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A dissertação tem o título: “Subvertendo a moralidade: contracultura e cinema

marginal no Brasil (1969-1970)”. O objetivo geral foi o de analisar as representações da


contracultura veiculadas por três filmes do Cinema Marginal – A mulher de todos (Rogério
Sganzerla, 1969); Meteorango Kid (André Luiz Oliveira, 1969) e Os monstros de Babaloo
(Elyseu Visconti, 1970) – com vistas a um entendimento das estratégias estéticas e políticas
e das tomadas de posição dos autores no campo artístico-cultural brasileiro na passagem da
década de 1960 para 1970.
O primeiro capítulo divide-se em três partes e busca, de modo geral, delimitar o
contexto histórico que norteia a pesquisa e o objeto: a contracultura e suas representações
fílmicas produzidas e veiculadas no período de maior violência da ditadura militar. A primeira
parte é voltada para uma apresentação panorâmica da produção artística no país ao longo
da década de 1960, centrada em três tópicos que consideramos de grande importância para
a compreensão do período: a) o papel das esquerdas nas artes, sobretudo a concepção de
arte submetida à revolução ou à transformação sociais, com base no ideário nacional-
popular; b) a consolidação da indústria cultural no Brasil a partir do golpe de 1964 e c) a
emergência, após 1968, de uma produção cultural marginal e marginalizada em que se
inserem os filmes tomados como fontes. A segunda parte concentra a discussão em torno
das duas tendências cinematográficas autorais de maior destaque nas décadas de 1960 e
1970: tentamos aqui relacionar o Cinema Novo e o Cinema Marginal, com a intenção de
evidenciar suas diferenças, principalmente, mas, também, as semelhanças. Nesta parte,
aprofundamos a discussão sobre conceito de representações, nas abordagens dos autores
Roger Chartier e Denise Jodelet, que embasa a análise fílmica, isto é, atentamo-nos para o
processo de percepção e reconstrução da realidade social mediante os filmes produzidos no
âmbito dos dois movimentos cinematográficos. A terceira parte, por sua vez, debruça-se
sobre o conceito de contracultura, partindo de sua acepção original, advinda da reflexão
sobre os protestos e movimentos juvenis ocorridos nos EUA na década de 1960, e
desembocando na influência desses movimentos contraculturais no Brasil, sobretudo nas
artes, ainda na década de 1960. A relevância do terceiro subcapítulo reside na tentativa de
compreender as particularidades da contracultura no país, ultrapassando a ideia de que a
ação contestatória por parte de jovens artistas consistiu em mera apropriação, sem crítica
ou filtros, do que vinha sendo realizado no hemisfério norte.
No segundo capítulo iniciamos as análises dos filmes. Antes disso, porém,
empreendemos uma discussão sobre a noção de marginalidade com base em autores como
Jean Claude-Schmitt e Norbert Elias. O objetivo de retomar a categoria de “marginalidade”
foi o de melhor compreender as razões e as formas de marginalização social, bem como
suas representações em manifestações artísticas brasileiras entre meados das décadas de
1960 e 1970. É notável que a marginalidade serve, nesse período, tanto como identidade
político-ideológica, assumida conscientemente a partir da intenção de um distanciamento
dos “centros” culturais, políticos, econômicos e sociais, vistos através de uma ótica negativa,
quanto como “matéria-prima” para as obras que visam a uma reflexão sobre as diversas
marginalidades, que incluem desde as formas de marginalização urbana e social, a exemplo
das favelas e guetos precarizados e considerados antros de degeneração, aos marginais da
política, perseguidos, mortos e torturados sob o rótulo de terroristas. A segunda parte do
segundo capítulo versa, enfim, sobre as representações do Brasil nos três filmes tomados
como fontes. Interessou-nos, nesse aspecto, o modo como a sociedade brasileira – suas
hierarquias e formas de organização históricas –, a economia modernizada autoritariamente
e a política atravessada por discursos moralistas e impactada pela ditadura foram (re)
