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A Parafraze dos Proverbios de Salomão:

o código moral dos pedreiros livres


impresso na Bahia em 1815

Pablo Antonio Iglesias Magalhães*

1. O livro de José Eloi Ottoni



Tipografia de Manoel Antonio da Silva Serva
foi a primeira imprensa particular a fucionar
continuamente no Brasil e dos seus prelos
saíram obras diversas, sendo algumas de
reconhecida importância para a literatura portuguesa,
apesar de atualmente ignoradas pelos historiadores das
letras luso-brasílicas. Tal é o caso da Parafraze dos Pro-
verbios de Salomão em verso portuguez, dedicada ao
Serenissimo Principe da Beira Nosso Senhor por Jose
Eloi Ottoni, 1815, in 8º, com 357 páginas, numa edição
bilíngue latim-português.

A Parafraze dos Proverbios de Salomão é o livro


mais conhecido impresso na Silva Serva. Supostamente
tivera uma edição em 1813, mas dessa edição fantasma
existe apenas uma referência no Catalogo da Biblioteca

* ????????

REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA DO LIVRO E DA EDIÇÃO ­‑ ANO XVI, nº. 35­‑36 ­‑ 2015, pp.

1
de Francisco Ramos Paz, publicado em 1920.1 Nenhum
exemplar da edição de 1813 foi encontrado, sendo que,
por isso, Borba Moraes e Berbert de Castro duvidaram
da sua existência. Da edição de 1815 existem cerca de
duas dezenas de exemplares identificados em bibliotecas
públicas e coleções particulares. Há, decerto, uma edição
impressa no Rio de Janeiro, em 1841, sem o texto latino.

Os exemplares da edição de 1815, que será examinada


neste estudo, foram colocados à venda em Salvador, no
Rio de Janeiro e disponibilizados por Silva Serva em Por-
tugal, por meio de uma rede de livreiros que atuava nas
principais cidades do Reino.2 Apesar do grande número
de exemplares colocados à venda, a Parafraze dos Pro-
verbios de Salomão passou quase despercebida na época
em que foi publicada, visto apenas como mais um livrinho
religioso, dentre tantos outros, que se publicava no início
do século XIX. Borba Moraes afirmou que “de todas as
obras impressas por Silva Serva é hoje fácil de achar-se,
mas, nem assim, é lida”.3 Concordo duplamente com ele.
O livro, contudo, é mais do que um simples compêndio
religioso e o discurso implícito em suas linhas pode reve-
lar significados políticos mais complexos, considerando,
ainda, a conjuntura histórica em que foi publicado.

1 PAZ, Francisco Ramos. Catalogo da Biblioteca de Francisco Ramos


Paz. Rio de Janeiro: Typ. O Imparcial, 1920, p. 52. A suposta edição
de 1813 seria “Dedicada ao príncipe da Beira”, no formato in-4; já a
de 1815 foi seguramente “Dedicada ao serenissimo príncipe da Bei-
ra”, no formato in-8 pequeno. BLAKE, Augusto Alves Sacramento.
Dicionário Bibliographico Brazileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Na-
cional, Vol. 4, p. 410, indica mais um folheto da lavra de Ottoni im-
presso na Silva Serva e de que não se conhece um exemplar: Elogio
á serenissima princeza da Beira, recitado no theatro de S. João da
Bahia no dia 12 de outubro de 1814. Bahia, 1814. Moreira de Azevedo
registra esse folheto, mas, diferente de Blake, afirma que o elogio foi
dedicado “a S. A. R. o serenissimo principe da Beira”.
2 Pablo Antonio Iglesias Magalhães. Livros Ultramarinos: o comércio
de servinas em Portugal. In: Revista Portuguesa de História do Li-
vro, Lisboa, v. 29-30, p. 433-467, 2012.
3 MORAES, Rubens Borba de. Livros e Bibliotecas no Brasil Colo-
nial. Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: SCCT, 1979. p.140

2
A Parafraze dos Proverbios de Salomão pode ser con-
siderada um símbolo da influência dos pedreiros livres
na imprensa e na literatura colonial. Mais do que isso, o
referido livro é um código moral, orientado pelos valores
e simbologia propagados pela maçonaria luso-brasílica.
Curiosamente, não existe registro de qualquer associação
entre Paráfrazes dos Provérbios de Salomão e os pedrei-
ros-livres. Mesmo os historiadores da maçonaria no Bra-
sil e a Academia Maçônica de Letras parecem ignorar
completamente o livro de José Eloi Ottoni.

Antes de avançar sobre o conteúdo do poema, é


necessário, primeiro, apresentar seu autor. A biografia
de José Eloi Ottoni é parcialmente conhecida porque seu
sobrinho Theophilo Benedicto Ottoni publicou algumas
informações acerca das suas origens e vida atribulada.4
Moreira de Azevedo5 e Nelson Senna6 também escre-
veram sobre o poeta mineiro. Ottoni nasceu na Vila do
Príncipe, atual cidade do Serro, a 1 de dezembro de 1764,
primeiro filho de Manuel Vieira Ottoni, de descendência
genoveza, fundidor na Intendência do Ouro da referida
vila, e da paulista Ana Felizarda Pais Leme. Desde criança,
ainda no Serro, afirmou Theophilo Ottoni, escreveu nas
paredes da casa de um vigário de vida desregrada: “Prega
bem o frei Tomás / Prega bem o mal que faz”.

4 OTTONI, Theophilo Benedicto. Noticia Historica sobre a Vida de e


Poesias de José Eloy Ottoni. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J.
Villeneuve e Comp., 1851. Esta notícia foi reproduzida na edição de
Job, impressa em 1852.
5 AZEVEDO Moreira de. Biografia de José Eloy Ottoni, in: RIHGB,
XXXV, 2.ª parte, Rio de Janeiro, 1872, pp. 501-518. Há também um
pequeno artigo, que nada acrescenta ao que se conhecia sobre Otto-
ni, que foi publicado nos Anais do Arquivo Público Mineiro, vol. 14,
pp. 481-490, Belo Horizonte, 1909.
6 Nelson de Senna, Elogio Histórico e Literário de José Eloy Ottoni,
Rio de Janeiro: 1911. http://www2.cultura.mg.gov.br/detalhe_inv.
php?id=130, Cx. 06 - Doc. 23.

3
Ottoni educou-se no Arraial de Catas Altas e, ainda
muito jovem, estudou na Itália, retornando para Minas
Gerais em 1791 ou 1792. Lecionou latim na Vila de Nossa
Senhora do Bom Sucesso do Fanado (Minas Novas),
sendo espectador das agitações geradas pela Inconfi-
dência Mineira, quando os principais poetas da capita-
nia foram arrolados como réus. Ali se casou com Maria
Rosa do Nascimento, filha do Coronel Manoel José Este-
ves, tendo por filhos Honório Esteves Ottoni e Eduviges
Esteves Ottoni. Em março de 1798, com os vencimentos
de professor régio alguns anos atrasados, sobrevivendo
com ajuda do sogro, Ottoni recorreu ao governador de
Minas Gerais, Bernardo José de Lorena, que intercedeu
favoravelmente junto a D. Rodrigo de Sousa Coutinho.7
Ainda na terra natal, Ottoni deve ter começado a pre-
parar o manuscrito intitulado Memória Sobre o Estado
Atual da Capitania de Minas Gerais, mas o terminou em
1798 “estando em Lisboa”.8

Melhores perspectivas de ascensão profissional e a


cobrança dos seus ordenados atrasados o levaram a Por-
tugal, onde se encontrava em 1798. Foi no período em
que viveu em Lisboa que Ottoni estreitou seus laços com
literatos iniciados entre os pedreiros-livres. Na capital
portuguesa tornou-se amigo de Antonio Bressane Leite e
de Manuel Maria du Bocage. Ficou conhecido por Josino
(mais um dentre os muitos “josinos” árcades) junto aos

7 Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU), Minas Gerais. Cai-


xa 144, doc. 11. 10 de março de 1798. Carta de Bernardo Jose de Lo-
rena, governador de Minas Gerais, a D. Rodrigo de Sousa Coutinho,
secretario de Estado dos Dominios Ultramarinos, dando seu parecer
sobre o requerimento de José Eloy Otoni, pedindo 1.200.00 reis de
seus ordenados de professor regio de Gramatica Latina na Vila de
Fanado de Minas Novas.
8 OTTONI, José Eloy. Memória Sobre o Estado Atual da Capitania de
Minas Gerais in: Anais da Bibliotheca Nacional 1908 Vol 30 p. 303.
Sobre esse texto ver: Myrian Ellis. Estudo sobre a decadência das
Minas, através de um documento. in: Revista de História (USP), vol.
12, no. 26, 1956, pp. 463-489,

4
seus amigos de letras, entre os quais circulava o boato
de que Ottoni, e não o inconfidente Tomas Antonio Gon-
zaga, seria o verdadeiro autor da terceira parte da Marilia
de Dirceo, publicada na oficina de Joaquim Thomas de
Aquino Bulhoens, em 1800.9

Entre 1801 e 1802 foram impressas suas primeiras poe-


sias, na oficina de João Procópio Correia da Silva, indi-
cando que Ottoni estava muito próximo do seu ilustre
conterrâneo frei José Mariano da Conceição Veloso, que
entre 1799 e 1801 dirigiu a Tipografia do Arco do Cego.
10 Frei Veloso recorria às oficinas de Procópio Correia,

Antonio Rodrigues Galhardo e Simão Thaddeo Ferreira


para imprimir obras do círculo de intelectuais ilustrados
do Brasil, quando a sua própria oficina não dava conta
da demanda. Não tenho como comprovar, mas é possível
que os primeiros impressos de Ottoni tenham saído por
intermédio de Fr. Veloso junto a Procópio Correia.

Foi naquela mesma época que José Eloi Ottoni


aproximou-se de Leonor de Almeida Portugal (Alcipe),
Condessa de Oyenhausen e Marquesa de Alorna, e da
Sociedade da Rosa. O historiador Oliveira Marques defi-
niu a Sociedade da Rosa como uma “Ordem paramaçó-
nica andrógina, fundada em 1778 em França, composta
de ‘irmão’ ou ‘cavaleiros’ e de ‘irmãs’ ou ‘ninfas”, que,
ainda segundo o autor, “semeou os princípios maçôni-
cos de igualdade”.11 Liderada por Alcipe, a Sociedade
da Rosa teve por consórcios sua irmã, Maria de Almeida
Portugal (Dafne ou Marcia), o Padre Francisco Manuel
9 Innocencio Francisco da Silva. Diccionario. T. VII, 1862, p. 324.
10 OTTONI, José Eloy. Analia de Josino. Lisboa: na Offic. Patr. de Joaõ
Procopio Correa da Silva, 1801, 8.° de 31 pag. Analia de Josino. Lis-
boa : na Offic. Patr. de Joaõ Procopio Correa da Silva, 1802. 1802. 8.°
de 30 pag. É como segunda parte, ou continuação do folheto antece-
dente.
11 MARQUES, António Henrique Rodrigo de Oliveira. História da Ma-
çonaria em Portugal, Vol. I: Das Origens ao Triunfo. Lisboa: Edito-
rial Presença, 1990 Vol. 1, p. 300.

5
do Nascimento (Filinto Elisio ou Agostinho Soares de
Vilhena e Silva) e Manoel Maria du Bocage (Elmano
Sadino), que a Oyenhausen dedicou o volume terceiro
de suas Poesias, publicadas em 1804. Há outros con-
sórcios da Sociedade da Rosa, como Antonio Bressane
Leite (Tiónio ou Anélio), Francisco de Paula Medina e
Vasconcellos (Fileno) e o baiano José Francisco Cardoso
de Moraes (Josino). Não é possível afirmar que José Eloi
Ottoni integrou a Sociedade da Rosa, mas ele publicou,
em 1801, uma Poesia dedicada á ill.ma e ex.ma sr.a Con-
dessa de Oyenhausen, na Officina de João Procópio Cor-
rêa da Silva.12 A dedicatória indica o quão Ottoni estava
próximo de Alcipe (ou Lilia, como Ottoni a chamava) ao
tempo em que a Sociedade da Rosa estava ativa:

A ILL.MA E EX.MA SENHORA, Os Séculos do


egoísmo tem recuado, e o verdadeiro sabio respira hum
ar mais puro, á proporção que os raios de filantropia
vão illustrando a esfera dos conhecimentos humanos.
São estes sentimentos, que eu devera excitar no Cora-
ção de V. Excellencia, senão fosse justamente persua-
dido da sua erudição e humanidade. Seguro destes
principios he que me proponho offerecer a V. Excel-
lencia alguns rasgos da minha imaginação. O genio
raro, a tendencia, com que V. Excellencia propende a
todos os genios entregues ao gosto das Bellas-Letras
livremente pode desenvolver as idéas, que ao travez
dos séculos transluzem no curto espaço deste folheto,
em tudo semelhante ao pequeno grão de semente, que

12 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Real Mesa Censória,


Caixa 45, documento 52, ano de 1802; o pedido de publicação encon-
tra-se na caixa 42, processo nº 19, de 8 de Julho de 1801. Assinale-se
que os respectivos manuscritos e o parecer de Francisco Xavier de
Oliveira se encontram aí custodiados.

