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O LIVRO
DE JOSUÉ
TERRA = VIDA
dom de Deus e conquista do povo
ii4 I
IVO STORNIOLO
PAULUS
Ivo Storniolo
PAULUS
Os textos bíblicos sao tirados da Bíblia Sagrada - Edição Pastoral, Paulus, 1990.
Editoração
PAULUS
Impressão e acabamento
PAULUS
4a edição, 2008
©PAULUS - 1992
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627
Tel. (11)5087-3700
www.paulus.com.br
editorial@paulus.com.br
ISBN 978-85-349-1002-6
“COMO LER A BÍBLIA”
6
Introdução
A HISTÓRIA DEUTERONOMISTA
9
ter típico, em geral pitoresco. Os casos podem ser
reduzidos à sua estrutura essencial e depois nova
mente preenchidos com traços novos, que talvez
provenham de outras fontes de informação. Na
saga existe, portanto, uma experiência primária
(núcleo histórico essencial), enriquecida no correr
do tempo com experiências secundárias, que con
tribuem para a forma e a exposição definitiva. Co
mo se costuma dizer, “quem conta um conto, au
menta um ponto...”
Para os períodos mais antigos, o autor deute
ronomista tinha à sua disposição quase que ape
nas sagas, como as dos heróis e condutores (Jz 3,16
26; 13-16) ou as sagas ligadas a lugares. Essas
últimas visam explicar ou o nome do lugar (= saga
etimológica: Js 5,8-9), ou o estado de coisas em
determinado lugar (= saga etiológica, do grego
“aitía”, que significa causa, motivo; por exemplo:
Js 4,6-9). As sagas etimológicas e etiológicas cos
tumam terminar com o refrão “até o dia de hoje”.
d. Legendas
Têm a mesma forma que a saga, mas o seu tema é
religioso, como uma pessoa santa ou um culto. Em
geral apresentam-se com traços maravilhosos,
que indicam não um milagre, mas a exageração
não científica de fenômenos naturais, devida ao
desconhecimento das leis da natureza. O autor
teve à sua disposição legendas cultuais (Jz 6,11
14), sacerdotais (ISm 1-4) e proféticas (como as
narrativas sobre Elias, Eliseu e Isaías em 1 e 2Rs).
e. Anedotas
Não se trata de “piada”, mas de uma caracteriza
ção da pessoa através de uma situação típica ou
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traço significativo e pitoresco (Jz 15,1-8; 16,1-3;
2Sm 23,8-23).
São as fontes mais importantes. O autor as usou
mas não se preocupou em fazer uma avaliação crítica
delas, pois não estava interessado em reconstruir um
desenvolvimento real dos fatos. Sua intenção se
dirigia para a interpretação da história do seu povo.
Em vista disso, o importante é ver o modo como ele
organizou os materiais, a fim de chegar à interpreta
ção.
13
1
O LIVRO DE JOSUÉ
À PRIMEIRA VISTA
14
te a qual é descoberto o pecado de Acã (7). Depois
Josué faz uma aliança com os gabaonitas (9), fato que
provoca a coalizão chefiada pelo rei de Jerusalém
contra Israel, culminando na batalha de Gabaon,
seguida pela conquista das cidades do sul (10). Na
parte norte, o povo enfrenta a coalizão chefiada pelo
rei de Hasor, cuja cidade é depois incendiada pelos
israelitas (11). Terminando a fase da conquista,
temos uma lista dos reis vencidos (12).
Examinando atentamente Js 1-12 vemos logo que
o cenário dos acontecimentos são o santuário de
Guilgal — próximo a Jericó — e as regiões circun-
vizinhas. A atenção se fixa, portanto, numa área
bastante restrita. Como Jericó está dentro do territó
rio da tribo de Benjamim, é muito provável que o
conteúdo de Js 1-12 seja formado por tradições culti
vadas no âmbito da tribo de Benjamim e, quando
muito, da tribo de Efraim, imediatamente ao norte.
