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TOTEM E TABU

Freud

(Cap. IV: 5-6, Relógio D'Água, pp. 199-216)

Ora imaginemos o cenário de uma dessas refeições totémicas e completemo-lo, ainda, com
alguns aspectos prováveis que não tivemos, até agora, oportunidade de considerar. O clã, no
decurso de uma cerimónia solene, mata de forma violenta o seu totem e ingere-o cru na sua
totalidade, carne, sangue e ossos; durante essa cerimónia, os membros da tribo estão vestidos
de forma a assemelharem-se ao seu totem, imitando os sons e os movimentos por ele
produzidos, como se quisessem vincar bem a sua identidade com ele. Têm plena consciência de
que estão todos a cometer um acto que está vedado a cada um individualmente, e que só a
participação de toda a comunidade pode justificar, pelo que ninguém se pode eximir a tomar
parte na morte e na ingestão do totem. Uma vez realizado o acto, começam todos a carpir e a
lamentar o animal sacrificado. O pranto fúnebre é obrigatório, é provocado pelo receio de
represálias que podem estar iminentes, e visa, fundamentalmente, tal como Robertson Smith
notou em análoga circunstância, absolver o clã da responsabilidade do crime cometido.72

A este luto, porém, segue-se uma festa de grande animação e regozijo, em que todos os
instintos se manifestam livremente e todas as satisfações são permitidas. E fácil, então, se
torna para nós discernir qual a essência da festa, em geral.

Uma festa é um excesso permitido, ou antes, um excesso imposto, é a violação solene de uma
proibição. Se as pessoas cometem as transgressões, isso não acontece por elas se sentirem
alegres em resultado de uma qualquer norma, mas sim porque o excesso é parte integrante da
essência da festa; a disposição festiva é devida à liberdade de fazer o que, noutras
circunstâncias, seria proibido.

Mas para quê, então, o cerimonial preliminar desta alegria festiva, para quê o luto pela morte do
animal totémico? Se se alegram com a morte do totem, que noutras circunstâncias seria
proibida, então porquê a carpidura? Já anteriormente ficámos a saber que os membros do clã
adquirem um carácter sagrado quando comem do seu totem, reforçando, dessa forma, a sua
identificação com ele e de uns com os outros. O regozijo, a festa e tudo o que a eles está ligado
poderiam ser explicados pelo facto de os membros do clã terem incorporado a sacralidade do
totem ao comungar da sua substância.
A psicanálise revelou-nos que o animal totémico é, na verdade, o substituto simbólico do pai,
tendo para tal concorrido a contradição que existe no facto de que, sendo vedado matá-lo, a sua
morte é causa de grande regozijo, e ainda de que o animal é morto e depois se chora a sua
morte. A ambivalência de emoções, que continua, ainda hoje, a caracterizar o complexo paterno
das nossas crianças e muitas vezes se prolonga na vida adulta, estender-se-ia, também, à
substituição simbólica do pai representada pelo animal totémico.

Só confrontando a tradução psicanalítica do totem com o facto real da refeição totémica e com a
hipótese formulada por Darwin sobre o estado primitivo da sociedade humana nos é possível
aceder a uma mais funda compreensão, e vislumbrar uma hipótese que, por muito fantástica
que nos pareça, oferece a vantagem de estabelecer uma imprevista unidade entre séries de
fenómenos, até agora sem conexão aparente.

Na horda primitiva concebida por Darwin não há o menor lugar, como é evidente, para o
arranque do totemismo. Ela não passa de um pai violento e ciumento que reclama para si todas
as fêmeas e expulsa os filhos que vão acedendo à idade adulta. Este estado originário da
sociedade nunca foi observado em parte alguma. O que encontramos como a organização social
mais primitiva, e que ainda hoje vigora em certas tribos, são associações de homens formadas
por membros de iguais direitos, sujeitos às limitações do sistema totémico, entre as quais a
hereditariedade matrilinear. Será possível que estas tenham derivado da horda darwiniana e,
em caso afirmativo, por que vias?

