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I F G C A M P U S – G O I Â N I A - L Í N G U A P O R T U G U E S A E L I T E R A T U R A

CONTO X CRÔNICA CRÔNICA


Conto e crônica são dois gêneros que se aproximam bastante em “Crônica é um escrito de jornal que procura
muitas características. São dois gêneros textuais que estão contar ou comentar histórias da vida de hoje.
basicamente estruturados na tipologia narrativa, ainda que o gênero Histórias que podem ter acontecido com todo
crônica possa, também, apresentar aspectos que se liguem à
mundo: até com você mesmo, com pessoas
tipologia dissertativa, configurando a crônica argumentativa.
de sua família ou com seus amigos. Mas uma
coisa é acontecer, outra coisa é escrever
aquilo que aconteceu. Então você notará, ao
ler a narração do fato, como ele ganha um
interesse especial, produzido pela escolha e
A OUTRA SENHORA pela arrumação das palavras.”
A garotinha fez esta redação no ginásio:

“Mammy, hoje é Dia das Mães e eu desejo-lhe milhões de felicidades e


tudo mais que a Sra. sabe. Sendo hoje o Dia das Mães, data sublime
conforme a professora explicou o sacrifício de ser Mãe que a gente não
está na idade de entender mas um dia estaremos, resolvi lhe oferecer um
presente bem bacaninha e fui ver as vitrinas e li as revistas. Pensei em dar
à Sra. o radiofono Hi-Fi de som estereofônico e caixa acústica de 2 alto-
falantes amplificador e transformador mas fiquei na dúvida se não era
preferível uma tv legal de cinescópio multirreacionário som frontal, antena CONTO
telescópica embutida, mas o nosso apartamento é um ovo de tico-tico,
talvez a Sra. adorasse o transistor de 3 faixas de ondas e 4 pilhas de Também estruturado na tipologia narrativa, o
lanterna bem simplesinho, levava para a cozinha e se divertia enquanto conto apresenta, portanto, personagens,
faz comida. Mas a Sra. se queixa tanto de barulho e dor de cabeça, desisti espaço, tempo, narrador e o enredo. Diferente
desse projeto musical, é uma pena, enfim trata-se de um modesto
sacrifício de sua filhinha em intenção da melhor Mãe do Brasil.
da crônica, no conto há uma concentração dos
dados, focando o essencial que se quer narrar.
Falei da cozinha, estive quase te escolhendo o grill automático de 6 Muitas vezes, o conto estrutura-se também na
utilidades porta de vidro refratário e completo controle visual, só não seguinte sequência: apresentação da ação a
comprei-o porque diz que esses negócios eletrodomésticos dão prazer
ser desenvolvida, depois o conflito, o clímax e,
uma semana, chateação o resto do mês, depois encosta-se eles no
armário da copa. Como a gente não tem armário da copa e nem copa, me por fim, o desfecho, sendo que essa ordem
lembrei de dar um, serve de copa, despensa e bar, chapeado de aço pode se alterar.
tecnicamente subdesenvolvido. Tinha também um conjunto para cozinha
de pintura porcelanizada fecho magnético ultrassilencioso puxador de
alumínio anodizado, um amoreco. Fiquei na dúvida e depois tem o
refrigerador de 17 pés cúbicos integralmente utilizáveis, congelador
cabendo um leitão ou peru inteiro, esse eu vi que não cabe lá em casa, sai
dessa!

