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como ler

O LIVRO
DE JOSUÉ
TERRA = VIDA
dom de Deus e conquista do povo

ii4 I

IVO STORNIOLO

PAULUS
Ivo Storniolo

COMO LER O LIVRO DE


JOSUÉ
TERRA = VIDA dom de Deus e
conquista do povo

Digitalizado por: Jolosa

PAULUS
Os textos bíblicos sao tirados da Bíblia Sagrada - Edição Pastoral, Paulus, 1990.
Editoração
PAULUS
Impressão e acabamento
PAULUS

4a edição, 2008

©PAULUS - 1992
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627
Tel. (11)5087-3700
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ISBN 978-85-349-1002-6
“COMO LER A BÍBLIA”

.. apareceu um eunuco etíope, ministro de Canda-


ce, rainha da Etiópia... Tinha ido a Jerusalém em
peregrinação, e estava voltando para casa. Ia sen­
tado em seu carro, lendo o profeta Isaías. Então o
Espírito disse a Filipe: ‘Aproxime-se desse carro e o
acompanhe’. Filipe correu, ouviu o eunuco ler o
profeta Isaías, eperguntou: Você entende o que está
lendo?’ O eunuco respondeu: ‘Comoposso entender,
se ninguém me explicaV Então convidou Filipe a
subir e a sentar-se junto a ele.
...Então o eunuco disse a Filipe: ‘Por favor, me
explique: de quem o profeta está dizendo isso? Ele
fala de si mesmo, ou se refere a outrapessoa?’Então
Filipe foi explicando” (At 8,27-31.34-35a).

A série “Como ler a Bíblia” é, ao mesmo tempo,


simples e ousada. E simples porque não pretende ser
um comentário a cada livro da Bíblia, e sim uma
chave de leitura, uma espécie de lanterna que nos
ajuda a focalizar e a enxergar, no seu conjunto, um ou
mais livroff bíblicos. Mas é também uma proposta
ousada, pois estimula a ler os textos com os pés no
5
chão da existência, jamais perdendo de vista os an­
seios de vida e liberdade do nosso povo.
Nãd temos a pretensão de ser como Filipe, pois a
Bíblia não pertence aos estudiosos, mas ao povo.
Nossa tarefa está sendo a de nos aproximar do povo,
acompanhá-lo, sentar junto a ele escutando, pergun­
tando e indicando possíveis caminhos para a compre­
ensão. Para tanto tivemos a coragem de sintetizar,
num subtítulo, o possível eixo em torno do qual gira
o livro em questão.
Preparamos estes opúsculos para as pessoas que
se reúnem em torno da Bíblia, fato este que traduz a
presença do Espírito em nossa caminhada. Como o
etíope que volta para casa, o povo busca hoje o modo
adequado de encarnar a Bíblia na vida e na sociedade.
Nosso esforço é justamente o de ajudá-lo a entender
o que está lendo enquanto prossegue sua viagem na
esperança e na alegria (cf. At 8,39). Para tanto, estes
livrinhos partem sempre da situação que os gerou,
abrindo pistas para sua compreensão no hoje da
nossa caminhada.
Esperamos que essa série traga novas luzes para
as pessoas e comunidades, fazendo ressoar de novo o
louvor de Jesus: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da
terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e
inteligentes, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai,
porque assim foi do teu agrado” (Mt 11,25-26).
|
\ A E d it o r a

6
Introdução

A HISTÓRIA DEUTERONOMISTA

O livro de Josué abre uma série de livros— Josué,


Juizes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis — que formam um
conjunto unitário e coerente. A Bíblia Hebraica cha­
ma esses livros de “profetas anteriores”, em con­
traposição com os “profetas posteriores” ou escrito­
res, como Isaías, Jeremias etc. Atualmente dá-se a
esses livros o nome de História Deuteronomista, e
costuma-se considerar o livro do Deuteronômio como
a sua introdução. Por quê? Porque, de fato, essa
história foi escrita segundo as idéias e as preocupa­
ções fundamentais do Deuteronômio — ou, em ou­
tras palavras, o Deuteronômio forneceu a ideologia
fundamental para a interpretação dessa história que
cobre um período de quase 700 anos, desde a entrada
em Canaã (1230-1200 a.C.) até o exílio na Babilônia
(586-538 a.C.).
Essa história é considerada como o monumento
mais antigo da história humana, caso único no Orien­
te Médio antigo como fruto de verdadeira historio­
grafia. Na sua forma atual ela teria sido escrita pouco
depois do último acontecimento relatado em 2Rs
25,27-30, cuja data seria 561 a.C. Como não mencio­
na a volta do exílio, a redação definitiva foi feita entre
561 e 538 a.C.
Quem teria escrito essa grande história? Vamos
aò tempo do rei Josias (640-609 a.C.). Através de 2Rs
22-23, sabemos que o Deuteronômio ou “Livro da Lei”
exerceu grande influência em todos os setores do
Reino de Judá, principalmente o religioso e o político.
Hoje se costuma afirmar que se formou então uma
escola, a assim chamada “Escola Deuteronomista”.
Tal escola era certamente formada por escribas im­
buídos do espírito e das idéias do Deuteronômio,
sendo responsável pela terceira edição do Deuteronô­
mio e pelaprimeira edição da história deuteronomista,
que abarcava o período de Salomão até Josias. O fito
dessa primeira edição era o de inculcar os preceitos
do Deuteronômio e, assim, tornar aceitável a reforma
de Josias: salientam-se o Templo, a idolatria de Sa­
lomão e de Jeroboão, o fim do Reino do Norte, a in­
sistência em mostrar que os reis são maus quando
não eliminam a idolatria etc.
A Escola Deuteronomista continuou suas ativida­
des até o fim do exílio. Nela os escribas doutos (SI 1,2)
se aplicaram ao estudo do Deuteronômio e dos profe­
tas, principalmente Jeremias e Ezequiel, procuran­
do assimilar suas idéias. Sua produção foi considerá­
vel: quarta edição do Deuteronômio, edição e reedição
de textos de muitos profetas e, principalmente, a se­
gunda edição da história deuteronomista, que agora
abarcava desde o tempo da conquista de Canaã até o
exílio (Js, Jz, Sm e Rs).
Para escrever a história, porém, é preciso ter
fontes, organizar essas fontes em narrativas e, ao
mesmo tempo, interpretar os acontecimentos narra­
dos. Como o autor deuteronomista realizou isso?
8
Fontes da história deuteronomista
Para escrever uma história coesa e ideologica­
mente orientada, o autor contou com cinco tipos
diferentes de fontes:
a. Documentos oficiais
— Listas de funcionários (como os de Davi: 2Sm
8,16-18; 20,23-26; 23,8-39, e os de Salomão: lRs
4.1-19 etc.);
— catálogos oficiais de delimitação dos territórios
das tribos, assim como listas de províncias e
lugares (Js 15-19);
— memoriais, como, por exemplo, o relato da refor­
ma realizada pelo rei Josias, que certamente se
baseia num documento oficial (2Rs 22,3-20;
23.1-3.21-23);
— anais oficiais, existentes na corte real ou no
Templo no tempo da monarquia (lRs 11,41;
14,19.29 etc.). As vezes esses anais são comen­
tados (lRs 6-8; 9,15-25; 11,7; 14,25-28 etc.).
b. Exposições históricas não oficiais
Temos aqui documentos mais desenvolvidos, como
a história da ascensão e queda de Abimelec (Jz 9),
a história da ascensão de Davi ao poder (ISm 16 -
2Sm 5; 8), história da sucessão de Davi (2Sm 7-20;
lRs 1-2).
c. Sagas
Saga é uma narração relacionada positivamente
com a história. No seu núcleo ela trata de uma
pessoa ou lugar, colocando-os no contexto de uma
determinada época e de um determinado grupo
humano. A ação narrada interessa pelo seu cará­

