar, outro golpe de José me atinge na nuca, um golpe com a coronha de
um revólver. A visão escurece...
...

68
Tudo está escuro... sinto uma dor muito forte na cabeça... Não consigo me mover... Pensamentos vêm e voltam
em minha cabeça. Por algum motivo, a inconsciência me traz lembranças de ontem, como se os impactos despertassem
algo que estava simplesmente bloqueado em minha mente...
Eu me lembro de estar no quarto de Natasha, diante do livro. Eu o abro e folheio, começando pelas últimas
páginas. Não há nenhuma anotação de Gottschalk, nem nada que eu consiga compreender. Volto um pouco as páginas,
até chegar a uma em que está a última anotação dele. “Eu não posso prosseguir mais. Sei que, se virar a página, vou
perder tudo. Desde que descobri o verdadeiro sentido do livro, ele tem estado cada vez mais próximo. Eu estudei,
pesquisei, busquei ao máximo vence-lo, mas agora sei que, sozinho, não posso continuar. Esse deve ser um de meus
raros momentos de plena lucidez, pois ele não está guiando minhas mãos. Li meu diário, ele escreveu muitas mentiras
ali, usando minhas mãos. Meinhard é uma mentira. Meinhard nunca existiu!”
E então, no instante em que terminei de ler aquilo, pensei em destruir o livro, queima-lo, mas foi naquele
instante que ouvi minha voz, sussurrando em meu próprio ouvido. “O livro é inofensivo! Gottschalk era apenas um
tolo, um louco paranóico! Você não é um louco paranóico como ele! Você sabe que as ilusões de Gottschalk são
apenas mentiras em que ele próprio acreditava.”
Naquele momento, eu larguei o livro. Eu simplesmente o larguei, e minha voz me disse: “Natasha está lá
embaixo, à sua espera. Você está aqui para protege-la. Você sabe que ela é a única coisa que importa aqui. Fique ao
lado dela. É o que você mais deseja.”
...
Meus olhos se abrem, lentamente. Estou sentado, os braços estão imobilizados, atrás do corpo, presos à
cadeira. As pernas e braços estão amarrados, e também sinto meu peito ser apertado por cordas resistentes, que
imobilizam tronco e braços e os prendem à cadeira. Por um instante, a mente está confusa, tentando se localizar, mas
logo percebo que estou na sala de estar. Diante de mim está José, sentado no sofá. Atrás dele, há o relógio na parede. É
quase uma da tarde! Eu estive inconsciente por mais de uma hora! Tento forçar as cordas, mas meu corpo está fraco,
mole. A cabeça está pesada, e os pensamentos vêm lentos, com dificuldade. Sinto uma leve dor no braço, como se
tivessem enfiado uma agulha em mim.
“Cláudio foi ver Natasha, mas me pediu para vigiar você e esclarecer algumas coisas.”
É difícil manter a cabeça erguida. Parece que o corpo pesa uma tonelada. Eu tento romper as cordas
novamente, faço força, mas o corpo não obedece. “Não vai conseguir. Eu te dei uma injeção para você ficar manso por
um tempo. Vou reaplica-la a cada duas horas, enquanto for preciso. Assim você coopera e permanece aqui.”
“Por quê?”
“Por que precisamos de Natasha. Não queremos que você atrapalhe logo agora que ela está tão perto de
terminar o livro.”
“O que há... de não importante... no livro?” Eu falo com certa dificuldade. Está difícil até mesmo respirar.
“Conhecimento. O livro é como uma mina de ouro para os estudiosos. Sabemos de muitas coisas nesse mundo,
Marcos, muitas coisas mesmo. Você sabe que você não é o único com dons especiais! Ao longo de séculos, a
Fundação Amanhecer tem reunido informações sobre tudo o que pôde. Tivemos os maiores filósofos, ocultistas e
cientistas entre nós, sempre buscamos as verdades ocultas deste mundo. Nossas bibliotecas estão por toda parte,
contendo várias lendas, relatos, teorias e descobertas. Sabemos que há não só abominações como você ali fora, como
também outras coisas. Você sabe muito bem do que falo. Você já viu os mortos que andam, os espíritos inquietos, e
até homens que se tornam animais selvagens. E muitas dessas, ao contrário de você, não estão sozinhas, mas sim se
espalham pelo mundo, tendo suas próprias leis e sua própria sociedade oculta.”
“Aonde... quer chegar...?”
“Calma! Embora estejamos longe de ter uma idéia plena sobre a real face do mundo, ainda que seja difícil
separar mito do fato, fantasia de realidade, nós sabemos muito sobre muita coisa. Nós entendemos pelo menos parte da
verdade. Há, porém, um assunto cujas certezas são poucas. Nós podemos investigar, catalogar e vigiar o que ocorre na
Terra, Marcos, mas não há que ocorre além dele. Aquilo que existe além, só podemos teorizar, não testemunhar. Você
sabe do que falo?”
“Céu? Inferno? Vida... e morte?”
“Exatamente! Existem milhares de religiões pelo mundo afora, todas com alguns pontos comuns e diversas
contradições. Não sabemos realmente sobre as origens das coisas, sobre o além-vida ou a razão da existência! São
perguntas que só podiam ser filosofadas, discutidas por mortais e entre mortais. Mesmo os ocultistas mais sábios
jamais compartilharam as respostas para elas, e muitos precisam arriscar a vida e a alma para encontrar mesmo os
menores pedaços da verdade. O livro, Marcos, se tornou a chave! As Coletâneas de Meinhard trazem uma visão
brilhante sobre isso!”
“Como assim?”
“Você, Cláudio e Cristiano estiveram envolvidos num caso de um culto na década de 80, lembra-se? Os livros
do culto foram confiscados por nós. Cristiano é brilhante, Marcos, simplesmente brilhante! Por isso elevou-se tão
rápido e tomou um lugar de destaque na Fundação Amanhecer brasileira! Entre os livros, ele encontrou uma cópia
incompleta das Coletâneas e a estudou. Ele notou que o livro tinha algum valor e tentou descobrir mais. Acabamos
chegando a Gottschalk... Ou, mais importante, ao diário de Gottschalk!”

69
“O quê?” Imediatamente, lembrei-me do que li nas Coletâneas. “Ele escreveu muitas mentiras em meu
diário”, ali dizia.
“Gottschalk era um ocultista brilhante. Os nazistas o forçaram a trabalhar no estudo de livros antigos de
ocultismo. Sua obra favorita era as Coletâneas, mas ele só conseguiu estuda-las com calma após a Segunda Guerra
Mundial, quando fugiu para o Brasil. Ele não era como Natasha, uma ignorante nos caminhos do sobrenatural. Ele
pôde compreender facilmente que lidava com algo de outro mundo!”
Eu permaneço calado, apenas ouvindo.
“Ele tinha visões, conforme avançava a leitura, e passou aos poucos a compreender os símbolos espalhados
pelo livro. Gottschalk anotou cada significado, cada visão, em seu diário, mas também fez estudos paralelos, reunindo
nomes e fatos, tentando desvendar as verdades e mentiras do livro. O resultado foi surpreendente. O livro não falava
apenas de profecias, como se acreditava. Não eram apenas metáforas sobre um futuro apocalíptico. Nada disso! São o
passado, Marcos! Você pode compreender o que realmente ocorre no mundo?”
“Não estou entendendo...”
“Estou dizendo que, mesmo aos olhos do sobrenatural, há muita coisa que não é vista, Marcos. Coisas que
nem você, nem os maiores feiticeiros, nem as criaturas da noite, poderiam presenciar. Há uma guerra lá fora, Marcos,
algo antigo, mais antigo que o tempo em si! Imagine exércitos colidindo e digladiando, sangue sendo derramado
constantemente, lubrificando toda a criação para mantê-la viva. Pense em milhares de seres lutando, se matando,
coletando almas para seus exércitos, sem que podemos ver! Podemos às vezes encontrar cultistas servindo um
demônio menor ou santos realizando milagres, mas não vemos a figura maior, não conseguimos presenciar o grande
conflito.”
“Qualquer Bíblia fala a mesma coisa, idiota...” Eu tento erguer a voz, mas ainda assim sai muito fraca.
“Sim, fala, é verdade, mas não é a guerra que é importante. É o que há por trás dela. Nunca parou para pensar
no sentido das coisas? Vida, morte, a própria existência? E se pudéssemos descobrir isso através desses seres? Eles
jamais nos falariam, mas este livro pode significar uma maneira alternativa de descobrirmos. O que é Deus? O que
quer de nós? O que é a alma? O que é a eternidade? O que há além deste mundo? Para tais perguntas, até hoje, todas as
respostas foram incompletas ou insatisfatórias!”
“Não estão... tentando ir... longe demais?”
“E o que é ‘ir longe demais’, Marcos? Somos ignorantes e insignificantes diante do universo, mas podemos
nos tornar mais! Conhecimento é a chave! Enquanto estivermos em busca dele, jamais estaremos indo ‘longe demais’.
A ciência progrediu graças à busca por conhecimento! A humanidade avançou graças à sua tentativa de adquirir
respostas!”
“E Adão e Eva cometeram o pecado original... por quererem ser iguais a Deus,” eu completo. “Talvez isso
seja... uma metáfora do que iremos causar... se formos longe demais.”
“Essa é a desculpa dos covardes. Na verdade, muitos outros da Amanhecer nos acham loucos por estarmos
atrás disto com tanto afinco. Cristiano tem influência o suficiente para cala-los e para continuarmos com nossa busca,
e iremos até o fim.”
“Mas... e Natasha? Por que a envolveram?”
“Ela apenas caiu como uma luva. Precisávamos de alguém para ler o livro. Na época de sua graduação na
faculdade, Natasha foi apontada pelo antigo Diretor do Capítulo de São Paulo como uma boa candidata a pesquisadora
da Fundação. Pouco depois, o diretor foi promovido a Mestre e mudou-se para a Alemanha. Cristiano assumiu seu
lugar e prometeu cuidar da moça.”
“Ela tem potencial, eu sei... Mas por que dar o livro a ela? Por que não outros, mais experientes?”
“Por que as Coletâneas não são um livro comum. O texto se comunica diretamente com seu leitor, através dos
símbolos espalhados pelo texto. Gottschalk descobriu que o conhecimento era transferido, que as visões e os
significados só eram claros quando se abria a mente para a verdade contida nos símbolos. Quanto mais conhecimento
e experiência com o sobrenatural se tem, mais resistente é a mente do estudioso a influências sobrenaturais, e por isso
o processo é ineficaz. Nós precisávamos de alguém inexperiente.”
“Mentirosos... vocês estão me escondendo algo...” Eu forço-me a erguer a cabeça e encara-lo.
“Por que pensa assim?” Ele fita meus olhos.
“Os comentários de Gottschalk mostram claramente... que o livro estava tendo influência... sobre ele...” Eu
respiro fundo, tento erguer a voz, tendo um moderado grau de sucesso. “Vocês falam do diário dele como sendo uma
obra genial, mas desmentem seus comentários escritos nas Coletâneas como se fossem loucura! Falam no livro dar
conhecimento, mas ele fala em ser manipulado e controlado! Gottschalk estava desesperado a ponto de se suicidar
antes que terminasse de ler o livro por completo!”
“Acalme-se, Helmfrid...”
“Seus últimos comentários no livro foram por volta de 1970. Ele se suicidou em 1972! Eu sei que foi por
causa do livro. Vai me dizer que não foi?”
“Acalme-se!”
“NÃO FOI?” Quase fico sem ar ao gritar. Respiro ofegante, tento reunir forças para romper as cordas que me
seguram...

70
José, ou seja lá qual for o verdadeiro nome do falso caseiro, tenta me responder: “O conhecimento e as visões
foram demais para ele. As últimas passagens em seu diário mostravam que ele estava claramente enlouquecendo.”
“E vocês querem usar Natasha para ler o livro, para passar o conhecimento a vocês, e depois irão abandona-la,
não é?”
“Com o antigo Diretor ausente, Cristiano acha que Natasha não é tão importante assim.”
“Filhos da puta...” Droga, meu corpo ainda está muito mole. Eu forço as cordas, sinto elas se apertarem mais e
mais contra meus pulsos e meu peito, mas ainda é muito pouco! Eu tento forçar a energia que corre através do meu
corpo, tento aumentar minha força, mas o remédio que me ministraram torna esse esforço extremamente árduo. Sinto
meu corpo se superar lentamente, se recuperando. Só preciso me concentrar mais um pouco!
“Sei que está apegado a ela, mas não devia ter se aproximado tanto em primeiro lugar. Seu trabalho era
protege-la de Abiram, só isso.”
Eu fito José nos olhos, sentindo meu corpo se fortalecer. “Eu falei que ia protege-la, não falei que seria só de
Abiram.”
“E protege-la significa transar com ela? Eu e um colega estivemos observando vocês. Aliás, quando a
levamos, durante a madrugada, ela ainda estava bem animada com a festinha dos dois ontem à noite.”
Estou com ódio. Como queria não estar dopado! Eu iria acabar com esse desgraçado, esse merdinha. Eu sinto
uma fúria não-natural me guiar, como não sentia há muitas décadas. Não tento me conter desta vez, ouço o som do
coração dele bater, como se me chamasse. Eu vou devorar a vida dele, me alimentar de sua carne, fodam-se as
conseqüências! Preciso chegar até Natasha logo! “Assim que eu sair daqui, vou matar cada um de vocês!” As cordas
começam a se romper.
“Comporte-se, Helmfrid.” Ele pega o revólver e aponta para minha testa, à queima-roupa. “Não sou idiota e
sei que você está tentando escapar. Não me force a puxar o gatilho! Você não iria morrer, mas ia levar um longo
tempo para se recuperar. O que pode fazer desacordado por alguns dias?”
“Vocês não podem me controlar para sempre. Eu não me importo mais se conhecem meus inimigos na
Europa! Mandem eles para cá!”, eu provoco, “De uma forma ou de outra, eu vou me vingar de vocês! Eu vou acabar
com cada um de vocês!”
“Não podemos controlar você? Você se esquece de Melissa, sua filha adotiva?”
O quê? Eles sabem??? Eu sempre tentei mantê-la escondida delas! O ódio cresce, mas minha mente se enche
de dúvidas. Não posso perder Melissa. “Filho da mãe!”
“Somos precavidos. Sabemos que o que pode acontecer a Natasha irá abala-lo, mas você ainda tem uma
pessoa querida no mundo. Não quer que nada aconteça a ela, não é? Não subestime nossa capacidade em reunir
informações. Cristiano não é um idiota.” José sorri discretamente.
Fazia muito, muito tempo que eu não sentia tanto ódio em minha vida. Não é a primeira vez que Cristiano me
trai, mas é a primeira que chega a esse extremo. Droga! Eu encaro José. Quando o vi pela primeira vez, achei que
fosse apenas um caseiro simpático e simplório, mas era um mentiroso sem escrúpulos. Você vai morrer, José. Eu vou
arrancar esse sorrisinho de sua boca!
“Agora, fique quieto”, José resmunga. “Fique quieto e durma!”.
Eu sinto ele pressionar o cano da arma em minha testa. Então, um estouro ecoa pela sala e uma nuvem
avermelhada se espalha. O sangue esparrama-se pela sala, sujando móveis, chão e a mim mesmo. José cai, sua cabeça
perfurada por uma única e certeira bala. Em minha raiva e letargia, não tinha notado que uma pessoa esgueirava-se
próxima e escutava toda a conversa. Viro minha cabeça lentamente, tentando identificar o homem que acaba de matar
José.
“Olá, Helmfrid,” Elias diz, exibindo um sorriso sarcástico no rosto e empunhando uma desert eagle. “Eu já
disse uma vez que sempre estou um passo à sua frente, não?”