Examinando as fontes usadas pelo autor, perce
bemos que a narrativa não pertence ao gênero his
tórico propriamente dito, mas é formada por um
conjunto de sagas etiológicas e etimológicas, ou seja,
de “estórias” que se dirigem a uma geração que vive
muito tempo depois e que se pergunta sobre situa
ções, lugares e nomes. E por isso que essas narrativas
terminam em geral com o refrão “até o dia de hoje”.
Assim, esse conjunto de sagas procura explicar: 12
pedras no leito do Jordão (4,6-9); 12 pedras no san
tuário de Guilgal (4,20-24); o nome “Guilgal” (5,9); os
muros destruídos de Jericó (6); o motivo pelo qual o
clã de Raab vive no meio de Israel (2; 6,25); o monte
de pedras no vale de Acor, bem como o nome do vale
15
(7.26); as ruínas de Hai (8,28); o motivo pelo qual os
gabaonitas são empregados no santuário de Guilgal
(9.27). Note-se ainda que Js 3-5 tem um interesse
fortemente religioso: a travessia do Jordão e a tomada
de Jericó são, na verdade, liturgias processionais; a
dimensão religiosa continua com o rito da circuncisão
e a celebração da Páscoa.
Essas narrativas foram costuradas, formando um
quadro uniforme da fase de ocupação da Terra na
parte da Cisjordânia. Trata-se de uma história mara
vilhosa, mostrando que não é a força do povo e sim a
força de Javé que conquista a vitória sobre os inimi
gos. O autor está interessado em mostrar que Javé foi
fiel às promessas, entregando ao povo a Terra que
outrora havia prometido aos antepassados (Ex 3,7-9;
Dt 8,7-9). A mão do autor deuteronomista pode ser
vista desde o começo. Em 1,1-9 Josué é admoestado
a proceder segundo a Lei que Moisés ordenara, e de
ocupar-se continuamente com o “livro dessa Lei” (Dt
31,7-13). Logo a seguir Josué encoraja o povo e pede
solidariedade na luta, e todos se comprometem a
obedecê-lo da mesma forma que obedeciam a Moisés
(1,10-18 = Dt 31,1-6). Em Siquém (8,30-35), entre os
montes Ebal e Garizim, Josué cumpre o que fora
ordenado em Dt 17,18 e 27,1-8. Em 11,5-23 temos um
sumário das conquistas de Josué, realizando a pro
messa que Javé fizera. Só que o limite da conquista
vai até perto do monte Hermon e não até o rio
Eufrates, conforme se prometia em Dt 1,7. Note-se
como Js 11,23 retoma 1,13 e recorda Dt 12,9-10.
16
.
E xercício em grupo
1. Ler Josué 1-12, sublinhando a expressão “até
o dia de hoje”.
2. Identificar as sagas e procurar descobrir à
quais perguntas do povo elas procuram res
ponder.
3. Como o nosso povo costuma contar a sua ver
são da história?
18
ção antiga, lembrando provavelmente uma oposição
entre os sacerdotes do santuário de Silo e as tribos da
Transjordânia, cujos territórios não eram considera
dos como parte da Terra Prometida, pois esta ter
minava no Jordão.
Mais uma vez podemos ver a mão do historiador
deuteronomista em Js 23. Aí se retoma a idéia funda
mental: a história da conquista da Terra é uma
história da liderança de Javé, que cumpriu as pro
messas feitas (23,14). A entrega de Canaã é, portan
to, a bênção de Javé. Em 23,11-16 reaparece o tema
deuteronômico das bênçãos e maldições: se o povo
não for fiel a Javé, este cumprirá as maldições, assim
como cumpriu a promessa da posse da Terra (ver Dt
28; 30,15-20).
Em Js 24 temos uma tradição particular que
relata uma Aliança feita em Siquém (24,25). Os
parceiros são Javé e as tribos reunidas, tendo Josué
como mediador. Pode-se notar que há grupos novos
que desejam aderir às tribos e ao culto de Javé (24,14
24). Consolida-se assim o sistema tribal, e essa Ali
ança em Siquém talvez fosse renovada em ocasiões
históricas significativas, um laço que mantinha as
tribos unidas. Dessa forma, o historiador deutero
nomista parece querer terminar a narração da con
quista da Terra com o tema da Aliança, ligando a
Aliança de Siquém com a do Sinai: assim como
Moisés a realizara no Sinai, Josué agora a realiza na
Terra conquistada. Cumpre-se dessa forma todo o
projeto anunciado em Ex 3,7-9: libertação da terra da
escravidão e da morte para a Terra da liberdade e da
vida.