Se nos basearmos na cerimónia solene da refeição totémica, podemos encontrar uma resposta.
Um dia73 os irmãos expulsos juntaram-se, mataram o pai e comeram-no, acabando, assim,
com a horda patriarcal. Unidos, atreveram-se a fazer o que teria sido impossível a cada um
deles separadamente. (O sentimento de supremacia ter-lhes-á advindo, talvez, de um avanço
cultural ou da circunstância de disporem de uma nova arma). Não é de estranhar o facto de
terem comido o morto, uma vez que se tratava de selvagens canibais. O violento pai primevo
era, decerto, o modelo invejado e temido por cada um dos irmãos do grupo. Ao devorá-lo, eles
afirmaram a sua identificação com ele, e cada um deles incorporou em si um pedaço da sua
força. A refeição totémica, talvez o primeiro festim da humanidade, seria a repetição e a
comemoração desse acto memorável e transgressor que foi o começo de tantas coisas: as
organizações sociais, as restrições morais e a religião74.

Para tomar críveis estas consequências sem levar em conta as condições prévias precisamos,
apenas, de admitir que o bando de irmãos amotinados se encontrava dominado pêlos mesmos
sentimentos contraditórios em relação ao pai que apontamos como integrando a ambivalência
do complexo paterno manifestado nas nossas crianças e nos nossos doentes neuróticos.
Odiavam o pai, que era um poderoso obstáculo à sua sede de poder e às suas pretensões
sexuais, mas, por outro lado, amavam-no e admiravam-no. Depois de o terem eliminado, de
terem aplacado o ódio que sentiam e de terem satisfeito o seu desejo de identificação com ele,
as suas emoções, subjugadas no decurso deste processo, não puderam deixar de se
manifestar75. E isso deu-se sob a forma de remorso, originando uma consciência de culpa que,
neste caso, coincidiu com o remorso sentido por todos. O morto ganhou, assim, muito mais
poder do que aquele que tinha em vida, tal como acontece, ainda hoje, com os destinos
humanos. Aquilo que o pai tinha impedido, quando ainda em vida, isso mesmo proíbem eles,
agora, a si próprios no quadro de uma situação psíquica que a psicanálise nos tomou tão
familiar, a «obediência retroactiva». Abjuraram o seu acto ao interditar a morte do substituto do
pai, do totem, e renunciaram aos seus frutos ao renegar as mulheres, agora libertadas.
Criaram, desta forma, a partir da consciência de culpa do filho, os dois tabus fundamentais do
totemismo que, por essa mesma razão, tinham de ser coincidentes com os dois desejos
recalcados do complexo de Édipo. Quem quer que infringisse esses tabus seria culpado dos dois
únicos crimes que afligiam a sociedade primitiva76.

Os dois tabus do totemismo, que introduzem a moralidade dos humanos, não têm o mesmo
valor do ponto de vista psicológico. Apenas um deles, a atitude de respeito para com o animal
totémico, assenta inteiramente em motivos afectivos: o pai tinha sido, de facto, eliminado e o
que estava feito era irreparável. O outro tabu, no entanto, a proibição do incesto, tinha uma
vincada fundamentação pragmática. A necessidade sexual não une os homens, antes os divide.
Se, por um lado, os irmãos se tinham associado para vencer o pai, por outro lado todos eles
eram rivais no que dizia respeito às mulheres. Cada um deles gostaria de as ter todas para si,
tal como o pai, e essa luta de todos contra todos iria fazer soçobrar a nova organização, uma
vez que, entre eles, não havia nenhum que, sendo o mais forte, se impusesse e chamasse a si,
com êxito, o papel de supremacia até então desempenhado pelo pai. Aos irmãos, se queriam
continuar a viver unidos, não restava, assim, outra alternativa, depois de superadas, talvez,
graves discórdias, que não fosse a instituição da proibição do incesto. Em obediência a essa lei,
desistiram todos, sem excepção, da posse das mulheres que tanto tinham cobiçado e que
tinham constituído a razão primeira da eliminação do pai. Salvaram, dessa forma, a organização
que os tinha tomado fortes e que se fundava, possivelmente, em sentimentos e práticas
homossexuais nascidas entre eles durante o tempo do exílio. Terá sido eventualmente também
essa situação que gerou as instituições de direito materno, reconhecidas por Bachofen, até que
este foi substituído pela organização da família patriarcal.