Capítulo 20: Preparativos


Meus passos fazem barulho demais, há folhas demais no chão. O clima está quente, o sol está forte, mas o
vento é um tanto frio. Eu odeio fazer trabalho manual, mas como apenas eu e Andreas estamos aqui, não há outra
escolha. Levamos tábuas para forrar o chão logo adiante. Eu vou precisar de superfícies mais lisas que a terra para
fazer o rito. Assim que encontramos um local adequado, colocamos as tábuas no chão, dispostas lado a lado, formando
um assoalho rústico sobre o solo natural.
“Andreas,” eu chamo, abrindo um de meus livros na página correta. “Quero que entalhe isto sobre o assoalho.
Use minha adaga ritual e seja rápido. Temos menos de seis horas antes que o sol se ponha.” Eu mostro a ele o símbolo.
É um círculo de dois metros de diâmetro, preenchido por diversos símbolos feitos na língua divina, transcrita por
místicos católicos. Este livro não é como a maioria de meus tomos, não é magia negra. É teurgia.
Andreas começa seu trabalho, enquanto me afasto um pouco, de forma que o barulho que ele faz não distraia
minhas preparações para o segundo rito. Não tenho os preparativos corretos, mas preciso tentar. O segredo das artes
mágicas não está na fórmula, mas na força de vontade. Embora seja mais difícil, mais incerto, tentar algo sem os
rituais, ainda assim não é impossível. Eu fecho meus olhos, estendo o braço direito à frente do corpo, recito as palavras

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e tento concentrar-me. Não há os símbolos, nem o sangue, mas ainda assim eu posso. Só preciso entender, tocar aquela
parte de mim que ainda tem um pouco de divindade e fazer minha vontade sobrepujar as leis naturais. E, então, sinto
algo tocar os dedos de meu braço estendido. Um pequeno peso, tão leve que não me abala. Ouço um assobio. Meus
olhos se abrem, e vejo um pássaro repousar-se sobre minha mão. Sinto sua confusão, ele olha para os lados, assobia
timidamente. Eu aproximo a mão de meu rosto, o pássaro me fita, como se algo em mim sobrepujasse seus instintos.
“Eu preciso de um favor seu.” A troca de olhares é rápida.
Ponho minha outra mão sobre o pássaro, fecho meus olhos e então me sento no chão, de pernas cruzadas. “Eu
preciso de suas asas e seus olhos.” Sem abrir meus olhos eu estendo os braços à frente do corpo e abro as mãos,
liberando o animal. Sinto seu peso sumir no instante em que ele alça vôo. E então, vejo através de seus olhos. Sua
mente instintiva é completamente suprimida pela minha vontade. Meu corpo parece distante, não o sinto mais. Eu sou
o pássaro, e o pássaro nada mais é além de uma casca sob controle de minha vontade.
Vejo agora tudo sob uma nova perspectiva. Vejo pelas alturas, onde o sol parece mais forte e as plantas
parecem mais vivas. Noto os pequenos detalhes, as nuanças invisíveis para o olhar humano. Sinto forças que, como ser
humano, jamais perceberia: as forças elementais que guardam a Terra e mantém o mundo em movimento. Noto o fluir
da vida ao meu redor, como uma brisa suave que percorre o mundo e circunda todas as coisas. A sensibilidade animal,
não contaminada pela descrença humana, é muito maior. Vejo figuras se agruparem nas trevas, e percebo os raios de
luz que caem dos céus. Assim como noto as forças vitais e as energias naturais, também posso sentir algo negro,
distante, além do horizonte. A presença que senti durante todo este ano parece muito mais forte agora que minha
mente voa livre. Eu vôo por sobre as árvores e passo sobre o muro que limita uma propriedade rural. Então, a altitude
diminui, desço mais próximo ao solo, entre as árvores, até chegar ao parapeito de uma janela. Pouso ali.
É uma sala de estar, onde estão dois homens. Um é o tal Cláudio, com quem me defrontei no apartamento de
Cristiano. O outro eu desconheço, mas provavelmente deve ser um dos dois homens que a agenda apontava para vigiar
Helmfrid e Natasha. Os móveis foram movidos, deixando a sala vazia, e agora eles parecem estar preparando alguma
espécie de ritual. O homem desconhecido desenha um círculo no chão, enquanto Cláudio traz algumas caixas de
papelão, de conteúdo desconhecido. Eu assobio algumas vezes, tentando parecer natural, e então levanto vôo uma vez
mais.
Sobrevôo a casa, buscando a posição de mais pessoas. Então, chego à janela de um quarto, onde noto mais
alguém. Pouso no parapeito, mas a cortina está entreaberta, dificultando a visão. Os móveis da sala de estar foram
movidos para cá e uma pessoa, de costas, parece ler um livro ou agenda. Mesmo não podendo ver o rosto dessa
pessoa, eu sei que é Cristiano. Segundo Elias, ele saiu do hotel esta manhã e veio para cá. Não sei que livro ele lê.
Talvez sejam as Coletâneas, mas duvido. Ele não leria o livro sabendo dos riscos.
Mais uma vez, eu alço vôo, procurando melhor conhecer a propriedade. O quarto seguinte tem a janela de
madeira fechada, mas sinto algo ali dentro. Talvez devido à sensibilidade do pássaro, posso notar uma presença forte,
ruim, extremamente apreensiva. É algo negro, que envenena o ambiente e parece pulsar com malícia. Aumento a
altitude uma vez mais e ergo-me acima das árvores. É hora de abandonar o pássaro, antes que minha mente acostume-
se demais com o instinto animalesco, tornando difícil finalizar o rito.
Meus reais olhos se abrem, e o pássaro pousa ali perto. Eu ainda precisarei dele. Estou sentado novamente
sobre as folhas caídas. Ouço o som do trabalho de Andreas, que continua a entalhar o símbolo na madeira. Levanto-me
lentamente, sacudo a sujeira que se acumulou em minhas roupas. Odeio sujar um bom terno.
Caminho até Andreas. Devido ao braço quebrado, seu trabalho prossegue lentamente. Tudo bem, mesmo neste
ritmo, devemos terminar tudo em cerca de duas horas. E aí, poderemos esperar o desenrolar dos eventos. Cristiano está
preparando sua cartada final e quero descobrir tudo o que ele desvendar. Porém, meu objetivo maior é o livro. Assim
que tiver a chance, as Coletâneas de Meinhard serão minhas!
Eu volto ao nosso carro, que está escondido na mata, próximo à estrada de terra batida. Ali, pego mais material
que precisaremos mais tarde: velas, água límpida armazenada em tonéis e, principalmente, armas. Nossa maior sorte é
que Cristiano sequer desconfia que estamos aqui. Minha invasão em seu apartamento foi proveitosa. Quando soube
que eu tinha levado a agenda com o endereço do hotel onde ele estava, o maldito tomou todas as providencias para se
esconder. Ele tinha a vantagem de eu estar em São Paulo, sabia que levaria tempo até que eu chegasse até ele, mas eu
tinha enviado Elias com antecedência. Elias vigiou Cristiano por mim, seguiu seus passos. Estamos um passo à frente
dele, e eu terei minha desforra em breve.
A esta hora, Elias já deve ter dado um jeito em Helmfrid. Os atos do próprio Cristiano estão me favorecendo.
Ao descartar seu maior trunfo, o imortal, Cristiano me deu uma vantagem ainda maior. Ainda assim, estou
preocupado. Eu demorei a concluir o verdadeiro significado das Coletâneas. Ontem, usei todo o meu tempo livre
estudando minha versão incompleta e os símbolos que a garota tinha esboçado em suas anotações. Fico imaginando se
Cristiano realmente sabe em que tipo de situação está se envolvendo. Talvez ele saiba, mas será que se preparou
apropriadamente?
Assim que retorno ao local onde Andreas trabalha, deixo as coisas que trouxe no chão, pego uma segunda
adaga, pertencente a Elias, e ajudo meu servo a desenhar o símbolo. Assim iremos mais rápido. O sol está alto no céu.
Não fossem as árvores, estaria extremamente quente aqui. O trabalho é lento, cansativo. Mesmo não estando muito

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calor, eu suo um pouco. Andreas está nervoso, ainda quer descarregar a frustração de estar com o braço e a mandíbula
imobilizados. Hoje ele terá essa oportunidade.
...
O tempo passa. Pouco a pouco, o símbolo se torna pleno. Assim que terminarmos, ainda precisarei lavar-lo
com água pura, revesti-lo com cera de velas brancas e, o mais fundamental, realizar o cântico ritual. Levaremos horas
para tudo isso. Espero que o tempo seja suficiente.
Então, em meio a nosso trabalho árduo, ouço o som de passos na mata. Por precaução, pego uma das pistolas
desert eagle que trouxe e já coloco a outra mão no bolso, para o caso de eu ter de usar o Olho de Aziz. Duas pessoas se
aproximam. Mando que Andreas se afaste. Ele pega uma outra pistola e corre em outra direção, para cercar os recém-
chegados. Então, noto os dois homens. É muito bom vê-los. Até me atrevo a esboçar um sorriso.
Elias e Helmfrid estão vindo.

Capítulo 21: A Segunda Revelação


Escuridão.
“O momento está próximo. Você pode sentir? O mundo como conhecemos mudou. Pode sentir a sua
presença? Pode percebê-la arrastando-se pelas sombras, encobrindo cada canto obscuro deste mundo? Você sente,
como eu sinto. É impossível ignorar o que está acontecendo. Ele está caminhando entre nós.”
Meus olhos se abrem lentamente, sinto-me zonza, fraca. Está escuro, pouca luz passa pelas frestas da janela
fechada. Estou numa cama, um lençol fino me cobre. Está um tanto quente aqui, meio abafado. A porta está fechada.
Marcos? Não, não tem mais ninguém aqui. Eu estou me lembrando... José e um outro vieram e me atacaram. Eu
desmaiei, não lembro de mais nada. Minha cabeça dói um pouco... Levanto-me, tirando o lençol de cima do corpo.
Droga, ainda estou usando apenas a camiseta que vesti ontem à noite. Não sinto nada estranho no corpo, nenhuma dor.
Graças a Deus, acho que não se aproveitaram de mim.
O livro! Onde está o livro? A idéia de terem-no roubado me assusta. Noto uma forma sobre a mesinha ao lado
da cama. Fora isso, o quarto parece vazio. Eu apalpo a forma, e é um livro! Mas seriam as Coletâneas? Eu seguro o
livro e sinto uma certa calma, um alívio repentino. Então, procuro por um interruptor, encontrando-o perto da porta. A
luz se acende e observo as Coletâneas de Meinhard em minhas mãos. Graças a Deus! Mas porque não as levaram?
Porque deixaram o livro comigo? Eu aperto o livro contra meu peito, sentindo uma sensação reconfortante, mas logo
me recordo de minha situação, e me sinto insegura novamente.
Bato na porta, grito, tento de alguma forma chamar atenção. Nada, nenhuma resposta. O que está havendo? Eu
paro, observo o quarto. Há um círculo desenhado no chão, com vários símbolos estranhos, mas de estilo bem diferente
dos que estão no livro. O centro do círculo é coincide com o do quarto. O que será isso? Ouço barulho ali fora, passos,
vozes, som de objetos sendo arrastados. Volto a gritar, a bater na porta, mas me ignoram. Preciso sair daqui! Tenho
que sair daqui! Corro até a janela, bato nela, tento abri-la, força-la, mas está presa, trancada com cadeados. Olho o
quarto, procurando algo que possa me ajudar. Há a mesa, a cama, os lençóis, um travesseiro e mais nada. Comigo,
visto apenas a camiseta e carrego apenas o livro. Não tenho nenhuma ferramenta, nada que possa usar para tentar
quebrar o cadeado ou remover os parafusos da janela ou porta.
Sento-me na cama, respiro fundo. Deus, o que faço? Tenho vontade de chorar, mas seguro firme. Abaixo a
cabeça, respiro fundo e noto o livro em meu colo. “Não se preocupe,” minha voz sussurra em meus ouvidos. “Eles não
nos farão mal. Eles apenas querem a verdade, como você também quer. Eu vou ensinar a eles muito mais do que
desejam saber.” Sinto de repente um arrepio, novamente uma sensação ao mesmo tempo desagradável e prazerosa.
Meu corpo estremece, como se mãos me tocassem suavemente, deslizando sobre minha pele nua. Mas não há ninguém
ali, e logo a sensação desaparece. Eu me sinto muito mais calma, porém.
Puxo a mesa para perto e coloco o livro sobre ela. Abro-o. A luz do quarto está sobre mim, criando uma
sombra de minha cabeça que atrapalha a leitura, mas ainda assim prossigo. Faltam dois sinais, apenas dois sinais para
descobrir tudo. Eu vou descobrir! Eu olho as letras, as palavras, mas elas não me importam! Apenas os símbolos
importam! Viro as páginas, procurando o oitavo sinal, e então o encontro.
“E então, eu vi centenas lamentando.
A luz enfraqueceu-se,
As trevas cresceram.
DENTRO DE TI
E na penumbra de minha visão,
Notei uma forma aprisionada,
Ferida,
Quebrada.
Mas viva, ainda respirando,
Ainda sentindo o ódio e a fúria,
Ainda com o sangue pulsando e clamando por Guerra!
EU SINTO