9
ter típico, em geral pitoresco. Os casos podem ser
reduzidos à sua estrutura essencial e depois nova­
mente preenchidos com traços novos, que talvez
provenham de outras fontes de informação. Na
saga existe, portanto, uma experiência primária
(núcleo histórico essencial), enriquecida no correr
do tempo com experiências secundárias, que con­
tribuem para a forma e a exposição definitiva. Co­
mo se costuma dizer, “quem conta um conto, au­
menta um ponto...”
Para os períodos mais antigos, o autor deute­
ronomista tinha à sua disposição quase que ape­
nas sagas, como as dos heróis e condutores (Jz 3,16­
26; 13-16) ou as sagas ligadas a lugares. Essas
últimas visam explicar ou o nome do lugar (= saga
etimológica: Js 5,8-9), ou o estado de coisas em
determinado lugar (= saga etiológica, do grego
“aitía”, que significa causa, motivo; por exemplo:
Js 4,6-9). As sagas etimológicas e etiológicas cos­
tumam terminar com o refrão “até o dia de hoje”.
d. Legendas
Têm a mesma forma que a saga, mas o seu tema é
religioso, como uma pessoa santa ou um culto. Em
geral apresentam-se com traços maravilhosos,
que indicam não um milagre, mas a exageração
não científica de fenômenos naturais, devida ao
desconhecimento das leis da natureza. O autor
teve à sua disposição legendas cultuais (Jz 6,11­
14), sacerdotais (ISm 1-4) e proféticas (como as
narrativas sobre Elias, Eliseu e Isaías em 1 e 2Rs).
e. Anedotas
Não se trata de “piada”, mas de uma caracteriza­
ção da pessoa através de uma situação típica ou
10
traço significativo e pitoresco (Jz 15,1-8; 16,1-3;
2Sm 23,8-23).
São as fontes mais importantes. O autor as usou
mas não se preocupou em fazer uma avaliação crítica
delas, pois não estava interessado em reconstruir um
desenvolvimento real dos fatos. Sua intenção se
dirigia para a interpretação da história do seu povo.
Em vista disso, o importante é ver o modo como ele
organizou os materiais, a fim de chegar à interpreta­
ção.

Organização da história deuteronomista


Como o autor manipulou e organizou as fontes de
que dispunha? De que forma acrescentou o seu ponto
de vista para interpretar os acontecimentos? Entre
os recursos utilizados, notamos os seguintes:
a. O quanto possível, o autor se comportou como “in­
termediário honesto”, conservando inalterado o
material das fontes. Quando muito, fez resumos e
comentários (ver lRs 11,41; 14,19.29 etc.).
b. Construiu um sistema cronológico unitário para
unificar os materiais. A data-chave aparece em
lRs 6,1, onde encontramos uma rápida olhada
para o passado. Essa data é artificial, visando ligar
a construção do Templo de Salomão com a da tenda
móvel no deserto, através de 12 gerações de sumos
sacerdotes, cada uma com 40 anos. O Templo re­
construído no pós-exílio foi ligado ao de Salomão
pelo mesmo sistema (ver lCr 5,27-41 e 6,35-38).
Dados extrabíblicos permitem situar a data de lRs
em ± 960 a.C.
c. Para interpretar os acontecimentos, o autor insere
11
um discurso na boca de uma personagem impor­
tante. Esses discursos aparecem em pontos-chave:
— Dt 1-3: discurso de Moisés antes da entrada na
Terra;
— Js 1,10-15: discurso de Josué no início da con­
quista da Terra;
— Js 23: discurso de Josué no fim da conquista da
Terra;
— ISm 12: discurso de Samuel na mudança de sis­
tema político (passagem do sistema tribal para
o sistema monárquico);
— lRs 8: oração de Salomão na inauguração do
Templo.
d. Reflexões pessoais do autor sobre os fatos:
— Js 12: reflexão sobre o resultado da conquista da
Terra; -
— Jz 2,6-3,6: caracterização preliminar do período
dos Juizes;
— 2Rs 17,7-23: retrospectiva do período da mo­
narquia até a queda do Reino do Norte (Israel).
e. O autor ainda acrescentou rápidas observações no
decorrer das narrativas. Elas podem ser reconhe­
cidas pelo leitor familiarizado com o estilo e as
idéias do Deuteronômio (lRs 15,3.11.26.34 etc.).

Interpretação global da história

Lendo toda a história deuteronomista, podemos


perceber que o seu autor pretende explicar aos exila­
dos o motivo pelo qual aconteceu o exílio na Babilônia.
Para isso ele organiza a narrativa tendo como pano
de fundo o documento da Aliança (Dt 5-30): Israel é
próspero e vive em paz na Terra enquanto permanece
12
fiel à Aliança com Javé. As grandes articulações
dessa interpretação da história se encontram em:
— Josué'. Deus concede a bênção = dom da Terra;
— Juizes 1 , 1 - 1 Samuel 12: a história depende de
Deus e das atitudes do homem. A fidelidade atrai
a bênção, a infidelidade atrai a maldição;
— 1 Samuel 1 2 - 2 Reis 23: diante dos erros e difi­
culdades, Javé oferece uma nova instituição, que
pode ser benéfica ou perigosa: o sistema mo­
nárquico. Saul mostra que a nova instituição
pode se tornar perigosa; Davi marca sua fase
gloriosa; Salomão demonstra sua total ambigüi­
dade; os reis sucessores revelam sua total perver­
são;
— 2 Reis 24-25: o exílio é a maldição, conseqüência
inevitável da infidelidade.
Dessa forma, o autor deuteronomista procura in­
terpretar toda a história de Israel na Terra Prometi­
da. Javé sempre foi fiel, fazendo de tudo para libertar
e dar a vida ao povo. Se Israel se arruinou, se perdeu
a Terra e está no exílio, é por causa da sua infidelida­
de à Aliança, que acarretou a maldição (ver Dt 30,17­
18).
O deuteronomista fez, por assim dizer, uma re-
troprofecia, uma revisão de todo o passado, para
mostrar que “com Deus não se brinca”. De fato, Javé
cumpre na história as bênçãos e as maldições, anun­
ciadas por Moisés e continuamente relembradas pe­
los profetas. A atitude do homem diante de Deus
sempre o coloca numa escolha decisiva: a bênção ou
a maldição, a liberdade ou a escravidão, a vida ou a
morte (Dt 28; 30,15-20).

13
1

O LIVRO DE JOSUÉ
À PRIMEIRA VISTA

O livro pretende mostrar o conjunto de estratégias


e táticas usadas para entrar e tomar posse de Canaã,
a Terra Prometida. Os acontecimentos narrados se
situam entre 1230 e 1200 a.C. O conteúdo pode ser
dividido em três partes:

A conquista da Terra (1-12)


Depois de uma introdução (1), relata-se que Josué
envia espiões a Jericó, que são hospedados pela
prostituta Raab (2). A seguir o povo atravessa o
Jordão à altura de Jericó e acampa em Guilgal (3-4),
onde se realiza uma circuncisão geral e é celebrada a
primeira Páscoa em Canaã (5). A parte central da
Terra começa a ser conquistada a partir da cidade de
Jericó (6), seguida pela conquista de Hai (7-8), duran-

