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Apontamentos de Blogues

07-02-2018

A volta do Parafuso

Sobre Clarice Lispector

Publicado em 1946, O Lustre é o segundo livro de Clarice Lispector. Como nota


Benjamin Moser na referida biografia, ao contrário do fragmentário Perto do
Coração Selvagem, o seu primeiro romance, aqui estamos perante um conjunto
coerente. “Apesar de os seus extensos segmentos descreverem propositadamente
acontecimentos, consistem sobretudo em longos monólogos interiores,
interrompidos apenas por um singular e perturbador fragmento contendo diálogo
ou ação”, afirma o investigador norte-americano. “O livro progride em ondas lentas
que se elevam, alterosas, nos momentos de revelação. As páginas entre estas
epifanias são precisamente os momentos em que o livro se torna mais intolerável
para o leitor, que é forçado a seguir o movimento interior de outra pessoa com um
detalhe microscópico. Acostumado às epifanias, esperando estímulos e surpresas
permanentes, o leitor que aborde o livro pela primeira vez depressa se sente
desconcertado.”

Nadir Afonso

Diplomado em arquitectura, trabalhou com Le Corbusier e Oscar Niemeyer. Nadir


Afonso estudou pintura em Paris e foi um dos pioneiros da arte cinética,
trabalhando ao lado de Victor Vasarely, Fernand Léger, August Herbin e André Bloc.
Nadir Afonso é autor de uma teoria estética, tendo publicado em vários livros onde
defende que a arte é puramente objectiva e regida por leis de natureza
matemática, que tratam a arte não como um acto de imaginação, mas de
observação, percepção e manipulação da forma. Nadir Afonso alcançou
reconhecimento internacional e está representado em vários museus. As suas obras
mais famosas são a série Cidades, que sugerem lugares em todo o mundo. Com 92
anos de idade, ainda trabalhava activamente na pintura.

Entrevista Alexandra Lucas Pires

Este livro começa com uma evocação de Gilgamesh. Qual o seu significado?

Marcar, desde o início, a passagem de uma fronteira. Gilgamesh é a nossa narrativa


primordial, o primeiro de todos nós, como se diz no livro. Ao nomeá-lo, a narradora
imita aquelas pessoas que ao entrar num templo ou terreiro evocam o espírito que
lhe preside. A narradora convoca o passado para ter consciência do que está para
trás e sublinhar que o território que vai pisar é o da literatura, das histórias que se
contam. Se virmos os meus livros como um percurso, este prólogo é o momento
em que eu assinalo a passagem dessa fronteira.

A que separa o jornalismo da ficção?

Sim, embora considere “ficção” uma palavra vazia, prefiro “romance”. O romance
enquanto buraco negro que atrai memórias, experiências e todo o tipo de matérias
que depois são usadas como um barro. O jornalismo é uma forma extraordinária de
captar a realidade (que é o que na verdade me interessa), mas tem algumas
limitações, próprias do exercício da profissão. Neste momento, quero tentar uma
escrita que não tenha esses constrangimentos.

São muitos os exemplos de escritores que escrevem sobre sítios que nunca
conheceram. Isso nunca acontecerá consigo?

Não descarto essa possibilidade. Não faria sentido agora que estou a entrar num
território de total liberdade. Além disso, eu estive em todos os lugares que são
referidos no livro, mas não necessariamente naquelas alturas, estações do ano ou
circunstâncias. Entre os dois caminhos que se costuma traçar, um borgiano, da
imaginação e da fantasia, e outro proustiano, da experiência e da memória, o meu
será sempre o segundo.

O que a interessa nesse campo da memória e da experiência?

Perceber o que é real, quando se torna real, quando acontece ou é contado? Claro
que a forma de chegar a essa verdade não passa por contar as coisas como ou no
momento em que se realizaram. Se calhar conseguiremos transmitir com mais
vivacidade essa realidade retocando-a e transfigurando-a. Nesse sentido, este livro
é também um jogo que proponho ao leitor.

Uma história de amor?

Não diria amor, antes paixão ou desejo de paixão ou até desejo de aventura,
dependendo do ponto de vista. Interessou-me explorar esse tema, que é tanto meu
como de muitas outras pessoas, e perceber o seu fracasso, a sua angústia, o seu
vazio, a sua irrealidade. Entender também até que ponto essa paixão é gerada e
impossibilitada pelo exterior, se é ou não fabricada e afetada pelo contexto.