19
Começando a pensar...
1. A primeira coisa a fazer para conquistar algo
é a união e a organização solidária: todos por
todos. Como a nossa comunidade se une e se
organiza para as suas conquistas?
2. Depois da conquista vem a partilha. Como a
nossa comunidade reparte entre todos aquilo
que todos ajudaram a conquistar?
3. Por que é importante para os diversos grupos
manter a fidelidade ao Deus Javé?
4. O povo de Deus não é um grupo fechado, mas
coloca condições para que os outros partici
V____________________________ J
pem. Qual a condição principal?
20
2
21
assim como vários outros povos (13,2-6; 15,13-19;
23,7-13). Por outro lado, quando lemos os livros dos
Juizes e Samuel, percebemos que a própria Bíblia
nos mostra que a ocupação da Terra foi um processo
lento e difícil, levado a cabo pelo esforço de clãs
individuais, e que esse processo só terminou comple
tamente no tempo de Davi. Chegamos então ao ponto
de nos perguntarmos: houve realmente uma con
quista da Terra, tal como se diz neste livro?
O testemunho da arqueologia
Procurando confirmar o texto bíblico, os estudio
sos se serviram por muito tempo do testemunho da
arqueologia. Esta, de fato, fornece provas abundan
tes de que a Palestina sofreu um assalto colossal na
segunda metade do séc. XIII a.C. (1250-10Õ0 a.C.),
parecendo comprovar o que encontramos no livro de
Josué. Por exemplo: Js 8 relata a tomada de Hai e Jz
1,22-26 a tomada de Betei. As escavações, por sua
vez, mostram que Betei ainda existia quando Hai já
estava em ruínas. Mostram também que Betei foi
destruída por um incêndio no final do séc. XIII (±
1200 a.C.), sendo substituída por uma cidade mais
pobre, cuja construção só pode ser atribuída a uma
população invasora menos desenvolvida em questão
de tecnologia. A arqueologia confirma ainda que as
cidades de Tais-Dabir (10,38), Laquis (10,35) e Hasor
(11,10) também foram destruídas por esse tempo.
Contudo, que valor têm essas provas arqueológi
cas? A arqueologia apenas demonstra que na segun
da metade do séc. XIII a.C. a Palestina foi o teatro de
uma erupção violenta, mas é incapaz de mostrar
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quem foi o seu autor. Acontece que por esse tempo
também assaltaram a Palestina os povos do mar, isto
é, os filisteus, que após muitas incursões acabaram
se fixando na faixa marítima do sul da Palestina. Por
outro lado, nas ruínas de Laquis foi encontrada uma
inscrição que se refere a um faraó egípcio no quarto
ano de seu reinado— com toda probabilidade Menefta
—, comprovando que também o Egito fazia incursões
conquistadoras na Palestina por esse tempo. Além
disso, sabemos que as cidades-Estado dos cananeus
viviam em contínuas lutas pela hegemonia política.
E, caso aceitemos que a Palestina foi conquistada
violentamente pelas tribos de Israel, quem foi o
conquistador de Hebron e Dabir: Josué, ou Caleb e
Otoniel? (ver 15,13-14.17; Jz 1,11-13).
Três hipóteses
O testemunho da arqueologia, como vemos, nem
sempre é conclusivo em relação aos textos bíblicos.
Em nosso caso, por exemplo, ele pode até acarretar
mais perplexidade. E o que pensar diante disso? Os
estudiosos se dividem. Atualmente contamos com
três hipóteses de trabalho sobre como Israel teria
entrado na Palestina e ocupado o território.