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E ao sentir a prisão rachar-se,
A forma moveu-se!
E ouvi seu rugido vitorioso.
O rugido do dragão ecoou pelo Céu e pela Terra.
E o mundo chorou.
E este era o oitavo sinal,
Eu não pude vê-lo, mas pude ouvi-lo.
OUÇA-ME
O retorno do dragão,
O retorno da Guerra.
E percebi que aquele era o penúltimo sinal.
E apenas mais um aviso
Restava antes do fim.”
PREPARA-TE!
A leitura me traz lembranças estranhas, de meses atrás. Um dia, acordei ao ouvir um rugido. Acordei mesmo
ou essas lembranças são falsas? Não lembro. Não sei! O que é o dragão? O que é o Leviathan que traz a Guerra? Viro
a página, e noto que o livro está terminando. Há um longo texto à frente, distribuído por duas páginas e meia, mas
nenhuma das palavras me vêm com antecedência à mente. Isto é o que eu não sei, o que o livro não me ensinou. É a
revelação que tenho tanto esperado? É a verdade? Sinto uma certa euforia, mas também medo. Respiro fundo, fecho os
olhos, tomo coragem para ler. Por quê? Por que estou tão ansiosa?
“E então, meu coração sentiu um pesar imenso
Ao saber os oito sinais, ao entender
Como seriam todos os eventos
Que precederiam o fim.
Eu não quis mais ver,
VEJA
Não queria mais ouvir,
OUÇA
Nem mesmo queria saber mais a verdade.
SAIBA
Mas ainda assim, não pude fugir à maldição que carregava,
ACEITE
Eu precisava ver o último sinal.
E esta seria minha última visão.
Eu orei a Deus para não tê-la,
Mas o poder do demônio era maior.
NÃO RESISTA
E naquela noite, em meio a meu sono perturbado,
Eu vi.
Eu vi o momento final, a última visão,
O último sinal.
E havia uma grande escuridão,
Uma escuridão tão infinita quanto Deus,
Aprisionada pelo poder da luz.
Eu olhei para o abismo à minha frente
E sorri, aliviado, pois a escuridão
Não poderia nos alcançar.
ELA PODE
Mas percebi que ali estavam os 12 males.
A guerra, a dor, a obsessão, a insanidade,
A luxúria, a corrupção, a tirania, a fúria,
A tentação, o medo, a mentira, as Trevas.
E então ouvi os sons da guerra, vindos daquele abismo.
E então ouvi o rugido do dragão, ecoando dos céus.
E então, o abismo explodiu como um vulcão!
E fogo foi expelido, trazendo todos os males.
Meus gritos se perderam em meio aos gritos dos condenados
E uma risada doentia ecoou por toda a criação.
E vi, finalmente, o nono sinal.
REVELAÇÃO

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Vi o Arauto, rompendo as barreiras do abismo,
Adentrando no mundo dos homens.
E, quando pisou pela primeira vez
No mundo dos vivos,
Um tremor sacudiu o mundo todo.
E os céus tornaram-se sangue,
E choraram fogo.
A VERDADE ESTÁ EM VOCÊ
E com cada passo seu, sua presença se fez sentir,
Espalhando-se, como uma praga, por todos os cantos da criação.
E os céus se abriram, e as legiões aladas de Deus
Desceram à Terra, empunhando armas.
Mas a terra tremeu, e as portas do Inferno se quebraram.
E, diante do choque dos dois exércitos eternos,
A risada do Arauto ecoou.
O Arauto, o nono sinal,
O sinal que traz a Revelação!
LIBERTE-A
Quando o selo for quebrado,
Ele terá libertado todos os males presos no Inferno.
E não restará nada ao homem, além de chorar,
Diante de sua insignificância frente à criação.
Eu chorei ao ver o último sinal,
Pois nosso tempo nesse mundo estava acabando,
E eu nada podia fazer a não ser chorar.”
SACRIFIQUE-SE
...
De repente, tudo fica escuro. Estou novamente num vazio eterno, escuro mas aconchegante. Eu desmaiei? Eu
morri? Onde estou? Sinto-me leve, livre. Sinto tocarem meu rosto, carinhosamente. A mão invisível desliza por meu
corpo nu, toca meu seio, me deixa calma. Não vejo nada, mas sinto um corpo junto ao meu, me abraçando. Meu corpo
está mole, fraco, mas sinto tocarem-no, sinto prazer, eu abraço esse ser invisível, que me ama na escuridão.
“Você compreendeu tudo agora?” É a minha voz. Estou abraçando a mim mesma?
Não, não compreendi. O que é a verdade?
“Eu sou a verdade. Você estava comigo o tempo todo, mas eu precisei abrir seus olhos.”
O que é o Arauto? O que é o selo? A prisão?
“Você ainda não compreendeu? Tudo o que precisa fazer é me aceitar e vou responder a tudo. Você está presa,
sendo perseguida até por aqueles nos quais confiava. Eu estive ao seu lado este tempo todo. Eu sou Meinhard, sou
aquele que contém a verdade. E, com tudo o que sei, você terá todas as respostas e finalmente seus problemas terão um
fim. Todos os que a querem desejam essa verdade, Natasha. Se você a possuir, terá as respostas que todos desejam, e
estará livre.”
Eu quero as respostas.
“Eu ensinei muito a você. Ensinei-a a ler a Língua de Babel, ensinei-a sobre as guerras que ocorrem fora do
mundo dos homens. Agora é hora de você entender tudo. Abra seus olhos e me aceite em você.”
Eu aceito! Eu aceito! Eu quero a verdade mais do que tudo! Eu quero saber o que são as visões, o que é a
revelação! Quero entender tudo! Eu sinto a verdade tocar-me, acariciar-me, falar em meus ouvidos em tom gentil.
Preciso apenas abrir meus olhos e vê-la, entendê-la. E aí tudo isso terá fim.
Lentamente, eu abro os olhos. Uma imagem forma-se diante de mim. E de repente, vejo algo que está além da
minha compreensão, algo terrível, horrível... Dois olhos amarelos encaram os meus, suas pupilas queimam com ódio e
dor. Sinto chamas me envolvendo, ardendo em minha alma, causando um desconforto terrível, uma dor aguda. Meu
corpo é despedaçado. Uma risada ecoa. Eu fui enganada. Tudo escurece de uma vez por todas... e não há mais nada...
nada...
...

Capítulo 22: A Terceira Revelação


A noite se aproxima, e o céu acima está escurecendo. Não acredito que estou neste lugar, ainda mais com essas
pessoas! Porém, diante das circunstâncias, eu não tenho escolha. Neste exato momento, eu e Elias estamos pulando o
muro da casa de José. Por sorte, o muro não é alto, não chegando nem aos dois metros. Elias me salvou, disse que iria
me ajudar a salvar Natasha em troca do livro. Depois de tudo o que José me contou, Elias e seu mestre, Abiram, são o
menor dos meus problemas agora.
Elias nota minha arma. “Precisa mesmo trazer esse cabo de vassoura?”

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“Eu só preciso disso e nada mais.” E é verdade. À primeira vista, pode parecer ridículo, mas tenho certas
vantagens ao usar esse tipo de coisa. Além do mais, nunca fui bom de mira, e armas de fogo fazem barulho demais.
Qualquer coisa em minhas mãos é letal. Eu não preciso de armas de fogo. Meu corpo é uma arma. Só preciso liberar o
que tenho dentro de mim. “Me dê cobertura e não preciso me preocupar com nada.”
“Se está pedindo para que eu te dê cobertura, aí é que devia ficar preocupado.” Elias fala num tom sarcástico,
mas ele tem razão. Estou confiando num assassino para cuidar de minhas costas. Devo estar ficando louco. Ou
desesperado.
Isso tudo é loucura. Momentos atrás, eu falei com Abiram. O sujeito é frio como uma pedra, mas
extremamente inteligente. Foi capaz de me convencer que devo confiar nele. O cara é o demônio em pessoa, mas ainda
assim só quer o livro. Eu quero Natasha. Vamos ajudar um ao outro, desta vez. Eu não gosto disso, mas também não
tenho muita escolha.
“Tem certeza que aconteceu algo na casa?”, pergunto ao nos aproximarmos da janela da sala de estar. Por
sorte, ninguém vigiava o quintal, mas as luzes indicam que há pessoas dentro da casa. O céu acima já está mais escuro.
Em menos de cinco minutos, a noite terá caído, e o que quer que tenha que acontecer, acontecerá.
“Sim, nós pudemos sentir. Foi como uma explosão repentina. Algo muito forte que emanou e desapareceu
logo em seguida. E estou tendo um mau pressentimento.”
Chegando à janela, noto pessoas na sala. Apesar de terem fechado a cortina, há uma pequena abertura por
onde é possível ver o interior. Abaixamo-nos, apoiando na parede. É possível ouvir suas vozes, embora um tanto
baixas, mas eles claramente não se preocupam em esconder o que dizem. “Sr. Cristiano,” ouço a voz que parece ser de
Cláudio, “tem certeza que ela leu?”
“Sim,” Cristiano responde. “Eu percebi algo estranho ocorrendo no quarto. Quando olhei, ela estava caída,
inconsciente. Pedi a Rodrigo para traze-la aqui. Hoje é o dia, Cláudio! Há quantos anos estamos esperando por isto?
Vamos descobrir o que ‘Meinhard’ tem a nos dizer.”
Ouço sons de uma porta se abrindo. Uma terceira voz, desconhecida, pede ajuda para levar Natasha a um certo
“círculo” na sala de estar. Levanto-me um pouco, olhando através da fresta na cortina, e noto o homem carregando
Natasha, desacordada, nos braços. Ela veste apenas uma camiseta cinzenta e parece estar desacordada. O que fizeram
com ela? Penso em entrar agora mesmo, seguro o cabo de vassoura e dou sinal de que vou entrar, mas então Elias põe
a mão em meu ombro, me forçando a me abaixar. Sua força parece maior do que o físico indica. “Não faça isso!
Espere!”, ele murmura.
Eu me abaixo novamente, olhando Elias. “O que espera acontecer agora?”
“Algo me diz que ela terminou a leitura,” ele sussurra. Droga, se Elias estiver certo, então é tarde demais.
Droga! “Vamos esperar para ver,” ele murmura, “Além disso, quero ouvir o que irão conversar.” Ouço mais vozes
vindas da sala, e Elias se cala para ouvi-las. Não consigo acompanhar ao certo, mas presumo que Cristiano está
dizendo alguma coisa sobre se afastarem do círculo antes de despertarem Natasha.
Eu me levanto novamente, observo pela cortina. Cristiano e Cláudio estão afastados do círculo, e noto Cláudio
apontar uma pistola para o corpo desacordado de Natasha. Por quê? Cristiano, que mantém uma pistola guardada no
coldre do peito, carrega nas mãos as Coletâneas de Meinhard. Ele segura o livro com vigor, como se tivesse um
tesouro precioso em mãos. O terceiro homem se aproxima do círculo, então abre um vidrinho de remédio e faz
Natasha cheirar a substância contida. Logo em seguida, como que tomado por medo, o homem se afasta, retornando
para perto dos outros dois. Por que estão com tanto medo do círculo? Por que deixaram Natasha em seu interior?
Elias me puxa para que eu me abaixe novamente. No mesmo instante, ouço um gemido, seguido de um grito.
É Natasha! Ela desperta de uma vez, como se levasse um susto. “Eu vi! Oh, meu Deus! Eu vi!”, ela fala, em alemão.
“Ela falou grego?”, Elias pergunta, me olhando surpreso.
O quê? Confuso, eu balanço negativamente a cabeça.
“Como imaginei, então,” ele murmura. O que Elias quis dizer com isso?
Há silêncio na sala. Ouço uns gemidos de Natasha, os outros devem estar só observando-a. Aproveito para
perguntar a Elias o que foi que ele deduziu. “O que você descobriu?”
“Ela falou na língua divina! Cada um vai ouvi-la da maneira mais pessoal, ou seja, na língua com a qual se
sente mais confortável. Mas o estranho é que não deveríamos sequer perceber isso! Quando um demônio fala, apenas
entendemos, não ligamos isso a nenhuma língua. O significado é claro. Por estarmos percebendo-a em línguas
diferentes, talvez ela esteja falando a língua divina imperfeitamente.”
Eu ia perguntar algo mais a Elias, mas então ouço a voz de Cristiano. “Natasha, você está bem?” Eu me
levanto, olho novamente pela cortina.
Natasha se levanta, em movimentos letárgicos, como se o corpo estivesse sonolento e fraco. “Cris,” ela fala,
olhando assustada para Cristiano. O tom de voz é calmo, porém, como se a situação não a afetasse. “Eu vi, Cris... Eu
vi tudo... Nossa, foi incrível, majestoso!”. As primeiras palavras são ditas em alemão, mas conforme ela fala, pareço
ouvir novamente em português.
Elias murmura: “Ela continua falando na língua divina, mas está ficando mais natural...”