Esta paixão não seria possível noutro contexto?

Eis a questão. Talvez não. A paisagem, aqui, mais do que um pano de fundo é
também uma personagem. Esta história existe porque as circunstâncias da Ana e
do Leon são aquelas, naquele lugar, com uma intensidade específica que gera uma
aproximação e uma vontade. Quando se retira a paisagem, descobre-se que não há
nada debaixo dos pés.

A relação entre Ana e Leon é idealizada mas também muito física...

Esse é outro campo que me interessa particularmente. A relação sexual pode ser
um revelador, como na fotografia, das próprias personagens, dos seus avanços e
recuos, das suas limitações. É um território muito rico, que lida com o que é mais
nosso. É como se, ao entrar na literatura, estivesse a iniciar um caminho para
dentro, depois de ter feito um para fora, como jornalista. E todos estes temas são
da mesma ordem. Quero descobrir como se pode lidar com a memória e a
experiência de uma paisagem, de uma cidade, de um lugar e de duas pessoas
numa cama. No livro, cito um poema de John Berger que fala precisamente disto:
“Maravilhoso o vento de primavera para os/ marinheiros que anseiam partir/ E mais
maravilhoso ainda o lençol que cobre dois/ amantes numa cama”. É isso que
procuro: o marinheiro que está à espera que o vento sopre nas suas velas e a
intimidade de duas pessoas. É também uma tentativa de tornar a leitura uma
experiência sensorial.

Notas do Festival Literário da Madeira

O editor, no século XVII, é que às vezes atribuía poemas a Camões para garantir
que eram mais lidos. Durante muitos séculos, o texto foi mais importante que o
nome. Por que razão se dá tanta importância à originalidade? É uma ideia que vem
do Romantismo e tem a ver com o nome. Camões usava modelos clássicos e não se
importava com isso. Ler e publicar os textos era o que interessava.

Karla Suárez: Mesmo em histórias que já conhecemos abrem-se janelas para


outros universos.

Os clássicos não são clássicos porque escreveram uma coisa diferente, mas porque
escreveram de uma maneira diferente. Pegaram numa ideia, por mais pequena que
fosse, e converteram-na numa história universal. E também os clássicos foram
influenciados por outros clássicos. Por isso, originalidade é levar o leitor a sentir
que está a ler uma coisa nova. O que interessa é que o que lemos continue a criar
emoções.

Como andamos a escrever o mesmo que os clássicos. Será a originalidade um valor


sobrestimado? Na era da inovação obrigatória, a literatura tem sido capaz de se
reinventar ou está cada vez mais repetitiva?

Um escritor transfigura a realidade, transmuta e modifica as leituras que outros


fizeram por ele.

Mesmo que o escritor se isole numa torre do fim do mundo, será sempre
influenciado. Todos nos apropriámos do que outros disseram e escreveram.

quem sou eu para pensar que em algum momento da minha escrita podia ser
original e superar os cânones? Bloom fala da angústia da influência. Apetece-me
falar da oportunidade da influência.

Todos nós falamos das mesmas coisas, do amor, articulado com a morte, da vida,
dos nossos mundos, medos, alegrias, tristezas. Que são as da humanidade. Já tudo
foi dito. A nossa única solução é dizer tudo de outra maneira.

Se formos para trás e pensarmos nos clássicos, Homero não foi buscar as suas
intrigas do nada. Camões também não.

É um pouco como o eterno retorno modificado. E no momento em que nos


sentamos a escrever são as palavras dos escritores que já lemos. Às vezes n\ao
sabemos se a ideia é nossa ou está a ser soprada por alguém que chegou antes.
Precisamos sempre do que os outros disseram antes de nós.

Mas olho para estas arcas que estão no palco e penso que elas carregam os livros
que todos os escritores já leram. Sem essa leitura não há escritores.

O Homero escreveu sobre tudo, mas não viveu na nossa época. E cabe-nos
actualizar os mesmos temas.
Foi o que tentei fazer no meu primeiro livro de Poemas, Nuvens e Labirintos, em
que tentei imaginar mitos clássicos no final do século XX. Nada muito original.
Original só no sentido em que fui eu que o fiz, com a minha sensibilidade.

Saul Bellow dizia que o importante é o estilo. Porque há muito poucas intrigas.
Alguém perde alguma coisa e encontra-a. Duas pessoas apaixonam-se. Algum
inicia uma investigação para descobrir a verdade de um assunto.