Ao outro tabu, que protege a vida do animal totémico, está ligada, pelo contrário, a pretensão
do totemismo de ser considerado como a primeira tentativa de instituição de uma religião. Se,
por um lado, o animal se apresentava à sensibilidade dos filhos como o substituto mais natural e
evidente do pai, por outro lado, a atitude daqueles para com esse animal, atitude que lhes era
imposta, expressava algo mais do que a simples necessidade de manifestarem o seu remorso.
Podia tratar-se de uma tentativa de, perante o substituto do pai, acalmarem o sentimento de
culpa que os atormentava, de estabelecerem uma espécie de reconciliação com o próprio pai. O
sistema totémico era como que um acordo estabelecido com o pai, em que o totem prometia
tudo o que a imaginação infantil pode esperar de um pai — protecção, cuidados e tolerância —
sendo, em troca, tomado para com ele o compromisso de respeitar a sua vida, ou seja, de não
repetir com ele o acto que provocara a morte do verdadeiro pai. Havia, também, no totemismo
uma tentativa de justificação. «Se o pai nos tivesse tratado como o totem nos trata, nunca
teríamos sucumbido à tentação de o matar.» O totemismo contribuiu, assim, para atenuar a
gravidade da situação e para fazer esquecer o acontecimento a que devia a sua origem.

No decurso deste processo surgiram traços que, daí em diante, se tomaram determinantes para
o carácter da religião. A religião totémica nasceu da consciência de culpa dos filhos, como
tentativa de amenizar esse sentimento e de apaziguar a ira do pai ofendido, promovendo uma
obediência retroactiva. Todas as religiões surgidas posteriormente se revelam como tentativas
de solução desse mesmo problema, variando em cada caso de acordo com as condições
civilizacionais em que surgiram e de acordo com as vias traçadas para o solucionar; todas têm,
porém, o mesmo objectivo e são reacções ao grande incidente que deu origem à civilização e
que, desde então, nunca mais deixou de perturbar a humanidade.

Por essa altura surgiu também no totemismo um outro traço que a religião preservou com a
maior fidelidade. A tensão causada pela ambivalência era, porventura, demasiado forte para
poder ser equilibrada por uma qualquer organização, ou as condições psicológicas não se
mostravam, em geral, favoráveis à solução dessa contradição de sentimentos. Seja como for, é
de registar que a ambivalência inerente ao complexo paterno se mantém, em geral, tanto no
totemismo como nas religiões. A religião totémica não só abrangia as manifestações de remorso
e as tentativas de reconciliação, mas servia, também, para fazer lembrar o triunfo sobre o pai.
O regozijo sentido dá azo à instituição da cerimónia comemorativa da refeição totémica, em que
são postas de lado todas as restrições da obediência retroactiva, e decreta o dever de se passar
a repetir o crime de parricídio na forma de sacrifício do animal totémico sempre que o benefício
obtido por aquele acto, ou seja, a apropriação das qualidades do pai, esteja em perigo de
desaparecer devido à modificação das condições de vida. Não ficaremos surpreendidos ao
descobrir que em posteriores formações religiosas irá surgir, igualmente, o elemento da rebeldia
filial, muitas vezes alterado ou dissimulado sob os mais singulares disfarces.