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Mais do que falar nessa tal língua aí, porém, eu sinto algo estranho. Ela está calma demais, e fala de uma
forma meio diferente... É como se não fosse Natasha falando. Não consigo dizer exatamente o que está errado, mas há
algo errado. Ela mudou, ou não é Natasha quem fala.
Cristiano dá um passo à frente, mas então pára e recua, sem deixar de fita-la. “O que você viu, Tasha?”
“Vi que já começou, Cris!”. Ela parece feliz. Lágrimas escorrem por sua face, como se chorasse de alegria.
Seu tom de voz eleva-se, mostrando um contentamento estranho. “Os sinais, os sinais já haviam se completado! Eu
posso senti-lo, pulsando, respirando, caminhando em algum canto do mundo!”
“O quê começou?” A pergunta é de Cristiano, mas é Cláudio quem pergunta a seguir: “O que foi que o livro
mostrou a você?”
“Vocês precisam conhecer primeiro o passado para entender. Há nove sinais. Quando o livro foi escrito,
apenas os quatro primeiros tinham se completado. Eu acreditei que as visões eram os sinais seguintes, mas não eram.
Eram apenas as Grandes Guerras.”
Cristiano mostra-se intrigado: “Que Grandes Guerras, Natasha?”
Nesse instante, Elias, totalmente surpreso, murmura algo: “Abla-Aziz nos falou de Grandes Guerras no
passado. Será que ela sabe detalhes?”
“Quando o livro foi escrito,” Natasha prossegue, “a terceira das Guerras havia terminado. Muitos acreditaram
que a Terceira Guerra traria os últimos cinco sinais, mas não trouxe! E por isso, o livro foi escrito para aguardar pelos
sinais que faltavam.”
“Não estou entendendo,” diz Cláudio, “pode ser mais clara?”
“Idiota!” Natasha fala com desprezo. “Preste mais atenção e entenderá! Estou dividindo este conhecimento
apenas porque é o que vocês realmente queriam, não? É um agradecimento! Agora escute bem... Vocês conhecem o
caos, a violência, o sangue derramado entre o Céu e o Inferno? Sabiam que, logo além deste mundo de carne e
fragilidade, há um confronto gigantesco e eterno entre forças opostas, que coletam as almas da humanidade para lutar
na guerra?”
“Sim, sabemos,” responde Cristiano.
“Não, vocês acreditam que sabem, mas não sabem nada! Desde os primórdios, este conflito manteve-se,
emitindo ecos furiosos por todo o mundo, influenciando os rumos da história humana. Porém, as batalhas sempre
foram ocultas, sutis, longe das vistas mortais. Enquanto vivíamos nossas vidas, não notávamos as forças em
andamento. Pequenas batalhas ocorrem diariamente, aqui e ali, e nem sempre resultam em violência ou hostilidade
aberta. É uma guerra de influências, de interesses, porém, houve momentos na história em que o conflito intensificou-
se, a ponto de explodir violentamente, tornando-se um conflito maior, uma grande guerra que deixa marcas e cicatrizes
por toda a Criação. Quando o livro foi escrito, a terceira grande guerra havia terminado. As visões de Meinhard nada
mais são do que descrições destas guerras.”
Cristiano então pede: “Pode nos falar mais sobre estas guerras?”
“Elas não teriam significado para você, Cristiano! O que você realmente deseja saber é sobre os sonhos, não é?
Sobre os pesadelos que o têm atormentado! Isso se refere aos sinais, não às guerras, embora ambos estejam
intimamente ligados.”
“Sim, você tinha mencionado esses sinais,” diz Cristiano, completando a pergunta em seguida: “Quais são
eles? O que significam?”
“Por milhares de anos, Cristiano, os senhores do Inferno estiveram aprisionados. Seus servos estavam livres e
continuaram os conflitos, mas os Grandes Lordes do Inferno permaneciam trancados em suas próprias terras,
incapazes de deixar o Inferno e influenciar diretamente o Reino da Carne. Desde que essa prisão foi erguida, temeu-se
o dia em que essas criaturas se libertariam. Lendas e profecias surgiram comentando sobre o dia em que um deles, o
Arauto, escaparia de sua prisão, abrindo o caminho para os demais! Especulou-se que, quando isso ocorresse, sua fúria
seria tão intensa, tão absolutamente poderosa, que se iniciaria a maior das guerras, a última grande batalha! Um
conflito tão grande e tão sangrento que levaria milênios até seu fim e, ao fim do mesmo, o mundo dos homens estaria
totalmente destruído. É dito que, num passado distante, houve um primeiro Armageddon, embora sua causa fosse
diferente. Essa guerra final causaria o segundo Armageddon.”
Cristiano murmura, hesitante: “Isto seria o apocalipse, então?”
“Não, o apocalipse já ocorreu, mas o Armageddon ainda ocorrerá. Vocês esquecem o que realmente significa
o apocalipse, não é mesmo? O apocalipse não é o fim!”
Elias parece preocupado, tenso. Eu sempre o vi confiante, sarcástico, mas agora ele parece surpreso, prestando
atenção nas palavras de Natasha. Não sei o que ele sabe, mas parece que o Triângulo de Aziz estava temendo esse tipo
de informação. Eu mesmo não sei o que pensar. Essa Natasha que fala não é a Natasha que conheci, ela parece ser
mais sábia, mais antiga, mais distante... mais fria... Ouvindo suas palavras, tento acreditar que são loucuras provocadas
pelo livro, não conhecimentos reais, mas algo em mim simplesmente sabe que isto não é apenas um delírio dela.
“Vejo que há silêncio aqui,” ela fala, “Será que minhas revelações os chocam? Vocês são facilmente
influenciáveis. Eu vou explicar a vocês o que foi o apocalipse. Os sinais o anunciaram! Eu vou revelar os sinais...”
Novamente, há silêncio.

77
“Há um livro, uma obra que está além da capacidade humana de entendimento. Chama-se o Codex Tenebrosu.
As palavras do Codex foram sussurradas nos ouvidos de Meinhard e ele pôde transcrevê-las. A versão completa das
Coletâneas é a única que contém essas passagens, e o verdadeiro valor do livro se revela nelas.”
Natasha gesticula algo no ar e fala com entusiasmo, enquanto todos se calam para ouvi-la. Ela fala como se
lesse um discurso, como se cada palavra já estivesse planejada, sem pausas ou tempo para pensar. “Eu vi o primeiro
sinal! Eu o vi com meus olhos! Ele significa a queda do dragão! O momento mais crítico do conflito eterno, quando
um dos regentes infernais caiu diante da espada de um dos Arcanjos! E naquele dia, eu me lembro dos urros de fúria e
dor do dragão, que atormentaram os sonhos da humanidade por semanas! Houve um clamor de vitória nos Céus, mas
este foi apenas o primeiro sinal!”
“E eu vi o segundo sinal! Vi uma terrível guerra nos Reinos do Fogo Eterno! E seus maiores demônios
combateram entre si pelo trono do dragão decapitado! Mas então surgiu o décimo terceiro Filho, o Filho da Guerra, o
sucessor do dragão! Com seu poder, ele dizimou o último dos Lordes que desejavam seu trono e ergueu o estandarte
do reino, clamando que haveria uma nova Guerra contra o Céu! Esse foi o segundo sinal!”
“Eu não pude ver o terceiro sinal, mas ele estava escrito com clareza! E nos Céus, uma grande fortaleza foi
construída, para guardar aquilo que não podia ser morto! E clamaram-na o centro do conhecimento, o símbolo da
grandeza do Éden! E a fortaleza, com paredes de rocha maciça, abrigou o símbolo da vitória. Mas nem mesmo os
maiores Arcanjos puderam perceber o verdadeiro e sinistro motivo para a construção da fortaleza! Este foi o terceiro
sinal!”
“Então, veio o quarto sinal! Uma vez mais, eu não o percebi, não pude vê-lo. Mas ali estava escrito, com
clareza: a prisão fora erguida, e os senhores do Inferno foram aprisionados em seus lares! Ainda assim, eles
estenderam suas garras além das grades de sua prisão e tocaram o mundo, e seus servos se espalharam, preparando
novas Guerras. O Selo que os trancou foi o quarto sinal!”
“Quando o livro foi escrito, o quinto sinal não havia surgido ainda, mas o Codex Tenebrosu já o revelava!
Seria o tempo da discórdia, quando os filhos se voltariam contra seus pais, quando houvesse guerra entre irmãos,
quando a humanidade se voltava contra si mesma! Quando os Céus chorassem pelas suas próprias falhas, aí sim viria o
quinto sinal! Infelizmente, eu não pude vê-lo. Mas hoje sinto que já aconteceu. Muitos imaginaram que as Cruzadas
seriam este sinal, mas estavam errados.”
“O sexto sinal então viria a seguir! O Inferno abriria à força os portões do Paraíso e suas legiões atacariam as
cidades dos anjos! Sangue celestial seria derramado, e as almas dos Condenados seriam levadas ao Paraíso, para que o
devastassem com a fúria acumulada por séculos de danação! Diante da fúria infernal, a grande fortaleza celeste seria
invadida! Novamente, eu não pude ver o sinal, pois ele é posterior ao livro, mas sei que já aconteceu. Muitos
imaginaram que a Terceira Guerra seria este sinal, mas estavam errados. Uma vez mais, as aparências enganaram. Foi
por isso que Meinhard foi procurado”.
“E então, haveria retaliação, e este seria o sétimo sinal! As forças celestes invadiriam o Inferno, e o sangue
celeste lavaria as planícies infernais! Infelizmente, pouco foi escrito e pouco se sabe sobre este sinal, e eu não pude vê-
lo também, mas sei que foi há pouco tempo! Pois os dois últimos sinais ocorreriam logo em seguida!”
“E o oitavo sinal seria invisível, imperceptível a todos menos aos aprisionados. A prisão se romperia, as grades
cairiam! Os governantes do Inferno seriam finalmente libertados, e o uivo do dragão derrotado seria ouvido
novamente, ecoando por todos os cantos da criação! Vocês devem se lembrar, não? Vocês podem tê-lo ouvido! Eu
ouvi! Eu pude ouvi-lo, mas havia esquecido até que o livro abriu meus olhos! Foi em meus sonhos, há meses atrás. O
uivo ecoou e me acordou, mas eu não conseguia lembrar-me de meu pesadelo!”
Há então uma pausa. As pessoas se entreolham. Eu me abaixo para evitar que me vejam. Cristiano toma a
frente e fala: “Eu tive sonho, sim. Eu vi uma tempestade de fogo. Eu me lembro claramente, mas... e o último sinal?
Você disse que haveria um nono sinal!”
Natasha ri um pouco. “Vocês não sentem? Não percebem mesmo? A aura que se espalha? No momento em
que despertei, ao fim do livro, eu pude sentir. Foi graças a isso que percebi que todos os sinais haviam ocorrido.
Arrependo-me de não ter visto os últimos sinais, mas me regozijo em saber que Ele está livre. O Arauto... o Arauto
está aqui! O primeiro dos governantes do Inferno pisou neste mundo, está abrindo caminho para os demais! Os
exércitos das trevas e da luz estão se preparando! É a calmaria que precede a tempestade! O apocalipse aconteceu, e
vocês sequer puderam percebê-lo. Agora, porém, virá o Armageddon...”
Elias murmura algo. “Como Aziz nos contou. O Arauto está na Terra...” Será que Elias sabia disso tudo? Eu
não tenho tempo de perguntar mais, pois ouço Cristiano falar e volto a observar o que se passa ali dentro.
“Então, é isso? Mas isso não bate com o que Gottschalk escrevia em seu diário! E você parece muito calma
diante de tudo isso, Natasha!”
“Gottschalk,” responde Natasha, “resistiu ao livro. Sua força de vontade era tremenda e ele tinha grande
conhecimento. Ele sabia que o livro transferia conhecimento, notou que estava sendo influenciado, mas em seu medo,
acreditou que estava sendo possuído, e não iluminado. Sua resistência ao livro o fez buscar fontes alternativas de
sabedoria. Ele envolveu-se com magia negra para tentar proteger-se antes de continuar a leitura! Essas tentativas o
levaram à loucura. Eu, porém, não estava preparada, não resisti. O conhecimento iluminou-me, abriu meus olhos. Vejo
as coisas com clareza agora.”

78
Cláudio é o próximo a perguntar: “E quem foi Meinhard exatamente? Gottschalk escreveu que Meinhard
nunca existiu.”
“Meinhard foi um nome fictício, criado pelo monge que compilou as Coletâneas originalmente. Ele criou
Meinhard para se proteger. Afinal, se outros membros do Clero descobrissem que era ele próprio quem recebia as
visões e escrevia a obra, poderiam tentar exorciza-lo, ou mesmo mata-lo! Meinhard é apenas um mito. Há algo mais
que desejem saber?”
Cristiano toma a frente e pergunta novamente: “Os símbolos. O que são eles?”
“Fabulare, a Língua de Babel! São apenas escrita, mas seu significado é incompreensível para a mente
humana. Cada símbolo representa um conceito, um número, uma idéia, uma emoção, uma força e um verbo, mas eles
não são lidos e sim compreendidos. Eles falam com aqueles que sabem lê-los, revelando seu propósito. Os símbolos
foram o canal para que eu adquirisse o conhecimento, eles falavam comigo e serviam de ponte para o conhecimento.
Apenas aqueles que lêem o livro por completo conseguiriam compreendê-los e reproduzi-los em sua essência. É por
isso que as cópias incompletas das Coletâneas não os possuem ou, em alguns casos, eles são simples cópias sem poder
ou significado. Muitos desses autores cometeram o mesmo erro de Gottschalk e não leram o livro por inteiro, por
medo do que estava ocorrendo-lhes.”
Agora isso faz um pouco mais de sentido, mas ainda há algo errado. Se apenas aqueles que leram o livro
poderiam escrever na tal Língua de Babel, então como o autor original pôde escrever os símbolos no livro original?
Além disso, se Céu e Inferno se mantém tão ocultos, por que diabos mandariam visões para uma pessoa escreve-las
num livro? Quem teria mandado as visões ao tal monge? Parece que Cristiano e os outros não notaram essa pequena
discrepância.
Então, noto Cristiano aproximar-se um pouco mais do círculo no qual está Natasha. Ele segura firme, com
ambas as mãos, as Coletâneas. “Qual o nome daquele que veio para a Terra? Qual o nome do tal Arauto?”
Natasha ri. Ela ri descontrolada, como se uma piada muito engraçada tivesse sido contada. “Para quê quer
saber tamanha inutilidade, Cristiano? Você acha que seus livrinhos de magia, conseguidos com um culto de baixa
categoria, vão servir-lhe de algo? Sei muito bem que usou invocações e ritos de controle para manipular seus
companheiros na Fundação, mas acha mesmo que saber o nome do Arauto lhe permitirá alguma espécie de controle
sobre ele?” Ela ri mais, seus olhos despejam lágrimas de tanto riso. “Você é patético! Sua mente é um livro aberto para
mim! Você não pode controla-lo, mortal imbecil! Na verdade, suas intenções são tão claras para ele quanto são para
mim!”
“Escute aqui, sua vaca!” Cristiano fica furioso. Ele passa a segurar o livro com a mão esquerda apenas, e então
saca sua pistola com a mão direita. “Não me importa o que você sabe ou pensa, eu posso fazer o que quiser com você!
Agora, me diga o nome dele, senão...” Ele aponta a pistola para Natasha, e os demais presentes fazem o mesmo. Eu
empunho o cabo de vassoura e me preparo para intervir. Não posso deixa-los machucaram Natasha, não importa o que
ela tenha se tornado! Preparo-me para saltar através da janela, pronto para matar todos os desgraçados, mas então Elias
uma vez mais coloca a mão em meu ombro. “Ainda não,” ele murmura, me segurando.
Natasha observa-os friamente. A risada termina, ela fita Cristiano. “Você não é meu mestre, Cristiano. Eu não
diria o nome DELE nem mesmo se o soubesse!”
“Você não sabe?” Cristiano parece surpreso.
“O que você esperava? Eu estive aprisionado por tempo demais! Qualquer um dos nove pode ser ele, eu não vi
os sinais se concretizarem! Eu sequer sei o real significado dos cinco últimos sinais, apenas conheço as profecias.” Ela
sorri. Seu timbre de voz parece ter mudado. Os demais parecem surpresos, se afastam, ainda apontando a arma para
ela.
Cristiano, afastando-se, pergunta: “Quem é você?”
Então, para minha surpresa, a voz de Natasha torna-se mais grossa, embora ainda feminina. “Eu sou Khem-
Asab, o Antes-Vizier de Baal-Agon, mas meu nome significaria pouco para vocês. Eu não estou em qualquer livro que
você possa estudar, nem sequer fiz quaisquer ações que pudessem me tornar uma lenda entre os homens. Mas eu e
você temos algo em comum, Cristiano Souza Melo, ambos estamos em busca de conhecimento.”
O que é isso? O que significa isso? Meu raciocínio é claro: há algo possuindo o corpo de Natasha, mas eu não
quero acreditar. Sinto desespero, tento me controlar, paro de olhar. Elias murmura que logo teremos que fazer alguma
coisa. “O demônio vai dizimar todos lá dentro,” ele murmura. Eu não me importo. Quero que Cristiano e todos os
outros morram. Os filhos da puta transformaram Natasha nessa... coisa!
“Eu imaginava...” É Cristiano. Ouço passos. “Embora não tivesse certeza, os diários de Gottschalk e suas
anotações no livro foram um alerta. Você pode até mesmo notar que estive preparado. Afinal, eu o pus dentro de um
círculo de proteção e não pode sair sem minha permissão.”
“Sim, eu pude perceber,” o demônio responde, calmamente, através da boca de Natasha. “Você é perspicaz,
Cristiano, mas devo alertar-lhe que perspicácia apenas não irá salva-lo. Você é não é nada perto dos Poderes Que
Virão e nem mesmo os mais poderosos truques da risível ‘feitiçaria’ humana serão úteis quando as batalhas
começarem.” O demônio toma uma pausa, então continua: “Por enquanto, sou seu humilde servo. Sinto que deseja
saber mais. Peça, e responderei.”

