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Se os tubarões fossem homens

BRECHT, B. Histórias do Senhor Keuner. Lisboa: Hiena Editora, 1993.

“Se os tubarões fossem homens”, perguntou ao senhor K, uma miúda, filha de sua senhoria, “seriam mais
amáveis para os peixinhos do que eles são?”

“Claro que sim”, disse ele, “se os tubarões fossem homens, mandariam construir no mar enormes caixas
para os peixinhos e punham dentro comida, tanto vegetal como animal. Teriam cuidado em fazer com que
a água das caixas fosse continuamente renovada e, de um modo geral, adaptariam todo o tipo de medidas
sanitárias. Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, far-lhe-iam um penso para não morrer antes
do tempo.

Para os peixinhos não ficarem melancólicos, de tempos em tempos organizariam grandes festas aquáticas
porque os peixinhos alegres são mais saborosos que os melancólicos. Como é natural nessas grandes
caixas também haveria escolas. E nessas escolas os peixinhos aprenderiam como se nada na goela dos
tubarões. Seria necessário, por exemplo, aprenderem geografia para saberem onde encontrar os grandes
tubarões que estão preguiçosamente a descansar num lado qualquer.

É claro que a formação moral dos peixinhos seria muito importante. Ensinar-lhes-iam que nada é mais
sublime nem formoso do que um peixinho que se sacrifica alegremente, e todos deveriam ter fé nos
tubarões, sobretudo quando prometem zelar pela sua felicidade futura.

Far-se-ia os peixinhos compreender que um tal futuro só estaria assegurado se aprendessem a obedecer.
Teriam de abster-se de toda a propensão baixa, materialista, egoísta e marxista; e se algum deles visse
uma destas tendências manifestar-se deveria ser logo comunicada aos tubarões.

Se os tubarões fossem homens, por certo fariam guerra uns aos outros para conquistar caixas e peixinhos
estrangeiros. Mandariam os seus próprios peixinhos para a guerra, e ensinar-lhes-iam, que há enorme
diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões.

Como toda a gente sabe, proclamariam, os peixinhos são mudos mas calam-se em línguas muito
diferentes e por isso é impossível entender-se. A cada peixinho que matasse na guerra uns quantos
peixinhos inimigos, dos que se calam noutra língua, seriam dadas uma condecoração de algas marinhas e
o título de herói.

Como é natural, se os tubarões fossem homens também teriam a sua arte. Haveria belos quadros que
representariam os dentes e as goelas dos tubarões em cores magníficas, como autênticos jardins onde é
possível traquinar deliciosamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam como os peixinhos heróicos e
corajosos nadam com entusiasmo em direção às goelas dos tubarões, e a música seria tão bela que os
peixinhos, ao som das notas, precedidos pela orquestra, precipitar-se-iam sonhadoramente na garganta
dos tubarões embalados pelos mais encantadores pensamentos.

Também haveria uma religião, se os tubarões fossem homens. E ensinaria que os peixinhos só começam
verdadeiramente a viver na barriga dos tubarões. Além do mais,se os tubarões fossem homens os
peixinhos deveriam ser iguais como agora são. Alguns deles obteriam cargos e passariam a ficar acima
dos outros. Os que fossem um pouco maiores, teriam mesmo o direito de comer os mais pequenos.
Apenas para os tubarões isso seria agradável porque teriam possibilidade de comer, mais vezes, bocadas
maiores.

E os peixinhos maiores, os que ocupariam aqueles cargos, zelariam por que reinasse a ordem entre os
mais pequenos e tornar-se-iam professores, oficiais, engenheiros de construção de caixas, etc. Para
resumir, só se os tubarões fossem homens nasceria nos mares um civilização”.

Prof. Msc: Magnus de Souza

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