Se, até agora, analisámos a transformação em remorso da corrente afectiva para com o pai e as
consequências que esta teve para a religião e para os códigos morais, dois campos ainda pouco
diferenciados no totemismo, não podemos deixar de notar que, no essencial, a vitória coube às
tendências que levaram ao parricídio. Por longo período de tempo a partir daí, os sentimentos
fraternos sociais, sobre que assentou a grande modificação, mantiveram a mais funda influência
no desenvolvimento da humanidade, encontrando a sua expressão na sacralização do sangue
comum e na confirmação da solidariedade de todas as vidas do mesmo clã. Os irmãos, ao
garantirem, reciprocamente, a preservação das suas vidas, estão a comprometer-se a não
permitir que nenhum deles possa ser tratado por outrem como o próprio pai foi tratado por
todos eles em conjunto. Excluem, assim, toda e qualquer possibilidade de uma repetição do que
aconteceu ao pai. A interdição, de base religiosa, de matar o totem junta-se, agora, a
interdição, de base social, de matar o irmão. Muito tempo decorrerá, ainda, até que esta
interdição ultrapasse os limites da tribo e passe a exprimir-se desta forma simples: não
matarás. A horda paterna começa por dar lugar ao clã fraterno, baseado nos laços de sangue. A
sociedade fundamenta-se, agora, na culpa colectiva do crime praticado em comum, a religião na
consciência de culpa e no remorso daí decorrente, a moralidade nas necessidades desta
sociedade, por um lado, e na ânsia de expiação exigida por esse sentimento de culpa, por outro
lado.

Contrariando as mais recentes concepções do sistema totémico e confirmando as mais antigas,


a psicanálise diz-nos que o totemismo e a exogamia tiveram uma origem simultânea e que
entre eles existe uma íntima relação.

Muitas e fortes razões levam-me a resistir à tentação de descrever o posterior desenvolvimento


das religiões, desde o seu início no totemismo até à sua situação actual. Quero limitar-me a
seguir duas linhas que se destacam claramente nesta teia: a motivação que leva ao sacrifício
totémico e a relação do filho com o pai.

Robertson Smith ensinou-nos que a primitiva refeição totémica reaparece na forma originária do
sacrifício. O sentido do acto é o mesmo: a santificação através da participação na refeição
tomada em comum; a consciência de culpa mantém-se aí presente e só pode ser atenuada pela
solidariedade de todos os participantes. O elemento novo é a divindade da tribo que assiste,
invisível, ao sacrifício e que participa na refeição como se fosse um membro da tribo, sentindo-
se todos os restantes membros identificados com ela por provarem do sacrifício. De que forma
se deu esta participação do deus numa situação com a qual, originariamente, nada tinha a ver?

A isto poder-se-ia responder que, entretanto, a ideia de deus havia surgido — não se sabe bem
donde — e havia dominado toda a vida religiosa, e que a refeição totémica, tal como tudo o
mais que pretendera sobreviver, se vira obrigada a adaptar-se ao novo sistema. Só que a
análise psicanalítica do indivíduo revela, com particular ênfase, que a imagem de deus é criada
por cada indivíduo a partir do seu pai, que a sua relação pessoal com deus depende da sua
relação com o pai de carne e osso, varia e transforma-se de acordo com ela e que deus, afinal,
não é mais do que um pai glorificado. Neste caso, como no caso do totemismo, a psicanálise
aconselha a acreditar nos crentes quando chamam pai ao deus, tal como chamaram
antepassado ao totem. Se os dados fornecidos pela psicanálise merecem alguma consideração,
então, independentemente de todas as outras origens e significados de deus, para os quais a
psicanálise é incapaz de fornecer explicação, temos de admitir que a participação do pai na
formação da ideia de deus é extremamente importante. Mas, sendo assim, o pai estaria
duplamente representado na cena do primitivo sacrifício, uma vez como deus e outra vez como
animal totémico a ser sacrificado; e, a despeito da modéstia ditada pela restrita variedade das
soluções psicanalíticas possíveis, somos levados a perguntar se tal é possível e que significado
pode ter.