79
“Conte-nos o que você deseja,” Cristiano pede. “Quero saber sua história. Por que usar o livro? Qual a razão
das Coletâneas de Meinhard existirem?”
A criatura em Natasha suspira. “Pois bem. Eu tive muitos nomes, mas apenas uma identidade. Meu último
nome foi Khem-Asab, e pertenço à décima primeira Casta dos amaldiçoados. Sou tão antigo quanto sua própria
civilização, mortal. Eu sou um estudioso, um grande pesquisador das antigas profecias. E, como vocês, eu queria
compreender os mistérios que nossos mestres não nos permitiam solucionar. A guerra contra os amaldiçoados
Celestiais começou dezenas de milênios antes de meu renascimento, mas eu tentei, em vão, compreender os grandes
mistérios por trás do conflito. Em particular, quando nossos Senhores foram aprisionados, incapazes de abandonar o
reino que vocês chamam Inferno, eu busquei compreender as profecias e me preparar para o fim. Você pode
compreender isso? Não, não pode. Estamos há milênios nos preparando para o momento em que poderíamos lutar de
igual para igual novamente! Com nossos senhores aprisionados, nós permanecíamos escondidos e apenas os menores
entre nós eram capazes de permanecer por muito tempo neste reino sem serem detectados pelas forças celestes.
Aguardávamos pelo momento, mas ele nunca chegava.”
Uma pausa, como se o monstro aguardasse um momento para pensar. “Quando irmão apunhalou irmão nas
Cruzadas e quando o grande portal se abriu entre Éden e Inferno, eu imaginei que os sinais finais estariam se
aproximando. Nós aguardamos o fim com desejo e medo. O fim da prisão, o momento de ascensão! As profecias se
concretizariam! Mas falhamos. Os Celestiais foram vitoriosos e nós fomos escorraçados. Em minha raiva, eu
finalmente notei uma verdade dura e cruel.”
Cristiano pergunta: “E que verdade é essa?”
“Que o futuro não é definido. Não existe amanhã, apenas possibilidades infinitas que se reconstroem a cada
ato presente. Eu posso ver fatos futuros, mas são sempre nebulosos e mutáveis e, quanto mais distantes estão, menos
prováveis. As ações de mortais e imortais, sem distinção, moldam a criação divina, da mesma forma que a água molda
a rocha sobre a qual ela corre! Não há futuro, nem há profecias. É uma ilusão imaginar que os eventos ocorrerão como
preditos. Em meu desespero, eu abandonei o Feudo de meu Lorde e desci a este reino pútrido e limitado de vida e
carne. Minha fúria desejava trazer ódio e dor à humanidade, até que algum Celestial me encontrasse e, quem sabe,
pudesse acabar com minha existência. Então, eu fiz planos, planejei minha morte!”
“Planos?” Cristiano é quem pergunta.
“Sim,” diz a criatura. “Eu queria descobrir respostas através da violência e da dor. Minha ira interior me
comandava a torturar cada ser em meu caminho até obter a resposta! E, conforme eu deixava uma trilha de terror que
podia ser facilmente seguida, eu percebi como a superstição humana começou a fazer previsões de meus atos. Sem
meu consentimento, surgiram lendas, rumores e fábulas sobre mim. Então, influenciei mentes para que espalhassem
meus planos e notei como elas facilmente se tornaram pequenas profecias, nas quais meus atos poderiam ser previstos
e evitados. Porém, as previsões que eu espalhava eram sempre vagas, me permitindo tomar ações inusitadas enquanto
mantinha-me fiel ao que as minhas ‘profecias’ revelavam. Sem notar, eu tinha conseguido a minha resposta!”
Cristiano cala-se por um instante, mas então murmura. “Eu não entendi. O que quer dizer com isso?”
“Quero dizer que não existem profecias, nem destino! Quero dizer que há dois mil anos, alguém transformou
os eventos do passado nos quatro primeiros sinais, como se fossem o primeiro arco de uma história que ainda não
tinha chegado ao seu fim. Este mesmo ser então fez planos. Ele planejou cada um de seus passos seguintes,
imaginando como as reações de todos os que se envolveriam seriam. Ele transformou os passos de seu plano em sinais
que estavam por vir e os espalhou, criando uma mentira que foi adicionada ao Codex Tenebrosu. Ao criar uma
profecia, ele fez com que todos tentassem compreender, auxiliar ou impedir seus planos, e desta forma esse
manipulador maldito poderia realizar seus verdadeiros atos no anonimato. Alguém manteve-se dois mil anos oculto,
planejando, manipulando Celestiais, Infernais e mortais, criando uma gigantesca cadeia de eventos que seguiriam os
sinais simplesmente porque eram os passos de seu esquema.”
Silêncio... Mas logo o ser em Natasha continua: “O que estou dizendo é que cada ser, cada guerreiro nesta
guerra, estava sendo manipulado e enganado. Enquanto perseguíamos profecias, esse jogador astuto as tornava
realidade, nos fazia de tolos. E eu, único entre todos os Infernais, pude perceber isso. Eu queria compreender esses
planos, mas não queria mais fazer parte deles. Então, procurei uma maneira de desaparecer, para ressurgir somente
quando os sinais seguintes ocorressem. Assim nasceram as Coletâneas de Meinhard.”
O ser prossegue, sem que ninguém o interrompa: “Meus atos de crueldade no mundo dos vivos atraíram a
atenção de diversos caçadores, tanto mortais como imortais. Eu me divertia, podendo facilmente escapar, pois os fazia
seguirem as falsas profecias, enquanto eu tinha a liberdade de ação. Então, planejei o fim da minha própria pequena
profecia, espalhando entre os homens que o monstro só poderia ser derrotado quando sua próxima vítima fosse um
santo monge. Eu possuí um tolo qualquer e o fiz escrever o livro por mim. Eu usei todo o meu conhecimento,
adquirido ao longo de milênios de estudo, para gerar os símbolos e imbuí-los com o poder de guardar e canalizar
minha essência. Então, finalmente, atraí meus caçadores e eles me destruíram conforme eu destruía o monge que
escreveu o livro. Na dor da morte, meu rito funcionou e eu me aprisionei no livro, para ser libertado novamente
sempre que alguém concluísse a leitura da obra.”
Cristiano, intrigado, pergunta: “Por quê um livro?”

80
“Porque, a cada leitor, eu poderia possuí-lo. Eu pude então redigir novas cópias, assim espalhando minha
influência lentamente e garantindo minha sobrevivência. Vocês se perguntavam sobre as versões incompletas das
Coletâneas? Pois bem, elas foram escritas por simples monges ou estudiosos que tentavam copiar o livro, mas ao sentir
minha presença, desistiam antes que pudessem chegar ao fim. Ainda assim, as cópias incompletas serviam para atiçar
a curiosidade daqueles interessados, forçando-os a procurarem uma versão completa. Desta forma, eu podia tomar seus
corpos e adquirir seus conhecimentos. Há, porém, um outro motivo para eu ter escolhido abrigar-me em um livro...”
“E qual seria?” Desta vez, quem faz a pergunta é Cláudio.
“Cada grande ato que ocorre fora deste mundo,” diz a criatura, “ecoa nos sonhos e pesadelos da humanidade.
Eu sabia, tinha a certeza de que, diante de evidências sobrenaturais, os estudiosos procurariam profecias e
conhecimento sobre os sinais que tinham presenciado. Ao escrever sobre Céu e Inferno e detalhar os sinais do
apocalipse, eu atrairia os estudiosos nos momentos em que esses sinais estivessem ocorrendo. E isso de fato ocorreu!
Todos vocês me procuraram no momento em que sentiam que ‘algo’ acontecia neste mundo. É assim que tanto
mortais e imortais agem: dá-se o estímulo correto e eles farão por vontade própria tudo o que se esperava!”
Elias se levanta, tentando olhar através da cortina também. Ouço Cristiano murmurar algo, provavelmente
exaltando o conhecimento que acaba de conseguir. Eu mesmo estou espantado e assustado. Fico pensando em
Natasha. É possível salvá-la ainda? E, mesmo que seja, como fazê-lo? Como vencer uma criatura tão imponente?
Também me incomoda a postura da criatura. O demônio está calmo demais, até mesmo amistoso, mesmo estando
prisioneiro. Ele disse: “Dá-se o estímulo correto e eles farão por vontade própria tudo o que se esperava.” Por que essa
frase não sai de minha cabeça?
“Você realmente nos trouxe muitas respostas,” Cláudio murmura. “Deixe-me entender... Você se prendeu a
um livro para poder acompanhar os fatos sem ser manipulado por eles. Você descobriu que as profecias eram apenas
passos em um plano de alguém. Agora, o plano foi concluído e um dos governantes do Inferno está na Terra.”
“Correto,” a criatura em Natasha responde.
“Mas o que esta criatura que está na Terra veio realmente fazer? Quem é ela?”
“Como eu saberei, mortal?” O monstro ri. “Isso não estava escrito nas profecias. Só posso presumir que aquele
que caminha na Terra é o mesmo jogador que planejou tudo. Mas mesmo ele pode ser só um fantoche do real
planejador. Como saberemos?”
Há um incômodo silêncio repentino. Minha paciência está se esgotando. Quando diabos Elias resolverá agir?
Estou ouvindo aqueles quatro na sala conversando há muito tempo, mas fico só pensando em Natasha. Elias continua
um tanto nervoso. Será que ele está com medo? Começo a ouvir murmúrios vindos da sala. Olho pela cortina e noto
Cristiano e seus dois homens discutindo algo. “Natasha” os observa, calma, de braços cruzados e em pé. A expressão
em seu rosto é de paciente frieza, bem diferente da Natasha real. Enquanto eles discutem, “ela” vira-se para nós,
fitando a janela, e sorri discretamente. Naquele instante, Elias se abaixa, me puxando. Ele de fato está com muito
temor. Ouço a voz de Natasha em minha mente: “Não vai me salvar? Marcos...” Minhas mãos começam a tremer.
“O que foi? O que está olhando?”, Cristiano pergunta ao monstro.
A voz de Natasha é ouvida em seguida. “Apenas vendo outros dois de seus amigos que escutavam nossa
conversa. Por que tentar ocultar pessoas, Cristiano? Não confia em mim?”. Ela ri.
O tom de voz dela foi sarcástico. Merda! “Dá-se o estímulo correto e farão tudo que se esperava.” Ela está
tentando voltar-nos uns contra os outros, talvez para poder escapar da prisão! Ouço passos se aproximarem da janela.
Ao mesmo tempo, Elias arrasta-se rente à parede, afastando-se, e se levanta, mantendo sua arma apontada para a
janela. Minha curiosidade me impele a olhar pela janela, mas se eu fizer isso, com certeza levarei um tiro bem no meio
dos olhos. Não posso ver nada, mas ouço o som de uma porta se fechando, seguido pelo som de uma segunda porta.
Provavelmente duas pessoas deixaram a sala, por lados diferentes. Vão nos cercar! Elias ainda mira para a janela, mas
duvido que venham por ela.
“Elias,” eu murmuro. “Estamos em campo aberto! Temos que nos afastar da casa!”.
Um disparo abafa minhas palavras antes que eu as termine, porém. Elias atira em alguém que vem por trás de
mim, pela frente da casa. Ainda abaixado sob a janela, eu me viro para ver quem seria, mas não enxergo ninguém.
Deve ter se escondido atrás da quina da parede. Um segundo disparo ecoa em seguida. Volto-me para Elias e o vejo
cair no chão, atingido nas costas por uma bala. Dos fundos da casa, Cláudio corre em minha direção, sua arma
mirando em mim. Ele dispara novamente, mas erra. “Peguei um! O outro não está armado!”, Cláudio grita. Ele parece
não ter me reconhecido ainda, talvez devido à escuridão, que já é forte.
O outro homem sai detrás da quina, vindo correndo da frente da casa. Estou cercado! Nenhum dos dois
dispara, com medo de um atingir o outro, mas ambos vêm em minha direção. Eu não tenho tempo para pensar. Só
deixo o instinto correr e toda a minha experiência de um século e meio me guiar. Aquilo que corre em meu sangue
desperta nestes instantes de tensão, e sinto-me mais leve. Levanto-me num salto, correndo para me afastar da casa.
Ouço mais um tiro, desta vez vindo do interior da casa. Cristiano, que vigiava a janela, deve ter me visto e disparado,
mas não consegue me atingir.
Eu me afasto da casa, correndo. Cláudio pára, próximo ao corpo caído de Elias, e parece voltar suas atenções
para o mesmo. Enquanto isso, o outro homem corre em minha direção, dando alguns tiros conforme se aproxima. Com
a mira prejudicada pela escuridão e pelo movimento intenso da corrida, ele erra os disparos. Então, quando alcanço o