Somos originais se não nos preocuparmos em tentar ser originais.

"Os livros que mais me interessam estão na fronteira de géneros".

Ideias chave: Somos um povo de escritores e romances piegas? A lamúria


afadistada sempre encontrou terreno fértil na literatura? Os nossos heróis sofrem e
choram muito?

Mais uma referência piegas, diz a moderadora: as cartas de Fernando Pessoa a


Ofélia. Lê alguns fragmentos.

Não sei o que é piegas. Há aquele verso da Adília Lopes: sou sensível, não sou
piegas.

Se é exacerbar emoções, eu sou piegas.

A pieguice não alimenta literatura, mas a pieguice pode ser literatura. É tudo uma
questão de estilo, de forma.

O leitor depois de ler um livro quase que poderia ser o autor desse mesmo livro, já
que sentiu as mesmas sensações que o escritor teve.

Tema: Éramos violentos e não sabíamos. Ideias chaves: Desaparecida das livrarias,
será que a poesia ainda é o que era ou já não somos um país de poetas? Que
qualidade tem a poesia no país dos poetas sem qualidades?

Todos sentimos fome, raiva e transformo noutra coisa. Digo sempre: cospe o sumo
dessa violências e faz dela outra coisa.

A palavra é capaz de matar e resuscitar uma pessoa. A poesia é liberdade. Uma


mensagem que queremos transmitir aos outros. Nem que seja uma palavra de
esperança.

De um poema que escreveu e que está fixado na cidade velha. E foi lido por uma
senhora que pensava suicidar-se. Aquelas palavras salvaram a sua vida.

A poesia tem de criticar o que deve ser criticado, mas usá-la para a violência não
me parece bem. A poesia deve transmitir uma certo ambiente de paz. Tem de nos
conduzir a outros caminhos, porque a vida é uma passagem. Quem tem experiência
da vida sabe o que a palavra consegue. É por isso que a minha poesia é feita de
amor e de paz e eu estou muito contente com isso.

Um poeta antigo chinês fez um poema com 200 perguntas, desde o início dos
tempos. Cada perguntas mais profunda que a anterior. É essa a minha imagem de
poeta.
"O poeta procura respostas a perguntas não feitas". A poesia para mim não é o
espelho da realidade. Não é dizer o que está visível.

"O poeta procura respostas a perguntas não feitas". A poesia para mim não é o
espelho da realidade. Não é dizer o que está visível.

Cresci numa praia de grande violência, a da Nazaré, onde naufragavam muitas


pessoas. Toda a minha infância foi um olhar sobre a tragédia. Imagine uma criança
hoje na Síria, a olhar para o que se está a passar. É muito diferente, porque não
havia sangue. Era uma tragédia silenciosa. E aí ou nos fechamos ou nos abrimos.
Para mim, o importante foi abri-me, encontrar palavras. Como falar sobre a minha
infância, sobre estas mortes? Com uma avó vestida de negro porque o filho se
suicidou do sítio da Nazaré. E ela fala com ele, com o filho morto. O que me
apareceu primeiro foi o teatro. Porque a Nazaré era uma cenário, os barcos a
voltarem-se e os pescadores a desaparecerem. As pessoas aos gritos. Escrevi aos
18 anos as minhas primeiras peças, também marcadas pelo Sartre e o
existencialismo. Personagens sentadas à procura de saída. Mostrei as peças ao
Bernardo Santareno, que me perguntou: já leu Herberto Helder? Foi um rasgão.
Um murro. E depois veio a Guerra Colonial e eu fugi para França. Um poeta precisa
de encontrar o seu caminho, entre o caos.

Como a poesia pode mudar a nossa vida? Somos Outros quando escrevemos. É
fundamental escrever esse Outro. o que me parece importante na violência, é
transformar as suas raízes. Sempre que se escreve arte, há tensão. Numa ideia
para um poema, contos, para a vida, alguma tensão é muito importante. Numa
tranquilidade ou felicidade plena parece que não ha necessidade da escrita. Para
mim, a arte esta sempre associada à inquietação.

A poesia pode mudar a vida?, repito. Eu estava no terceiro ano do curso de


medicina e tive uma crise. Li um livro, Fanny Owen. Conheci outras pessoas.
Apaixonei-me. A literatura mudou a minha vida.