6
o Agricultor lança na terra; o qual se fructifica, he
seomente, quando chega a própria Estação.13

Naquela época, apesar do reconhecimento entre


seus pares literários e de ministrar um curso de retó-
rica, Ottoni continuava a buscar um emprego que lhe
assegurasse o sustento.14 Inocêncio Francisco da Silva
afirma que conseguiu “pela protecção e valimento da
Condessa de Oyenhausen (depois Marqueza de Alorna)
o cargo de Secretario da embaixada portugueza na corte
de Madrid”.15 Em meados de abril de 1806, Ottoni seguiu
para Madrid na comitiva diplomática do Conde da Ega,
que foi acompanhada pelos familiares do embaixador,
incluindo a esposa deste, a jovem Juliana, filha de Alcipe.
Ainda segundo Inocêncio, Ottoni “acompanhou como tal
o embaixador Conde da Ega, genro d’aquella senhora, e
junto a elle permaneceu, até á invasão franceza em Portu-
gal no anno de 1807”.16

13 OTTONI, José Eloy. Poesia dedicada á ill.ma e ex.ma Sr.a Condessa


de Oyenhausen, Lisboa, na Offic. de Joao Procopio Corrêa da Silva,
1801. 30 páginas contendo três odes, dois sonetos e uma cantata.
14 Arquivo Histórico Militar, Assuntos Militares Gerais, Diversos, Cai-
xa nº 17, doc. nº 13 (PT/AHM/DIV/3/50/17/13) Requerimento de José
Eloy Ottoni pedindo emprego. Lisboa, c. 1803, 1 fl. manuscrita.
15 SILVA, Inocêncio Francisco. Diccionario Bibliographico Portuguez.
Lisboa: Imp. Nacional, 1860, Vol. IV, p. 310. Para a bibliografia de Ot-
toni, pp. 309-311.
16 Idem. D. Aires José Maria de Saldanha Albuquerque Coutinho Ma-
tos e Noronha (Funchal, 29 de Março de 1755 - Lisboa, 12 de Janeiro
de 1827), 2.º conde da Ega (tendo sucedido no título em 6 de Abril
de 1771). Foi Gentil Homem da corte de D. Maria I e de D. João VI,
senhor do Palácio da Ega, na Junqueira, em Lisboa, alcaide-mór de
Soure e Guimarães, comendador de Lagares (Penafiel) da Ordem
de Cristo, deputado da Junta dos três Estados, Inspetor-Geral dos
Provimentos do Exército, embaixador em Madrid em 1806. Quando
os franceses saíram de Portugal em 1808, toda a família do conde
da Ega foi para França, onde o conde recebeu do imperador urna
pensão de 60.000 francos anuais, a qual gozou até à queda de Na-
poleão. Procedendo-se em 1811 contra os portugueses que estavam
em França, o conde da Ega foi condenado à morte de barrote, mas
esta sentença nunca se executou, e por uma outra de 18 de Janeiro
de 1823 ficou absolvido. Voltando à pátria conservou-se afastado da
politica.

7
A obra prima de Ottoni foi, entretanto, a Parafraze
dos Proverbios de Salomão, para a qual recorreu às obras
de Augustin Calmet,17 Antonio Pereira18 e Vence.19 Curio-
samente, Ottoni não fez qualquer referência a José Anto-
nio da Silva Rego, o militar português que foi o primeiro a
parafrasear na língua portuguesa, em 1774, os Provérbios
de Salomão. 20

17 
Antoine Augustin Calmet, O.S.B. (26 de fevereiro de 1672 – 25 de
outubro de 1757), foi um monge beneditino francês que nasceu em
Ménil-la-Horgne e estudou no mosteiro Beneditino de Brevil, ingres-
sando na ordem em 1688. Sua monumental obra foi a La Bible en
latin et en français, avec un Commentaire littéral et critique, Paris,
1707-1716, 23 vol. in-4 (le commentaire a été reproduit à part sob o
título de Trésor d’antiquités sacrées et profanes, 9 v., publicados a
partir de1722);
18 António Pereira de Figueiredo (1725-1797) foi um padre português
que desempenhou inúmeras atividades, sendo latinista, historiador,
canonista e teólogo. Seu trabalho mais importante foi a tradução da
Bíblia da Vulgata Latina para a língua portuguesa. O processo du-
rou 18 anos para ser completado. Inicialmente, foi publicado o Novo
Testamento, entre 1778 e 1781 em seis volumes. O Antigo Testamen-
to foi publicado entre 1782 e 1790 em 17 volumes, tendo a Bíblia, ao
todo, 23 volumes. Uma versão mais reduzida (em sete volumes), é
considerada padrão, e foi publicada em 1819. A versão em volume
único só foi publicada em 1821.
19 H. Francois, Abade de Vence (1675-1749), publicou em Nice uma
nova edição da Bíblia de Carrières, em 22 volumes, entre 1738 e 1743.
Rondet (1717-1785) produziu uma nova edição, impressa em Avig-
non, em 17 volumes, entre 1767 e 1773. Essa segunda edição tornou
conhecida a Biblie de Vence.
20 REGO, José Antonio da Silva. Proverbios de Salomão em parafraze
traduzidos de francez por Jozé Antonio da Silva Rego, Alferes de In-
fantaria, e Academico aplicado. Lisboa: Na Ofic. da Viuva de Igna-
cio Nogueira Xisto, 1774. Colação: xvii, [3], 387p. A tradução foi feita
pelas paráfrases de Nicolas Guilbert e de Mr. Ardene. Só encontrei
um exemplar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, sendo que
a PORBASE não indica a existência de nenhum. Apesar da atual
raridade desse lirvo, a Loja da Gazeta de Silva Serva disponibilizava
exemplares na Bahia, ao preço de 800 réis. Idade d’Ouro do Brazil, n.
72, terça-feira, 8 de setembro de 1812, p. 4. Os textos que Silva Rego
consultou foram Les Proverbes de Salomon expliqués en forme de
paraphrases, par Nicolas Guilbert. Paris, Nicolas Buon, 1625, in-8.,
e o Proverbes de Salomon dur les principaux devoirs de l’homme,
mis en vers françois de Jean Paul de Rome D’Ardène. Este último foi
sócio da Academia de Belas-Letras de Marselha.

8
Não há um consenso, pelos historiadores da literatura,
sobre Ottoni e suas obras, especialmente a Parafraze dos
Proverbios de Salomão. Joaquim Caetano Fernandes diz
que “o que constitue sua maior gloria, o seu maior mere-
cimento poetico, é a bella traducção dos Proverbios de
Salomão”.21 Edison Lins afirma que “sacro e profano foi
também José Eloi Ottoni que como Caldas recorreu ao
Velho Testamento em busca de assumpto poético. Se
Caldas tratara mal a David, Ottoni peior trataria ao filho
Salomão traduzindo-lhe os provérbios”.22 Silvio Romero
observou, corretamente, que “Eloy Ottoni, (...) é uma
physionomia literária que deve ser estudada acurada-
mente”, sublinhando que era “um continuador da velha
escola mineira tendo mais suavidade romântica de que
seus antigos companheiros”.23 Romero ainda considerou
que

O mineiro era um crente, não era um revolucioná-


rio; não comprehendeu o seu tempo; não deu impulso
ao seu povo; mas foi poeta; porque sentiu algumas das
eternas bellesas do mundo, e, por outro lado, tinha
alguma cousa de pagão. (...) Os versos patrióticos são
fracos; falta-lhes o calor communicativo, a fúria revo-
lucionaria dos grandes combatentes da liberdade;
(...) da velha poesia bíblica são as melhores que pos-
suímos.24

Segundo José Veríssimo, “As suas traduções dos


pseudos Provérbios de Salomão e do Livro de Jó, feitos
do latim da Vulgata, são antes paráfrases que traduções.

21 PINHEIRO, José Caetano Fernandes. D’um discurso sobre a poesia


em geral e em particular no Brasil. In: Job traduzido em verso. Rio
de Janeiro: Typ. Brasiliense de F. Manoel Ferreira, 1852, pp. XXXVI.
22 LINS, Edison. Historia e crítica da poesia brasileira. Rio de Janei-
ro: Ariel, 1937, p.79.
23 ROMERO, Sílvio. Historia da literatura brazileira. Rio de Janeiro:
Garnier, 1909, vol. 1 p. 360.
24 Ibdem, p. 362.

9
Não há achar-lhes o sabor que do original parecem guar-
dar algumas traduções diretamente feitas em prosa ou
verso”.25 Falsos Provérbios de Salomão. Antes de exami-
nar o conteúdo do livro, entretanto, é necessário conhe-
cer o círculo de relações intelectuais de Ottoni em Lisboa,
particularmente, sua proximidade com o pedreiro livre
José Joaquim Vieira Couto.

2. Os amigos da virtude

O círculo intelectual que acolheu José Eloi Ottoni em


Lisboa pode ser definido como característico do espírito
da ilustração portuguesa de fins do seculo XVIII. Além
disso, quase todos, senão todos, intelectuais com quem
conviveu na capital portuguesa eram pedreiros livres.
Entre 1801 e 1803, José Eloi Ottoni já circulava bemquisto
entre os homens de letras do Reino quando seu primo
José Joaquim Vieira Couto (Arraial do Tijuco, 1773 – Ilha
Terceira, 27.5.1811) foi preso e conduzido ao Santo Ofício
de Lisboa. O cronista Joaquim Felício dos Santos con-
firma a relação familiar entre os dois, bem como a pre-
sença da maçonaria no Tijuco e participação de Vieira
Couto e outros familiares de Ottoni nesse grupo:

Em Tijuco o primeiro que iniciou-se [na maçona-


ria] foi o padre Rollin, depois o cadete Joaquim José
Vieira Couto e seus irmãos. A conspiração mallogrou-
-se. Da familia Couto, o cadete Joaquim José Vieira
Couto foi o unico perseguido; falleceu em Tijuco em
consequencia de uma enfermidade adquirida na
cadêa de Villa Rica. Ainda existem algumas pessoas
que assistirão a seu funeral : seu cadaver ia fardado,
com um ramalhete de rosas brancas na mão direita e
revestido das insignias maçonicas do gráu de mestre.

25 VERISSÍMO, José. História da Literatura Brasileira. Rio de Janei-


ro: Francisco Alves, 1916, Cap. VII.

10
Isto demonstra a importancia, que n’aquelle tempo
dava-se á maçonaria, e a influencia de que gosava em
Tijuco a familia Couto. (...) Em Tijuco erão principal-
mente o dr. José Vieira Couto e seu irmão José Joaquim
Vieira Couto os que mais alentavão o espirito de inde-
pendencia, que ia sempre em augmento, apesar de ter-
-se baldado a primeira tentativa, ou talvez por isso. O
dr. Couto era mais reservado; seu irmão, imprudente
e inconsiderado, deixava facilmente transpirar seu
pensamento, e por isso já era olhado como suspeito
e conhecido na corte pela liberdade de suas idéas.26

Ainda segundo Joaquim Felício dos Santos:

José Joaquim Vieira Couto chegando a Lisboa,


como procurador do povo do Tijuco, na qualidade
de pedreiro livre achou-se em contacto com muitos
homens eminentes, e entre estes Hypolito José da
Costa, com quem relacionou-se mais estreitamente,
sem dúvida pela homogeneidade de pensar e ardente
espirito de patriotismo, que animava estes dous bra-
sileiros. (...) Por imprudencia de José Joaquim Vieira
Couto foi conhecido o segredo de sua intimidade com
Hypolito José da Costa, intimidade nascida das idéas
liberaes, que tinhão ambos. Quando menos o espera-
vão forão presos e encarcerados nas masmorras da
Inquisição, onde jazêrão por muitos annos.

