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07-02-2018
A volta do Parafuso
Nadir Afonso
Este livro começa com uma evocação de Gilgamesh. Qual o seu significado?
Sim, embora considere “ficção” uma palavra vazia, prefiro “romance”. O romance
enquanto buraco negro que atrai memórias, experiências e todo o tipo de matérias
que depois são usadas como um barro. O jornalismo é uma forma extraordinária de
captar a realidade (que é o que na verdade me interessa), mas tem algumas
limitações, próprias do exercício da profissão. Neste momento, quero tentar uma
escrita que não tenha esses constrangimentos.
São muitos os exemplos de escritores que escrevem sobre sítios que nunca
conheceram. Isso nunca acontecerá consigo?
Não descarto essa possibilidade. Não faria sentido agora que estou a entrar num
território de total liberdade. Além disso, eu estive em todos os lugares que são
referidos no livro, mas não necessariamente naquelas alturas, estações do ano ou
circunstâncias. Entre os dois caminhos que se costuma traçar, um borgiano, da
imaginação e da fantasia, e outro proustiano, da experiência e da memória, o meu
será sempre o segundo.
Perceber o que é real, quando se torna real, quando acontece ou é contado? Claro
que a forma de chegar a essa verdade não passa por contar as coisas como ou no
momento em que se realizaram. Se calhar conseguiremos transmitir com mais
vivacidade essa realidade retocando-a e transfigurando-a. Nesse sentido, este livro
é também um jogo que proponho ao leitor.
Não diria amor, antes paixão ou desejo de paixão ou até desejo de aventura,
dependendo do ponto de vista. Interessou-me explorar esse tema, que é tanto meu
como de muitas outras pessoas, e perceber o seu fracasso, a sua angústia, o seu
vazio, a sua irrealidade. Entender também até que ponto essa paixão é gerada e
impossibilitada pelo exterior, se é ou não fabricada e afetada pelo contexto.
Eis a questão. Talvez não. A paisagem, aqui, mais do que um pano de fundo é
também uma personagem. Esta história existe porque as circunstâncias da Ana e
do Leon são aquelas, naquele lugar, com uma intensidade específica que gera uma
aproximação e uma vontade. Quando se retira a paisagem, descobre-se que não há
nada debaixo dos pés.
Esse é outro campo que me interessa particularmente. A relação sexual pode ser
um revelador, como na fotografia, das próprias personagens, dos seus avanços e
recuos, das suas limitações. É um território muito rico, que lida com o que é mais
nosso. É como se, ao entrar na literatura, estivesse a iniciar um caminho para
dentro, depois de ter feito um para fora, como jornalista. E todos estes temas são
da mesma ordem. Quero descobrir como se pode lidar com a memória e a
experiência de uma paisagem, de uma cidade, de um lugar e de duas pessoas
numa cama. No livro, cito um poema de John Berger que fala precisamente disto:
“Maravilhoso o vento de primavera para os/ marinheiros que anseiam partir/ E mais
maravilhoso ainda o lençol que cobre dois/ amantes numa cama”. É isso que
procuro: o marinheiro que está à espera que o vento sopre nas suas velas e a
intimidade de duas pessoas. É também uma tentativa de tornar a leitura uma
experiência sensorial.
O editor, no século XVII, é que às vezes atribuía poemas a Camões para garantir
que eram mais lidos. Durante muitos séculos, o texto foi mais importante que o
nome. Por que razão se dá tanta importância à originalidade? É uma ideia que vem
do Romantismo e tem a ver com o nome. Camões usava modelos clássicos e não se
importava com isso. Ler e publicar os textos era o que interessava.
Os clássicos não são clássicos porque escreveram uma coisa diferente, mas porque
escreveram de uma maneira diferente. Pegaram numa ideia, por mais pequena que
fosse, e converteram-na numa história universal. E também os clássicos foram
influenciados por outros clássicos. Por isso, originalidade é levar o leitor a sentir
que está a ler uma coisa nova. O que interessa é que o que lemos continue a criar
emoções.
Mesmo que o escritor se isole numa torre do fim do mundo, será sempre
influenciado. Todos nos apropriámos do que outros disseram e escreveram.
quem sou eu para pensar que em algum momento da minha escrita podia ser
original e superar os cânones? Bloom fala da angústia da influência. Apetece-me
falar da oportunidade da influência.
Todos nós falamos das mesmas coisas, do amor, articulado com a morte, da vida,
dos nossos mundos, medos, alegrias, tristezas. Que são as da humanidade. Já tudo
foi dito. A nossa única solução é dizer tudo de outra maneira.
Se formos para trás e pensarmos nos clássicos, Homero não foi buscar as suas
intrigas do nada. Camões também não.
Mas olho para estas arcas que estão no palco e penso que elas carregam os livros
que todos os escritores já leram. Sem essa leitura não há escritores.