Sabemos que existem relações múltiplas entre o deus e o animal sagrado (totem e animal do
sacrifício):

1 — a cada deus é, normalmente, consagrado um animal e, frequentes vezes, vários animais;

2 — em certos sacrifícios, particularmente sagrados, os sacrifícios «místicos», oferecia-se ao


deus precisamente o animal que lhe tinha sido consagrado78;

3 — o deus era, muitas vezes, adorado na figura de um animal ou, noutra perspectiva, os
animais foram objecto de culto divino durante muito tempo depois da época do totemismo;

4 — nos mitos, o deus transformava-se, frequentemente, num animal, na maior parte das vezes
no próprio animal que lhe era consagrado. E, assim, fácil supor que o próprio deus seria o
animal totémico, tendo derivado deste numa fase ulterior do sentimento religioso. O admitir, no
entanto, que o próprio totem não é mais do que o substituto do pai dispensa-nos de toda e
qualquer discussão. O totem teria sido a primeira forma de substituto paterno, o deus seria uma
forma posterior em que o pai recuperava a sua figura humana. Uma recriação como esta, saída
da raiz de toda a construção religiosa, isto é, da saudade do pai, poderia bem ser possível se,
com o correr dos tempos, tivesse ocorrido uma modificação essencial na relação do homem com
o pai — e talvez mesmo com o animal.

E fácil apercebermo-nos de tais modificações, mesmo se quisermos abstrair-nos do início do


distanciamento psíquico que se verificou em relação ao animal e da desagregação do totemismo
devida à domesticação dos animais79. No quadro da situação criada pela eliminação do pai, um
factor houve que, com o correr do tempo, provocou decerto uma marcada intensificação dessa
saudade do pai. Cada um dos irmãos que se tinham unido para matar o pai tinha sido animado
pelo desejo de se tomar igual ao pai, e todos eles tinham dado expressão a esse desejo
ingerindo, incorporando portanto, pedaços do substituto do pai no acto da refeição totémica.
Esse desejo não pôde realizar-se, no entanto, devido à pressão que o vínculo ao clã fraterno
exercia sobre cada um dos participantes. A ninguém mais era possível nem permitido aceder à
plenitude de poderes do pai, conquanto todos eles se tivessem esforçado por a alcançar. Nestas
circunstâncias, a atitude de ressentimento para com o pai, que havia levado ao parricídio, foi-se
atenuando no decurso de um longo lapso de tempo, e a saudade do pai foi crescendo. Daí o
nascimento de um ideal que reunia em si o poder ilimitado do pai primordial, contra quem
tinham lutado outrora, e a disponibilidade de todos eles para se lhe submeterem. A primitiva
igualdade democrática de todos os membros da tribo tomou-se insustentável devido às radicais
alterações culturais registadas. Surgiu, então, uma progressiva tendência para fazer renascer o
antigo ideal paterno através da criação de deuses, tendência essa que se apoiava na veneração
de indivíduos que se tinham destacado dos outros pelas suas qualidades. A ideia de que um
homem possa aceder à divindade e de

que um deus possa ser mortal causa-nos hoje repulsa e indignação, mas uma tal concepção
nada tinha de chocante, mesmo na Antiguidade Clássica80. A elevação à categoria de deus do
pai que outrora haviam matado, e a quem a tribo, agora, fazia remontar as suas origens, era,
no entanto, uma tentativa de desagravo muito mais fervorosa do que tinha sido, a seu tempo, o
compromisso estabelecido com o totem.

Não vos sei indicar, no quadro de todo este processo evolutivo, qual o lugar ocupado pelas
grandes deusas-mãe que terão, eventualmente, precedido, de uma forma geral, as divindades
paternas. Parece, no entanto, ser um dado adquirido que a modificação de atitude em relação
ao pai não se limitou à esfera religiosa, antes atingiu também, e com toda a coerência, o outro
aspecto da vida humana influenciado pela eliminação do pai, a organização social. Com a
instituição das divindades paternas, a sociedade, privada de pai, foi-se transformando, a pouco
e pouco, numa sociedade de base patriarcal. A família tomou-se uma reconstituição da horda
primitiva e restituiu ao pai uma grande parte dos seus antigos direitos. Agora havia de novo
pais, mas as conquistas sociais do clã fraterno não estavam perdidas, e a distância efectiva que
separava os novos pais de família do primitivo pai supremo da horda era suficientemente
grande para manter viva a necessidade da religião e também a saudade do pai, nunca extinta.