23
Esta hipótese, porém, acaba ficando completamente
questionada pelas contradições do próprio texto, pe
las diferentes versões que aparecem nos livros de
Josué e Juizes e, finalmente, pela incerteza que paira
sobre o próprio testemunho arqueológico.
c. Revolução social
Esta hipótese é a mais recente, reunindo de certa
forma as duas primeiras, e acrescentando um dado
novo. Segundo ela, o que chamamos de “povo de
Israel” se formou em grande parte de nativos cananeus
que, juntando-se aos marginalizados do sistema
Capiru) e a um grupo de invasores ou imigrantes que
vieram do deserto (o grupo do êxodo), se revoltaram
contra os reis das cidades-Estado cananéias. E a
hipótese mais provável. Mas como os fatos teriam
acontecido?
24
Nas melhores terras cultiváveis das planícies de
Canaã existiam antigas cidades como Jericó, Hai,
Laquis e outras, governadas por reis e defendidas por
exércitos e muralhas. Outrora dependentes do Egito,
a quem pagavam tributos, essas cidades começaram
a ter certa independência em meados do séc. XIII
a.C., e se puseram em contínuas lutas entre si,
buscando hegemonia política sobre todo o território.
Quem pagava tudo eram os camponeses, cada vez
mais explorados por meio de tributos e trabalhos
forçados.
Os camponeses e pastores começaram a resistir e
a se refugiar nas regiões montanhosas, longe do
alcance dos carros de feiro das cidades (Js 11,9;
17,15-18). A descoberta do ferro lhes possibilitava
desbravar a mata (ISm 13,19-22), e a cisterna lhes
permitia armazenar água da chuva nos lugares altos
(Dt 6,11; Nm 21,16-18). Dessa forma, camponeses e
pastores foram se unindo e amadurecendo a revolta.
A revolta tomou corpo e explodiu com a chegada do
grupo do êxodo, que saíra do Egito e vinha do deserto.
Tal grupo escapara do sistema egípcio, da mesma
forma que os camponeses, pastores e outros margi
nalizados descontentes {‘apiru) procuravam escapar
do regime das cidades-Estado cananéias. A coesão
desse grupo do deserto era a fé em Javé, o Deus liber
tador presente no meio do povo (Ex 3,1-15) e com o
qual entrara em Aliança no Sinai. O fermento dessa
fé permitiu que os explorados e oprimidos de Canaã
se reunissem, enfrentando as cidades-Estado e der
rotando o sistema cananeu, que se apoiava fortemen
te na religião de Baal. Tal religião era o cimento
25
ideológico do sistema explorador e opressor, pois
afirmava que o rei era o mediador único entre a di
vindade e o povo para a fertilidade da terra. Derro
tando o sistema cananeu, a fé em Javé produziu
consciência solidária nos revoltosos e lhes possibili
tou uma organização social alternativa, o sistema
tribal, fundado na partilha e na igualdade, daí sur
gindo um povo formado por doze tribos.
Esta última hipótese engloba as anteriores, e
muitos textos de Josué a sustentam: as alianças com
o clã de Raab e com os gabaonitas, e as coalizões
formadas pelo rei de Jerusalém (9,1-2; 10) e de Hasor
(11), por exemplo, ganham um relevo todo especial.
Além disso, entende-se melhor o relato da Aliança de
Siquém (Js 24): num ritual solene são incorporadas
partes da população cananéia que se haviam liberta
do de seus reis opressores, com a condição de deixar
a religião cananéia (baalismo) e os deuses particulares
dos clãs, a fim de aceitar unicamente a Javé, o Deus
libertador que liderou os israelitas nas suas lutas.