O Homero escreveu sobre tudo, mas não viveu na nossa época. E cabe-nos
actualizar os mesmos temas.
Foi o que tentei fazer no meu primeiro livro de Poemas, Nuvens e Labirintos, em
que tentei imaginar mitos clássicos no final do século XX. Nada muito original.
Original só no sentido em que fui eu que o fiz, com a minha sensibilidade.
Saul Bellow dizia que o importante é o estilo. Porque há muito poucas intrigas.
Alguém perde alguma coisa e encontra-a. Duas pessoas apaixonam-se. Algum
inicia uma investigação para descobrir a verdade de um assunto.
Não sei o que é piegas. Há aquele verso da Adília Lopes: sou sensível, não sou
piegas.
A pieguice não alimenta literatura, mas a pieguice pode ser literatura. É tudo uma
questão de estilo, de forma.
O leitor depois de ler um livro quase que poderia ser o autor desse mesmo livro, já
que sentiu as mesmas sensações que o escritor teve.
Tema: Éramos violentos e não sabíamos. Ideias chaves: Desaparecida das livrarias,
será que a poesia ainda é o que era ou já não somos um país de poetas? Que
qualidade tem a poesia no país dos poetas sem qualidades?
Todos sentimos fome, raiva e transformo noutra coisa. Digo sempre: cospe o sumo
dessa violências e faz dela outra coisa.
De um poema que escreveu e que está fixado na cidade velha. E foi lido por uma
senhora que pensava suicidar-se. Aquelas palavras salvaram a sua vida.
A poesia tem de criticar o que deve ser criticado, mas usá-la para a violência não
me parece bem. A poesia deve transmitir uma certo ambiente de paz. Tem de nos
conduzir a outros caminhos, porque a vida é uma passagem. Quem tem experiência
da vida sabe o que a palavra consegue. É por isso que a minha poesia é feita de
amor e de paz e eu estou muito contente com isso.
Um poeta antigo chinês fez um poema com 200 perguntas, desde o início dos
tempos. Cada perguntas mais profunda que a anterior. É essa a minha imagem de
poeta.
"O poeta procura respostas a perguntas não feitas". A poesia para mim não é o
espelho da realidade. Não é dizer o que está visível.
"O poeta procura respostas a perguntas não feitas". A poesia para mim não é o
espelho da realidade. Não é dizer o que está visível.
Como a poesia pode mudar a nossa vida? Somos Outros quando escrevemos. É
fundamental escrever esse Outro. o que me parece importante na violência, é
transformar as suas raízes. Sempre que se escreve arte, há tensão. Numa ideia
para um poema, contos, para a vida, alguma tensão é muito importante. Numa
tranquilidade ou felicidade plena parece que não ha necessidade da escrita. Para
mim, a arte esta sempre associada à inquietação.
Um poeta tem de lutar sempre. Mas não sinto que um poeta consiga lutar contra o
poder económico e político, sem antes lutar contra o seu verdadeiro inimigo, a
realidade.
O poeta é um cidadão. Mas a sua luta é consigo. Se ele fala com o Estado faz
propaganda. O poeta é íntimo, interior.
A crítica foi - e não será ainda - responsável por uma sacralização da literatura. A
crítica era exercida por muito intelectuais e escritores que levavam ao
estabelecimento de um grupo quase fechado onde era impossível entrar. Essa
crítica acabou por influenciar, sobretudo no final do século XIX de influenciar o
poder político e formar o cânone. Hoje isso nas universidade já é recusado. Há
outros critérios. Mas ao mesmo tempo também me preocupa o facto de hoje os
jovens que chegam às universidade não conhecerem o que se publicou antes de
1950. A crítica aí não cumpriu o seu papel.
A influência da crítica. É um tema que me parece que tem a ver com a globalização.
Há sempre uma imposição geral. E uma reacção de uma pessoa ou grupo
minoritário que quer manter a sua identidade. Por mais lojas de hambúrgueres,
haverá sempre um português a gostar do seu cozidinho.
Ana Margarida Falcão pede a palavra. Diz que o cânone pode ser visto de várias
maneiras. Em Portugal, há quem considere do cânone só Camões e Pessoa. E quem
em relação a outros autores não temos ainda o distanciamento.
Portugal sempre foi pobre e sempre viveu em crise. Apenas fomos iludidos nos
últimos anos. A nossa grande riqueza é a história e a cultura portuguesas, que
temos esquecido na voragem material. Não será o tempo que vai dizer quem ficará
para a história, mas as pessoas. O primeiro livro que me marcou profundamente
foi Os Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes. Continuo a achar que qualquer um pode
escrever. É o instrumento mais democrático do mundo. Está ao alcance de todos. E
entramos na livraria e temos total liberdade para escolher. A crítica literária
desapareceu um pouco. Dedica-se sobretudo a nichos. Fala para pessoas que já
gostam de ler. As pessoas desconfiam da crítica literária, porque durante muitos
anos ela foi dirigida e fechada. Às vezes andam a contra-círculo. Quando dão más
criticas, vende-se. E vice-versa. Nos livros e no cinema. Nos livros também
acontece porque caiu-se no erro de dar estrelas. Acabou a narrativa sobre os livros.