Ainda foi Joaquim Felício dos Santos quem revelou,


por informes de Theophilo Ottoni, que José Eloi Ottoni
tentou intervir contra a prisão do seu parente:

N’esse tempo residião em Lisboa varios brasilei-


ros, e entre estes o nosso patricio José Eloy Ottoni,

26 JoaquimFelício dos Santos. Memórias do districto diamantino da


comarca do Sêrro Frio, Província de Minas Gerais. Rio de Janeiro:
Typ. Americana. 1868. pp. 251-255.

11
primo irmão de Couto. Ottoni, indo solicitar em favor
de seu parente, teve insinuação de um dos inquisido-
res para occultar o parentesco, que o ligava ao pros-
cripto, revelando-se-lhe estas palavras, que forão
attribuídas ao principe regente: O Couto e o Hypolito
são capazes de revolucionar o reino, e o que é mister é
conhecer-se-lhes os amigos.27

Em Lisboa, Ottoni tentou interceder pelo seu primo


junto ao Santo Ofício, mas teve insinuação de um dos
inquisidores para esconder o parentesco que o ligava ao
suspeito; prevenção, aparentemente, bem considerada
pelo poeta.

Para além da crônica de Joaquim Felício dos Santos,


existe o processo de José Joaquim Vieira Couto na Inqui-
sição de Lisboa, investigado por Silva Nizza.28 Apesar de
José Eloi Ottoi não ser mencionado no texto do processo
é possível estabelecer correlações entre as confissões de
Viera Couto e a Parafraze dos Proverbios de Salomão: Os
primeiros capítulos da Parafraze dos Proverbios de Salo-
mão de Ottoni são uma representação da iniciação maçô-
nica, em semelhança ao que Vieira Couto confessou aos
inquisidores, como será adiante demonstrado.

Antes de comparar os dois textos, é necessário con-


textualizar o processo de Vieira Couto, que apresenta
significativas notícias acerca do universo maçônico luso-
-brasílico, indicando alguns elos entre os pedreiros livres
do Reino e da América portuguesa. Segundo o processo,

27 Idem.
28 
SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.) Um brasileiro nas malhas da
Inquisição: o mineiro José Joaquim Vieira Couto e maçonaria. In:
Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Editorial Es-
tampa, 1995, p. 249 e seguintes. Ver também, LEITE, Paulo Roberto
Gomes. Vieira Couto e as Ligações entre a Maçonaria do Tijuco, de
Portugal e de Moçambique. In: Revista do Instituto Histórico de Mi-
nas Gerais (Belo Horizonte), vol. XXV, 2002.

12
no dia 26 de março de 1803, às 9h da manhã, José Joa-
quim Vieira Couto foi surpreendido em casa pelas auto-
ridades portuguesas, que encontram aventais de pelica
e martelos, além da obra do abade Baruel e a Sentinela
Espanhola, ambas as obras contrárias à maçonaria.29
Couto foi levado para os cárceres do Santo Ofício e ficou
quatro meses “em segredo”. Assim, seu processo teve iní-
cio somente a 9 de julho de 1803. 30

Segundo o réu, sua iniciação na maçonaria ocorreu


no Sítio da Luz, a uma légua de Lisboa, por intervenção
de Maurício Ponça, piemontês de nação, que conheceu
na Livraria Pública, e que havia falecido (conveniente-
mente) em fevereiro ou março de 1803, não sabendo onde
fora sepultado.31 O processo revela que Couto “possuía
o avental do grau de aprendiz e Ponsa o de Escocês”.32
O réu confessou onde ocorriam as reuniões dos pedrei-
ros livres em Lisboa, assinalando a existência de uma
“loge (...) convocada nas cazas da quinta em que esteve
a Impressão Regia no Arco do Cego, ou no sítio da Luz”.
Frequentou sessenta associações maçônicas, incluindo
o Arco do Cego, palácios dos embaixadores de Espanha
e França, além da Quinta do Marquês de Alorna, em
Almada, e navios de guerra de diversas nações.33

Vieira Couto ainda revelou aos inquisidores os nomes


de alguns pedreiros livres que atuavam na capital por-
tuguesa, havendo, nos quadros daquela sociedade iniciá-
tica, membros da nobreza e da política. Consta nessa lista
o Barão de Manique, filho do intendente Pina Manique,

29 
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo
16.809, fl.. http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=2316816 . processo
13.339, Papéis de José Joaquim Vieira Couto. (1805-12-14 a 1808-02-
23), 42 fls.
30 
Ibidem, fl. 106.
31 
Ibidem, fls. 101 e 117v.
32 
Ibidem, fl. 118.
33 
Ibidem, fls.112-112v.

13
Thomas Vieira do Couto, primo de José Vieira, natural
de Minas Gerais, que viajou a diversos países da Europa,
João Felipe da Fonseca, oficial da Secretaria de Estado
dos Negócios da Marinha, Gervasio Valladares, oficial da
mesma secretaria e primo do acima citado. Couto ainda
informou aos inquisidores que o Marquês de Alorna,
marido de Alcipe, ficou pouco tempo numa assembleia
maçônica por conta da rivalidade com o conde de Novion,
que era o Mestre de Cerimônias.34 Foi encontrado na casa
do réu uma cópia com sua própria letra de uma conven-
ção entre o Grande Oriente Inglês e o Grande Oriente
Lusitano, que “ultimamente se tinha celebrado”.35

Couto afirma que, em Lisboa, morou um ano e meio


na casa do negociante João Manoel Correia Pereira,
na Rua da Prata. Depois se mudou para outra casa, na
mesma rua, hospedando um tenente-coronel de Minas
Gerais José Joaquim Vieira Cardoso e o padre Antonio
Gomes de Carvalho, José Saturnino da Costa (irmão de
Hipólito da Costa) e Luís José Maldonado. Couto negou
que todos fossem mações, mas, atualmente, isso pode ser
confirmado. Em Lisboa também (re)conheceu o coro-
nel Joaquim Silvério dos Reis Leiria “muito abonado em
cabedais e estimado no paço reprovado na maçonaria por
unanimidade dos votos”.36 Esse era o ilustre delator de
Tiradentes na malfadada Inconfidência Mineira.

Os inquisidores apresentaram uma série de docu-


mentos maçônicos apreendidos ao réu, como um Aviso
do Supremo Conselho dos Cavalheiros da Espada, um
Aviso dos Diretores da Biblioteca Maçônica e um Cântico
Maçônico, este último com a letra do próprio Couto.37
34 Idem.
35 
Ibidem, fls.118v e 120.
36 
Ibidem, fl. 125v -126.
37 
Ibidem, fl. 127-127v e 141. Na maçonaria existe o Secretário dos
Conselhos dos Cavaleiros do Oriente ou da Espada, grau 6. do Rito
Moderno ou Francês. Nada encontrei sobre a Biblioteca Maçônica,

14
Pesava ainda contra Vieira Couto uma carta de Francisco
Antonio, escrita no Arraial das Raposas (Minas Gerais), a
1 de novembro de 1799, na qual denunciava, entre outras
coisas, que o réu afirmara que “Jesus Christo fornicou a
Madalena”.38 Couto ficou preso nos cárceres da inquisi-
ção até 1807, sendo solto por Junot a pedido da maçona-
ria portuguesa.

Ottoni não teve apenas um primo envolvido com a


maçonaria em Lisboa. Praticamente todos os indivíduos,
atualmente passíveis de identificar, com quem travou
amizade na capital portuguesa estavam ligados a círcu-
los maçônicos. Por exemplo, Antonio Bressane Leite, que
pertenceu à Sociedade da Rosa, o grupo que gravitava
em torno de Alcipe, assinalou em 1804 Ottoni a par com
Bocage na dedicatória das Quadras Glosadas:

DEDICATORIA A ILL.ma, E Ex.ma SENHORA CONDEÇA


DE OYENHAUSEN.39

1. SE o Sol não mandasse ás Plantas 6. Otoni, e Bocage, ricos


Amorosos resplendores, Do ethêreo Febêo thesouro,
Pobres Plantas, morrerião Os seus versos te offerecêrão
Sem jámais brotarem flores. Em brilhantes Aras de ouro:

2. Debil planta he minha Musa, 7. Bresane he pobre, e mais pobres


Tu és o Sol bemfeitor, Ainda os seus versos são:
Que póde, benigna Alcipe, Para offerecer-tos formou
Dar-lhe alento, e dar-lhe flor. Furo altar do coração,

3. Tu, que do Monte sagrado 8. Mas se Benigna os recebes,


As sagradas Filhas reges, Ao teu escudo seguros,
Que do Téjo os almos Cysnes Hirão á Posteridade,
Ouves, inspiras, proteges, Calcando os Fados escuros.

mas Couto afirmou conter mais de duas mil obras cedidas pelos seus
confrades.
38 Ibidem, fl. 166.
39 LEITE. Antonio Bressane. Quadras Glosadas. Lisboa, Offic. de Si-
mão Thaddeo Ferreira, 1804, p. III – V.

15
4. Que nas Virtudes és Grande, 9. Cheios de Apollo, e de Ti,
Que és das Sciencias o escudo, Rompendo bravas procellas,
Que para gloria de Lysia Hirão collocar teu Nome
Já nasceste Grande em tudo: Muito acima das Estrellas.

5. Celeste Alcipe, agrilhôa


Os meus Destinos adversos,
Aos pés do teu aureo throno
Acolhe meus rudes versos.

Algumas passagens nessa dedicatória parecem refe-


rências à Sociedade da Rosa, apesar desta já estar oficial-
mente extinta ao tempo dessa publicação. O fato é que
nas Quadras Glosadas de Bressane Leite ainda existem
diversas referências a Josino, que pode tratar-se de José
Eloi Ottoni, mas também de algum outro Josino da Nova
Arcádia de Lisboa.40

Foi, contudo, a Manoel Maria Barbosa do Bocage


quem Ottoni mais esteve ligado. A iniciação de Bocage
à maçonaria deu-se sob o nome de Lucrécio, entre 1795 e
1797, e sabe-se que se filiou a uma loja onde se desenten-
deu com os irmãos Bento Pereira do Carmo e José Joa-
quim Ferreira de Moura, o Doutor Macaco, que seriam
deputados às Cortes em 1821 e 1823. 41 De 1797 é a Epís-
tola a Marilia, escrita sob inspiração maçônica:

Pavorosa ilusão da Eternidade,


Terror dos vivos, carcere dos mortos;
D’almas vãs sonho vão, chamado inferno;
Sistema da política opressora,
Freio, que a mão dos déspotas, dos bonzos
Forjou para a boçal credulidade;
Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas:
40 
Ibidem, p. 43 a 45 e 184.
41 GONÇALVES, Adelto. A casa onde nasceu Bocage e outras verda-
des que não pegam. In: BORRALHO, Maria Luísa Malato (Org.).
Leituras de Bocage. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do
Porto/Serviço de Publicações, 2007, p. 75-86. Ver também: MORAIS,
Jorge. Bocage maçon. Lisboa: Via Occidentalis Editora, 2007, p. 141.