O testemunho arqueológico, por sua vez, ganha
um novo destaque, mostrando como a Palestina so
freu convulsões internas e passou de um estágio
tecnológico mais desenvolvido para um menos de
senvolvido. E claro. Um sistema explorador e opressor
como o do Egito e dos reis cananeus possibilita o
acúmulo e, conseqüentemente, maior desenvolvi
mento de tecnologia de ponta, maior aparato militar
e, sobretudo, mais luxo — tudo, sem dúvida, con
centrado na mão de uma minoria privilegiada. No
sistema mais justo e igualitário das tribos, pelo
contrário, a maior preocupação era a descentralização
26
do poder e a melhor distribuição dos bens— o que não
possibilitava a sofisticação e o luxo. Atendidas as
necessidades básicas para que todos tenham uma
vida digna, é claro <jue não sobra quase nada para
coisas supérfluas. E para isso que devemos estar
sempre atentos, principalmente quando hoje se cri
ticam as tentativas de alternativas políticas e eco
nômicas mais justas e igualitárias. A essa altura, até
os conceitos de progresso, tecnologia, cultura e outros
devem ser seriamente revistos e criticados. Progres
so, tecnologia, cultura... Sim, mas quem os produz e
quem deles usufrui?
Continuando a pensar...
1. Como imaginávamos a conquista da Terra
Prometida, e como a vemos agora?
2. Quando queremos alguma coisa, o que precisa
mos fazer em primeiro lugar?
3. A fé em Javé se tornou fermento revolucioná
rio. Por quê?
4. Qual é o custo do progresso? Quem o paga e
produz? Quem dele usufrui?
27
3
A CONQUISTA DE UM SISTEMA
SOCIAL IGUALITÁRIO
28
partilha. Partilha da Terra e dos bens vitais, e parti
lha das liberdades, de modo que todos pudessem
participar dos rumos econômicos e políticos da soci
edade. Tudo isso foi estimulado pela fé em Javé, o
Deus que suscita liberdade e vida para todos.
Vemos, portanto, que a luta foi também para
conquistar um modelo alternativo de sociedade, que
se concretizou graças à partilha igualitária da eco
nomia (terra e produção) e àparticipação igualitária
na política (decisões sociais e históricas). Essas duas
coisas implicavam sérias mudanças de visão e de
ação, que podem mais facilmente ser vistas num
quadro comparativo (ver páginas 30-31).
O sistema tribal funcionou aproximadamente 250
anos (± entre 1250 e 1000 a.C.), porém jamais conse
guiu se impor totalmente, e sempre foi vivido com
altos e baixos. Tanto o livro de Josué como o dos
Juizes salientam que certos quistos cananeus conti
nuaram no meio das tribos (13,1-7; Jz 1,1-2,5), exer
cendo constante influência (Jz 2,6-3,6).
Parte especialmente importante foi exercida pela
religião javista, que cimentava o sistema tribal e
mantinha sempre viva a memória das lutas popula
res (Js 4-6; 8,30-35). Siquém tornou-se o lugar do
compromisso com a fé javista (24,1-28), e os aconte
cimentos fundamentais desse período— travessia do
Jordão, tomada de Jericó, conquista da Terra —
marcaram a história de tal forma que séculos mais
tarde eram ainda repetidos e celebrados (SI 44,2-9;
66,5-6; 78,54-55; 105,44-45; 135,8-12; 136,10-22 etc.).
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SISTEMA EGÍPCIO E CANANEU
A. Sociedade desigual, fundada no interesse
particular e organizada a partir de cima:
rei-funcionários-notáveis-soldados-campo-
neses (Js 11-12).
B. Exploração da força de trabalho. A terra
pertence ao rei e o pevo é obrigado a se
empregar sob as duras condições impostas
pelo rei, que se aprepria do excedente da
produção dos camponeses (Ex 5,6-18).
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4
33
Servindo-se da releitura e da interpretação deute-
ronômica de antigas tradições e documentos, o histo
riador deuteronomista escreveu para um povo sem
terra, ou melhor, um povo que havia perdido a pró
pria terra e, conseqüentemente, tudo o que a ela
estava ligado: liberdade e organização econômica,
política, social e ideológica. Os leitores pertenciam a
um povo que, no exílio, encontrava-se na situação de
escravo da Babilônia, uma das maiores potências da
época. Era a mesma situação que, no passado, o povo
tinha experimentado no Egito e em Canaã. O anseio
pela liberdade (sair da terra da exploração e opres
são) e pela vida (entrar na Terra da partilha e da
fraternidade) era o mesmo ou, talvez, ainda maior,
visto que esses exilados já haviam experimentado a
liberdade e a vida na “terra fértil e espaçosa, terra
onde corre leite e mel” (Ex 3,8).