Na cena do sacrifício que decorre perante o deus da tribo, o pai está, na realidade, duplamente
presente: como deus e como animal totémico a sacrificar. Ao tentar compreender esta situação,
há que ter, no entanto, o cuidado de evitar interpretações que a pretendam traduzir numa
concepção bidimensional, tal como se fosse uma alegoria, e que, ao fazê-lo, esqueçam a
estratificação histórica. A dupla presença do pai corresponde aos dois significados da cena que
se sucedem no tempo. A atitude ambivalente do filho

em relação ao pai e o triunfo das suas emoções de ternura sobre os sentimentos hostis
encontram aí a sua expressão plástica. A cena da derrota do pai, da sua suprema humilhação,
transformou-se, aqui, em material para apresentação do seu mais expressivo triunfo. Reside aí
mesmo a importância que, universalmente, se passou a atribuir ao sacrifício; essa importância
está no facto de esse acto oferecer ao pai o desagravo pelo ultraje que lhe fora infligido e, ao
mesmo tempo, perpetuar a lembrança dessa atrocidade.

Com o correr do tempo, o animal foi perdendo a sua sacralidade e o sacrifício foi deixando de
estar ligado à cerimónia totémica, passando a significar uma mera oferta à divindade, um acto
de renúncia de si próprio a favor do deus. O próprio deus tinha sido exaltado de tal forma acima
dos homens que os homens só podiam aceder-lhe por mediação do sacerdote. A organização
social passou, simultaneamente, a reconhecer reis semelhantes a deuses, que transferem para
o estado o sistema patriarcal. E forçoso reconhecer que o pai, uma vez reconduzido ao poder
depois de ter sido derrubado, tirou uma desforra terrível, estando agora a supremacia da
autoridade no seu auge. Os filhos, humilhados, aproveitaram esta nova situação para aliviar
ainda mais a sua consciência de culpa, e o sacrifício, tal como passou a ter lugar, deixou,
inteiramente, de ser da sua responsabilidade. É agora o próprio deus que o exige e o determina.
Pertencem a esta fase os mitos em que o próprio deus mata o animal que lhe fora consagrado e
que mais não é do que ele próprio. Temos, assim, a suprema negação da grande atrocidade que
dera origem à sociedade e à consciência de culpa. Há que reconhecer, todavia, um segundo
significado a esta última representação do sacrifício: a expressão do regozijo pelo facto de o
primitivo substituto paternal ter dado lugar a um conceito superior de deus. A interpretação
psicanalítica da cena coincide, aqui, em certa medida, com a vulgar tradução alegórica, em que
a cena representa o deus a vencer o lado animal da sua natureza81.

Não obstante, seria um erro acreditar que, nesses tempos de renovada autoridade paternal,
teriam sido completamente silenciadas as moções de hostilidade características do complexo de
Édipo. Muito pelo contrário: nas primeiras fases de dominância das duas formações substitutivas
do pai, os deuses e os reis, deparamos com as mais vigorosas manifestações dessa
ambivalência que continua a caracterizar a religião.

Frazer, na sua obra monumental The Golden Bough (O Ramo Dourado), expressou a hipótese
de que os primeiros reis das tribos latinas teriam sido homens estranhos às tribos, os quais
desempenhavam o papel de uma divindade e, no âmbito desse mesmo papel, eram sacrificados
solenemente em determinados dias festivos. O sacrifício anual