Um poeta tem de lutar sempre. Mas não sinto que um poeta consiga lutar contra o
poder económico e político, sem antes lutar contra o seu verdadeiro inimigo, a
realidade.

É preciso lutar contra a repetição do olhar, os hábitos da percepção.

A primeira revolução do poeta deve ser a da palavra.

O poeta é um cidadão. Mas a sua luta é consigo. Se ele fala com o Estado faz
propaganda. O poeta é íntimo, interior.

A moderadora lança as pistas do tema. Somo pobres? A crítica literária cumpre o


seu papel? A importância da leitura.

A crítica foi - e não será ainda - responsável por uma sacralização da literatura. A
crítica era exercida por muito intelectuais e escritores que levavam ao
estabelecimento de um grupo quase fechado onde era impossível entrar. Essa
crítica acabou por influenciar, sobretudo no final do século XIX de influenciar o
poder político e formar o cânone. Hoje isso nas universidade já é recusado. Há
outros critérios. Mas ao mesmo tempo também me preocupa o facto de hoje os
jovens que chegam às universidade não conhecerem o que se publicou antes de
1950. A crítica aí não cumpriu o seu papel.

Pergunto-me também onde poderá um jovem encontrar referências a outros livros?


Na livraria não encontra. Aí há best-sellers, grandes vendas. E as páginas nos
jornais dedicadas à cultura são cada vez menos. O aproximar os autores do público,
com humor e graça, é bom porque se dá a conhecer novos autores, como se tem
feito neste festival. E também é bom para desmistificar o papel do escritor. A
literatura talvez tenha sido sempre isso: um sobe e desce de valores, novos
valores, nomes. Há imensa gente a escrever. E isso é uma enorme dificuldade de
selecção.

A influência da crítica. É um tema que me parece que tem a ver com a globalização.
Há sempre uma imposição geral. E uma reacção de uma pessoa ou grupo
minoritário que quer manter a sua identidade. Por mais lojas de hambúrgueres,
haverá sempre um português a gostar do seu cozidinho.

Dessacralizo completamento a literatura, embora seja a minha vida. Um escritor é


um profissional, como um médico ou calceteiro. Cada um tem a sua profissão e tem
de dar sempre o máximo. Associo sempre a actividade de escritor à de crítico, até
porque em Portugal não dá para viver só da literatura. A crítica literária em
Portugal, sobretudo até à primeira metade do século XX, era feita por jornalistas.
Aliás, a palavra certa é publicistas. A partir de anos 50 a crítica literária deu um
pulo. Deve-se a professores universitários, como Óscar Lopes. Nos anos 60 houve
muita influência do estruturalismo e dos poetas da Poesia 61. Depois do 25 de abril
foi o tempo da crítica empenhada. Houve muita confusão. Até para instituir um
novo cânone. Se pensarmos quem era o cânone no dia 24 de abril de 1974 e dois
anos depois, houve nomes que desapareceram. Porque o cânone corrigiu-se tanto,
teve uma guinada ao centro, que deixou de lado autores de esquerda e não só.
Foram alguns poetas, como o Nuno Júdice ou Joaquim Manuel Magalhães, que
obrigaram a uma nova perspectiva da poesia. O que esses novos poetas trouxeram
foi uma nova linguagem.

Se pensarmos em Espanha, o que nos vem à cabeça se calhar é o Cervantes ou o


Picasso. A riqueza é mais essa do que outra qualquer. Isto não invalida que haja
crise. Também na Madeira não são os viadutos que impressionam, mas por
exemplo a artista Carla Cabral, uma das melhores. Tanto na crise, como na crítica,
tudo tem a ver com a percepção. Afonso Cruz pede ajuda ao livro de Paul
Watzlawick, A Realidade é Real?, para continuar. A crise às vezes também se deve
ao foco que lhe damos. Ela não acaba se não pensarmos nela, mas se calhar não
precisamos de lhe prestar tanta atenção. Lê o excerto do livro intitulado A
conquista da felicidade. A crítica ao longo da história criou seguramente muitas
gripes das aves. Valorizou autores que não tinham essa importância.

Ana Margarida Falcão pede a palavra. Diz que o cânone pode ser visto de várias
maneiras. Em Portugal, há quem considere do cânone só Camões e Pessoa. E quem
em relação a outros autores não temos ainda o distanciamento.