81
muro da propriedade, em meio à escuridão e às árvores esparsamente distribuídas, paro, viro-me para o homem que se
aproxima atirando e fico abaixado, mas pronto para uma arremetida rápida.
Mesmo à distância, noto que Elias ainda está caído, inerte. Cláudio aponta a arma para ele. O outro homem dá
um tiro e atinge-me de raspão no ombro. A dor é abafada pela adrenalina. O homem está próximo. Sinto meus
músculos se encherem de energia, sinto a energia ressoar pelo cabo de vassoura em minhas mãos. Um segundo tiro me
atinge o peito, mas agora ele está próximo o suficiente! Eu me impulsiono em sua direção. Noto seu braço direito
estendido, seu dedo pressionando o gatilho enquanto um novo disparo é feito. Eu giro o corpo, da esquerda para a
direita. A minha mão esquerda larga o cabo de vassoura, mas a direita ainda o segura com vigor. Então, graças a meu
impulso e ao movimento de meu corpo, eu atinjo o cabo de vassoura em suas costelas, logo abaixo do braço que
empunha a arma. O cabo se parte com o impacto, sinto a resistência dos ossos deles terminar, conforme duas de suas
costelas se quebram com o impacto. Um grito de dor. O meu braço direito ainda empunha o cabo quebrado, agora com
uma ponta afiada no ponto em que se partiu. Então, me recuperando da inércia de meu primeiro golpe, ataco com o
cabo quebrado, penetrando sua ponta afiada contra a garganta do homem. Eu deveria me controlar, refrear minha fúria,
mas não quero. Além de perfurar sua garganta, eu a rasgo horizontalmente, puxando o cabo de vassoura
violentamente. Seu sangue espirra, sujando inclusive meu rosto, mas ao mesmo tempo meu sangue ferve e sinto-me
mais vivo do que nunca. Há uma sensação de poder inigualável, sinto-me leve, pleno, ao liberar essa fúria assassina
que a imortalidade traz. Eu a refreei por tempo demais, agora preciso libera-la. O corpo do inimigo cai, eu paro,
sentindo que seu último tiro penetrou meu ombro esquerdo, mas a dor não pode me impedir. Nada pode me impedir!
Eu me viro, lentamente, e fito Cláudio, ainda ao lado do corpo inerte de Elias. Ele será o próximo...
Começo a caminhar, passo após passo, em direção a Cláudio. Penso em Natasha e sinto raiva. Penso nela e
tenho vontade de matar Cláudio. Lembro-me dos últimos dias com ela e minha vontade é de fazer Cristiano sofrer. Eu
quero devorar suas vidas para alimentar a minha própria. Passo após passo, aproximo-me do inimigo. Tento mover o
braço esquerdo, mas ele parece pesado. A dor começa a aumentar, devido ao ombro ferido. Empunho ferozmente o
pedaço de madeira, agora ensangüentado, enquanto olho fixamente para Cláudio. Ele é maior do que eu, mas é apenas
mortal. Eu vou fazê-lo sofrer! Cláudio começa a avançar, lentamente, provavelmente para diminuir a distância e
melhorar sua pontaria.
Então, noto Elias esforçar-se para se erguer. Ainda caído no chão, ele se apóia nos braços, fita Cláudio, que
não o nota. A fúria em meu corpo pede por ação, meus músculos se enchem de força. Eu corro em direção a ele, emito
um grito de raiva. E noto-o puxar o gatilho. Porém, não há o som do disparo. Noto a face de surpresa de Cláudio e
ouço a risada abafada de Elias. Meu punho atinge certeiramente o rosto de Cláudio, fazendo-o perder o equilíbrio e
cair. Não quero mata-lo ainda! Quero liberar minha raiva!
Então, vendo Cláudio caído, eu largo o pedaço ensangüentado de madeira. Percebo Elias estender o braço
direito e abrir a mão, então fechada, e as balas da pistola de Cláudio caem de sua mão. Elias se esforça para sentar-se,
apoiando as costas na parede da casa. Cláudio geme, consciente mas atordoado. Eu ainda estou com raiva, penso em
ergue-lo e soca-lo novamente, mas então ouço um grito acompanhado de um tiro, ambos vindos da janela. Minha
atenção se volta à janela e, alguns segundos depois, Cristiano é arremessado através dela. Ele cai violentamente no
chão, sangrando muito. Suas costas estão rasgadas pelo que me parecem ser garras. Eu e Elias olhamos com surpresa
para a janela, notando a forma feminina de Natasha sair por ela, movendo-se gentilmente. Sinto um vento frio
repentino e uma sensação de medo, que abafa a fúria. Os sons da mata são subitamente interrompidos. Ela carrega as
Coletâneas de Meinhard sob o braço esquerdo, e sorri cruelmente.
Ouço os gemidos de Cristiano. A criatura em Natasha me observa, sorri discretamente. “Dos cinco que me
guardavam, apenas um está em pé. Você estava intrigado com o que eu disse, não, Helmfrid? Dá-se o estímulo correto,
e eles livremente farão o que se deseja.”
Eu a fito. “Como você escapou do tal círculo?”
“Cristiano é um idiota que confia demais em velhos ritos,” o monstro responde. “O ritual é um círculo
genérico, construído sem saber contra que demônio seria usado! Sequer meu nome foi pesquisado antes que o rito
fosse feito! Portanto, tem limitações fundamentais que pude facilmente contornar! O rito se baseia em aprisionar o
demônio em seu interior, mas eu não estava no interior do círculo. Eu estava nas mãos de Cristiano!” Ela sorri,
empunhando o livro. Ouço Elias, sentado no chão, apoiado na parede da casa, resmungar algo que parece ser um
xingamento em outra língua. “Eu sou o livro,” ela prossegue. “Este corpo é só uma extensão minha, mas eu estou no
livro! Quando preparei meus planos, eu queria também a imortalidade. Enquanto uma única cópia completa deste livro
existir, eu permanecerei vivo!”
Natasha deixa o livro no parapeito da janela, então se aproxima lentamente. “Há muitas coisas que você
precisa me agradecer, imortal. Afinal, eu joguei a garota em seus braços, dei-lhe algumas noites de prazer.”
O que o desgraçado no corpo dela quer dizer?
“Ora,” ele prossegue, como se soubesse o que estou pensando. “Não compreendeu? Conforme ela lia o livro,
minha presença se tornava mais constante. Para aliviar os sonhos dela, que poderiam se tornar pesadelos por causa de
minha aura, eu os invadia, os tornava prazerosos.” O rosto dela abre-se num sorriso perverso, enquanto seus olhos
fitam os meus. “Eu transava com ela, a deixava excitada. Ela acordava sem recordações, mas mesmo assim ela sentia
sua sexualidade à flor da pele.”

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Filho da puta! Ouvir essas coisas faz com que meu sangue ferva! Fecho os punhos. Se ouvisse isso de qualquer
um, já teria perdido a paciência, mas... é o corpo dela! Eu o fito e vejo Natasha! Ele me provoca, deslizando as mãos
dela sobre o próprio corpo, contornando seus seios e cintura. “E quando você pensou em destruir o livro, eu sussurrei
em seu ouvido. Dei a idéia de possuí-la naquela última noite, lembra-se? O grande imortal, sempre tentando se manter
distante das pessoas, com medo de feri-las, mas basta um simples impulso para se render aos sentimentos e
necessidades do corpo. Dá-se o estímulo correto e eles farão o que se deseja, entende?” Ele está próximo de mim, sinto
a respiração dela. Afasto-me, recuando. “Ora! Você não quer mais este corpo para você?” Ela levanta a própria
camiseta até a altura dos seios, mas sem retira-la, revelando o corpo nu de Natasha.
É a gota d’água! Eu me aproximo, agarro o pulso esquerdo dela, puxando seu braço e, com minha mão
esquerda, forço-o a baixar a camiseta novamente. Por um instante, até mesmo ignoro a dor dos tiros que recebi. Encaro
seus olhos. Apesar de serem os olhos de Natasha, possuem a frieza do monstro. Pergunto: “Por que está fazendo isso?”
Ela me encara e ele fala através dela: “Por que preciso repor minhas energias.” Ela sorri. “A angústia que sente
me alimenta. Mas não é só isso.” Sinto algo rasgar meu peito, seguido do calor de meu sangue. Afasto-me num salto,
levo a mão direita ao peito cortado e libero um grito de dor. Por um instante, vejo garras na mão direita dela, mas logo
em seguida seu aspecto comum e inofensivo retorna. “A dor de cada um de vocês vai me alimentar ainda mais,” a voz
de Natasha diz.
Cláudio tenta se levantar, enquanto isso, Natasha se afasta de mim, dando-me as costas enquanto caminha até
Cristiano, ainda caído. Eu me afasto, sem tirar os olhos dela, e me aproximo de Elias. Noto que, no meio do caminho,
Natasha pára para pegar o pedaço de madeira que até a pouco eu usava como arma.. Ela então chega a Cristiano,
abaixa-se e começa a murmurar. “Cris, eu queria muito agradecer por tudo o que fez por mim.” Ela senta-se sobre as
costas dele, empunha o pedaço de madeira com ambas as mãos e então começa a apunhalá-lo, cravando várias vezes,
em golpes rápidos e sucessivos, a ponta afiada do cabo de madeira na carne das costas de Cristiano. Os gritos de dor se
repetem, ele tenta reagir, tenta virar-se, mas ela parece domina-lo só com sua presença.
Elias me observa. “Ele vai se alimentar da dor que causar. É típico da raça dele! Temos que ataca-lo!”
Eu me volto para Elias. Cláudio está próximo e presta atenção em nós. “Há alguma maneira de salvar
Natasha?”
Neste instante, o monstro pára, vira-se lentamente para nós e se levanta, suja de sangue. “Há sim...” Natasha
começa a caminhar em nossa direção, deixando Cristiano mortalmente ferido, mas ainda vivo. Ele não vai agüentar
muito tempo. Natasha prossegue: “Normalmente, a possessão demora meses ou, se a pessoa resistir, pode levar até
mesmo anos. O conhecimento deve ser passado ao hospedeiro lentamente. Mas, conforme ela lia o livro, eu despertei e
senti a presença do Grande Lorde na Terra. Eu estava sem paciência para esperar o tempo necessário, e forcei o
conhecimento rapidamente. Não pude expulsar sua alma, apenas a subjuguei. Vocês podem salva-la.” Ela sorri,
estando cada vez mais próxima.
Elias murmura: “Ele está mentindo! Está falando isso para evitar que você o ataque, Helmfrid!”
Droga, o que vou fazer? Ouço Cláudio murmurar. “Se você imobiliza-la, podemos tentar aprisionar o demônio
de verdade.” Olho-o. Ele está ainda muito atordoado e se apóia à parede. Cláudio não está em condições de lutar, mas
acho que a idéia dele é minha única opção.
Eu avanço contra Natasha, uso a raiva para alcançar toda a força e velocidade que consigo. Ela se surpreende,
tenta sair do caminho, mas nossos corpos de chocam. Natasha perde o equilíbrio e cambaleia. Antes que caia no chão,
porém, eu a agarro pelo braço e a puxo violentamente. Preciso agarrar o outro braço também, mas meu braço esquerdo
reclama de dor. Preciso agüentar! Antes que eu consiga segurar seu outro braço, contudo, ela me desfere uma
cotovelada em minha face. Sua força é tão tremenda que supera a minha. Sinto meu rosto ser empurrado pelo impacto,
perco o controle por um instante e a largo, caindo no chão. Porém, ela própria estava sem equilíbrio, e também tomba.
O golpe dela não foi suficiente para quebrar minha mandíbula, mas a dor é tremenda. Atordoado, tento
levantar-me, mas noto que ela já está em pé novamente, e caminha em minha direção. “Este corpo feminino é muito
frágil para meu gosto,” o monstro reclama, enquanto se aproxima. “Mas minha essência pode mais do que compensar
por essa fraqueza. Eu queria deixa-lo por último, Marcos Helmfrid, mas você é imortal. Então, mesmo que eu o mate
agora, você retornará, e poderemos continuar depois.” Ela ergue o pedaço de madeira nas mãos, vejo o rosto de
Natasha sujo com o sangue de Cristiano. Essa é uma visão que eu nunca imaginaria ver. Então, um tiro! O peito de
Natasha é atingido em cheio! Não! Será que ela irá morrer? Ainda caído, tentando me levantar, viro-me e noto Elias
empunhando sua pistola.
“Larga de ser frouxo e levanta logo, Helmfrid!”, Elias grita. Eu noto Natasha tocar a ferida, um brilho verde
ocorre no ponto em que ela tocou. O ferimento está se fechando? Ela olha com fúria para Elias. Este dispara
novamente, atingindo o ombro esquerdo de Natasha. Um terceiro disparo, e sua barriga é atingida! A desert eagle de
Elias é poderosa, causando ferimentos sérios, mas isso não irá segura-la. Natasha cai. Eu reúno forças para me
levantar.
Elias grita: “Sumam logo daqui! Levem o livro para o meu mestre!!!”
Corro até a janela, onde o livro foi deixado. Os ferimentos começam a me deixar mais lento. Assim que pego
as Coletâneas, começo a correr em direção aos fundos da propriedade. Cláudio corre comigo, ele parece já ter se

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recuperado do meu golpe. Mesmo tentando ficar calado, acabo demonstrando minha raiva: “Por que não fica e encara
o que você mesmo criou, desgraçado?”
“Você ainda vai precisar de mim, Helmfrid,” ele responde.
Neste instante, ouvimos outro disparo de Elias. Paramos e observamos, à distância, Natasha erguer-se. Ela
desta vez avança sem que os tiros a parem. De alguma forma, mesmo à noite e à distância, noto-a... mudar... conforme
se aproxima de Elias. Outros dois tiros em sucessão, antes que o monstro erga Elias no ar. Ouço gritos de dor, e
Cláudio me puxa. “Vamos cair fora daqui!” Ele está certo. Ambos continuamos a correr, conforme Elias é estripado
pela criatura.
Então, quase ao alcance do muro nos fundos da propriedade, ouço um rugido. A criatura avança numa
velocidade inumana. Tomado pelas dores dos ferimentos, sinto meu corpo pesar, e Cláudio lentamente se distancia à
minha frente. Sem parar de correr, fito a criatura que se aproxima. Seu aspecto não é mais o de Natasha, mas de um ser
negro, imenso, com grandes asas de morcego. Em instantes, ele me alcança, e me atinge em cheio. Sinto suas garras
rasgarem o meu braço direito. O livro cai no chão. Eu grito por Cláudio, que pára para pegar o livro. O monstro
prepara-se para ataca-lo. Não posso permitir isso! No final de contas, Cláudio é nossa última esperança! Eu ignoro a
dor, uma última vez sinto força em meus braços e agarro os pulsos da coisa. Sua face negra e olhos vermelhos, uma
deformação do rosto de Natasha, me encaram. Ele rosna, conforme luta para livrar-se de mim. Eu chuto sua barriga,
fazendo-o perder o ar. Tento segura-lo, mantendo-o sempre próximo a mim, tempo o suficiente para que Cláudio
escape com o livro em mãos.
Por fim, noto Cláudio alcançar o topo do muro. Ele pula para o outro lado. Estou sem forças para agüentar
mais, e o demônio escapa de minhas mãos. Suas garras rasgam minha barriga. Eu tento gritar, em vão. Outros golpes
se seguem em meu peito e face, mas sequer dor eu sinto mais. É a segunda vez que sinto a morte chegar. Conforme
tudo escurece, sinto frio e silêncio, e a última coisa que ouço é o canto de um pássaro...
...