(ou, como variante, a auto-imolação) de um deus parece ter constituído um traço essencial das
religiões semitas. O cerimonial do sacrifício humano, realizado nos mais diversos locais da terra
habitada, mostra, sem dar lugar a dúvidas, que essas vítimas eram sacrificadas enquanto
representantes da divindade; este cerimonial de sacrifício continuou a realizar-se até muito
tarde, mesmo depois de se ter procedido à substituição da vítima por uma representação
inanimada (um boneco). O sacrifício teantrópico do deus, que, infelizmente, não vou poder
tratar aqui com a mesma profundidade que utilizei para o estudo do sacrifício animal, lança,
retrospectivamente, uma luz esclarecedora sobre o significado das formas de sacrifício mais
antigas. Reconhece, com uma frontalidade inexcedível, que o objecto do acto do sacrifício era
sempre o mesmo, ou seja, aquele que passou depois a ser venerado como deus, como o pai,
portanto. O problema da relação entre o sacrifício humano e o sacrifício animal passa, deste
modo, a ter fácil solução. O primitivo sacrifício animal era, já, uma substituição do sacrifício
humano, era a morte cerimonial do pai e, logo que o substituto paterno readquiriu uma forma
humana, o sacrifício animal pôde, de novo, transformar-se no sacrifício humano.

Assim, apesar de todos os esforços, nada conseguia fazer esquecer esse primeiro grande acto
sacrificial e, quando se pretendeu criar um maior afastamento dos motivos que a ele tinham
levado, logo teve de ressurgir a sua reprodução fiel sob a forma de um sacrifício divino. Não se
torna necessário referir, aqui, quais foram os desenvolvimentos do pensamento religioso,
enquanto racionalizações, que possibilitaram esse ressurgimento. Robertson Smith,
absolutamente alheio à nossa teoria que faz remontar o sacrifício a esse grande acontecimento
da história primitiva do homem, refere que o cerimonial da festa com que os antigos Semitas
comemoravam a morte de uma divindade era organizado como uma «commemoration of a
mythical tragedy» (comemoração de uma tragédia mítica) e diz ainda que as lamentações que o
acompanhavam não tinham o carácter de participação espontânea, mas sim de algo que era
feito obrigatoriamente por temor da ira divina82. Julgamos poder aceitar como exacta esta
interpretação e reconhecer que os sentimentos dos celebrantes se explicam, inteiramente,
considerando a situação que lhes estava subjacente.

Admitamos, então, ser um facto que, mesmo com a continuação do processo de


desenvolvimento das religiões, os dois factores impulsionadores, o sentimento de culpa dos
filhos e a sua rebeldia, não se desvanecem nunca. Todas as tentativas de solução do problema
religioso, toda a espécie de reconciliação das duas forças psíquicas em luta vão sendo
abandonadas a pouco e pouco, provavelmente sob a influência conjunta de acontecimentos
históricos, modificações culturais e alterações psíquicas internas.

Toma-se cada vez mais evidente o esforço envidado pelo filho para se colocar no lugar do deus-
pai. A introdução da agricultura traz consigo a valorização do papel do filho na família de tipo
patriarcal, permitindo-lhe a ousadia de novas manifestações da sua libido incestuosa, a qual irá
encontrar uma satisfação simbólica no cultivo da Mãe-Terra. Nascem, assim, entre outras, as
figuras divinas de Átis, Adónis e Tamuz, espíritos da vegetação e, ao mesmo tempo, divindades
juvenis que gozam dos favores amorosos de divindades maternas e que, a despeito da oposição
do pai, fazem prevalecer o incesto com a mãe. Só o sentimento de culpa, que estas criações em
nada mitigaram, vai encontrar expressão nos mitos, que atribuem a estes jovens amantes das
divindades maternas uma vida curta e um castigo na forma de castração ou em resultado da ira
do deus-pai sob a forma de um animal. Adónis é morto pelo javali, o animal sagrado de
Afrodite; Átis, o amante de Cibele, é morto por castração83. O luto por estes deuses e o
regozijo pela sua ressurreição tomaram-se parte do ritual de uma outra divindade-filho,
destinada a um sucesso muito duradouro.

Quando o cristianismo começou a afirmar-se no mundo antigo, deparou com a concorrência da


religião de Mitras e reinou a dúvida, durante algum tempo, sobre qual das divindades sairia
vitoriosa dessa luta.