Portugal sempre foi pobre e sempre viveu em crise. Apenas fomos iludidos nos
últimos anos. A nossa grande riqueza é a história e a cultura portuguesas, que
temos esquecido na voragem material. Não será o tempo que vai dizer quem ficará
para a história, mas as pessoas. O primeiro livro que me marcou profundamente
foi Os Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes. Continuo a achar que qualquer um pode
escrever. É o instrumento mais democrático do mundo. Está ao alcance de todos. E
entramos na livraria e temos total liberdade para escolher. A crítica literária
desapareceu um pouco. Dedica-se sobretudo a nichos. Fala para pessoas que já
gostam de ler. As pessoas desconfiam da crítica literária, porque durante muitos
anos ela foi dirigida e fechada. Às vezes andam a contra-círculo. Quando dão más
criticas, vende-se. E vice-versa. Nos livros e no cinema. Nos livros também
acontece porque caiu-se no erro de dar estrelas. Acabou a narrativa sobre os livros.
A televisão acabou por destruir um pouco a crítica literária. A literatura não soube
usar a televisão. A televisão não pode ser uma coisa para as pessoas como algo
que tivesse lepra.

Muito do sucesso dos meus livro tem a ver com a minha presença na televisão. Às
vezes os autores também se afastaram dos leitores.

O moderador pergunta se a palavra é felicidade ou insuffisance.

"É preciso distinguir a felicidade pessoal e a colectiva. Uma amiga minha dizia que
quando era pequena, durante a Guerra Civil Espanhola, era muito feliz, por mais
contraditório que possa parecer. O mundo para as crianças é livre. Por issso, é
possível ser feliz em momentos muito trágicos.

Fajardo continua: "Quando falamos de felicidade falamos da nossa percepção da


vida"."É desta percepção que nasce o sentimento de felicidade ou não da vida. O
relato ou discursos, como contamos a vida a nós próprio, é importante para nos
sentirmos ou não felizes. O mesmo aplica-se a uma sociedade".

Entra em campo Inês Pedrosa. "Não sei se Marx contribuiu para a felicidade
colectiva. Tentou criar regras para a distribuição colectiva, apesar das posteriores
utilizações totalitárias. Mas mesmo ele que se preocupava com os outros cuidava
muito mal dos da sua família".

Em Portugal é frequente perguntar-se: como estás? Vai-se andando, responde-se.


Fomos pessimistas, ao contrário dos Espanhóis. Mas também não tivemos grandes
catástrofes, como a Guerra Civil Espanhola. Moderados no bom e na tragédia.

Vergílio Ferreira dizia: A felicidade não está em nós mas no que acontece em nós
desse acontecer.

Outra citação de Inês Pedrosa, agora de Antonio Tabucchi: O medo é a infelicidade,


a infelicidade é o medo.

Todos damos por natural o direito a sermos felizes antes de mortos. Antes,
era depois. Esta ideia muito moderna, não tem mais de cinco séculos. Tem
a sua origem na descoberta da América e da Utopia de Thomas More. Aí se
plasma pela primeira vez a ideia de felicidade antes da morte. E a Utopia é
um livro. O que nos leva à escrita, que é uma procura dessa felicidade.

O escritor deve procurar acima de tudo uma grande beleza formal. Falar dos
problemas da sociedade, mas tratar bem a língua. Mas um escritor num momento
destes, olha para a sua barriga e fica quieto? Não procura analisar o que se passa?
Com todo o direito de fazerem arte pela arte, se o escritor acrescentar à arte
formal um contributo para mudar a sociedade cumprirá bem a sua função. Melhor
quadro de Picasso. Guernica. Às vezes é possível conseguir conciliar as duas coisas.

No século XX fizeram-se coisas extraordinária. O Realismo, como uma explicação


do mundo. E uma literatura quase autista. Entre uma e outra temos de tirar
algumas ilações.

Não falo de realismo social. Mas há muitas maneiras de viver que estão prestes a
desaparecer na europa. O mundo campesino, por exemplo. Inês Pedrosa concorda.
Diz que o realismo socialista levado ao extremo denegriu o papel do intelectual. Por
outro lado, também houve um isolamento da universidade, para evitar essas
contaminações ideológicas.

Os homens toleram fazer a guerra mas não tê-la feito.

Sobre Agustina

Agustina teve sempre uma capacidade rara de se dizer em verdade. "Eu sou uma
virtuosa. Espero quando morrer poder começar a fazer milagres", dizia a Agustina.