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E meditando os erros e acertos do passado que se
torna possível compreender o presente e abrir novos
caminhos para o futuro:
36
Continuando a pensar...
1. Quem conta uma história sempre quer que se
veja e se faça alguma coisa. O que querem de
nós quando nos contam a história do nosso
país?
2. Quem faz a interpretação oficial da nossa
história?
3. Como o povo pode contar a sua história para
ter liberdade e vida?
4. Quais foram os fatos e acontecimentos mais
importantes que nos levaram a experimentar
mais liberdade e mais vida?
5. Ler o salmo 78,1-8 e comentar em grupo.
37
5
DOM DE DEUS
OU CONQUISTADO POVO?
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livro de Josué é a Terra, o grande dom com que Deus
salva o seu povo. E então chegamos à pergunta
crucial: de que modo esse dom chega até o povo?
Desde o livro do Êxodo até o do Deuteronômio ouvi
mos dizer que Deus vai dar a Terra. O livro de Josué,
mesmo com as diferentes hipóteses históricas, mos
tra claramente que a Terra prometida por Deus teve
de ser conquistada pelo povo. E aí temos o impasse:
foi dom ou conquista? Foi promessa de Deus ou
aspiração do povo? Até que ponto Deus e o Homem se
contrapõem e contradizem, ou se interpenetram e
complementam?
Dom e conquista
Devemos buscar as respostas a essas perguntas
nos próprios textos bíblicos. O livro do Êxodo mostra
que a ação libertadora de Javé se realizou como
resposta à aspiração do povo, que clamava pela li
berdade:
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ele a dá somente se o povo se dispõe corajosamente a
conquistá-la. Em outras palavras, Deus age por den
tro e através do esforço do povo em conquistar, dando
eficácia à sua ação. E o que se diz claramente em Pr
21,31: “O cavalo se prepara para o dia da batalha,
mas a vitória vem de Javé” (ver também SI 20,8;
147,10-11; Os 1,7).
Os textos falam por si, fazendo-nos reequacionar
os binômiospromessa-aspiração, dom-conquista.Ação
de Deus e ação do povo se interpenetram e se comple
mentam dentro de um clima de tensão, porque Deus
promete por dentro da aspiração do povo. Da mesma
forma, Deus dá, mas por dentro do esforço de con
quista do povo. Isso tudo, porém, com a condição de
que a pessoa e o povo aspirem a conquistar aquilo que
é legítimo, ou, em outras palavras, aquilo que o
próprio Deus projeta: liberdade e vida para todos.
Podemos concluir, portanto, que a “Terra = Vida”
é fruto do encontro adequado entre o dom de Deus
(que cria a possibilidade) e a atitude do povo (que
concretiza a possibilidade). Em termos de tempo,
poderíamos dizer que esse encontro adequado se
verifica entre o presente eterno de Deus (o dom já
está feito e sempre à disposição) e o projeto humano
histórico em contínua realização (o dom se concretiza
historicamente quando e se o povo se organiza e se
mobiliza para conquistá-lo, certo de que Deus dará
eficácia ao esforço do povo, entregando o seu dom nas
mãos conquistadoras do povo).
O Deus Javé, único absoluto verdadeiro, fonte
inesgotável da liberdade e da vida, é o Deus que dá
liberdade e vida, mas só quando o povo se dispõe a
conquistá-las. E nesse esforço de conquistar entra o
quadro de estratégias e táticas de que o livro de Josué
41
está cheio: espionagem, união solidária entre os
diversos grupos (as tribos transjordânicas já esta-
vam de posse do seu território, mas se dispuseram a
ajudar as outras tribos a conquistar seus respectivos
territórios), táticas bélicas (Js 8), infiltrações e alian
ças táticas (com o clã de Raab, com os gabaonitas, e,
na hipótese da revolução social, aliança com os opri
midos pelo sistema e os marginalizados da sociedade,
a fim de mudar o sistema etc.). E claro que as
estratégias e táticas são, afinal, frutos da inteligên
cia humana, e esta é, sem dúvida, um dom que Deus
fez ao homem. Para ser usado, evidentemente.