16
Dogma funesto, detestável crença,
Que envenena delícias inocentes! (…)
Ah! Bárbaro impostor, monstro sedento
De crimes, de ais, de lágrimas, d´estragos,
Serena o frenesi, reprime as garras,
E a torrente de horrores, que derramas,
Para fundar o império dos tiranos,
Para deixar-lhe o feio, o duro exemplo
De oprimir seus iguais com férreo jugo. (…)
(…) Amar é um dever, além de um gosto,
Uma necessidade, não um crime.
Qual a impostura horrísona apregoa.
Céus não existem, não existe inferno,
O prêmio da virtude é a virtude,
É castigo do vício o próprio vício.42

Nessa epístola, Bocage renega a eternidade das penas


e exprime um conceito de Deus que não poderia receber
a concordância das doutrinas da Igreja Católica. Apare-
cem nessas linhas o Deus que consola a Humanidade, o
Deus da Razão, criado pela filosofia anticatólica do século
XVIII. Influenciado por Rousseau, Bocage entendia que
os homens não eram maus por natureza e que o pecado
original não passava de uma invenção humana. Em razão
da Epístola a Marília e por meio de uma denúncia anô-
nima, no dia 7 de agosto de 1797, Bocage foi acusado de
escrever “papéis ímpios, sediciosos e críticos”, sendo
detido por agentes de Pina Manique.43 Levado para a pri-
são do Limoeiro, escreveu ao ministro José de Seabra da
Silva, pedindo clemência, ficando ali até 14 de novembro,
quando foi transferido para o Palácio dos Estaus, sede da
Inquisição. A 17 de fevereiro de 1798, foi para o Mosteiro
de São Bento a fim de ser submetido a um processo de

42 BOCAGE, Manoel Maria Barbosa du. Poesias Eroticas, Burlescas, e


Satyricas. Bruxellas: 1854, pp.35-42.
43 GONÇALVES, Adelto. Bocage, O Perfil Perdido. Lisboa: Editorial
Caminho, 2003, pp. 211-228.

17
“reeducação”, permanecendo ali até 12 de março, indo
para o Real Hospício das Necessidades, onde ficou nove
meses, de onde saiu a 31 de dezembro de 1798. Oliveira
Marques identificou Bocage filiado à Loja Fortaleza
(1800-1810) em Lisboa, que teve Fragozo Wanzeller como
Venerável.44 Em 1805, Ottoni dedicaria a Bocage uma
peça teatral pela morte do poeta português.45

No círculo de amizades de Ottoni em Lisboa havia


também intelectuais brasílicos, a exemplo do padre
Antônio Pereira de Sousa Caldas (Rio de Janeiro, 24 de
novembro de 1762 — Rio de Janeiro, 2 de março de 1814),
para quem o poeta mineiro escreveu uma famosa Epís-
tola.46 Aos dezesseis anos, em 1778, Caldas matriculou-
-se no curso de matemática da Universidade de Coimbra,
completando-o em 1782, sendo, entretanto, preso pelo
Santo Ofício em 1781. Varnhagen afirmou que Sousa
Caldas “foi apanhado pelos do Santo Officio, havendo
quem diga que por maçon”.47 As suspeitas de Varnhagem
tem algum fundamento, pois na Inquisição de Coimbra
Pereira Caldas foi condenado por ser herege, naturalista,
deísta, blasfemo e “por defender o systema de Rousso
(sic), e Voltaire”, sendo penitenciado no auto-de-fé que
se celebrou em 26 de agosto de 1781.48 A punição parece

44 MARQUES, op. cit., pp. 155-157 e 411.


45 OTTONI, José Eloy. Drama allusivo ao caracter e talentos de Ma-
nuel Maria de Barbosa du Bocage. Lisboa, na Imp. Regia, 1806. 8.°
de 15 pags.
46 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Florilegio da poesia brazileira,
Tomo III. Lisboa: Na Imprensa Nacional, 1850, pp. 29-31.
47 Ibidem, Tomo II, p. 489.
48 Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. V.T.-15-10-1(18) Lis-
ta dos penetenciados pelo Stº Officio que sahiraõ no Acto publico
da Fé, q[ue] se fez em Coimbra na Salla do mesmo tribunal em
26 de Agosto de 1781 [manuscrito]. - [S.l. : s.n., 1781?]. - [1] f.; 2º
(33 cm) http://bdigital.sib.uc.pt/bduc/Biblioteca_Digital_UCBG/
digicult/UCBG-VT-15-10-1-18/UCBG-VT-15-10-1-18_item2/UCBG-
-VT-15-10-1-18_PDF/UCBG-VT-15-10-1-18_PDF_24-C-R0120/UCBG-
-VT-15-10-1-18_0000_capa-lombada_t24-C-R0120.pdf. Não pude en-
contrar o processo de Antonio Pereira de Sousa Caldas, mas decla-
rações do seu processo encontram-se transcritas na Inquisição de

18
não ter demovido seus ideais políticos, pois em 1784 com-
pôs a Ode ao homem selvagem, poema inspirado na obra
de Jean-Jacques Rousseau.

Theophilo Ottoni afirma que José Eloi Ottoni “Con-


quistou nesse tempo a amisade do conde dos Arcos, de
Francisco Villela Barbosa, depois marquez do Paranaguá,
e de outros litteratos e poetas de nomeada”.49 Francisco
Vilela Barbosa (Rio de Janeiro, 20 de novembro de 1769 –
11 de setembro de 1846) estudou matemática na Universi-
dade de Coimbra em fins do século XVIII, ocasião em que
teve suas poesias censuradas pelo Santo Ofício. Depois,
tornou-se Lente de Matemática da Real Academia da
Marinha e sócio da Academia de Ciências de Lisboa.
À época em que Ottoni publicou a Parafraze dos Prover-
bios de Salomão, Vilela Barbosa publicou suas obras de
geometria, a ciência da maçonaria.50 Notório maçon, foi
ministro dos Estrangeiros sendo que, após a independên-
cia, galgou os cargos de ministro da Marinha, de 17 de
novembro de 1823 a 16 de janeiro de 1827, ministro da
Guerra e senador do Império do Brasil de 1826 a 1846,
obtendo os títulos de visconde e marquês de Paranaguá.

Lisboa, no processo n.º 1557, de João Laureano Nunes Leger, estu-


dante de Medicina, no processo n.º 14998, de José António da Silva
e Melo e no processo n.º 13367 de Manuel Galvão.
49 OTTONI, Theophilo, op. cit., p. 5.
50 [DIAS, Antonio]. Bibliotheca Maçonnica ou Instrucção Completa
do Franc-Maçon, Dedicada aos Orientes Lusitano e Brasiliense por
um Cav.: Rosa-Cruz. Paris: Em Casa de J. P. Aillaud, 1840, T. IV, p. 169.
“G. - Esta letra que se vê nas Lojas, gravada ou embutida na Estre-
lla resplandescente, (que é para o Companheiro a inicial da palavra
Geometria, quinta sicencia) foi substituida pelos Maç.: do rito mo-
derno ao iod dos Hebreus, ou primeira letra da palavra Jehova.” De-
certo, a letra “G” que está associada a diversos símbolos maçônicos
é uma representação da Geometria e não da palavra “God”, como
popularmente se afirma nos países anglo-saxões. A letra G só faria,
então, sentido nas linguas inglesa, germânica e holandesa. Contudo,
pedreiros livres de países latinos também ostentam a letra “G” na
sua simbologia, em referência à Geometria, expressão que não sofre
grandes variações em qualquer idioma europeu ocidental.

19
As relações de Ottoni com indivíduos influentes na
Bahia também se estreitaram em Lisboa. Na Poesia dedi-
cada á ill.ma e ex.ma sr.a Condessa de Oyenhausen, em
1801, Ottoni ofereceu um soneto para um certo Aonio,
que teve o nome resguardado pelas iniciais M. J. de A.
T., mas que pude apurar tratar-se de Manoel José de
Araújo Tavares, nomeado por D. Maria I juiz do Tribunal
da Relação da Bahia.51 Araújo Tavares tomou gosto pela
Bahia, onde casou-se e passou a residir após 1809.52 Após
a Independência, atuou como desembargador no Tribu-
nal da Relação do Rio de Janeiro.

Por meio de Bocage, Ottoni deve ter conhecido José


Francisco Cardoso de Moraes. Bocage era tão amigo de
Cardoso de Moraes quanto era de Ottoni e a ambos cha-
mava pelo apelido de Josino. O poeta e professor régio de
latim José Francisco Cardoso de Moraes teve suas obras
latinas traduzidas por Bocage em Lisboa, onde esteve
entre 1798 e 1802. Na Bahia, após 1811, José Francisco
Cardoso de Moraes foi nomeado, pelo Conde dos Arcos,
como censor dos impressos da Tipografia de Manoel
Antonio da Silva Serva. Em maio de 1817, tanto Araújo
Tavares quanto Cardoso de Moraes foram denunciados
como franco-maçons na carta de um certo frei Amador
da Santa Cruz ao Rei D. João VI:

51 
AHU, Bahia, Caixa. 209, Documento 14831. 1798, Maio, 19, Queluz
DECRETO da rainha D. Maria I nomeando Manuel José de Araújo
Tavares, Antônio Saraiva de Sampaio e Manuel de Macedo Pereira
Coutinho para a ocupação de postos de desembargador na relação
da Bahia.
52 AHU, Bahia, Cx. 219, D. 15300 [ca, 1800] LEMBRETE do [Conselho
Ultramarino], sobre à solicitação de licença de casamento de Ma-
nuel José de Araújo Tavares, desembargador da Relação da Bahia.
AHU, Bahia, Cx. 252, D. 17405, [c. 1809] REQUERIMENTO de Ma-
nuel José de Araújo Tavares, natural de Coimbra, ao príncipe re-
gente [D. João] solicitando licença de regresso para a Bahia, onde
serviu como desembargador da Relação por oito anos, fixando mo-
radia.

20
(...) a malvada seita dos Pedreiros Livres, cujo
principal acento he nesta Cidade, plantada, há mais
de vinte annos por Joze Francisco Cardozo (...). Os
Padres Ignacios, Gazeteiro, o M.e de Grammatica, e
outro mestre da mesma lingoa, Dominicano, e o Subs-
tituto das mesmas Cadeiras são iguaes aos antece-
dentes, todos elles profanadores do seo estado, e as
mais fortes columnas da Massonaria; elles são, q.
explicão o cathecismo, e Ritual das funçoes massoni-
cas, cujo livro foi impresso em Londres com o titulo =
Compendio p.a o Oriente da Bahia= na Impressão de
Segredo. (...) A Justiça, Senhor, vendesse por dinheiro,
não se administra como V. Mag.de manda. Ajustão os
Ministros com as Partes quanto hão de dar, e os mais
desmascarados nesse proceder he o (...) Manoel J.e de
A. Tavares.53

Desde 1807 a Bahia já estava nos planos de José Eloi


Ottoni. No ano anterior Ottoni percebeu que o Conde de
Ega estava sendo cooptado aos interesses da França e
por isso se afastou do cargo cortando “por todas as con-
siderações que naquelle momento o prendião junto do
conde, e retirou-se para o Brasil”. Desejava seguir pelo
porto da Bahia, pois Arquivo Histórico Ultramarino
encontra-se dois requerimentos de abril de 1807, no qual
José Elói Ottoni solicitou às autoridades que lavrassem
um passaporte para isso:

Lavrar-se Passaporte em 23 de Abril de 1807


Senhor
Diz Joze Eloi Ottoni, natural do Serro do Frio,
Capitania de Minas-Gerais, que pertende (sic) passar
pelo Porto da Bahia de todos os Sanctos, p.a transpor-
tar-se á sua Patria e não podendo sem licença fazer
este transporte.
53 PEREIRA, Ângelo. D. João VI, Príncipe e Rei. Lisboa: Imprensa Na-
cional de Publicidade, 1956, Vol. III, pp. 251 e 252.