14
te a qual é descoberto o pecado de Acã (7). Depois
Josué faz uma aliança com os gabaonitas (9), fato que
provoca a coalizão chefiada pelo rei de Jerusalém
contra Israel, culminando na batalha de Gabaon,
seguida pela conquista das cidades do sul (10). Na
parte norte, o povo enfrenta a coalizão chefiada pelo
rei de Hasor, cuja cidade é depois incendiada pelos
israelitas (11). Terminando a fase da conquista,
temos uma lista dos reis vencidos (12).
Examinando atentamente Js 1-12 vemos logo que
o cenário dos acontecimentos são o santuário de
Guilgal — próximo a Jericó — e as regiões circun-
vizinhas. A atenção se fixa, portanto, numa área
bastante restrita. Como Jericó está dentro do territó­
rio da tribo de Benjamim, é muito provável que o
conteúdo de Js 1-12 seja formado por tradições culti­
vadas no âmbito da tribo de Benjamim e, quando
muito, da tribo de Efraim, imediatamente ao norte.
Examinando as fontes usadas pelo autor, perce­
bemos que a narrativa não pertence ao gênero his­
tórico propriamente dito, mas é formada por um
conjunto de sagas etiológicas e etimológicas, ou seja,
de “estórias” que se dirigem a uma geração que vive
muito tempo depois e que se pergunta sobre situa­
ções, lugares e nomes. E por isso que essas narrativas
terminam em geral com o refrão “até o dia de hoje”.
Assim, esse conjunto de sagas procura explicar: 12
pedras no leito do Jordão (4,6-9); 12 pedras no san­
tuário de Guilgal (4,20-24); o nome “Guilgal” (5,9); os
muros destruídos de Jericó (6); o motivo pelo qual o
clã de Raab vive no meio de Israel (2; 6,25); o monte
de pedras no vale de Acor, bem como o nome do vale

15
(7.26); as ruínas de Hai (8,28); o motivo pelo qual os
gabaonitas são empregados no santuário de Guilgal
(9.27). Note-se ainda que Js 3-5 tem um interesse
fortemente religioso: a travessia do Jordão e a tomada
de Jericó são, na verdade, liturgias processionais; a
dimensão religiosa continua com o rito da circuncisão
e a celebração da Páscoa.
Essas narrativas foram costuradas, formando um
quadro uniforme da fase de ocupação da Terra na
parte da Cisjordânia. Trata-se de uma história mara­
vilhosa, mostrando que não é a força do povo e sim a
força de Javé que conquista a vitória sobre os inimi­
gos. O autor está interessado em mostrar que Javé foi
fiel às promessas, entregando ao povo a Terra que
outrora havia prometido aos antepassados (Ex 3,7-9;
Dt 8,7-9). A mão do autor deuteronomista pode ser
vista desde o começo. Em 1,1-9 Josué é admoestado
a proceder segundo a Lei que Moisés ordenara, e de
ocupar-se continuamente com o “livro dessa Lei” (Dt
31,7-13). Logo a seguir Josué encoraja o povo e pede
solidariedade na luta, e todos se comprometem a
obedecê-lo da mesma forma que obedeciam a Moisés
(1,10-18 = Dt 31,1-6). Em Siquém (8,30-35), entre os
montes Ebal e Garizim, Josué cumpre o que fora
ordenado em Dt 17,18 e 27,1-8. Em 11,5-23 temos um
sumário das conquistas de Josué, realizando a pro­
messa que Javé fizera. Só que o limite da conquista
vai até perto do monte Hermon e não até o rio
Eufrates, conforme se prometia em Dt 1,7. Note-se
como Js 11,23 retoma 1,13 e recorda Dt 12,9-10.

16
.

E xercício em grupo
1. Ler Josué 1-12, sublinhando a expressão “até
o dia de hoje”.
2. Identificar as sagas e procurar descobrir à
quais perguntas do povo elas procuram res­
ponder.
3. Como o nosso povo costuma contar a sua ver­
são da história?

A partilha da Terra (13-21)


Mostra-se aqui como os territórios ocupados fo­
ram repartidos entre as tribos (13-19). Segue-se a
enumeração das cidades de refúgio (20) e das cidades
reservadas aos levitas (21).
Esta parte é formada por documentos em forma de
listas, que apresentam:
— inventários de fronteiras, nunca mostradas em sua
totalidade. Algumas são repetidas duas vezes,
outras precisam ser completadas recorrendo às
fronteiras de uma tribo vizinha;
— inventários de cidades. Para algumas tribos o in­
ventário é bastante completo, ao passo que para
Judá faltam algumas cidades, e Efraim não conta
com nenhuma;
— inventários regionais, identificando nomes de re­
giões ou horizontes geográficos com a fórmula “de
(tal lugar) até (tal lugar)”;
— anais sobre batalhas, conquistas ou ocupações de
cidades e regiões, ou então sobre o malogro em ex­
pulsar os cananeus.
17
Esses documentos são preciosos e antigos. Os
traçados de fronteiras podem pertencer ao tempo do
sistema tribal (± 1200 a 1000 a.C.), ao passo que os
inventários de cidades podem remontar ao período
da monarquia (de 1000 a.C. em diante). Há, porém,
um problema: em 14,1-15 se diz que a distribuição da
Terra foi feita em Guilgal por Josué, junto com
Eleazar e os chefes tribais, para nove tribos e meia;
em 18,1-10 se diz que Josué sozinho, em Silo, repartiu
a Terra entre sete tribos; já em 14,5 e 19,49 a partilha
da Terra foi feita diretamente pelo próprio povo...
A mão do autor deuteronomista aparece em 13,1­
7: a Terra conquistada deve ser repartida. Fala-se de
uma extensão até Emat, bem ao norte do monte
Hermon, mas não até o rio Eufrates, como era previs­
to em Dt 1,7. No final da partilha (21,43-22*6) temos
uma retomada sobre o cumprimento da promessa de
Javé. A Terra foi conquistada e partilhada e agora
todos podem, enfim, descansar (ver 1,13; 11,23; Dt
12,9-10).

Três conclusões (22-24)


A primeira conclusão apresenta a despedida das
tribos transjordânicas que ajudaram solidariamente
na conquista da Cisjordânia (1,12-16) para voltarem
a seus respectivos territórios na Transjordânia (22,1­
6); um mal-entendido torna-se ocasião para um acor­
do solene entre as doze tribos (22,7-34). A segunda
apresenta o discurso de despedida ou testamento de
Josué (23). A terceira relata a Aliança realizada em
Siquém, seguida pela morte de Josué (24).
O episódio relatado em 22,7-34 utiliza uma tradi­

18
ção antiga, lembrando provavelmente uma oposição
entre os sacerdotes do santuário de Silo e as tribos da
Transjordânia, cujos territórios não eram considera­
dos como parte da Terra Prometida, pois esta ter­
minava no Jordão.
Mais uma vez podemos ver a mão do historiador
deuteronomista em Js 23. Aí se retoma a idéia funda­
mental: a história da conquista da Terra é uma
história da liderança de Javé, que cumpriu as pro­
messas feitas (23,14). A entrega de Canaã é, portan­
to, a bênção de Javé. Em 23,11-16 reaparece o tema
deuteronômico das bênçãos e maldições: se o povo
não for fiel a Javé, este cumprirá as maldições, assim
como cumpriu a promessa da posse da Terra (ver Dt
28; 30,15-20).
Em Js 24 temos uma tradição particular que
relata uma Aliança feita em Siquém (24,25). Os
parceiros são Javé e as tribos reunidas, tendo Josué
como mediador. Pode-se notar que há grupos novos
que desejam aderir às tribos e ao culto de Javé (24,14­
24). Consolida-se assim o sistema tribal, e essa Ali­
ança em Siquém talvez fosse renovada em ocasiões
históricas significativas, um laço que mantinha as
tribos unidas. Dessa forma, o historiador deutero­
nomista parece querer terminar a narração da con­
quista da Terra com o tema da Aliança, ligando a
Aliança de Siquém com a do Sinai: assim como
Moisés a realizara no Sinai, Josué agora a realiza na
Terra conquistada. Cumpre-se dessa forma todo o
projeto anunciado em Ex 3,7-9: libertação da terra da
escravidão e da morte para a Terra da liberdade e da
vida.