A televisão acabou por destruir um pouco a crítica literária. A literatura não soube
usar a televisão. A televisão não pode ser uma coisa para as pessoas como algo
que tivesse lepra.
Muito do sucesso dos meus livro tem a ver com a minha presença na televisão. Às
vezes os autores também se afastaram dos leitores.
"É preciso distinguir a felicidade pessoal e a colectiva. Uma amiga minha dizia que
quando era pequena, durante a Guerra Civil Espanhola, era muito feliz, por mais
contraditório que possa parecer. O mundo para as crianças é livre. Por issso, é
possível ser feliz em momentos muito trágicos.
Entra em campo Inês Pedrosa. "Não sei se Marx contribuiu para a felicidade
colectiva. Tentou criar regras para a distribuição colectiva, apesar das posteriores
utilizações totalitárias. Mas mesmo ele que se preocupava com os outros cuidava
muito mal dos da sua família".
Vergílio Ferreira dizia: A felicidade não está em nós mas no que acontece em nós
desse acontecer.
Todos damos por natural o direito a sermos felizes antes de mortos. Antes,
era depois. Esta ideia muito moderna, não tem mais de cinco séculos. Tem
a sua origem na descoberta da América e da Utopia de Thomas More. Aí se
plasma pela primeira vez a ideia de felicidade antes da morte. E a Utopia é
um livro. O que nos leva à escrita, que é uma procura dessa felicidade.
O escritor deve procurar acima de tudo uma grande beleza formal. Falar dos
problemas da sociedade, mas tratar bem a língua. Mas um escritor num momento
destes, olha para a sua barriga e fica quieto? Não procura analisar o que se passa?
Com todo o direito de fazerem arte pela arte, se o escritor acrescentar à arte
formal um contributo para mudar a sociedade cumprirá bem a sua função. Melhor
quadro de Picasso. Guernica. Às vezes é possível conseguir conciliar as duas coisas.
Não falo de realismo social. Mas há muitas maneiras de viver que estão prestes a
desaparecer na europa. O mundo campesino, por exemplo. Inês Pedrosa concorda.
Diz que o realismo socialista levado ao extremo denegriu o papel do intelectual. Por
outro lado, também houve um isolamento da universidade, para evitar essas
contaminações ideológicas.
Sobre Agustina
Agustina teve sempre uma capacidade rara de se dizer em verdade. "Eu sou uma
virtuosa. Espero quando morrer poder começar a fazer milagres", dizia a Agustina.
A sua intervenção, de facto, foi sempre da ordem do milagre. Agustina não sabe
escrever mal. E sabe escrever bem. Escrever bem é ter algo para dizer e saber
dizê-lo com frases que se nos cravam na pele.
"Desde criança que não causo uma impressão amigável", como reconhecia. Isto
porque é inesquecível.
De livro para livro a mão foi-se tornando mais leve, a escrita mais certeira. Os seus
últimos romances usam uma linguagem cada vez mais transparente e rápida, como
se conhecesse um atalho para a verdade.
Abre-se ao acaso qualquer livro de Agustina e encontramos sempre uma frase que
nos toca. O génio de Agustina está na capacidade de criar instalações estética de
grande arrojo.
Agustina parece sempre ter sabido viver dentro e fora do tempo, numa espécie de
laboratório científico da alma.
Um avô paterno deixou-lhe uma grande fortuna num testamento que a mãe
rasgou.
E gostava também de filmes. Ocorreu-lhe casar com Orson Wells. Mas desistiu
quando soube que ele tinha acabado de casar. Nunca fui de destruir casamentos,
dizia.
"A vida é feita de arrumações que não são nossas", escreveu Agustina.
Disse muitas vezes que se não fosse escritora seria uma grande política, talvez
primeira-ministra.
Agustina sempre foi capaz de escrever sobre todos os temas e confere a todos os
temas o mesmo grau de dignidade.
Há uma alegria, uma alegria do mundo. Este é o seu dom. Maravilha e maldição
que parece nascer pronta. Uma disciplina do optimismo que se lança sobre a vida.
Podemos discordar dela, mas nunca saímos dos seus livros sem sermos
contagiados pela sua inteligência.
Muitas das suas crónicas estão por publicar, espero que por pouco tempo.
É sem dúvida uma escritora de dimensão internacional. Pena que Portugal não
tenha sabido divulgá-la em todo o mundo. Leiam-na.