21
P.a V. A. R. seja servido conceder-lha por Portaria
R. M.
Joze Eloi Ottoni
[Anexo]
Snr João Felipe da Fonseca
Remeto a Petição incluza em que falei a V. S.a e
juntamente fico pello sugeito q requer. Sou D. V. S.a
Junqr. 22 de Abril de 1807 Attento Serv.or e Obrig.do
Joaquim de Sald.a e Albuquerque54

Olhado com suspeitas por haver sido próximo ao


Conde da Ega, Ottoni não conseguiu outro cargo em Lis-
boa e seguiu para o Rio de Janeiro. Segundo seu sobri-
nho, para demonstrar que não nutria simpatias pelo
governo francês de Bonaparte, Ottoni escreveu uma série
de diálogos com o título de Os Amigos da Virtude e uma
Ode aos Anos de Jorge IV da Inglaterra, oferecida ao Lord
Strangford, ambos, atualmente, desaparecidos. Sua sim-
patia estava pela Inglaterra.55

Há poucas informações acerca de Ottoni nos anos em


que viveu no Rio de Janeiro, mas sabe-se que o poeta foi

54 AHU, Minas Gerais. Caixa 183, doc. 64 Anterior a 23 de abril de 1807.


Requerimento de José Elói Otoni, natural do Serro do Frio, solici-
tando permissão para regressar a sua terra, passando pela cidade da
Bahia de Todos os Santos. Observa-se que João Felipe da Fonseca, o
oficial maior da Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, a quem
o requerimento foi dirigido, foi um dos pedreiros livres denunciados
por Vieira Couto junto a Inquisição de Lisboa, acima indicado. AHU,
Minas Gerais. Caixa, doc. 23 de abril de 1807. Requerimento de José
Elói Otoni, natural de Minas, pedindo que lhe seja passado um pas-
saporte.
55 
OTTONI, Theophilo, op. cit., p. 12. Os originais manuscritos esta-
vam com o próprio Theophilo Ottoni, mas não consegui localizá-los
hoje. Sem examinar o manuscrito é, obviamente, impossível dizer
algo sobre seu conteúdo. O título, não obstante, parece fazer refe-
rência à maçonaria. A expressão “amigos da virtude”, por exemplo,
está presente no primeiro parágrafo do Manifesto do Grande Orien-
te brasileiro, publicado por José Bonifácio e Gonçalves Ledo em
1832. Manifesto do Grande Oriente do Brasil. Rio de Janeiro: Typ:.
do Ir:. R. Ogier. 1831, p. 1. Assinado por J. B. de Andrada, G:. M:.

22
“acolhido com frieza pelo Príncipe Regente”.56 Publicou
na Impressão Régia alguns elogios bajulatórios aos mem-
bros da família real portuguesa, mas dedicou-se, sobre-
tudo, ao estudo dos textos bíblicos, tendo traduzido o
Stabat Mater e o Miserere. 57 Na tradução deste último,
Ottoni incluiu um voto de abnegar das coisas profanas e
seguir a luz:

I. III.
A lyra, que à flor dos annos Heróes, fortuna, grandeza
Consagrei, cantando objectos Que o tempo leva e consome,
Tão futeis, como indiscretos, Graças que morrem sem nome,
Hoje é só prestigio e damnos. Attractivos da belleza,
Encontra só desenganos Tudo é pó, tudo é fraqueza,
Quem busca em trevas amor: E’ tudo miséria e pranto;
Mas eu presinto o calor Ou desdobre a noite o manto,
De nova luz que me inspira; Ou desponte a luz do dia,
Agora dá-me outra lyra ! Desenvolvendo a harmonia,
Unge meus lábios, Senhor! Será o Eterno meu canto.

II. IV.
Manda a luz que aponte a lei, Do que a terra e os céos m’inspirão,
Dá-me o tom que o pelctro afaga, Os pregoeiros são estes,
Os caracteres apaga, Todos os corpos celestes,
Que eu por delirio gravei. Que em curvas orbitas girão,
Também quantos entoei Que inúmeros sóes se virão
Hymnos de amor ou vaidade: No centro da immensidade,
Seguindo a luz da verdade, Na extensão da Eternidade,
Que brilha de quando em quando, Se eu abrangesse a harmonia,
Ao pó da terra escapando, A luz meu écho seria,
Voarei á Divindade. Meu instrumento a Verdade.

56 OTTONI, Theophilo, op. cit., p. 15.


57 ONoticiador Catholico, n. 41, 31 de março de 1849, Bahia, Typ. de J.
C. A. Daltro, p. 328. Apresenta a publicação do Stabat Mater.

23
3. Na Bahia sob o signo de Salomão

Theophilo Ottoni afirmou que seu tio “em 1811 pas-


sou-se á Bahia, onde, por alguns annos, residio em casa
do conde dos Arcos”. Afirmou, ainda, que “lá (...) publi-
cou em 1815 a traducção dos provérbios de Salomão, obra
(...) que foi protegida e officialmente recommendada pelo
ultimo capitão general o integérrimo D. Manoel de Portu-
gal e Castro”.58

Em Salvador, Ottoni exerceu o “Officio de Escrivão das


Marcas d’Alfandega, por provizão da Junta da Fazenda”,
no qual não conseguiu ser efetivado por ter sido o cargo
dado a “João Gonçalves da Motta hum dos negociantes
dessa Praça, que vierão a esta Corte requerer, sobre as
prezas feitas pelos ingleses em embarcacoens do comer-
cio de escravatura”.59

Obeservemos novamente a afirmação feita por


Theophilo Ottoni de que a Parafraze dos Proverbios de
Salomão foi protegida e oficialmente recomendada por
D. Manoel de Portugal e Castro (Lisboa, 5 de novembro
de 1787 – 12 de julho de 1854). Este último foi o Gover-
nador e Capitão General de Minas Gerais entre 1814 e
1822 e, no seu governo, adotou diversos livros didáticos
para uso das escolas mineiras. O livro de Ottoni, contudo,
não é um livro didático e não encontrei notícias de que
tenha sido adotado pelas escolas régias em Minas Gerais.
D. Manoel de Portugal e Castro foi, não obstante, assina-
lado como pedreiro-livre por Alexandre Mansur Barata.60
58 OTTONI, Theophilo, op. cit., p. 15.
59 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Livro 1. Bahia, 1808/ 1819, fl. 166.
Carta do Marquês de Aguiar ao Conde dos Arcos.
60 
BARATA, Alexandre Mansur. Maçonaria, sociabilidade ilustrada
e independência do Brasil, 1790-1822. Juiz de Fora/São Paulo: Edi-
tora UFJF/Annablume/Fapesp, 2006, p. 222. COLLEÇÃO de officios
de D. Manoel de Portugal e Castro ao governo de D. João VI (1814
- 1821). in: Anais do Arquivo Público Mineiro, Vol. 9. Belo Horizon-
te: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1904, pp. 567-568. Em 1816 o

24
O governador de Minas teria recomendado este livro aos
iniciados nas sociedades de pedreiros livres?

A Bahia já era desde o século XVIII, a crer na crônica


de Joaquim Felício dos Santos, um importante centro de
conluios políticos concebidos no seio da maçonaria:

Não sabemos como a maçonaria se introduzira


no Brasil; é certo, porém, que no meiado do seculo
passado já funccionava na Bahia o grande oriente
maçonico, e é um facto, que se não pode negar, a sua
importante cooperação no trabalho lento, occulto,
persistente, para a nossa independencia. A inconfi-
dencia de Minas tinha sido dirigida pela maçonaria.
Tiradentes e quasi todos os conjurados erão pedreiros
livres. Quando Tiradentes foi removido da Bahia, tra-
zia instrucções secretas da maçonaria para os patrio-
tas de Minas.61

Certo escritor, que se esconde sob pseudônimo de


“Um Mineiro”, mas que cogito ser da família Ottoni, afir-
mou que foi Jorge Benedito Ottoni, irmão de José Eloi
Ottoni, que em 1821 propôs votar e dirigiu a destruição
do monumento de infâmia erguido no lugar da casa de
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.62 Isso indica
que os membros da família Ottoni compartilhavam a
ideia de independência, sendo contrários à continuidade
das instituições portuguesas.

governador ordenou que para as aulas régias de Minas Gerais os


professores adotassem a “Arte de Antonio Pereira”.
61 SANTOS, op. cit., pp. 251-255.
62 O Globo, Rio de Janeiro, quinta-feira, 8 de março de 1877, p. 4. Ar-
quivo Público Mineiro. Secretaria de Governo da Capitania (Seção
Colonial), Cx.119, Doc. 22. Representação que faz o tenente e co-
mandante do quartel geral da 1ª divisão, Luiz Carlos de Souza Osó-
rio, sobre as inquietações provocadas pelo dizimeiro Jorge Benedito
Ottoni. Quartel-geral da 1ª divisão, 15/10/1820.

25
Não é uma tarefa fácil investigar as sociedades iniciáti-
cas na América portuguesa, particularmente a maçonaria,
em decorrência de alguns fatores. Primeiro, obviamente,
por se tratar de uma organização (ou organizações) onde
apenas os iniciados têm acesso aos rituais e à circulação
de informações. Segundo, porque não existe significativa
documentação acerca das primeiras lojas maçônicas no
Brasil, na transição entre o século XVIII e o XIX. Even-
tualmente, os pedreiros-livres foram arrolados em devas-
sas de conjurações e inconfidências em Portugal, Brasil
e Ilhas Atlânticas. A maçonaria na Capitania da Bahia
aparece pela primeira vez, deste modo, no episódio da
Conspiração dos Alfaiates (1798) e em decorrência de
supostamente ter sido organizada pela Loja Cavaleiros
da Luz, da qual praticamente nada pode ser afirmado
com fundamentos documentais. O fato é que maçonaria
e conspiração política passaram a ser sinônimos naquele
período.

Deve-se sublinhar que no início do século XIX a Bahia


abrigava três lojas maçônicas. A primeira foi a Loja Vir-
tude e Razão, estabelecida em Salvador a 5 de julho de
1802, no Rito Francês (ou Moderno), que observava a
Constituição do Grande Oriente Lusitano, mas que não
lhe era subordinado. Em 30 de março de 1807 doze dis-
sidentes da Virtude e Razão fundaram a Loja Virtude e
Razão Restaurada, também do Rito Francês, mudando
o nome, a 10 de agosto de 1808, para Loja Humanidade.
Pela segunda vez, dezoito dissidentes da Virtude e Razão
criam a 12 de março de 1813 a Loja União.

O período da instalação da primeira imprensa na


Bahia foi, talvez não coincidentemente, também um
período de significativa expansão nos quadros da maço-
naria local. Vejamos o relato de dois viajantes separa-
dos por pouco mais de cinco anos. O primeiro é do o
tenente da marinha holandesa Quirinus Maurits Rudolf

26
Ver Huell, na sua estadia forçada de fevereiro de 1808 a
julho de 1810, quando toda a equipagem do seu navio De
Vlieg ficou retido em prisão domiciliar por causa do vir-
tual estado de guerra entre Portugal e a Holanda napo-
leônica.63 O segundo relato é de Sir James Prior que, em
novembro de 1813, registrou a presença da maçonaria em
Salvador. Prior diz que “a greater curiosity, considering
the place, is a full-lenght picture of his Royal Highness
the Prince Regent of England, in masonic regalia, occa-
sionally seen in a recess of the body of the church”.64 Essa
pintura do príncipe regente da Inglaterra com insígnias
maçônicas, ao que parece, estava exposta na Basílica de
Nossa Senhora de Conceição da Praia, pois Prior estava
descrevendo o templo mais rico na Cidade Baixa (lower
town) “built with a species of blue stone, resembling mar-
ble, brought hither for this express purpose from Lisbon”.

Surpreso como a maçonaria era admirada e frequen-


tada em Salvador, apesar da perseguição que sofria nos
países católicos, Prior revela ainda que “There are here
three lodges of the society, wich boast among their mem-
bers the governor, archbishop, and the majority of the
principal people, who do not, however, publicly own it;
several of the minor clergy have been lately initiated”.65
Sua afirmação está correta, pois existiam a Virtude e
Razão, Humanidade e União. Prior afirmou ainda que
o Conde dos Arcos D. Marcos de Noronha e Brito e o
Arcebispo D. José de Santa Escolástica Alvarez Pereira
(1804-1813), assim como boa parte do clero menor, eram
iniciados na maçonaria.

63 
HUELL, Maurits Rudolf Ver. Herinneringen van eene reis naar de
Oost-Indien. Haarlem: Vincent Loosjes, 1836.
64 PRIOR, James. Voyage Along the Eastern Coast of Africa: To
Mosambique, Johanna, and Quiloa and Srt. Helena; to Rio de Janei-
ro, Bahia, and Pernambuco in Brazil. In the Nisus firgate. London:
Sir Richard Phillips and Co., p. 103.
65 Ibdem, pp. 104-105.