19
Começando a pensar...
1. A primeira coisa a fazer para conquistar algo
é a união e a organização solidária: todos por
todos. Como a nossa comunidade se une e se
organiza para as suas conquistas?
2. Depois da conquista vem a partilha. Como a
nossa comunidade reparte entre todos aquilo
que todos ajudaram a conquistar?
3. Por que é importante para os diversos grupos
manter a fidelidade ao Deus Javé?
4. O povo de Deus não é um grupo fechado, mas
coloca condições para que os outros partici­

V____________________________ J
pem. Qual a condição principal?

20
2

O QUE REALMENTE ACONTECEU?

À primeira vista o livro de Josué nos deixa mara­


vilhados. Como não se maravilhar diante de um
quadro uniforme de conquista e ocupação, seguido
logo pela partilha fraterna da Terra entre todos?
Novas leituras, porém, e a comparação com outros
livros, começam a levantar tantas perguntas que, por
fim, acabamos completamente perplexos. Por exem­
plo: embora baseadas em tradições antigas, que valor
histórico têm as sagas que estão por trás de Js 1-12?
E que valor documentário têm as listas de Js 13-21,
quando o próprio livro nos avisa que muitas regiões
foram partilhadas antes mesmo de serem conquista­
das? (ver 13,13; 15,13-18; 16,10; 17,11-13.16-18;
19,47). De um lado afirma-se que a conquista da
Terra foi um esforço de todo o povo, dando-se de
forma repentina, sangrenta e total; ao mesmo tempo,
porém, somos informados de que os cananeus conti­
nuam no meio de Israel (15,63; 16,10; 17,12.18),

21
assim como vários outros povos (13,2-6; 15,13-19;
23,7-13). Por outro lado, quando lemos os livros dos
Juizes e Samuel, percebemos que a própria Bíblia
nos mostra que a ocupação da Terra foi um processo
lento e difícil, levado a cabo pelo esforço de clãs
individuais, e que esse processo só terminou comple­
tamente no tempo de Davi. Chegamos então ao ponto
de nos perguntarmos: houve realmente uma con­
quista da Terra, tal como se diz neste livro?

O testemunho da arqueologia
Procurando confirmar o texto bíblico, os estudio­
sos se serviram por muito tempo do testemunho da
arqueologia. Esta, de fato, fornece provas abundan­
tes de que a Palestina sofreu um assalto colossal na
segunda metade do séc. XIII a.C. (1250-10Õ0 a.C.),
parecendo comprovar o que encontramos no livro de
Josué. Por exemplo: Js 8 relata a tomada de Hai e Jz
1,22-26 a tomada de Betei. As escavações, por sua
vez, mostram que Betei ainda existia quando Hai já
estava em ruínas. Mostram também que Betei foi
destruída por um incêndio no final do séc. XIII (±
1200 a.C.), sendo substituída por uma cidade mais
pobre, cuja construção só pode ser atribuída a uma
população invasora menos desenvolvida em questão
de tecnologia. A arqueologia confirma ainda que as
cidades de Tais-Dabir (10,38), Laquis (10,35) e Hasor
(11,10) também foram destruídas por esse tempo.
Contudo, que valor têm essas provas arqueológi­
cas? A arqueologia apenas demonstra que na segun­
da metade do séc. XIII a.C. a Palestina foi o teatro de
uma erupção violenta, mas é incapaz de mostrar

22
quem foi o seu autor. Acontece que por esse tempo
também assaltaram a Palestina os povos do mar, isto
é, os filisteus, que após muitas incursões acabaram
se fixando na faixa marítima do sul da Palestina. Por
outro lado, nas ruínas de Laquis foi encontrada uma
inscrição que se refere a um faraó egípcio no quarto
ano de seu reinado— com toda probabilidade Menefta
—, comprovando que também o Egito fazia incursões
conquistadoras na Palestina por esse tempo. Além
disso, sabemos que as cidades-Estado dos cananeus
viviam em contínuas lutas pela hegemonia política.
E, caso aceitemos que a Palestina foi conquistada
violentamente pelas tribos de Israel, quem foi o
conquistador de Hebron e Dabir: Josué, ou Caleb e
Otoniel? (ver 15,13-14.17; Jz 1,11-13).

Três hipóteses
O testemunho da arqueologia, como vemos, nem
sempre é conclusivo em relação aos textos bíblicos.
Em nosso caso, por exemplo, ele pode até acarretar
mais perplexidade. E o que pensar diante disso? Os
estudiosos se dividem. Atualmente contamos com
três hipóteses de trabalho sobre como Israel teria
entrado na Palestina e ocupado o território.

a. Conquista global e violenta


É a hipótese tradicional: Canaã foi conquistada
pelas doze tribos, unidas sob a chefia de Josué, que as
liderou numa invasão e captura militar de todo o
território, tal como se relata em Js 1-12. Os defensores
dessa hipótese se apóiam inteiramente no texto bí­
blico, escorando-o com o testemunho arqueológico.

23
Esta hipótese, porém, acaba ficando completamente
questionada pelas contradições do próprio texto, pe­
las diferentes versões que aparecem nos livros de
Josué e Juizes e, finalmente, pela incerteza que paira
sobre o próprio testemunho arqueológico.

b. Imigração progressiva e pacífica

Conforme esta hipótese, o que à primeira vista se


apresenta como conquista foi, na verdade, um longo
e complicado processo de imigração, infiltração e
mistura pacífica das tribos com a população cananéia.
Tal processo terminou através de um triunfo político-
militar, que se concretizou apenas do tempo de Davi.
Episódios como o de Raab (2; 6,22-25), o dos gabaonitas
(9), ao lado do testemunho do livro dos Juizes e a
notícia de casamentos com os cananeus (Gn 38)
parecem confirmar esta hipótese. Seus defensores,
todavia, parecem ignorar muito do texto bíblico e se
esquecem completamente do testemunho da arqueo­
logia.

c. Revolução social
Esta hipótese é a mais recente, reunindo de certa
forma as duas primeiras, e acrescentando um dado
novo. Segundo ela, o que chamamos de “povo de
Israel” se formou em grande parte de nativos cananeus
que, juntando-se aos marginalizados do sistema
Capiru) e a um grupo de invasores ou imigrantes que
vieram do deserto (o grupo do êxodo), se revoltaram
contra os reis das cidades-Estado cananéias. E a
hipótese mais provável. Mas como os fatos teriam
acontecido?
24
Nas melhores terras cultiváveis das planícies de
Canaã existiam antigas cidades como Jericó, Hai,
Laquis e outras, governadas por reis e defendidas por
exércitos e muralhas. Outrora dependentes do Egito,
a quem pagavam tributos, essas cidades começaram
a ter certa independência em meados do séc. XIII
a.C., e se puseram em contínuas lutas entre si,
buscando hegemonia política sobre todo o território.
Quem pagava tudo eram os camponeses, cada vez
mais explorados por meio de tributos e trabalhos
forçados.
Os camponeses e pastores começaram a resistir e
a se refugiar nas regiões montanhosas, longe do
alcance dos carros de feiro das cidades (Js 11,9;
17,15-18). A descoberta do ferro lhes possibilitava
desbravar a mata (ISm 13,19-22), e a cisterna lhes
permitia armazenar água da chuva nos lugares altos
(Dt 6,11; Nm 21,16-18). Dessa forma, camponeses e
pastores foram se unindo e amadurecendo a revolta.
A revolta tomou corpo e explodiu com a chegada do
grupo do êxodo, que saíra do Egito e vinha do deserto.
Tal grupo escapara do sistema egípcio, da mesma
forma que os camponeses, pastores e outros margi­
nalizados descontentes {‘apiru) procuravam escapar
do regime das cidades-Estado cananéias. A coesão
desse grupo do deserto era a fé em Javé, o Deus liber­
tador presente no meio do povo (Ex 3,1-15) e com o
qual entrara em Aliança no Sinai. O fermento dessa
fé permitiu que os explorados e oprimidos de Canaã
se reunissem, enfrentando as cidades-Estado e der­
rotando o sistema cananeu, que se apoiava fortemen­
te na religião de Baal. Tal religião era o cimento