Me virei para a máquina de lavar roupa sistema de tambor rotativo mas a


Sra. podia ficar ofendida deu querer acabar com a roupa lavada no tanque, O CEMITÉRIO
alvinha que nem pomba branca, Mammy esfrega e bate com tanto
capricho enquanto eu estou no cinema ou tomo sorvete com a turma.
Quase entrei na loja para comprar o aparelho de ar-condicionado de 3 Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava
capacidades, nosso apartamentinho de fundo embaixo do terraço é um vagamente aquela multidão de sepulturas, que
forno, mas a Sra. vive espirrando, o melhor é não inventar moda. trepavam, tocavam-se, lutavam por espaço, na
estreiteza da vaga e nas encostas das colinas aos
Mammy, o braço dói de escrever e tinha um liquidificador de 3 velocidades, lados. Algumas pareciam se olhar com afeto,
sempre quis que a Sra. não tomasse trabalho de espremer laranja, a roçando-se amigavelmente; em outras,
máquina de tricô faz 500 pontos, a Sra. sozinha faz muito mais. Um transparecia a repugnância de estarem juntas.
secador de cabelo para a Mammy!, gritei, com capacete plástico mas Havia solicitações incompreensíveis e também
passei adiante, a Sra. não é desses luxos, e a poltrona anatômica me repulsões e antipatias; havia túmulos arrogantes,
tentou, é um tesouro, mas eu sabia que minha mãezinha nunca tem tempo imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em
de sentar. Mais o quê? Ah sim, o colar de pérolas acetinadas, caixa de todos, ressumava o esforço extraordinário para
talco de plástico perolado, par de meias, etc. Acabei achando tudo meio escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento
chato, tanta coisa para uma garotinha só comprar e uma pessoa só usar, que ela traz às condições e às fortunas.
mesmo sendo a Mãe mais bonita e merecedora do Universo. E depois, Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos,
Mammy, eu não tinha nem 20 cruzeiros, eu pensava que na véspera deste cruzes e inscrições; iam além; erguiam pirâmides
de pedra tosca, faziam caramanchéis
Dia a gente recebesse não sei como uma carteira cheia de notas extravagantes, imaginavam complicações de
amarelas, não recebi nada e te ofereço este beijo bem beijado e matos e plantas – coisas brancas e delirantes, de
carinhosão de tua filhinha Isabel.” um mau gosto que irritava. As inscrições
exuberavam; longas, cheias de nomes,
Carlos Drummond de Andrade. Cadeira de balanço. Editora José sobrenomes e datas, não nos traziam à lembrança
Olympio, 15. ed. nem um nome ilustre sequer; em vão procurei ler
nelas celebridades, notabilidades mortas; não as
encontrei. E de tal modo a nossa sociedade nos
marca um tão profundo ponto, que até ali, naquele
DOIS VELHINHOS campo de mortos, mudo laboratório de
decomposição, tive uma imagem dela, feita
Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo. inconscientemente de um propósito, firmemente
Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas desenhada por aquele acesso de túmulos pobres
um podia olhar lá fora. e ricos, grotescos e nobres, de mármore e pedra,
Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o cobrindo vulgaridades iguais umas às outras por
crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, perguntava o que força estranha às suas vontades, a lutar…
acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro: Fomos indo. A carreta, empunhada pelas mãos
— Um cachorro ergue a perninha no poste. profissionais dos empregados, ia dobrando as
Mais tarde: alamedas, tomando ruas, até que chegou à boca
— Uma menina de vestido branco pulando corda. do soturno buraco, por onde se via fugir, para
Ou ainda: sempre do nosso olhar, a humildade e a tristeza do
— Agora é um enterro de luxo. contínuo da Secretaria dos Cultos.
Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou Antes que lá chegássemos, porém, detive-me um
morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela. pouco num túmulo de límpidos mármores,
Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfiava que o outro não ajeitados em capela gótica, com anjos e cruzes
revelava tudo. que a rematavam pretensiosamente.
Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou Nos cantos da lápide, vasos com flores
o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo. de biscuit e, debaixo de um vidro, à nívea altura da
base da capelinha, em meio corpo, o retrato da
Texto extraído do livro “Mistérios de Curitiba”, Editora Record — Rio de morta que o túmulo engolira. Como se estivesse
Janeiro, 1979, pág. 110. na Rua do Ouvidor, não pude suster um
pensamento mau e quase exclamei:
— Bela mulher!
Estive a ver a fotografia e logo em seguida me veio
RECADO AO SENHOR 903 à mente que aqueles olhos, que aquela boca
provocadora de beijos, que aqueles seios túmidos,
tentadores de longos contatos carnais, estariam
Vizinho – àquela hora reduzidos a uma pasta fedorenta,
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita debaixo de uma porção de terra embebida de
do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o gordura.
barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal Que resultados teve a sua beleza na terra? Que
– devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer coisas eternas criaram os homens que ela
que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento inspirou? Nada, ou talvez outros homens, para
do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor teria ainda ao seu lado a morrer e sofrer. Não passou disso, tudo mais se
Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno perdeu; tudo mais não teve existência, nem
e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no mesmo para ela e para os seus amados; foi breve,
1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois instantâneo, e fugaz.
como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a Abalei-me! Eu que dizia a todo o mundo que
ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, amava a vida, eu que afirmava a minha admiração
1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano pelas coisas da sociedade – eu meditar como um
Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que cientista profeta hebraico! Era estranho!
é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas Remanescente de noções que se me infiltraram e
eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos cuja entrada em mim mesmo eu não percebera!
horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da Quem pode fugir a elas?
maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 Continuando a andar, adivinhei as mãos da
horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. mulher, diáfanas e de dedos longos; compus o seu
Prometo. Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número) será busto ereto e cheio, a cintura, os quadris, o
convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das pescoço, esguio e modelado, as espáduas
22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até brancas, o rosto sereno e iluminado por um par de
o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, olhos indefinidos de tristeza e desejos…
está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando Já não era mais o retrato da mulher do túmulo; era
um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro de uma, viva, que me falava.
dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio. Com que surpresa, verifiquei isso.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que Pois eu, eu que vivia desde os dezesseis anos,
um homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas despreocupadamente, passando pelos meus
da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou.” E o outro respondesse: olhos, na Rua do Ouvidor, todos os figurinos dos
“Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos jornais de modas, eu me impressionar por aquela
todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é menina do cemitério! Era curioso.
bela”. E, por mais que procurasse explicar, não pude.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e
amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das Lima Barreto
estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade
entre os humanos, e o amor e a paz.
Rubem Braga. Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 1991.

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