27
A existência de três Lojas em Salvador possibilitou a
criação de uma Grande Potência maçônica e da sua jun-
ção surgiu o Grande Oriente Brasileiro (GOBra), sendo
seu Grão-Mestre Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e
Silva, irmão de José Bonifácio. O GOBra teve existência
efêmera, sendo desativado em conseqüência das turbu-
lências políticas advindas da Revolução de Pernambuco
em 1817.66 Naquele mesmo ano, D. João VI recebeu uma
carta de certo frade chamado frei Amador da Santa Cruz.
Nela, o “fiel vassalo” afirmou que a cidade de Salvador
estava infestada por seis mil membros, de toda “hierar-
quia, classe e qualidade”, da “malvada seita dos Pedrei-
ros-Livres”. Nas palavras do frade:

Se V. Majestade não der pronto remédio a este mal


os seus fiéis vassalos chorarão sem remédio, e serão
vítimas da ferocidade de tais malvados; igual bloqueio
sofre o Conde Governador atualmente pois as pessoas
que o cercam são desta raça, e apenas desponta qual-
quer projeto, é logo transmitido às sociedades notur-
nas disputado, acautelado, ou ridicularizado.67

A resposta das autoridades portuguesas foi desfe-


rida no ano seguinte com a proibição das lojas maçôni-
cas, sociedades secretas e conventículos.68 Os pedreiros
livres já eram condenados pela Igreja Católica em razão
da Bula In Eminenti (1738) de Clemente VII e do Breve
Providus (1751) de Bento XIV. Em 1818, contudo, a condi-
ção de ilegalidade e a repressão fizeram com que as lojas
existentes no Brasil ficassem “adormecidas”.

66 ÁVILA JÚNIOR, Celso Jaloto. A Maçonaria Baiana e Sua História.


Salvador: P &A, 2000, pp. 39-52.
67 PEREIRA, op. cit., Vol. III, p. 251-253.
68 Alvará de 30 de março de 1818. In: Código Brasiliense. Rio de Janei-
ro: Impressão Régia, s /d.

28
Recordemos, ainda, a afirmação do frei Amador
de Sancta Cruz de que o Governador da Bahia estava
rodeado por pedreiros-livres. Seria uma referência à
presença de Ottoni na residência do Conde dos Arcos?
Recordemos, também, que Theophilo Ottoni afirmou
que seu tio viveu na casa do Conde dos Arcos.

O fato é que, em 1817, coube a José Eloi cantar a morte


da rainha que havia condenando o grupo de inconfidentes
de Minas Gerais. O Senado da Câmara da Bahia celebrou
a 2 de setembro, no Templo do Colégio, as exéquias de
D. Maria I, ocasião em que “Aparecerão eloquentissimos
versos latinos de José Eloi Otoni (sic), e de José Lucio
de Matos”.69 Este foi, contudo, o último elogio registrado
que Ottoni fez a um representante do Antigo Regime
português no Brasil.

A tempestade constitucional que teve lugar após 1820


alterou a disposição dos versos de José Eloi Ottoni. O
poeta tornou público seus anseios políticos. Ottoni foi
o poeta que, com suas rimas, enfrentou D. João VI no
teatro São João, no Rio de Janeiro, em 26 de fevereiro
de 1821, quando os súditos fluminenses já exigiam do
monarca bragantino que as Cortes de Lisboa promulgas-
sem a Constituição. Segundo Theophilo Ottoni, diante
do monarca o poeta declamou o soneto abaixo:

Portuguezes! A nuvem tenebrosa


Qu’offuscava a razão desapparece,
Desfez-se o cahos que a discórdia tece:
Já se encara sem medo a luz formosa.
Dos erros a progenie maculosa
Raqueando em soluços estremece,
A justiça dos céos ao throno desce,
Marcando os faustos à nação briosa.

69 Idade d’Ouro do Brazil, n. 72, sexta-feira, 6 de setembro de 1816.

29
Lysia, berço de herôes, oh Lysia, alerta!
Cumpre que os ferros o Brazil arroje,
Seguindo o impulso que a razão desperta.
A expressão de terror desmaia e foge,
Graças â invicta mão que nos liberta;
Escravos hontem, sois Romanos hoje!70

D. João VI, ofendido, teria bradado “Escravos não,


vassalos!” Ao que o auditório replicou “Peior, peior...”. As
rimas de 26 de fevereiro foram a profissão de fé de Ottoni,
que foi eleito deputado efetivo, de acordo com as eleições
realizadas entre os dias 16 a 19 de setembro de 1821, pela
Junta Eleitoral da Comarca de Vila Rica (Ouro Preto). Foi
um dos três representantes mineiros que se achavam na
Europa, junto com o Desembargador Francisco de Paula
Pereira Duarte e o Dr. Carlos José Pinheiro, quando das
eleições de 1821. Não chegaram, porém, a participar dos
trabalhos, em razão dos seus diplomas não lhes serem
remetidos pela Junta da Capital da Província e, sem o
diploma, o Congresso Constituinte não pode reconhecê-
-los nem lhes dar posse “que o Governo faça logo proceder
a informação, sumaria do motivo porque os Deputa-
dos de Minas Geraes, não tem vindo tomar assento nas
Cortes”.71 O Diário do Governo registra que “Mandou-se
ao Governo huma representação do Cidadão, José Eloi
Ottoni, em que expõe ter sido nomeado Deputado pela
Provincia de Minas Geraes, felicita por esta occasião o
Soberano Congresso, acusa a interceptação dos seus
Diplomas, e de novo protesta a adhesão ao actual
systema”.72

Em 1825, sem melhores perspectivas em Lisboa,


Ottoni regressou definitivamente ao Brasil e, por inter-
médio do Marquês de Paranaguá, conseguiu o cargo de

70 OTTONI, Theophilo, op. cit., p. 24.


71 Diario do Governo, n. 153, Terça-feira, 2 de Julho de 1822, p. 1101.
72 Diario do Governo, n. 177, Terça-feira, 30 de Julho de 1822, p. 1288.

30
Oficial da Secretaria da Academia da Marinha no Rio
de Janeiro. Para conseguir o cargo, porém, Ottoni teve
que se justificar ao Imperador pelos versos proclama-
dos contra monarquia portuguesa em fevereiro de 1821.
Isto posto, Ottoni tornou-se próximo ao Imperador, para
quem a Parafraze dos Proverbios de Salomão havia sido
dedicado.

4. O Livro de Salomão

A ligação do Rei Salomão com o simbolismo maçônico


é objeto de controvérsia mesmo entre os historiadores
iniciados e discutir isto ultrapassa os limites desta inves-
tigação. O certo é que Salomão, desde o século XVIII,
tornou-se um dos principais símbolos da maçonaria.
Simbologia que já estava presente em Portugal no início
do século XIX conforme afirma o editor de um conhecido
periódico português anti-maçon:

A fabula que os tem feito descender dos edificado-


res do templo de Salomão, que he, para assim dizer, o
maravilhoso da Historia Maçónica, a meu ver só tem
huma realidade bem fácil de conhecer e penetrar ate
pelos menos versados na tortuosa vereda, que de ordi-
nário levão as seitas, heresias, e mais desmanchos da
razão humana. (...).73

Hipólito da Costa, numa monografia sobre as origens


filosóficas da maçonaria, publicada em 1820, afirma que
“the temple of Solomon was a type of the universe, to
symbolize that Jehovah was no local God, but the only
God, Lord of the universe”.74 Alex Mellor, historiador da

73 [SÃO BOAVENTURA, Fr. Fortunato de]. O Punhal dos Corcundas,


n. 22. Lisboa: Na Officina da Horrorosa Conspiração, 1823 p. 298.
74 COSTA, Hippolyto Joseph. Sketch for the History of the Dionysian
Artificers a Fragment by Hippolyto Joseph da Costa, Esq. London:
Paternoster-Row, 1820, pp. 38-39.

31
maçonaria francesa, acerca do simbolismo ligado ao Rei
Salomão observou que

Esse rei de Israel, filho de Davi, que mandou cons-


truir o Templo de Jerusalém, tem um papel muito
importante no simbolismo maçônico. Na celebração
da Grande Loja, o Grande Mestre considera-se “repre-
sentante do rei Salomão, no seu trono”. Quando da
posse do Venerável, diz-se que ele é empossado na
“cadeira de Salomão”. O personagem do rei aparece
também em vários Altos Graus. É a alegoria do cons-
trutor real, do iniciado colocado por Deus acima de
todos os outros seres. A própria expressão “Arte Real”,
sinônimo de Franco-Maçonaria, está associada à sua
Realeza.A Nova Atlântida do Chanceler Bacon, em
sua descrição da ilha mítica de Bensalem, fala de
uma “casa de Salomão”, morada de uma fraternidade
de filósofos.75

Nicola Aslan, historiador da maçonaria brasileira,


também aponta a importância da simbologia associada
ao Rei Salomão no seio dos pedreios livres do Brasil:

Salomão – Terceiro rei dos judeus (...) Atribuem-


-lhe três livros da Bíblia: os Provérbios, o Cântico dos
Cânticos e o Eclesiastes, e também os Salmos LXXII
e CXXVII. Este personagem desempenha importante
papel na Maçonaria, a qual, segundo alguns escrito-
res, teria tido a sua origem na construção do templo
que quele rei mandara erigir em Jerusalém à glória de
Jehovah. Esta crença tem como principal fundamento
a lenda alegórica do terceiro grau, à qual foram
acrescidas posteriormente, outras narrativas mais
ou menos novelescas.(...) A maior parte das lendas
maçônicas é de origem bíblica (...). O Rei Salomão
75 MELLOR, Alec. Dicionário da Franco-Maçonaria e dos Franco-Ma-
çons. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 223.

32
dez vir de Tiro a Hiram, homem cheio de sabedoria
e inteligência, para confiar-lhe a execução dos tra-
balhos do Templo. È por causa desta velha lenda dos
“construtores” que o nome do monarca foi misturado
aos “mistérios” do “Companherismo” (VEP) como nos
da maçonaria. Existem muitos graus na Maçonaria,
chamados bíblicos salomõnicos, em que pe destacada
a figura de Salomão. Estes graus pertencem a vários
Ritos, e principalmente ao R.E.A.A., graus inefáveis,
e ao Real Arco, e são rodeados de numerosas lendas
relacionadas com a construção do Templo e com os
atos do famoso rei-profeta, servindo de base, princi-
palmente, ao grau de Mestre Maçom. (...) é certo que
não é conhecida na Maçonaria qualquer referência
aos Templo ou à Lenda de Hiram, antes de 1723. Os
Maçons fizeram do Templo de Salomão um arquétipo
ideal e iniciático e não um modelo material para as
suas Lojas. De fato, do ponto de vista maçônico,
é um Templo alegórico, imagem e representação
do Universo, e das maravilhas da criação, que foi
adotado para o ensino e explicação das doutrinas da
Maçonaria.76

Além disso, os landmarks, os princípios imutáveis


aceitos pelas Obediências de tipo anglo-saxônico como
bases estruturais de toda a maçonaria, foram, em parte,
inspirados nos Provérbios de Salomão, num versículo
que Ottoni dispôs da seguinte maneira: “Imita as boas
acções, / Que teus avós praticarão : /Conserva os marcos
antigos, / Que já teus pais conservarão”.77

76 ASLAN, Nicola. Grande Dicionário Enciclopédico de Maçonaria e


Simbologia. Rio de Janeiro: Editora Arte Nova S. A., 1976. Vol, IV, pp.
997, 1095 e 1096.
77 MARQUES, A. H. de Oliveir. Dicionário de Maçonaria Portuguesa.
Lisboa: Editorial Delta, 1986, Vol. II Ottoni, Parafraze, p.251. Provér-
bios 22:28.

33
O símbolo de Salomão foi adotado para o ensino e
explicação das doutrinas maçônicas. Sob a capa de poe-
mas inspirados no texto bíblico, descerto para escapar às
censuras sofridas pelas sociedades iniciáticas da época,
a Parafraze dos Proverbios de Salomão é um código de
moral para os iniciados na maçonaria. Antonio Dias, por-
tuguês e autor da Bibliotheca Maçônica, escreveu uma
peça de teatro publicada em 1851, Salomão, ou um dia
em Jerusalem, drama allegorico em cinco actos, onde afir-
mou que o texto era composto por “Dois dramas diversos,
um escrito para todos, e outro alegórico e particular para
os iniciados [na maçonaria]”.78 Ao contrário de Antonio
Dias, em 1815, Ottoni não poderia tornar explícito o signi-
ficado da sua obra, sem sofrer alguma represália.

Frontispício de Parafraze dos Proverbiosde Salomão


em versão portuguez, Bahia, na Tipografia de Manoel Antonio
da Silva Cerva (acervo do autor)

78 DIAS,Antonio. Salomão, ou um dia em Jerusalem, drama allegorico


em cinco actos. Lisboa, Typ. Do Panorama de Sebastião Paulo da
Fonseca Cabral, 1851, p. 1.