25
ideológico do sistema explorador e opressor, pois
afirmava que o rei era o mediador único entre a di­
vindade e o povo para a fertilidade da terra. Derro­
tando o sistema cananeu, a fé em Javé produziu
consciência solidária nos revoltosos e lhes possibili­
tou uma organização social alternativa, o sistema
tribal, fundado na partilha e na igualdade, daí sur­
gindo um povo formado por doze tribos.
Esta última hipótese engloba as anteriores, e
muitos textos de Josué a sustentam: as alianças com
o clã de Raab e com os gabaonitas, e as coalizões
formadas pelo rei de Jerusalém (9,1-2; 10) e de Hasor
(11), por exemplo, ganham um relevo todo especial.
Além disso, entende-se melhor o relato da Aliança de
Siquém (Js 24): num ritual solene são incorporadas
partes da população cananéia que se haviam liberta­
do de seus reis opressores, com a condição de deixar
a religião cananéia (baalismo) e os deuses particulares
dos clãs, a fim de aceitar unicamente a Javé, o Deus
libertador que liderou os israelitas nas suas lutas.
O testemunho arqueológico, por sua vez, ganha
um novo destaque, mostrando como a Palestina so­
freu convulsões internas e passou de um estágio
tecnológico mais desenvolvido para um menos de­
senvolvido. E claro. Um sistema explorador e opressor
como o do Egito e dos reis cananeus possibilita o
acúmulo e, conseqüentemente, maior desenvolvi­
mento de tecnologia de ponta, maior aparato militar
e, sobretudo, mais luxo — tudo, sem dúvida, con­
centrado na mão de uma minoria privilegiada. No
sistema mais justo e igualitário das tribos, pelo
contrário, a maior preocupação era a descentralização

26
do poder e a melhor distribuição dos bens— o que não
possibilitava a sofisticação e o luxo. Atendidas as
necessidades básicas para que todos tenham uma
vida digna, é claro <jue não sobra quase nada para
coisas supérfluas. E para isso que devemos estar
sempre atentos, principalmente quando hoje se cri­
ticam as tentativas de alternativas políticas e eco­
nômicas mais justas e igualitárias. A essa altura, até
os conceitos de progresso, tecnologia, cultura e outros
devem ser seriamente revistos e criticados. Progres­
so, tecnologia, cultura... Sim, mas quem os produz e
quem deles usufrui?

Continuando a pensar...
1. Como imaginávamos a conquista da Terra
Prometida, e como a vemos agora?
2. Quando queremos alguma coisa, o que precisa­
mos fazer em primeiro lugar?
3. A fé em Javé se tornou fermento revolucioná­
rio. Por quê?
4. Qual é o custo do progresso? Quem o paga e
produz? Quem dele usufrui?

27
3

A CONQUISTA DE UM SISTEMA
SOCIAL IGUALITÁRIO

Pelo que vimos até agora, o que se chama de


“conquista da Terra Prometida” não é apenas a
conquista de um território. A conquista inclui isso
também, mas não fica aí. Não basta que os donos da
riqueza e do poder sejam substituídos por outros,
ainda que pelos pobres e oprimidos. E necessário
criar um sistema novo, fundado numa nova concep­
ção de economia e política. Assim, as tribos tiveram
não só de derrotar o velho sistema do Egito e das
cidades-Estado cananéias, mas também criar um
novo modelo de convivência social.
O sistema do Egito e de Canaã se baseava na não-
partilha dos bens vitais e das liberdades; acumulava
os bens e as liberdades nas mãos de poucos, e o povo
explorado e oprimido ficava cada vez mais na miséria
e na fraqueza. Diante disso, as tribos conquistaram
espaços e criaram um sistema novo, fundado na

28
partilha. Partilha da Terra e dos bens vitais, e parti­
lha das liberdades, de modo que todos pudessem
participar dos rumos econômicos e políticos da soci­
edade. Tudo isso foi estimulado pela fé em Javé, o
Deus que suscita liberdade e vida para todos.
Vemos, portanto, que a luta foi também para
conquistar um modelo alternativo de sociedade, que
se concretizou graças à partilha igualitária da eco­
nomia (terra e produção) e àparticipação igualitária
na política (decisões sociais e históricas). Essas duas
coisas implicavam sérias mudanças de visão e de
ação, que podem mais facilmente ser vistas num
quadro comparativo (ver páginas 30-31).
O sistema tribal funcionou aproximadamente 250
anos (± entre 1250 e 1000 a.C.), porém jamais conse­
guiu se impor totalmente, e sempre foi vivido com
altos e baixos. Tanto o livro de Josué como o dos
Juizes salientam que certos quistos cananeus conti­
nuaram no meio das tribos (13,1-7; Jz 1,1-2,5), exer­
cendo constante influência (Jz 2,6-3,6).
Parte especialmente importante foi exercida pela
religião javista, que cimentava o sistema tribal e
mantinha sempre viva a memória das lutas popula­
res (Js 4-6; 8,30-35). Siquém tornou-se o lugar do
compromisso com a fé javista (24,1-28), e os aconte­
cimentos fundamentais desse período— travessia do
Jordão, tomada de Jericó, conquista da Terra —
marcaram a história de tal forma que séculos mais
tarde eram ainda repetidos e celebrados (SI 44,2-9;
66,5-6; 78,54-55; 105,44-45; 135,8-12; 136,10-22 etc.).

29
SISTEMA EGÍPCIO E CANANEU
A. Sociedade desigual, fundada no interesse
particular e organizada a partir de cima:
rei-funcionários-notáveis-soldados-campo-
neses (Js 11-12).
B. Exploração da força de trabalho. A terra
pertence ao rei e o pevo é obrigado a se
empregar sob as duras condições impostas
pelo rei, que se aprepria do excedente da
produção dos camponeses (Ex 5,6-18).

C. Poder centralizado no rei. O rei é dono de


tudo e decide sobre tudo (ISm 8,10-17).

D. Exército estável de mercenários. O rei


mantém exércitos regulares, que lhe garan­
tem a dominação e a repressão (ISm 8,11-
12).
SISTEMA TRIBAL
A. Sociedade igualitária, fundada no interes­
se comum e organizada a partir da base:
família patriarcal-clã-tribo (Nm 1,1-2,34).