A figura nimbada de luz da jovem divindade persa ficou sempre, para nós, caracterizada por
uma certa obscuridade. Deve, possivelmente, deduzir-se das figurações das mortes do touro
levadas a cabo por Mitras que esta divindade seria a representação do filho que procedeu,
sozinho, ao sacrifício do pai, dessa forma libertando os irmãos do peso do remorso por
cumplicidade no acto. Existia uma outra via para mitigar essa consciência de culpa, e essa foi
Cristo o único que a trilhou. Foi ele o único a oferecer a sua própria vida em sacrifício,
libertando, assim, todos os irmãos do pecado original.

A doutrina do pecado original tem origem órfica. Foi conservada viva nos Mistérios e, a partir
deles, penetrou nas escolas filosóficas da Antiguidade grega84. Os homens eram os
descendentes dos Titãs, que tinham matado e despedaçado o jovem Dioniso-Zagreu, e
atormentava-os o peso desse crime. Pode ler-se num fragmento de Anaximandro que a unidade
do mundo tinha sido destruída por um crime cometido em tempos imemoriais, e que tudo o que
dele resultara teria de continuar a sofrer o devido castigo85. Conquanto o feito dos Titãs, pêlos
traços que o caracterizam, ou seja, a sublevação, a morte e o despedaçamento, nos faça
lembrar muito claramente o sacrifício totémico descrito por

São Nilo — como, aliás, muitos outros mitos da Antiguidade, veja-se a própria morte de Orfeu
— há nele, contudo, um pormenor diferente que nos perturba, e esse pormenor é o facto de se
tratar do assassínio de um deus jovem.

No mito cristão, o pecado original do homem significa, sem sombra de dúvida, uma ofensa
cometida contra deus-pai. Ora, se Cristo, ao oferecer a sua própria vida em sacrifício, redime os
homens do peso do pecado original, isso obriga-nos a concluir que esse pecado foi um crime de
morte. Segundo a lei de talião, tão profundamente enraizada nos sentimentos humanos, um
crime de morte só pode ser redimido pela oferta do sacrifício de uma outra vida; o sacrifício de
si-próprio remete para um crime de sangue86. E, se este sacrifício da própria vida vai permitir a
reconciliação com deus-pai, então o crime a ser expiado não pode ter sido outro senão o
homicídio do pai.
Na doutrina cristã, por conseguinte, a humanidade reconhece, sem reservas, a sua culpabilidade
no acto criminoso original ao encontrar na morte sacrificial desse filho único a forma mais eficaz
de expiação daquele mesmo acto. A reconciliação com o pai é ainda mais perfeita porque esse
sacrifício é acompanhado da completa renúncia à mulher que fora a causa da rebelião contra o
pai. Mas, aí, a fatalidade psicológica da ambivalência faz valer, mais uma vez, os seus direitos.
Esse acto, que traduz a oferenda ao pai da mais completa expiação, vai permitir ao filho atingir
o objectivo dos seus desejos contra o pai, vai dar-lhe a possibilidade de se tomar, ele próprio,
deus, não só a par do pai mas até em vez dele. À religião do pai sucede a religião do filho. Em
sinal dessa substituição faz-se reviver a primitiva refeição totémica na forma de uma comunhão,
no decurso da qual o grupo de irmãos comunga, agora, da carne e do sangue do filho, e já não
do pai, e, dessa forma, se santifica e identifica com ele. Observando, através dos tempos, a
identidade da refeição totémica com o sacrifício animal, com o sacrifício humano teantrópico e
com a eucaristia cristã, reconhecemos em todas estas festas cerimoniais a repercussão do crime
que tanto perturbou a humanidade e do qual, não obstante, ela tanto se deve orgulhar. A
comunhão da religião cristã é, no fundo, todavia, uma renovada eliminação do pai, uma
repetição do acto que reclama o seu desagravo. Não podemos deixar de reconhecer a justeza de
Frazer, quando escreve que «the Christian communion has absorbed within itself a sacrament
which is doubtless far older than Chrisfianity 87.» (A comunhão cristã assimilou um sacramento
que é, sem dúvida, muito anterior ao cristianismo.)

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