34
Quanto ao livro de Ottoni servir como um código
moral foi o próprio autor quem admitiu em duas ocasiões.
Primeiro, no prefácio:

E não conheço hum Código de moral tao puro,


como os Provérbios de Salomão: em Ethica he tudo
quanto os homens de todos os séculos poderão des-
cobrir de mais justo, mais santo, e mais necessário.
Ainda sem revelação, o homem de qualquer classe
ou condição que seja, marchando como philosopho,
encontra as veredas da virtude, guiado somente pelo
clarão de parábolas simplices, sentenças judiciosas,
ou axiomas tirados da mesma vida do homem.

Depois, na dedicatória ao Príncipe Pedro de Alcântara:

SENHOR humilde vos peço


Que acceiteis esta homenagem;
Ainda que de linguagem
Castiça, e pura careço;
Nos Proverbios vos off’reço
O qu’Israel aprendia :
Estudai-os noite, e dia :
Neste Código tão breve
He Salomão, que descreve
As Leis da Sabedoria.

Já o símbolo estampado no seu frontispício, uma lira


ou saltério, remete a uma jóia dos maçons. Na maçona-
ria, a lira é a jóia que representa o Mestre de Harmonia
ou organista de uma Loja, ou seja, um cargo de relevo
para o responsável por selecionar os temas musicais e
adequá-los a cada instante da ritualística. Entre os livros
da Silva Serva, esse símbolo não aparece apenas no livro
do Ottoni, mas também nas duas obras de João Gual-
berto Ferreira dos Santos Reis. Desde o século XVIII a
lira foi estampada, também, em outras obras poéticas

35
impressas em toda Europa, como o Caramuru de frei
Santa Rita Durão, visto que era também um símbolo dos
poetas árcades, para além de uma representação maçô-
nica. Aliás, o mesmo símbolo pode ser observado, nova-
mente, em outra obra de Ottoni publicada em 1851, desta
vez entremeada pelas letras P e H, que podem significar
Prudência e Harmonia.

A Parafraze dos Proverbios de Salomão, como a peça


teatral de Antonio Dias, pode ser lida em dois níveis: para
o público em geral e para os iniciados na maçonaria. Para
confirmar isso é necessário examinar a tradução dos pro-
vérbios bíblicos feita em quadras octossílabas. De início,
no capítulo I, é possível perceber a descrição do rito de
iniciação no seio da maçonaria, segundo descreveu José
Joaquim Vieira Couto aos inquisidores. Observemos as
estrofes do referido capítulo, comparando-às com os
depoimentos de Vieira Couto, observados nas notas:

PROLE augusta de David


Salomão, Rei d’Israel,
Transmitte aos homens a luz
Neste compendio fiel;

Aonde o simples desenho


De parábolas ensina
Os meios, que desenvolvem
Sapiência, e disciplina.

As palavras da prudência,
A erudição da verdade,
Com que a doutrina produz;
Justiça, Juízo, equidade.

Astúcia o simples aprenda,


Consiga o moço ser velho
Na sciencia, que resulta
Do entendimento, e conselho

36
O sábio ouvindo he mais sábio;
Na do governo lição
O inteligente consegue
O dom da penetração.

As parabolas discute,
D’enigmas doutos, e sérios
O nó subtil desatando,
Desata occultos mysterios.79

No santo temor de Deos


Começa a Sabedoria:
Os insensatos desprezão
O clarão, que os allumia.

Grita o sangue do innocente,


Paga o impio de huma vez,
Á custa da propria vida,
Todos os males, que fez.80

79 
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo
16.809, fl. 101v: “ficando o hombro e peito nu, atandome huma cor-
da ao pescoço e vendado-me os olhos”. Parte do rito de iniciação,
no qual o candidato é levado com uma corda amarrada ao pescoço,
sendo retirada após ter sido aceito.
80 Ibidem, fl. 101v “e dise o Orador, que me partesipase o me proseso, e
os crimes de que hera arguido, e ao pr.o sinal do Prezidente, ficando
tudo em silençio, ouvi da boca do Orador ler meos crimes gradualm.
te, ate couzas bem insegnificantes do Tempo da m.a meninice, prati-
cadas em huma Região tão Remota, entre a qual há tantos mares, e
terras, e sendo eu preguntado por aqueles factos, não sem vergonha
fui obrigado a confesalos, visto que erão verdadeiros,e as minhas la-
grimas involuntarias o terião publicado, ainda coando eu tivese a
maldade de os querer ocultar, e respondendo eu com a m.a confição
que apezar daquelas razoens não hera Justiça q eu fose punido tão
severam.te [Pois já tinha ouvido huma voz destacada que morrese]
(...)Pedio o prezidente o ultimo consentimento da aprovação ou re-
provação da asemblea, a qual unanimem.te expresou com este ter-
mo “MORRA”.

37
Assim tropeça a illusão,
Tal he o impulso violento,
Que nos caminhos da fraude
Sorve a paixão do avarento.81

Nas praças publicas soa


A voz fiel que nos guia:
Em qualquer parte que estamos
Nos falla a Sabedoria.

Apparece como a Luz,


Singela, e nua a verdade,
Nas assembleas do povo,
Nos alpendres da Cidade.

Filhos, diz ella, até quando


Desprezareis a Sciencia,
Nutrindo a infância, que he louca,
No regaço da imprudência?

Convertei-vos á doutrina,
Que vos dou por correcção:
O meu espirito accenda
Em vós a luz da razão.82

81 Ibidem, fl. 101 “estive com bastante susto detido por mais de duas
horas solitario; ate que sendo ja, innopinadamente fui assaltado por
hum Homem com huma espada nua na mão, que pondo-ma aos pei-
tos com impeto me forçou a que me despojase de todos os metaes,
que trazia comigo [a saber dinheiro e trastes]”
82 GALVÃO, Fernando Abbott (ed.). O Diário de Jonathas Abbott. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 2007, pp.421-422. Ver a luz significa in-
gressar na maçonaria. Foi assim, por exemplo, que o Dr. Johnatas
Abbot registrou, na folha de guarda do seu diário manuscrito, o dia
em que ingressou na maçonaria: “Vi a luz”.

38
O Capítulo II continua a apresentar elementos da ini-
ciação maçônica:

MEU filho se de bom grado,


Fores dócil á instrucção,
escondendo os meus preceitos
No fundo do coração :

De tal sorte, que descubras


O clarão da sapiencia,
Vê, se podes conseguir
A virtude da prudencia.

Se a invocares ancioso,
Desvelado e submetido,
Buscando-a como dinheiro,
Ou qual thesouro escondido;

Então comprehenderás
A sciencia do Senhor,
Delle vem sabedoria,
Prudencia, e santo temor.

He para os simples, rectos


Que elle guarda a salvação:
Elle abençoa as veredas
Da justiça, e da razão.

Desenvolvendo os principios
De virtude, e santidade,
Poderás desenvolver
Justiça, juizo, equidade.83

83 
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo
16.809, fl. 102, Referência aos valores difundidos na maçonaria. O
orador da cerimônia disse ao Vieira Couto que ficasse descansado
“porque estava perante Hum Congreso que amava a Razão, a Justi-
ça, e a Santidade”.

39
Exalta a sabedoria,
Prefere a sciencia a tudo:
Terás por guia o conselho,
A prudencia por escudo.

Evitarás o perigo,
Onde o perverso se illude,
A quem passea nas trevas,
Esconde o Norte á virtude.84

O malfeitor se compraz,
Exulta, e goza o perverso:
He na infamia de seus passos
Que tem a maldade o berço.

Evitarás finalmente
Estulta mulher alheia,
Que ao som de mole artificio
Com palavras lisongea.

Que abandonando o consorcio,


Prostitue a mocidade:
A seu marido infiel,
Perjura a hum Deos de verdade.

Da infame adultera esposa


Pende a casa para a morte:
Vão buscando o inferno os passos
Da prostituta consorte.85

84 Ibidem, fl. 102v. “não atacando nunca a seus Irmaos (...) suas mulhe-
res, e filhos, (...) fugir ao crime e amar a Virtude.”
85 Ibidem, fl. 103. “o Maçon devia estimar sua Espoza, não lhe dando
nunca desgostos, nem tentando o divorçio se não em ultima nesesi-
dade, sendo o unico motivo a ofensa da onra, e da desençia, e q tudo
mais deveria ser tolerado”.

40
O amante, que entra, confuso
Perde as veredas da vida :
Ao sabio assim como ao justo,
Nunca a esperança he perdida.

Longos dias sobre a terra


Os bons, e os simples terão:
Exterminada a injustiça,
Os impios se perderão.

Ainda há no Capítulo III, indícios de que podem ser


percebidos no processo inquisitorial de Vieira Couto:

GUARDA, meu filho, os preceitos


Da minha lei; não te esqueças :
Longa vida, e paz serão
Fructos das minhas promessas.

Misericordia, e verdade
Te illustrem sempre a razão :
Traze-as escritas no rosto,
Gravadas no coração.

Acharás louvor, e graça


Diante do Ceo, e da terra;
Confia em Deos, e dos homens
Toda a esperança desterra.

Enche a tua alma de hum ser


Que tudo rege presente :
Co’ temor evita o mal,
Não presumas que prudente.

Deste modo illesa a carne,


Da fraqueza combatida,
Sentirás correr nos ossos
Saudavel succo da vida.

41
Co’ a substancia do que tens
Honra o teu Deos, e Senhor,
Da-lhe as premidas dos fructos,
Que provém do teu suor.

Verás, que o pão nos celleiros


Entulha a porta, o caminho :
Verás correr transbordando
Nos teus lagares o vinho.86

Ah! não desprezes, meu filho


A correcção do Senhor :
Acceita alegre o castigo,
Que he sempre effeito de amor.

O Senhor pune a quem ama,


Porque ama as obras que faz :
He como hum pai amoroso,
Que em seu filho se compraz.

Bemaventurado aquelle
Que co’ a luz da sapiencia,
Achando o bem, que buscava,
S’ enriqueceo de prudência.

O seu tráfego he melhor,


Que o da prata, he mais seguro,
Mais fino o seu resultado,
Que o ouro fino, e mais puro.

86 Ibidem, fl. 103. “Seguiose huma seia, ou refresco no cual houve toda
a frugalidade, sendo prohibido o demaziado comer(...) e logo ao
principio fazendo sinal o Prezidente, se puzerão todos a pe, e pe-
gando em hum copo de vinho detriminou (sic) que todos fizesem o
mesmo (...).”

42
Não ha riqueza no mundo,
Qu’ iguale a sabedoria,
Comparada co’ desejo,
Inda tem maior valia.

Longos dias apontando,


Co’ adextra marca a victoria,
Sustem na esquerda o penhor
Das riquezas, e da gloria.

He tão pulchra em seus caminho,


Como d’ engano incapaz,
Todas as suas veredas
São as veredas da paz.

Ella dá frutos de benção


Aquem deseja encontralla,
Ella he arvore da vida,
Feliz quem chega a abraçalla!

Foi pela sabedoria


Que hum Deos a terra fundou;
Quando a abobeda celeste
Sobre a prudência elevou.

Por lei do sabio Architecto87


Os abysmos se romperão :
Liquidas gotas de orvalho
Na terra as nuvens verterão.

Ah ! não deixes de teus olhos


Esta doutrina escapar :
A lei, meu filho, e o conselho
Constante deves guardar.

87 Grande Arquiteto do Universo ou G. A. D. U.

43
Eis a vida da tua alma,
Do teu pescoço o ornamento:
Os teus pés irão seguindo
A marcha do entendimento.

Se dorme o Sabio tranquillo,


Tu dormirás sem temor;
A paz, he o som no da vida,
A vida, he o premio de amor,

Desta armadura vestido,


Não te pode accometter
Subito horror da desgraça,
Nem dos impios o poder.

Assim terás a teu lado


O Senhor, que te defenda,
Guiando-te o pé seguro
De rede, ou laço, que o prenda.

Nunca te opponhas á mão


Do bemfeitor, se te apraz,
Procura, quando poderes,
Fazer o bem, que elle faz

Se o teu amigo padece,


Não tardes, que o tempo foge:
A’ manhãa talvez não faças,
O que pódes fazer hoje.