B. Autonomia produtiva. A terra pertence ao


povo e é distribuída entre as famílias ou
grupos. Proíbe acumulação (Ex 16) e celebra
o ano jubilar e o ano sabático, para devolver
a terra aos seus antigos donos (Lv 25; Dt
15,1-18).
C. Poder participado e subsidiário. As deci­
sões são tomadas progressivamente pelos
anciãos (chefes de família, de clã e de tribo).
Grandes decisões são tomadas em assembléi­
as do povo (Ex 18,13-27; Nm 11,16-25; Js 24).
D. Exército ocasional improvisado. Para se de­
fenderem, as tribos se reúnem e organizam
suas forças para lutar contra o inimigo co­
mum (Jz 4,6-10).
E. As leis defendem os interesses do rei. Graças E. As leis defendem o sistema igualitário. Os
ao seu poder, a palavra do rei é lei para o mandamentos se baseiam no compromisso
povo (Ex 1,8-10.22; 5,6-9). mútuo, preservando a liberdade e prescre­
vendo relações sociais justas e fraternas (Ex
20.1-17; Dt 5,1-21).
F. Vários deuses, manipulados e impostos pelo F. Fé unicamente em Javé, o Deus libertador
rei, a fim de legitimar e promover a explora­ que promove a liberdade e a vida para todos,
ção e a opressão: Baal, Astarte e outros (Js através da fraternidade e da partilha (Ex
24,14-15). 3.1-15; 22,20-26; Dt 24,6-22).
G. Culto centralizado para celebrar o mito que G. Culto descentralizado para celebrar a vida
legitima o poder do rei. Poderoso meio de e a história. Realizado nas famílias e depois
dominação, sujeito a um esquema rigoroso. nos santuários, celebra a presença e a ação
Nada deve mudar (ISm 5; lRs 11,1-8). de Javé, que liberta o povo e o põe em mar­
cha para a vida (Ex 19,1-18; Dt 26,1-11; Js
24.1-28; Jz 17).
H. Sacerdotes a serviço do sistema. Os sacer­ H. Sacerdotes-levitas a serviço do povo. Exer­
dotes, ricos e donos de terra, são também os cem uma liderança que não permite a acu­
intermediários entre o povo e os deuses, mulação de bens. Não podem ter terras e vi­
colocando-se inteiramente a serviço do sis­ vem de seu trabalho, ao lado dos pobres e ne­
tema (Gn 47,20-22). cessitados (Nm 18,20; 35,1-8; Dt 12,12.18-
19; 14,27; Js 13,14).
Este quadro comparativo, com algumas adaptações, foi tirado de A formação do povo de Deus, CRB/Ed. Loyola, 1990, pp. 98-99.
Continuando a pensar...
1. Por que não basta conquistar uma porção de
terra para que se tenha vida nova? O que mais
é preciso?
2. Comparar o sistema egípcio-cananeu com o
sistema tribal. Olhar depois para o sistema
em que vivemos. Com qual dos dois o nosso
sistema se parece mais?
3. A nossa fé leva o povo a ter mais liberdade e
vida ou serve de apoio para um sistema que
produz escravidão e morte?
4. A luta por uma sociedade justa e igualitária
nunca termina. Por quê?
5. Por que é importante celebrar as lutas-e vitó­
rias populares? Nossas festas nacionais e re­
gionais celebram vitórias do povo?

32
4

ESPERANÇA PARA OS SEM-TERRA

Já dissemos na introdução que o livro de Josué


pertence à grande História Deuteronomista, que
inclui os livros de Josué, Juizes, Samuel e Reis, tendo
o livro do Deuteronômio como marco ideológico para
interpretar toda a história do povo de Deus na Terra
Prometida. Deixamos claro que essa história foi
escrita no exílio e pretendia mostrar ao povo exilado
o porquê da sua situação.
Qual o propósito do historiador deuteronomista ao
juntar as fontes que formaram o livro de Josué? Sua
preocupação não era tanto a de escrever um registro
puramente objetivo e neutro dos fatos, a fim de
documentar uma história passada. Escrever história
é basicamente interpretar fatos e acontecimentos, e
tal interpretação é feita a fim de conseguir algo de
determinados leitores que se encontram em determi­
nada situação.

33
Servindo-se da releitura e da interpretação deute-
ronômica de antigas tradições e documentos, o histo­
riador deuteronomista escreveu para um povo sem
terra, ou melhor, um povo que havia perdido a pró­
pria terra e, conseqüentemente, tudo o que a ela
estava ligado: liberdade e organização econômica,
política, social e ideológica. Os leitores pertenciam a
um povo que, no exílio, encontrava-se na situação de
escravo da Babilônia, uma das maiores potências da
época. Era a mesma situação que, no passado, o povo
tinha experimentado no Egito e em Canaã. O anseio
pela liberdade (sair da terra da exploração e opres­
são) e pela vida (entrar na Terra da partilha e da
fraternidade) era o mesmo ou, talvez, ainda maior,
visto que esses exilados já haviam experimentado a
liberdade e a vida na “terra fértil e espaçosa, terra
onde corre leite e mel” (Ex 3,8).

O historiador deuteronomista, em primeiro lugar,


tinha de fazer esse povo compreender as raízes da
sua atual situação. Para isso ele se serve de toda a
visão do livro do Deuteronômio, cujo cerne ideológico
deixa bem clara a escolha entre a fidelidade ao Deus
Javé e a fidelidade aos ídolos do opressor. A fideli­
dade a Javé, fonte da liberdade e da vida, leva à
bênção, isto é, à liberdade e à vida; a infidelidade a
Javé, para servir aos deuses do opressor, leva à
maldição, isto é, à perda da liberdade e da vida (Dt
28; 30,15-20). E claro que essa escolha entre Javé e os
ídolos implicava uma escolha entre dois sistemas de
sociedade: o sistema tribal ou o sistema dos reis.
Assim, se o povo se encontra na situação de escravo,
sem liberdade e sem terra, é porque ele foi infiel a
34
Javé (deixou o sistema tribal) e recebeu a maldição
(tornou-se novamente escravo dos reis).
Compreender isso, porém, não basta. A compreen­
são, quando verdadeira, é impulso para a ação. Qual
a ação que o historiador aponta para os exilados?
Justamente a de mostrar o êxodo e a conquista da
Terra como modelos de libertação para a vida. E certo
que, ao ler a história passada, os exilados podiam de
novo se sentir na pele do povo escravizado no Egito e
em Canaã. Podia se reconhecer claramente no grupo
que saíra do Egito, assim como no grupo dos margi­
nalizados (‘apiru), dos camponeses e pastores explo­
rados pelo sistema das cidades-Estado cananéias. O
que fazer? O mesmo que eles outrora haviam feito:
organizar-se e unir as forças para reconquistar e
repartir a Terra que Deus dá a todos como herança.
O historiador deuteronomista, portanto, imagina
os exilados na mesma situação em que se encontrava
o povo no Egito e em Canaã, antes de conquistar a sua
libertação e tomar posse da Terra. A eles agora é dito:
“Até agora vocês ainda não entraram no lugar do
repouso e na herança que Javé seu Deus vai dar a
vocês” (Dt 12,9). A eles é dirigido o discurso profético
do Deuteronômio como chamado à conversão e pre­
paração para reentrar, retomar a Terra e nela re­
construir uma sociedade nova a partir de um ideal
utópico: o igualitarismo.
Dessa forma, a história contida em Josué é um
passo importante, uma grande lição para que o povo
retome o fio da sua história, lutando pela liberdade
(sair do sistema dos reis) e pela vida (reentrar no
sistema das tribos: reconquistar e repartir a Terra).

35
E meditando os erros e acertos do passado que se
torna possível compreender o presente e abrir novos
caminhos para o futuro:

“Povo meu, escuta a minha instrução,


dá ouvidos às palavras da minha boca.
Vou abrir minha boca em parábolas,
vou expor enigmas do passado.
O que nós ouvimos e aprendemos,
o que nos contaram nossos pais,
não o esconderemos aos filhos deles,
nós o contaremos à geração futura:
os louvores de Javé, seu poder
e as maravilhas que realizou.
Porque ele estabeleceu uma norma para Jacó
e deu uma lei para Israel: '
ordenou aos nossos pais
que as transmitissem a seus filhos,
para que a geração seguinte as conhecesse,
os filhos que iriam nascer.
Que se levantem e as contem a seus filhos,
para que ponham em Deus sua confiança,
não se esqueçam dos feitos de Deus
e observem os seus mandamentos.
Para que não sejam como seus pais,
uma geração desobediente e rebelde,
geração de coração inconstante,
que não tem espírito fiel a Deus”
(SI 78,1-8).

36
Continuando a pensar...
1. Quem conta uma história sempre quer que se
veja e se faça alguma coisa. O que querem de
nós quando nos contam a história do nosso
país?
2. Quem faz a interpretação oficial da nossa
história?
3. Como o povo pode contar a sua história para
ter liberdade e vida?
4. Quais foram os fatos e acontecimentos mais
importantes que nos levaram a experimentar
mais liberdade e mais vida?
5. Ler o salmo 78,1-8 e comentar em grupo.