Capítulo 23: O Fim de Tudo


Através dos olhos do pássaro, posso ver a criatura rasgar a carne de Helmfrid. A raiva fez com que Khem-
Asab resolvesse finalmente utilizar suas reais habilidades, a ponto de poder transformar o corpo de sua hospedeira em
algo monstruoso, mas eu sei que o demônio está enfraquecido. Ele estava aproveitando a confusão e distração inicial
para recuperar forças através da dor e angústia que causava, mas ao se sentir acuado, não teve outra escolha senão
mostrar o que realmente pode fazer. Para nossa sorte, porém, ele não tem energias suficientes para se dar ao luxo de
usar suas habilidades mais poderosas. Ele mencionou que pertence à décima primeira Casta dos infernais. Levando em
conta que são doze Castas, Khem-Asab deve ser um oponente formidável.
Vejo então o negro chamado Cláudio saltar o muro. Khem-Asab deixa o corpo falecido de Helmfrid para trás,
mas não o decapita. Por quê? O demônio sabe que Helmfrid continuará vivo. Pretende se alimentar da dor que pode
causar a um imortal mais tarde? De qualquer forma, é hora de abandonar este corpo. O pássaro é deixado para trás,
minha mente retorna rapidamente a seu verdadeiro corpo. Meus olhos se abrem. Estou ajoelhado em meio ao círculo
de poder, cercado por velas brancas acesas. Andreas está também dentro do círculo, em pé e empunhando sua arma.
Vejo Cláudio correr em nossa direção e peço a Andreas que não atire. Então, um uivo ecoa, vindo da escuridão.
A forma negra de Khem-Asab escala o muro e salta tentando alcançar Cláudio, mas é tarde demais, o negro
alcança o círculo e permanece em seu interior. Peço que dê licença para que nada fique entre mim e o monstro e então
Cláudio se posiciona atrás de Andreas. O monstro negro, de forma vagamente feminina, se aproxima então a passos
lentos. Suas asas fecham-se para que passe sem problemas em meio às árvores. O demônio pára logo adiante do
círculo, onde as velas o iluminam bem. Sua voz monstruosa então ecoa em minha mente, enquanto a distorcida voz
feminina de Natasha é emitida por seus lábios: “Abiram Abednego! Eu sabia que você estava por perto.”
Eu saco minha adaga ritual, empunhando-a firmemente com a mão direita. “Khem-Asab, eu sou grato por
ouvir sua história. Você foi esclarecedor, com certeza. Eu sabia que algo infernal caminhava neste mundo”. Ele me fita
com ódio, e eu tento blefar: “Na verdade, até mesmo sei o nome desta força, capaz de amedrontar até mesmo meu
Magister infernal.”
O demônio parece surpreso. “ESPERE!” Sua voz ecoa ainda mais potente. “Você disse conhecer o nome do
Arauto?”
“Sim, meu senhor me revelou uma única vez um dos muitos nomes dele. Eu esperava mais de você, porém.
Fui instruído a procurar as Coletâneas porque imaginava que elas me trariam a chave para conhecer os planos do
Arauto, mas pelo que entendi, você não sabe de nada. Sabe sobre o passado, mas não sobre o futuro.”
“Profecias não existem, Abiram Abednego. Se você de alguma forma conhece minha história, deve saber que
toda profecia é apenas uma mentira bem feita para maquiar um fato vindouro.”
“Sim, agora eu sei.” Eu corto meu próprio braço com a adaga, deixando meu sangue fluir. O demônio parece
sentir um pouco de prazer ao sentir minha dor, mas minha expressão não muda. Isso deve frustra-lo um pouco. “Dê-
me o livro, Cláudio.”

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Eu estendo a minha mão livre, cujo braço sangra, para pegar as Coletâneas de Meinhard. Ele me entrega o
livro. Sento-me então, cruzando minhas pernas e apoiando o livro sobre elas. Lambuzo a lâmina da adaga com o meu
sangue, que escorre. O demônio olha curioso: “O que pensa que pode fazer comigo, Abiram Abednego?”
Eu cravo a adaga na capa do livro e, lentamente, começo a esculpir o símbolo: um selo de proteção que
aprendi estudando a obra de Salomão. “Abiram, você não sabe com quem está se envolvendo! Foi um erro fazer seu
círculo ritual sobre um assoalho de madeira!” O demônio se abaixa, toca a madeira, num ponto em que o círculo de
proteção não alcança. Fogo surge em sua mão, mas a madeira não se queima.
“Madeira protegida com água límpida e abençoada por magia teúrgica, demônio.”
O demônio se enfurece, suas asas se abrem, ele se curva mostrando suas garras e presas. “Eu posso então
queimar toda a vegetação daqui, criar uma conflagração que mesmo seu seus míseros ritos não podem impedir,
Abednego!”
“Olhe minha cara, Khem-Asab,” eu ordeno enquanto nossos olhares se encontram, “e me diga quem está com
medo aqui, lagarto! Eu tenho sua essência em minhas mãos! Que tipo de idiota pensa que sou? Acha mesmo que eu
próprio não notaria que o livro não passava de uma armadilha? Acha mesmo que eu ignoraria os símbolos escritos na
língua divina, que não me importaria com SUA presença, que senti ao vê-los? Acha mesmo que eu não veria o suicídio
de Gottschalk como uma conseqüência de possuir o livro? A última pista que eu precisava era saber que o livro
supostamente transferiria ‘conhecimento’ a alguém que não resistisse. Eu posso ser um simples mortal, demônio, mas
conheço sua laia muito bem.”
“Você não sabe de nada, Abiram! Seus 50 anos de estudo o tornam pouco melhor do que qualquer outro
mortal.” Os olhos dele começam a brilhar, emitindo uma luz amarelada. “Sabia que Gottschalk tentou me destruir
também? Ele voltou meus ritos contra mim, Abiram!” Preciso terminar este símbolo logo, mas ele é detalhado demais,
exige muita precisão e cuidado. Preciso de muito mais tempo do que tenho à disposição. “Gottschalk aproveitou o elo
entre minha essência e seu corpo, criado pelos próprios símbolos do livro e marcou o próprio corpo para tentar me
aprisionar como você tenta agora!”, o demônio urra. Vamos, vamos, eu repito em minha mente, enquanto me
concentro no símbolo a ser esculpido e não nas palavras da criatura! Tenho um pressentimento ruim de que ele achou
alguma falha em meu rito de proteção e está tentando explora-la. “E ele se suicidou numa tentativa de me eliminar,
Abiram, mas ele falhou! Assim como você também vai falhar!”
De repente, um som de tiro me ensurdece. O susto me faz largar a adaga. Eu me viro e noto Cláudio afastando
o braço de Andreas. Andreas tentou atirar em minha nuca! Cláudio me salvou! Mas como? Andreas e Cláudio lutam,
mas Cláudio é forte e tem ambos os braços intactos, empurrando Andreas para fora do círculo, ao mesmo tempo em
que retira a arma de suas mãos. Andreas cai, derrubando algumas das velas que nos cercam.
Eu grito para Cláudio. “Coloque essas velas de volta, rápido!” O demônio se move rapidamente, tentando usar
a brecha no círculo para entrar, mas felizmente Cláudio consegue ser mais rápido, pondo as velas de volta em pé. Por
sorte, o óleo em que as embebedei fez com que elas não se apagassem ao serem derrubadas. O demônio recua, rindo
enquanto agarra Andreas pela perna e o ergue no ar.
O monstro gargalha histericamente: “Você é só um mortal, Abiram Abednego. Como esse traste em minhas
mãos, você morre fácil!” Então, a criatura começa a balançar Andreas e um lado para o outro, batendo-o
violentamente contra as árvores, como se Andreas fosse um pedaço de pano. Preciso continuar a fazer o selo! Procuro
a adaga, e vejo que, no susto, deixei-a cair num canto no interior do círculo. “Pegue para mim, Cláudio.”
Cláudio me entrega a adaga, volto a molha-la no sangue de meu braço e então continuo. O demônio larga o
corpo morto de Andreas e caminha ao nosso redor. Devo admitir que estou começando a ficar angustiado! Cláudio
está à beira de um ataque de nervos, pouco fazendo além daquilo que mando. Ele respira ofegante e murmura orações
desconexas de proteção, parece estar próximo do pânico. O demônio pára adiante de mim, abaixa-se para fitar meu
rosto, mas eu evito seu olhar. “Eu poderia usar o corpo de seu amigo para atacar você, Abiram, bastaria joga-lo sobre
seu círculo e esperar que ele derrubasse algumas velas! Isso provaria o quanto sua magia poderosa nada significa, mas
a angústia que vocês sofrem agora está lentamente me alimentando só preciso mantê-la um pouco mais! Eu não tenho
medo de você!”
Como é possível que ele tenha usado seus poderes sobre Andreas dentro do círculo de proteção? Isso não
devia acontecer. Será que eu cometi alguma falha ao cria-lo?
“Quer saber como, Abiram?”, o monstro pergunta.
Ele estava lendo minha mente? Como isso é possível? A angústia pode ter minado minha força de vontade,
mas ainda assim o círculo me protegeria!
“Você usou Teurgia, Abiram. Foi uma escolha sábia! Magia celeste é muito mais potente contra mim do que
seus truques infernalistas. O círculo protege todos em seu redor e meus poderes não funcionam nele, mas você se
esqueceu que Teurgia beneficia apenas aqueles que não abandonaram Deus.”
Droga! Agora tudo faz sentido! Eu e Andreas estamos jurados ao Inferno! O demônio não pode adentrar no
círculo, nem seus poderes funcionam aqui dentro, mas ele ainda pode nos afetar! Ele ri ao ler, em minha mente, a
minha descoberta. Cometi um erro mortal!
“E mesmo agora com a morte de seu pupilo, Abiram, ainda há uma pessoa neste círculo que eu posso
influenciar.”

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Ele faz um gesto com a mão e sinto vontade de olha-lo. Resisto, mas é como se uma mão invisível empurrasse
meu queixo para cima. Eu preciso resistir!
“Olhe em meus olhos, Abiram Abednego!”
Não! Eu sou Abiram, eu tenho vontade própria ainda! Eu vendi minha alma ao diabo mas ainda não abandonei
minha própria força de vontade!
Ele grita, sentindo minha resistência. “OLHE!” A vontade dele cresce, pouco a pouco vencendo a minha.
Ainda assim, resisto, continuando a desenhar o símbolo. Falta pouco! Falta pouco! Ele rosna de raiva, e começo a
ceder. Lentamente, ainda resistindo, ergo minha cabeça. Tento olhar para baixo... Faço mais um risco na capa do
livro... Falta pouco! Mas então nossos olhos se encontram, e finalmente sinto todo o poder do monstro. Sua vontade é
uma montanha, enquanto a minha é apenas uma rocha. “Jogue fora esta adaga, Abiram Abednego!”
Minha mão treme, mas eu tento resistir! Eu preciso resistir! Porém, minha vontade não é nada perto dele.
Estou fraquejando, mas de repente, o som ensurdecedor de um disparo faz com que a voz do desgraçado saia de minha
cabeça! Minha vontade é de repente minha novamente, e vejo o monstro recuar com um ferimento no ombro. Cláudio,
tremendo, aponta a arma para ele, respirando ofegante, tomado por medo. “Abiram,” diz Cláudio, chorando, “pelo
amor de Deus, termine isso logo!” É claro! O infernal não pode influenciar Cláudio! Por mais desgraçado que ele seja,
ele ainda não vendeu a sua alma ao Inferno!
O demônio recua, tocando o ombro ferido. A luz esverdeada, indicando alguma mágica profana sendo
realizada, fecha rapidamente o ferimento. “Agora, chega!” O demônio se aproxima do corpo de Andreas. Ele pretende
cumprir suas ameaças, vai jogar o corpo sobre nós. Basta que uma vela do círculo seja derrubada para que o demônio
possa usar a brecha para entrar! O monstro ergue o corpo, eu prossigo com a criação do selo. Não dará tempo! Cláudio
atira novamente, mas o demônio coloca o corpo de Andreas no caminho. Cláudio atira várias vezes. A potência da
arma com certeza faz com que os tiros atravessem facilmente o corpo de Andreas, mas a resistência do demônio deve
ser capaz de resistir às balas que o atingirem.
As balas acabam. Khem-Asab ergue o corpo de Andreas acima de sua cabeça. Só faltam mais dois traços, mas
preciso faze-los com precisão para não estragar todo o processo. O demônio rosna, mas é então que algo o derruba,
atingindo-o por trás. Surpreso, paro para observar o que ocorreu, e vejo Helmfrid usando o que resta de sua força para
manter o demônio no chão. Seus ferimentos são terríveis e ele está à beira de tombar novamente, mas ele continua
lutando, tomado por uma fúria que não consigo descrever. Seus olhos estão vazios, seus dentes parecem deformados,
como presas. Ele mantendo o demônio caído de bruços, golpeando-o conforme tenta levantar-se. Pensei que Helmfrid
tinha sido tirado de combate, mas seu poder é maior do que imaginava.
Helmfrid me dá o tempo necessário para terminar o selo. Imediatamente, inicio a oração para trancar o
demônio. Khem-Asab consegue jogar Helmfrid para trás e se levanta com um movimento rápido e poderoso. O
imortal, ou seja lá o que Helmfrid realmente for, está ferido demais para prosseguir. Cláudio se desespera, começa a
mandar que eu termine logo. Khem-Asab dá um golpe final em Helmfrid, rasgando sua garganta. O alemão cai uma
vez mais. Por fim, o demônio se volta para nós e caminha em nossa direção. “Apesar de todos os seus esforços,
Abiram, nem sequer me ferir foram capazes.” Ele avança para erguer novamente o corpo de Andreas.
Então, me levanto, largando a adaga. “E então, cria do traidor e inimigo de Deus, cercado por água, fogo, terra
e ar, entre a luz de Deus e as trevas infernais, eu o aprisiono. E que este selo, feito com meu suor e sangue, seja o
receptáculo que o aprisionará por toda a eternidade.” Mostro a ele a capa do livro. Ele rosna, parece sentir dor. O
corpo se contorce e se transforma, as asas recuam para dentro da carne e seu tamanho encolhe, enquanto a carne preta
e resistente se parte, tornando-se pó e revelando a pele feminina que reside abaixo. Nua, a garota cambaleia, sem
forças e quase inconsciente, mas Cláudio corre e a segura em seus braços, onde ela desmaia. Eu fito o último ato de
Cláudio, mas o que mais chama minha atenção é o peso que carrego em minhas mãos. Sinto, pulsando no interior do
livro, toda a força, fúria e terror da criatura que há pouco estava adiante de nós. Tivemos sorte, muita sorte. Eu respiro
fundo, libero um suspiro de alívio.
Lentamente, deixo o círculo de proteção. Por desdém, chuto algumas velas. Cláudio, com a garota nos braços,
vira-se para mim e me pergunta: “O que vai acontecer agora?”
“Agora?” Eu o encaro, sacando minha desert eagle. “Agora eu sou o único aqui que está armado. Eu decido o
que fazer.” Ele permanece calado, está assustado. Cláudio viu hoje muito mais do que esperava, passou por um terror
que nenhum mortal merece passar. Eu mesmo não saí sem cicatrizes: dois bons servos foram mortos e uma vez mais
descobri as minhas próprias fraquezas e limitações. Não fosse o imortal, estaríamos mortos. “Eu irei enterrar meus
dois companheiros e você irá me ajudar. Resolva uma maneira de explicar tudo isso à polícia ou encontre um meio de
limpar tudo o que aconteceu aqui. Eu vou embora, vou retornar ao meu país. Já terei problemas demais tendo de
carregar o livro comigo. Quanto ao imortal e à garota, sinta-se à vontade para fazer o que quiser.”
A lua, quase cheia, brilha forte no céu, em meio a nuvens negras. O vento frio continua a soprar. Os sons da
mata, aos poucos, voltam a ser ouvidos, agora que a presença infernal se foi. Esta noite, quatro almas foram enviadas
ao Inferno. Elas tiveram o destino que tenho evitado para mim há 50 anos. Esta noite, os mistérios das Coletâneas de
Meinhard foram finalmente resolvidos, mas ainda permanecem dezenas de perguntas sobre o que tem acontecido. Um
dos governantes do Inferno caminha na Terra, o apocalipse ocorreu no início desse ano. Uma guerra está começando

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aonde nós, mortais, não podemos ver. Consegui apenas as respostas que já conhecia. Então, por que vim atrás das
Coletâneas de Meinhard? Por que as vozes me trouxeram até aqui? Por que perdi tanto e não ganhei nada?
Eu me afasto de Cláudio, que deita a moça sobre o assoalho improvisado de madeira, e cobre o corpo exposto
dela com seu paletó. Ele ainda está um tanto atordoado, pensativo. Como será que irá ver o mundo após esta noite?