A sua intervenção, de facto, foi sempre da ordem do milagre. Agustina não sabe
escrever mal. E sabe escrever bem. Escrever bem é ter algo para dizer e saber
dizê-lo com frases que se nos cravam na pele.

Agustina caça esse lugar de todos os lugares que é o desespero humano. O


desespero maquilhado em festa. Por isso gostou tanto de frequentar festivais e
festas. Não só artísticos. Recordo uma crónica sobre cardiologia. São microcosmos
práticos do teatro humano.

"Desde criança que não causo uma impressão amigável", como reconhecia. Isto
porque é inesquecível.

Agustina começa sobretudo por um olhar, um luminoso olhar de raio X. Que


começa por uma paixão pela alma humana, com um humor libertino e uma paixão
cristã.

Só os títulos já são todo um programa.

"Escrevo para incomodar o máximo de pessoas com a maior inteligência".

"Escrevo para desiludir com mérito", dizia Agustina.

Agustina: uma pensadora de todas as coisas por pensar.

De livro para livro a mão foi-se tornando mais leve, a escrita mais certeira. Os seus
últimos romances usam uma linguagem cada vez mais transparente e rápida, como
se conhecesse um atalho para a verdade.

Um ensaio potente sobre Portugal e os portugueses. Uma reflexão lúcida sobre as


motivações profundas e as escolhas políticas da humanidade. É sempre de relações
humanas que nos fala. Do desespero mas também da alegria do mundo.
Não é por acaso que os nossos maiores cineastas se interessam pelos seus
romances. As suas personagens convocam esse poder das imagens inesquecíveis.

Abre-se ao acaso qualquer livro de Agustina e encontramos sempre uma frase que
nos toca. O génio de Agustina está na capacidade de criar instalações estética de
grande arrojo.

Agustina parece sempre ter sabido viver dentro e fora do tempo, numa espécie de
laboratório científico da alma.

Recordação da biografia da escritora. Em pequena, lia muito. Não se destacava


entre as colegas que tinham melhores notas, menos em português.

Pai tão terno quanto distante.

Um avô paterno deixou-lhe uma grande fortuna num testamento que a mãe
rasgou.

A mãe justificou o acto com a maior fortuna da filha: a inteligência. E Agustina


sempre preferiu o conquistado ao dado.

Teve sempre com Deus uma relação cautelosa.

Aceitou o catolicismo da mesma forma que aceitaria o islamismo se tivesse crescido


no mundo muçulmano.

Como todas as meninas quis ser bailarinas. Mas de cabaret.

E gostava também de filmes. Ocorreu-lhe casar com Orson Wells. Mas desistiu
quando soube que ele tinha acabado de casar. Nunca fui de destruir casamentos,
dizia.

Era consciente que os casamentos se mantêm no equilíbrio entre confiança e


paixão. É preciso dedicação.

Sobre um estilo que só na aparência é clássico, a autora estilhaça todas as


convenções da criação de personagens e do desenvolvimento da acção.

No mundo de Agustina, o tempo é o menor dos escultores.

"A vida é feita de arrumações que não são nossas", escreveu Agustina.

Aquilo que mais gosto no Judeu é a Incerteza apaixonada", dizia Agustina.

Disse muitas vezes que se não fosse escritora seria uma grande política, talvez
primeira-ministra.

A sua última intervenção política, para espanto de muitos que a arrumam na


prateleira da direita, foi a favor da Interrupção Voluntária da Gravidez.

Agustina sempre foi capaz de escrever sobre todos os temas e confere a todos os
temas o mesmo grau de dignidade.

Há uma alegria, uma alegria do mundo. Este é o seu dom. Maravilha e maldição
que parece nascer pronta. Uma disciplina do optimismo que se lança sobre a vida.
Podemos discordar dela, mas nunca saímos dos seus livros sem sermos
contagiados pela sua inteligência.

As suas recorrentes considerações sobre a emancipação das mulheres só


aparentemente são conservadoras.

Muitas das suas crónicas estão por publicar, espero que por pouco tempo.

António José Saraiva: Agustina é o segundo milagre do século XX português, depois


de Fernando Pessoa.

É sem dúvida uma escritora de dimensão internacional. Pena que Portugal não
tenha sabido divulgá-la em todo o mundo. Leiam-na.

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