Conquista e partilha
Js 13-21 são nove capítulos de intermináveis lis
tas que pormenorizam fronteiras e cidades. Para nós,
muitas vezes desejosos de encontrar logo um sentido
explícito, essa parte do livro pode se tornar muito
enfadonha. A coisa muda, porém, quando percebe
mos que por trás de tantos detalhes se escondem
duas coisas muito importantes:
— Alegria: alegria em detalhar ponto por ponto tudo
o que Javé deu e o seu povo conquistou. Mais alegria
do que essa é só a da criança examinando um por um
todos os presentes que há tanto tempo desejava
receber...
— Partilha: outra e, talvez, a maior alegria: a de
repartir entre todos o que foi dado por Javé a todos e
conquistado por todos. Todo o conceito de posse e
acumulação, que era o núcleo fundamental do siste
ma dos reis, fica abalado: a Terra é o dom de Deus
para todos, e o que foi conquistado por todos deve ser
repartido entre todos. Não acumular e não comer
cializar o dom de Deus é o princípio básico, e sua
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conseqüência imediata é a partilha: todos têm direito
de usufruir o dom de Deus. E nesse espírito de par
tilha que repousa o alicerce de uma sociedade igua
litária, onde todos podem ter o necessário e cada um
pode receber o quinhão que lhe permite viver de modo
digno e verdadeiramente humano.
Com o binômio “conquista-partilha”, portanto, o
livro de Josué apresenta o projeto básico para a
superação de uma sociedade desigual, onde poucos se
privilegiam, açambarcando, acumulando e retendo o
dom de Deus, à custa da situação do povo que,
conseqüentemente, fica reduzido à impotência e à
miséria. Nessa perspectiva, o livro de Josué é a maior
crítica que se pode fazer ao latifúndio, oferecendo, ao
mesmo tempo, a base teológica para uma reforma
agrária: re-partir e re-distribuir a Terra é, portanto,
uma exigência da própria fé.
Continuando a pensar...
1. O dom da Terra é salvação para o povo. Por
quê?
2. Por que o povo teve de conquistar a Terra que
Deus lhe havia dado?
3. De que modo a ação de Deus e a ação do homem
caminham juntas?
4. Deus é Pai, mas não é paternalista. Quais as
conseqüências disso?
5. A reforma agrária é uma exigência da própria
fé. Por quê?
6. Quais são os gestos de conquista e partilha que
já realizamos em nossa comunidade? Quais
outros poderíamos fazer?
43
C o n c l u sã o
A GRAÇA DE DEUS
45
mesmos esse dom, a fim de atuar e concretizar a se
mente em planta visível. Em outras palavras, cabe a
nós dar forma ao conteúdo e realização à potencia
lidade. E, como isso é um projeto inesgotável que se
realiza no tempo, cabe a nós estarmos sempre voltados
para esse conteúdo fundante e eficaz, em que tudo já
está contido, á fim de construirmos a vida e a história.
Com efeito, como nos ensina o livro de Josué,
promessa e dom de Deus (conteúdo fun
dante e eficaz)
Terra é e i
46
mente, para os que só ficam esperando. Mas felizmente,
para os que se dispõem à ação. Como dizia um dos
nossos cantores:
“Vem, vamos embora,
que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer.”
Continuando a pensar...
1 .0 que costumávamos pensar sobre a graça de
Deus?
2 .0 que o livro de Josué nos ensina sobre a graça
de Deus?
3. Por que muitas vezes Deus não atende ao nos
so pedido ou não nos concede o que aspiramos
e procuramos conquistar?
4. Se o povo não se unir, se organizar e partir pa
ra a conquista, jamais terá a Terra e a Vida, e
jamais construirá a sua História. Por quê?
5. “Tudo é graça de Deus e tudo é conquista da
humanidade.” Comentar.
V__________________________________ J
47
ÍNDICE