37
5

DOM DE DEUS
OU CONQUISTADO POVO?

No livro de Josué encontramos a primeira parte da


lição da história deuteronomista: àfidelidade do povo,
Javé responde com a bênção, que é o dom da Terra.
Lendo o livro, porém, e principalmente levando em
conta a verdade histórica dos fatos, ficamos com a
pergunta: A tão prometida Terra, afinal, foi dada
graciosamente por Deus, ou foi conquistada dura­
mente pelo povo?
À primeira vista o centro do livro é a pessoa de
Josué. Isso, porém, é produto de uma sistematização
“histórica”, que não deve nos impedir de ver a com­
plexidade dos fatos acontecidos nesse período e teste­
munhados por tradições e documentos muito antigos
e bastante diferentes. Alguns estudiosos chegam até
a duvidar da existência real de uma pessoa com o
nome de Josué. Por essa razão é melhor ver no nome
de Josué o conteúdo de um programa que é apresen­
tado no livro. Com efeito, Josué, em hebraico
Yehoshua‘, significa Javé salva ou Javé é salvação, e
isso, segundo o que vem apresentado neste livro,
quer dizer: o dom da Terra é salvação para o povo.
Na verdade, portanto, a personagem central do

38
livro de Josué é a Terra, o grande dom com que Deus
salva o seu povo. E então chegamos à pergunta
crucial: de que modo esse dom chega até o povo?
Desde o livro do Êxodo até o do Deuteronômio ouvi­
mos dizer que Deus vai dar a Terra. O livro de Josué,
mesmo com as diferentes hipóteses históricas, mos­
tra claramente que a Terra prometida por Deus teve
de ser conquistada pelo povo. E aí temos o impasse:
foi dom ou conquista? Foi promessa de Deus ou
aspiração do povo? Até que ponto Deus e o Homem se
contrapõem e contradizem, ou se interpenetram e
complementam?

Dom e conquista
Devemos buscar as respostas a essas perguntas
nos próprios textos bíblicos. O livro do Êxodo mostra
que a ação libertadora de Javé se realizou como
resposta à aspiração do povo, que clamava pela li­
berdade:

“Os filhos de Israel gemiam sob o peso da


escravidão, e clamaram; e do fundo da escra­
vidão, o seu clamor chegou até Deus. Deus
ouviu as queixas deles e lembrou-se da alian­
ça que fizera com Abraão, Isaac e Jacó. Deus
viu a condição dos filhos de Israel e a levou em
consideração” (Ex 2,23-25).
“Javé disse: ‘Eu vi muito bem a miséria do
meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor
contra seus opressores, e conheço os seus sofri­
mentos. Por isso, desci para libertá-lo do
poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa
terra para uma terra fértil e espaçosa, terra
onde corre leite e mel, o território dos cananeus,
39
heteus, amorreus,ferezeus, heveusejebuseus’ ”
(Ex 3,7-8).
Daqui podemos ver que o Deus libertador não impõe
e nem dá a liberdade. Ele espera e só age quando o
povo clama por libertação, dando eficácia à aspiração
do povo. Então sim, acontece a libertação. Contudo,
de onde vem a aspiração humana pela liberdade?
Não virá da presença e ação do próprio Deus dentro
de suas criaturas, seduzindo-as com o desejo que as
leva a uma vida melhor? Nesse caso, a promessa de
Deus é o núcleo mais íntimo daquilo que costumamos
chamar de aspiração humana legítima.
Da mesma forma, no livro de Josué somos infor­
mados de que Javé vai dar a Terra, mas por dentro e
através do esforço de conquista do povo. A Josué,
líder do movimento popular, Deus promete inicial­
mente companhia contínua: '
“Assim como estive com Moisés, estarei tam­
bém com você: nunca o abandonarei nem o
deixarei desamparado... Não tenha medo e
não se acovarde, porque Javé seu Deus está
com você aonde quer que você vá” (Js 1,5.9).
Depois, antes de cada batalha, Javé promete que vai
entregar os inimigos nas mãos do seu povo:
“Javé disse a Josué:'Não tenha medo e não se
acovarde. Leve com você todos os guerreiros.
Levante-se, e suba contra Hai. Veja! Eu estou
entregando em suas mãos o rei de Hai, junto
com o povo, a cidade e as terras dele’ ” (Js 8,1;
ver também 6,2; 10,8.12; 11,8.20).
O que podemos concluir disso? Que Deus dá a
Terra, mas não dispensa o esforço do povo; ou melhor,

40
ele a dá somente se o povo se dispõe corajosamente a
conquistá-la. Em outras palavras, Deus age por den­
tro e através do esforço do povo em conquistar, dando
eficácia à sua ação. E o que se diz claramente em Pr
21,31: “O cavalo se prepara para o dia da batalha,
mas a vitória vem de Javé” (ver também SI 20,8;
147,10-11; Os 1,7).
Os textos falam por si, fazendo-nos reequacionar
os binômiospromessa-aspiração, dom-conquista.Ação
de Deus e ação do povo se interpenetram e se comple­
mentam dentro de um clima de tensão, porque Deus
promete por dentro da aspiração do povo. Da mesma
forma, Deus dá, mas por dentro do esforço de con­
quista do povo. Isso tudo, porém, com a condição de
que a pessoa e o povo aspirem a conquistar aquilo que
é legítimo, ou, em outras palavras, aquilo que o
próprio Deus projeta: liberdade e vida para todos.
Podemos concluir, portanto, que a “Terra = Vida”
é fruto do encontro adequado entre o dom de Deus
(que cria a possibilidade) e a atitude do povo (que
concretiza a possibilidade). Em termos de tempo,
poderíamos dizer que esse encontro adequado se
verifica entre o presente eterno de Deus (o dom já
está feito e sempre à disposição) e o projeto humano
histórico em contínua realização (o dom se concretiza
historicamente quando e se o povo se organiza e se
mobiliza para conquistá-lo, certo de que Deus dará
eficácia ao esforço do povo, entregando o seu dom nas
mãos conquistadoras do povo).
O Deus Javé, único absoluto verdadeiro, fonte
inesgotável da liberdade e da vida, é o Deus que dá
liberdade e vida, mas só quando o povo se dispõe a
conquistá-las. E nesse esforço de conquistar entra o
quadro de estratégias e táticas de que o livro de Josué
41
está cheio: espionagem, união solidária entre os
diversos grupos (as tribos transjordânicas já esta-
vam de posse do seu território, mas se dispuseram a
ajudar as outras tribos a conquistar seus respectivos
territórios), táticas bélicas (Js 8), infiltrações e alian­
ças táticas (com o clã de Raab, com os gabaonitas, e,
na hipótese da revolução social, aliança com os opri­
midos pelo sistema e os marginalizados da sociedade,
a fim de mudar o sistema etc.). E claro que as
estratégias e táticas são, afinal, frutos da inteligên­
cia humana, e esta é, sem dúvida, um dom que Deus
fez ao homem. Para ser usado, evidentemente.