criados nas esferas fictícia e imagética. As análises apontam para uma percepção
extremamente negativa sobre o Brasil, representado ora como “paraíso tropical”, ora como
“república das bananas”, ora ainda como um grande centro urbano, caótico e desordenado,
mas sempre marcado pela violência, paranoia, boçalidade, sujeira. No tocante aos aspectos
estéticos, notamos que os filmes, em gradações variadas, são pontuados pelo apelo aos
elementos grotescos e aberrantes e pela displicência quanto a falhas técnicas. As falhas, o
mau acabamento e a pobreza em geral são assumidos como condições incontornáveis, o
que possibilita aos cineastas a crítica ao cinema brasileiro e à cultura burguesa, com suas
noções de refinamento e bom gosto.
O terceiro capítulo, por fim, abarca as análises dos filmes a partir de certas
aspectos associados historicamente à contracultura. Divide-se em duas partes, sendo a
primeira dedicada às representações da família nos filmes, o que permitiu-nos identificar a
presença de crises e conflitos decorrentes da emancipação feminina – notável, sobretudo,
em A mulher de todos – e choques geracionais – em Meteorango Kid, principalmente.
Em contraposição a discursos conservadores da época, incluindo os do general
Emílio Garrastazu Médici, que elegiam a família como espaço de amor, união, trabalho,
sustentáculo da nação, as representações veiculadas pelos filmes apresentam famílias em
ruínas, nas quais os valores morais burgueses são encenados com cinismo. De diferentes
modos, os filmes debocham da instituição familiar, questionando a autoridade masculina
sobre a esposa e os filhos e ridicularizando a respeitabilidade atribuída à configuração da
família nuclear burguesa. Na segunda parte do capítulo, empreendemos uma análise acerca
do “desbunde”, entendido como um conjunto de práticas e representações que visa a uma
valorização do prazer e do corpo, em contraste com as posturas de rigidez e disciplina
associadas tanto aos militares instalados no Estado quanto aos militantes ortodoxos da
esquerda. No nosso entender, com base nas análises dos filmes e de posicionamentos dos
sujeitos que adeririam ao desbunde, mesmo quando práticas hedonistas, como o sexo e o
uso de drogas alucinógenas, têm como objetivo a fuga da realidade, o caráter contestatório
à uma ordem moral é reafirmado, uma vez que tais atos contradizem os ideais sociais tidos
como nobres e desejáveis, identificados nos discursos e representações oficias sobre a
nação. Nesse sentido, se a sociedade comemora efusivamente o consumismo e o milagre
econômico e fecha os olhos ou mesmo incentiva as políticas de extermínio perpetradas pelo
Estado, e se ambos, sociedade e Estado, zelam cuidadosamente pelos valores morais que
contribuem para a grandiosidade da pátria, o desbunde, sem propor um projeto coletivo para
a superação das crises e problemas sociais, revela-se, sim, um ato de resistência.
Assim, nota-se que os atos de seleção e classificação que operam na construção de
uma realidade social, no caso dos cineastas marginais, deram origem a representações que
delimitaram um lugar específico para um grupo de pessoas inconformadas e ávidas de
renovação nas formas de comunicação artística, embora, comparativamente, os filmes
apresentem diferenças em sua estética e abordagem temática. Esse lugar, arquitetado por
meio de “práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social” (CHARTIER, 1991,
p.183), é identificável por sua marginalidade autoafirmada de diferentes perspectivas:
comercial, estética, política e ideológica. O Cinema Marginal, exemplificado nos três filmes
que tomamos como fontes, possibilitou uma recusa dupla: aos projetos hegemônicos e
conservadores, aliados ao regime militar e seus valores, e, também, à militância à esquerda,
cujo projeto de sociedade, aos olhos da contracultura, parecia fadado ao fracasso, seja pela
sua ineficiência, seja pela pretensão de conquista dos instrumentos tradicionais do exercício
do poder.

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