Epílogo 1: Retorno
O avião levanta vôo e, após duas semanas desde aquela noite maldita, finalmente estou retornando à Grécia.
Não só tenho sonhado com o meu julgamento final ultimamente, como ouço as maldições furiosas de Khem-Asab
ecoando em meus pesadelos. Após anos e anos me envolvendo com situações assim, ainda me surpreendo com minha
própria resistência a tais influências. Um homem fraco já teria se suicidado, mas eu persevero, sempre. Na sacola que
carrego está o livro. Enquanto não chegarmos ao meu santuário, não tenho coragem de deixar as Coletâneas de
Meinhard fora de minha vista. A escuridão da noite é forte e, pela janela, não consigo ver muito além das luzes da
cidade abaixo. Mesmo essas luzes logo desaparecerão, porém, conforme nos afastamos da civilização e mergulhamos
nas trevas do mundo. O próprio avião está às escuras, muitos passageiros deixam que o sono os vença, mas faço
questão de manter a luz de leitura sobre mim, sempre acesa. Já estou acostumado demais a ficar nas trevas, e mesmo
eu preciso de um pouco de luz às vezes.
Notando a inconsciência do homem que dorme ao meu lado, eu retiro o livro da sacola e fito o selo que
contém Khem-Asab em seu interior. Enquanto este símbolo não for destruído e ninguém mais abrir este livro, o
espírito de Khem-Asab permanecerá trancado. Eu usei tiras de couro para amarrar o livro e impedir que qualquer um o
abra. Tocando a capa da obra, posso sentir a raiva do demônio aprisionado. Ele está dormente, incapaz de interagir
com o mundo, mas ainda assim sinto sua fúria e frustração.
É então que o passageiro ao meu lado desperta. É um senhor de idade, uns sessenta anos talvez, de cabelos
brancos, parcialmente careca e de bigode. Ele resmunga coisas sem sentido ao acordar. Provavelmente, sonhava com
algo. A princípio penso que ele sequer irá ligar para a obra, no máximo irá comentar que é um livro estranho. Porém,
sua primeira frase ao despertar por completo me surpreende: “Encontrar as Coletâneas de Meinhard não foi uma tarefa
simples, foi?”.
Olho com surpresa para o misterioso homem, que sorri amistosamente. “O que disse?”, pergunto.
“Ora, Abiram Abednego,” ele murmura, demonstrando claramente que me conhece, “se eu não soubesse a
respeito deste livro, você mesmo jamais o procuraria.”
O quê? O que ele quer dizer com isso? Quem é esse homem? Então, noto algo. A presença que tenho sentido
todos esses meses, aquilo que tem caminhado por este mundo... O Grande Lorde infernal... está ao meu lado. Meus
olhos arregalam-se e sinto um terror maior do que qualquer coisa que já senti. Perco o controle, respiro com
dificuldade, tremo, e a mente se desconcentra. Ele lentamente estende sua mão, calmamente, e apanha as Coletâneas
de Meinhard.
“Não se preocupe, Abiram. Se recuperar sua concentração, notará que não estou apenas aqui, verá que ainda
pode me sentir além do horizonte. Estou em muitos lugares ao mesmo tempo. Este que está ao seu lado é apenas um
mortal sem valor que, por conveniência, decidi que falaria por mim.”
O que ele quer de mim?
“Quando você sentiu minha vinda, você tentou contatar o Plano das Idéias. Para me proteger de todos os
feiticeiros que viriam a fazer o mesmo, eu influenciei as respostas que cada um deles procurava. Acredito que Khem-
Asab disse bem: ‘Dá-se o impulso correto e farão livremente aquilo que se deseja’. Você é só um entre muitos,
Abiram, não se sinta mal. Mesmo Khem-Asab imaginava que poderia se colocar à parte das coisas e observa-las
enquanto se imaginava seguro.”
“Por quê?” Eu pergunto, gaguejando. “Por que precisa de mim?”
“Eu não preciso, Abiram. Para mim, você não tem importância alguma, mas gosto de experimentar
possibilidades não-lineares. Tenha em mente que centenas de milhares estão me procurando, tentando desvendar o que
planejo e descobrir o que faço. Eu preciso criar distrações, realizar manipulações, despistar os meus perseguidores.
Não posso permitir que me atrapalhem antes da hora chegar.”
Novamente, tomo coragem para perguntar: “E por que está me contando tudo isso?”
“Por que você me impressionou, Abiram,” ele responde. “Poucos são os mortais com sua força de vontade e
capacidade! Estou satisfeito com você, que buscou respostas, e acho que merece tê-las. Considere-se felizardo, pois
nem sempre sou tão generoso.”
“Então, posso perguntar o que virá a seguir?”
“Não posso dar-lhe detalhes. Meus planos não mais serão escritos em profecias, Abiram. Todos estiveram
acostumados demais a lê-las e a segui-las. Quero me beneficiar do fato de que, de agora em diante, não haverá mais
visões para guiar ninguém, e que o futuro é nebuloso. Mas posso garantir-lhe uma coisa, Abiram. Levará tempo, mas
haverá guerra, e haverá vingança! O mundo dos homens não sairá intacto do conflito que virá, eu temo.”

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Então, ele me entrega o livro. “Cuide bem de Khem-Asab. Por sua insolência em tentar colocar-se à parte de
meus planos, eu o condenei a jamais descobrir o que tanto desejava. Que o próprio livro que ele criou seja sua prisão
eterna! E prepare-se, Abiram Abednego, para a tempestade que está por vir.”
Em seguida, o homem se cala, apóia a cabeça na poltrona e dorme. Sinto a presença desaparecer e nem mesmo
no horizonte posso senti-la mais. Ele desapareceu por completo! O tempo todo, ele poderia se ocultar totalmente se
desejasse!
O vôo prossegue, cortando os céus negros. Não deixo de ter a idéia de que ele me deu o estímulo correto... E
agora, querendo ou não, vou acabar realizando alguma coisa que está em seus planos. Sou mais um peão nesta guerra.
Sei que este encontro ainda me trará pesadelos no futuro. Fico lembrando tudo o que passei nos últimos 50 anos, e
imagino pelo que ainda terei de passar. Será que quanto mais eu demorar para ir para o Inferno, mais rápido o Inferno
virá até mim?

Epílogo 2: Novo Começo


20 de Dezembro de 2002.
A campainha está tocando, e eu corro para atende-la. Não preciso olhar quem é, nem preciso perguntar, apenas
abro a porta do apartamento para Marcos entrar. Sorrio. Nossa, ele está lindo! Terno, gravata, cabelo cortado, barba
feita e sorridente! Está um verdadeiro cavalheiro, lindo como só ele pode ser. “Oi, Tasha, já está pronta? Uau! Você
está linda!”
“Você acha?” Sorrio, dando uma voltinha para ele me observar. Estou usando um longo vestido negro, de
gala. Fiz um tratamento no cabelo e me maquiei toda apenas para esta noite. “Só preciso me calçar e poderemos ir,
está bem? Mas antes...” Eu o beijo e ele retribui, sem resistência, carinhosamente. Nos abraçamos, e me sinto tão
bem... Mas não podemos ficar assim para sempre!
Assim que nossos lábios se afastam, eu limpo a boca dele, suja de batom. Ele logo fica sério. “Tem certeza que
quer continuar com isso?”
Eu o olho nos olhos. “Já tivemos essa conversa, não? Sim, eu quero. Eu quero aceitar o convite de Cláudio.
Sei que ele não presta, mas acho que fui feita para isso!”
Agora que o Cris, digo, o Cristiano morreu, os líderes europeus da Fundação Amanhecer apontaram um novo
diretor para São Paulo. Eu o conheci há alguns dias. Não quer dizer que eu confie muito, mas parece ser um bom
homem. Cláudio relatou boa parte do que aconteceu e eles me chamaram.
“Eu não vou perder a festa de minha iniciação na Fundação Amanhecer de maneira alguma. A partir de hoje,
serei uma Pesquisadora Noviça!” Sorrio, meus braços envolvem o pescoço de Marcos. “Ah, vai, Marc... Até deixaram
eu convida-lo, mesmo com você não sendo um membro. Muitos lá respeitam você, tanto pelo que aconteceu em Belo
Horizonte, como com o que você fez recentemente! Sem o Cris, as coisas do passado não vão se repetir.”
“Está bem, está bem...”, ele concorda. “Contra seu entusiasmo, nem eu posso vencer.”
“Não reclame do meu entusiasmo!”. Eu me afasto para me calçar. “Se dependesse só de sua desconfiança, nem
estaríamos juntos.”
Marcos ri discretamente. “É, tem razão.”
Bem, na verdade, sequer estamos juntos de verdade. Não somos namorados nem nada... Somos só... mais que
amigos. Depois que Cláudio me contou a verdade sobre o Marcos, eu acho que entendi um pouco melhor os medos
dele, e parei de forçar a barra. Ainda gosto muito dele, mas somos... ah, sei lá como definir. Nos encontramos pelo
menos uma vez por mês, conversamos muito, nos beijamos, passamos uns dias juntos, dormimos juntos... e depois ele
sai, e aí ou volta para Belo Horizonte para ver a filha dele, ou vai cuidar de seus misteriosos assuntos, seja lá o que for.
Há meses em que ficamos duas ou três semanas juntos, como foi Dezembro, por exemplo. Depende muito do que ele
resolve fazer naquele mês. Marcos vive me dizendo que eu não preciso me prender a ele, que posso arrumar outra
pessoa para mim, mas sei que gosta de mim, tem até ciúmes de mim. Um relacionamento estranho, mas um dia, quem
sabe não se torne algo mais normal?
Enquanto me calço, sentada no sofá, Marcos se aproxima, mãos nos bolsos da calça, andando lentamente. “Já
disse que as atividades de uma pesquisadora da Amanhecer podem ser perigosas, não disse?”
“Sim, Marcos,” eu sorrio, olhando-o, “mas você também disse que posso contar com você para me proteger,
não disse?”
“Eu não vou estar presente sempre, Tasha...”
“Tá, mas eu não vou ser indefesa para sempre, Marc...”
Pronto! “Estou pronta,” eu digo, levantando-me do sofá num pulo. “Vamos?” Saímos juntinhos como um
casal. “Hoje a noite será grande e gloriosa! Estou muito emocionada.”
Saindo do apartamento, não deixo de pensar em tudo o que aconteceu. Não me lembro direito daquela última
noite, nem me recordo de quase nada sobre as Coletâneas. Não lembro o que eram ou o que significavam os símbolos,
não consigo sequer me recordar das palavras que ouvia em minha mente. É como se aquilo tudo tivesse me
abandonado de uma vez por todas. Mas, depois daquilo, meus olhos se abriram para o mundo. Eu podia sentir o não-
natural, podia notar que nem tudo era como parecia. Quando falei com Cláudio, nos dias em que esperávamos Marcos

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se recuperar dos ferimentos, ele me contou algumas coisas, mas com certeza não tudo. Disse que ninguém estava
preparado para certas coisas que ele viu e ouviu. Cláudio tem estado calado. Conversei com outros pesquisadores da
Amanhecer e disseram que ele mudou. Ele nunca reportou tudo o que viu naquela noite. Pior é que, de todos os
presentes, apenas Cláudio e Abiram presenciaram tudo até o fim. Abiram desapareceu logo depois e eu não sei o que
pensar de Cláudio. Ele pode ser um bastardo, mas cuidou de mim e, principalmente, do Marcos. Marc ficou cheio de
faixas e ataduras por mais de um mês, mas logo se recuperou por completo, não restando sequer cicatrizes. De
qualquer forma, eu não confio em Cláudio, mas ele parece estar arrependido ou, pelo menos, parece querer compensar
as coisas, o que é bom, visto que Marcos ainda quer acertar as contas.
E, lembrando de tudo o que passei, notei que eu nasci para isso. Eu sempre quis que o mundo fosse algo mais,
que houvesse um pouco de magia e misticismo, que não fosse apenas ciência fria e racionalidade. E, no fim, descobri
que esse mundo é muito mais do que aparentava. Cláudio, por mais que eu o odeie, me iniciou na Fundação
Amanhecer, e hoje me tornarei uma pesquisadora de fato. Terei acesso a suas bibliotecas, poderei discutir com seus
membros, e minhas pesquisas serão financiadas pela Fundação. Poderei descobrir muito, muito mais.
Este mundo, tenho certeza, está cheio de revelações a serem feitas, é um mundo mágico, porém assustador.
Assim como há mágica, há monstros, caos, loucura, desespero. Ainda assim, há muito o que quero descobrir. Esse é,
sem dúvida, um mundo de descobertas e, enquanto eu viver, quero ver seus mistérios com meus próprios olhos.

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