Conquista e partilha
Js 13-21 são nove capítulos de intermináveis lis­
tas que pormenorizam fronteiras e cidades. Para nós,
muitas vezes desejosos de encontrar logo um sentido
explícito, essa parte do livro pode se tornar muito
enfadonha. A coisa muda, porém, quando percebe­
mos que por trás de tantos detalhes se escondem
duas coisas muito importantes:
— Alegria: alegria em detalhar ponto por ponto tudo
o que Javé deu e o seu povo conquistou. Mais alegria
do que essa é só a da criança examinando um por um
todos os presentes que há tanto tempo desejava
receber...
— Partilha: outra e, talvez, a maior alegria: a de
repartir entre todos o que foi dado por Javé a todos e
conquistado por todos. Todo o conceito de posse e
acumulação, que era o núcleo fundamental do siste­
ma dos reis, fica abalado: a Terra é o dom de Deus
para todos, e o que foi conquistado por todos deve ser
repartido entre todos. Não acumular e não comer­
cializar o dom de Deus é o princípio básico, e sua
42
conseqüência imediata é a partilha: todos têm direito
de usufruir o dom de Deus. E nesse espírito de par­
tilha que repousa o alicerce de uma sociedade igua­
litária, onde todos podem ter o necessário e cada um
pode receber o quinhão que lhe permite viver de modo
digno e verdadeiramente humano.
Com o binômio “conquista-partilha”, portanto, o
livro de Josué apresenta o projeto básico para a
superação de uma sociedade desigual, onde poucos se
privilegiam, açambarcando, acumulando e retendo o
dom de Deus, à custa da situação do povo que,
conseqüentemente, fica reduzido à impotência e à
miséria. Nessa perspectiva, o livro de Josué é a maior
crítica que se pode fazer ao latifúndio, oferecendo, ao
mesmo tempo, a base teológica para uma reforma
agrária: re-partir e re-distribuir a Terra é, portanto,
uma exigência da própria fé.

Continuando a pensar...
1. O dom da Terra é salvação para o povo. Por
quê?
2. Por que o povo teve de conquistar a Terra que
Deus lhe havia dado?
3. De que modo a ação de Deus e a ação do homem
caminham juntas?
4. Deus é Pai, mas não é paternalista. Quais as
conseqüências disso?
5. A reforma agrária é uma exigência da própria
fé. Por quê?
6. Quais são os gestos de conquista e partilha que
já realizamos em nossa comunidade? Quais
outros poderíamos fazer?

43
C o n c l u sã o

A GRAÇA DE DEUS

O livro de Josué expõe, na verdade, um inigualável


tratado sobre a graça de Deus. O que é a graça? E o
dom com que Deus satisfaz todas as necessidades de
suas criaturas.
Muitos, porém, entendem a graça de modo errado:
pede-se a Deus, estende-se a mão, e a graça cai do céu!
Uma atitude puramente infantil. Ora, Deus é Pai,
mas não é paternalista. Ele dá tudo o que precisamos,
mas não nos deixa numa atitude passiva, dispensan­
do-nos de usar todas as potencialidades que nos
entregou ao nos dar a vida. Se Deus nos desse tudo
pronto, prescindindo da liberdade e capacidade hu­
manas, ele seria um deus invasor e possessivo, inte­
ressado em nossa paralisação e aniquilação, e não em
nosso desabrochar e em nosso desenvolvimento.
Deus não age apesar de nós ou em nosso lugar. Ele
age junto conosco, como aliado que dá eficácia reali-
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zadora ao que aspiramos e buscamos conquistar. E
Deus é muito inteligente: ele sabe que nós, seres
humanos, só damos valor ao que aspiramos e con­
quistamos; e quanto mais difícil for a aspiração e
mais dura a conquista, maior valor daremos. Os pais
e mães humanos têm muito a aprender com o “méto­
do educacional” de Javé...
A graça é o dom de Deus, sempre possível e
presente, à disposição. Poderíamos dizer que a graça
é o conteúdo fundante e eficaz de todas as legítimas
aspirações e conquistas humanas. Legítimas, isto é,
aspirações e conquistas que de fato coincidam com o
projeto de Deus e o levem à concretização histórica.
E o que nos diz o apóstolo João, a propósito da oração:

“Ao nos dirigirmos a Deus, podemos ter esta


confiança: quando pedimos alguma coisa
conforme o seu projeto, ele nos ouve. E, se
sabemos que ele nos ouve em tudo o que lhe
pedimos, estamos certos de quejá obtivemos o
que lhe havíamos pedido” (lJo 5,14-15).

E sabemos bem qual é o projeto de Deus: liberdade


(êxodo) e vida (terra) para todos. Não podemos pre­
tender que Deus assine uma aspiração ou uma con­
quista, ou que atenda a um pedido que pudesse de
alguma forma lesar o outro. O dom de Deus sempre
deve ser repartido.
Em nossa estrutura de seres humanos, criados à
imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27), o dom de
Deus já está completamente dado como semente
capaz de germinar. Cabe a nós descobrir em nós

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mesmos esse dom, a fim de atuar e concretizar a se­
mente em planta visível. Em outras palavras, cabe a
nós dar forma ao conteúdo e realização à potencia­
lidade. E, como isso é um projeto inesgotável que se
realiza no tempo, cabe a nós estarmos sempre voltados
para esse conteúdo fundante e eficaz, em que tudo já
está contido, á fim de construirmos a vida e a história.
Com efeito, como nos ensina o livro de Josué,
promessa e dom de Deus (conteúdo fun­
dante e eficaz)
Terra é e i

aspiração e conquista do povo (formaliza­


ção histórica).
proposta de Deus (potencialidade já entre­
gue) '
Vida é e
resposta do povo (contínua descoberta,
conquista e atuação da potencialidade).
ro presente de Deus (liberdade e vida,
completamente entregues)
e
História é
o futuro do povo (aspiração e conquista
tensão entre
que vai formalizando historica­
mente sucessivos e crescentes
momentos de liberdade e vida).

A graça de Deus é uma realidade do ponto de vista


de Deus. Contudo, do ponto de vista da humanidade,
ela só levará à liberdade, à Terra, à Vida e à História
quando a humanidade se dispuser a descobri-la,
conquistá-la e dar-lhe forma concreta. Isso infeliz-

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mente, para os que só ficam esperando. Mas felizmente,
para os que se dispõem à ação. Como dizia um dos
nossos cantores:
“Vem, vamos embora,
que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer.”

Continuando a pensar...
1 .0 que costumávamos pensar sobre a graça de
Deus?
2 .0 que o livro de Josué nos ensina sobre a graça
de Deus?
3. Por que muitas vezes Deus não atende ao nos­
so pedido ou não nos concede o que aspiramos
e procuramos conquistar?
4. Se o povo não se unir, se organizar e partir pa­
ra a conquista, jamais terá a Terra e a Vida, e
jamais construirá a sua História. Por quê?
5. “Tudo é graça de Deus e tudo é conquista da
humanidade.” Comentar.
V__________________________________ J

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ÍNDICE

5 “Como ler a Bíblia”


7 Introdução: A História Deuteronomista
14 1. 0 livro de Josué à primeira vista
21 2. 0 que realmente aconteceu?
28 3. A conquista de um sistema social igualitário
33 4. Esperança para os sem-terra
38 5. Dom de Deus ou conquista do povo?
44 Conclusão: A graça de Deus
O livro de Josué pertence à grande História Deute­
ronom ista, que inclui os livros de Josué, Juizes,
Samuel e Reis, tendo o livro do Deuteronôm io com o
m arco id eológico para interpretar toda a história
do p ovo de Deus na Terra Prom etida. Qual o prop ó­
sito d o historiador deuteronom ista ao juntar as
fontes que form aram o livro de Josué? Servindo-se
da releitura e da interpretação deuteronôm ica de
antigas tradições e docum entos, ele a escreveu pa­
ra um pouo sem terra, ou melhor, um povo que havia
perdid o a próp ria terra e, conseqüentemente, tudo
o que a ela estava ligado: liberdade e organização
econôm ica, política, social e ideológica. Os leitores
pertenciam a um povo que, no exílio, encontrava-se
na situação de escravo da Babilônia. Era a mesma
situação que, no passado, o povo tinha experim en­
tado n o Egito e em Canaã. O anseio pela liberdade
(sair da terra da exploração e opressão) e pela vida
(entrar na Terra da partilha e da fraternidade) era
o mesmo ou, talvez, ainda maior, visto que esses
exilados já haviam experim entado a liberdade e a
vida na “terra fértil e espaçosa, terra onde corre
leite e mel” (Ex 3,8).

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