Não lhe maquines o mal,


Presta á virtude o abrigo,
Que a boa fé lhe assegura
Na confiança d’ hum amigo.

44
Não provoques a injustiça
D’ huma acção, que te desmente;
Autor d’ iniquo processo
Não chames reo o innocente.

Já mais do injusto o prazer


Te sirva de emulação :
Evita sempre os caminhos,
Que tem por Norte a illuzão,

O Author, e Luz da verdade


Qualquer engano abomina.,
Despresa, abate o orgulho;
Ao simples he que elle ensina.

Quando a indigencia nos impios


Descarrega a indignação,
As bençãos do Ceo recahem
Do justo na habitação.

Pague o louco, que escarnece,


Soffrendo escarneo tambem :
A graça he quem distribue
O premio, que os mansos tem.

C’soa-se o sabio de gloria,


Porque hum dia se humilhou:
O insensato se confunde,
Do nada a que s’exaltou.

O livro é dividido em 33 partes, somando-se o prefácio,


a dedicatória e os 31 capítulos. Os limites desse artigo,
contudo, não permitem uma análise detalhada dos 31
capítulos, mas o capítulo VIII merece atenção, no qual
o autor parece defender a legitimidade das monarquias

45
como resultado da vontade divina.88 Nele está registrado
o verso Per me reges regnant que, aparentemente, evoca
uma contradição com o restante do texto. Aliás, esse é o
único verso em todo o livro que possui uma nota explica-
tiva em anexo, no qual estaria explícita a ideia de que o
poder dos reis era uma concessão divina, o que não parece
estar de acordo com supostos princípios dos pedreiros-
-livres que combatiam o absolutismo das monarquias
europeias. O sobrinho de José Elói, Teóphilo Ottoni, saiu
em defesa do autor em relação do “tão fallado texto” e
explica seu significado implícito:

O poder dos reis vem de Deos, – foi a origem Sem se


afastar um ápice do sentido rigoroso da Escriptura,
a Paraphrase dos provérbios torna patente que para
derivar de tal fonte a doutrina ultramontana de que –
o poder dos reis vem de Deos, foi mister recorrer-se a
mais de uma fraude piedosa. Porquanto não somente
se destacarão aquellas palavras de um corpo geral de
doutrina, que toda se resume assim– a sabedoria é a
regra de bem proceder para todas as idades, estados
e condições, – como além disso subentendeu-se que o
– me – do fragmento subtrahido era ali pronome de –
Deo, – quando somente o é de sapientia.89

Colocando o texto latino ao lado da paráfrase pode-se


demonstrar essa asserção
12.
Ego sapientia habito in consilo, Eu sou a sabedoria
et eruditis intersum cogitationibus. Que delibero em conselho;
Assisto aos judiciosos,
Tanto ao moço, como ao velho.

88 Theophilo Ottoni afirma que o texto que contem a estrofe Per me re-
ges regnant está no “capítulo terceiro”, quando, na verdade, em to-
dos os exemplares que consultei, está no capítulo VIII, assim como
no texto bíblico. OTTONI, Theophilo, op. cit., p. 18. Equívoco do
senador mineiro ou um exemplar com diferente impressão?
89 OTTONI, Theophilo, op. cit., p. 17. Teophilo Ottoni não indica quem
falava tanto deste texto.

46
15.
Per me reges regnant, He por mim, que os Reis impérão90
et legum conditores justa decernunt. Nos corações, por amor:
As minhas leis he que formão
O sabio legislador

16.
Per me principes imperant, Por mim os Príncipes reinão,
Et potentes, decernunt justitiam. E a confusão dos tyrannos
He saber, que os Poderosos
Fazem justiça aos humanos.
18.
Mecum sunt divitiae, et gloria, Os thesouros da abundancia
opes superbae, et justitia. Pelo meu braço s’entornão
Riquezas, gloria, justiça,
Magnificência me adornão.

20 e 21.
In viis justitiae ambulo, in medio Nos caminhos da equidade,
semitarum judicii: Nas veredas da prudencia
Ut ditem diligentes me, Com quem me ama eu reparto,
et thesauros corum repleam Além de amor, opulencia.

27.
Quando praparabat ccelos, aderam: Quando o Autor do Firmamento
quando certa lege et gyro Aos abysmos prescrevia
vallabat abyssos: Certas leis, a tudo estava
Presente a Sabedoria.

28 e 29.
Quando aethera firmabat sursum, Ou no equilíbrio das fontes.
et librabat fontes aquarum: Sustendo as nuvens no ar,
Quando circumdabat mari terminum Regrando o peso da terra
suum, et legem ponebat aquis, Pondo limites ao mar:
ne transirent fines suos:
quando appendebat fundamenta terrae:

90 Anota no texto é a seguinte: “Se na Theocracia o povo era ameaça-


do com o governo de Príncipes fracos, que texto mais genuíno para
provar o direito dos Reis, do que hum Provérbio em que falla a Sa-
bedoria Eterna pela voz de Salomão”.

47
30.
Cum eo eram cuncta componens, Eu fui o Grande Architecto
et delectabar per singulos dies, De que o autor lançou mão:
ludens coram eo omni tempore. Diante delle eu fui sensível
Ao prazer da creação.

32.
Nunc ergo, filii, audite me: Portanto agora que eu fallo
Beati qui custodiunt vias meas. Escutai, ó filhos meus,
Vós, ó bem aventurados
Se abraçais a lei de Deos.91

Confrontado o texto latino com a tradução, pode ser


observada então, a política dissimulada Per me reges reg-
nant, como origem da legitimidade: Que a doutrina de
Salomão neste capítulo reduz-se á declaração de que
nada se pode fazer sem a sabedoria; Que a sabedoria é
coeterna com a Divindade, de quem foi o grande Arqui-
teto na criação; Que só pela sabedoria se pode obter a
abundância, a gloria e a justiça; Que é pela sabedoria que
os legisladores (conditores Lerrfgum) podem fazer leis
sabias (justa decernunt). Assim, a engenhosidade da tra-
dução de Ottoni protesta que é pela sabedoria, e não pelo
princípio do Direito Divino, que os reis devem legitimar
seus governos (per me reges regnant).92 Segundo Theo-
philo Ottoni,:

(...), por conseguinte, o tão fallado texto a que se


arrima o devaneio da Legitimidade é a theoria das
capacidades que Guizot explica no seu livro sobre o
systema representativo; é a doutrina de Alexandre
Magno quando legou o seu império ao mais digno; e é
emfim a mesma theoria em virtude da qual forão eleva-
dos á presidência dos Estados-Unidos os Washington,

91 OTTONI, Eloy, op. cit., pp. 86-91.


OTTONI, Theophilo, op. cit.,, pp. 19 e 20
92 

48
Jefferson e os Adams. É uma regra de deveres, e não
uma declaração de direitos. 93

Há outro detalhe que liga o texto de Ottoni aos pedrei-


ros-livres: a maneira como o autor refere-se a Deus. Deus
foi apresentado no poema como o Grande Architecto e
Sabio Architecto, ou, na maçonaria, o Grande Arquiteto
do Universo (G. A. D. U.) .94

Eloi Ottoni encontraria, na sua maturidade, a prote-


ção da maior autoridade maçônica do Brasil, o Imperador
D. Pedro I, Grão-Arconte do Grande Oriente Brasileiro.
Não é exagero afirmar que Ottoni era o poeta preferido
do “César do Brasil”, cabendo a ele escrever um poema
para celebrar a Independência:

O presuroso Sol, que o Ceo rodêa, A memoria do dia renova


Cam. Lus. C. 2 Oitavas
1.ª 2.ª
Esse, que avaro as épocas consome, Alliança, e Commercio a
Europa hum dia
Dizia adusto Joven, na memória Ao Trópico do Sul curvada
implore;
Dos Vindouros, o Tempo exalte o Nome E no arrulho, que as Águias
annuncia,
Do Cesar do Brasil, consagre a historia. A esperança de paz, ou guerra
escore.
Prelúdios sejão d’immortal renome Arctos vaidosa, enregelada, e
fria
A prudência, e valor, virtude, e glória; Do novo Império, despejando
a aljava,
Seja hum presagio de tão alta Idea A memória do dia renovava.
O presuroso Sol, que o Ceo rodêa

Soneto.

Sinistro agoiro de mortal quebranto / No pavez Andaluz erguia o brado;


/ O da Ibéria Leão, como assanhado, / Rugio, estremeceu de horror, e
espanto.

93 Idem.
94 OTTONI, Eloy, op. cit., pp. 33 e 91

49
Perfídia, e susto desdobrava o manto, / Qu’ involve, e aquece a Purpura,
e cajado. / O Tejo sobre a urna recostado, / Com a mão no rosto, vio da
Iberia o pranto.
Da Virtude as primicias corrompendo, / Rapido impulso de contagio
forte / Em Lísia faz, que soe o grito horrendo.
O furor da explosão, por salvar-se, a voz erguedo, / Proclama, e grita –
Independência, ou Morte. – 95

Foi a poesia de Ottoni que celebrou o nascimento do


herdeiro de Pedro I, publicando no Diário Fluminense
“Ao Príncipe Imperial recém-nascido” e o soneto “Ao
Nascimento de hum Príncipe, que vem encher a espe-
rança do Brasil”.96 Tanto simpatizava com a política do
imperador que com seus colegas da Secretaria de Estado
dos Negócios da Marinha, foi um dos subscritores dos
empréstimos, sem vencimento de juros, para as despesas
na Guerra da Cisplatina97

Ottoni era católico e na tradução do hino Stabat


Mater, publicado sob os auspícios de D. Romualdo Anto-
nio de Seixas, Arcebispo da Bahia, aparece a assinatura
“Por José Eloi Ottoni, C. Brasileiro”. 98 Penso que o “C.”
é a abreviatura de “Católico”. Sua Parafraze dos Prover-
bios de Salomão acabou por ser associado ao catolicismo
e não à maçonaria. Tanto que os periódicos católicos
publicaram, diversas vezes, ao logo da segunda metade
do século XIX, trechos “da bella Paraphrase do excel-
lente poeta sagrado brazileiro, José Eloi Ottoni”.99

95 Império do Brasil: Diário Fluminense n. 57, quarta-feira, 7 de setem-


bro de 1825, pp. 225-226. A S. M. I. o senhor D. Pedro I. no dia Annversa-
rio da Independencia do Brasil. Congratulação e respeito, por José Eloi
Ottoni, a 7 de Setembro de 1825.
96 Império do Brasil: Diário Fluminense n. 137, terça-feira, 13 de de-
zembro de 1825, p.554.
97 Império do Brasil: Diário Fluminense n. 94, segunda-feira, 22 de ou-
tubro de 1827, pp. 391-392.
98 O Noticiador Catholico, n. 41, 31 de março de 1849, Bahia, Typ. de J.
C. A. Daltro, p. 328.
99 O Pae de Familia Catholico, n. 43, Domingo, 22 de maio de 1859, Rio
de Janeiro, Typ. de J. R. da Costa, p.107.

50
José Eloi Ottoni faleceu com quase 87 anos, a 3 de
Outubro de 1851.100 Após sua morte, o cônego Joaquim
Caetano Fernandes Pinheiro cuidou da publicação pós-
tuma de Job, que dedicou ao bispo do Maranhão, D.
Manuel Joaquim da Silveira, ambos maçons.

Por fim, há duas formas de compreender o significado


histórico da Parafraze dos Proverbios de Salomão; O livro
impresso na Tipografia de Manoel Antonio da Silva Serva
é a primeira expressão da literatura maçônica publicada
no Brasil. A segunda forma de compreendê-lo é a de que
o poema possui um sentido mais pragmático, servindo
como um código moral para orientar o comportamento
dos iniciados nas sociedades maçônicas luso-brasílicas
nos fins do período colonial.

100 José
Eloy Ottoni foi sepultado no dia 3 de Outubro, em jazigo, car-
neiro número 2963, no Cemitério da Ordem Terceira dos Mínimos de
São Francisco de Paula (Catumbi), no Rio de Janeiro. Seus restos
mortais, junto com os de Jorge Benedito Ottoni e Rosália Benedito
Ottoni, foram trasladados em 1998 para a igreja de Nossa Senhora
do Carmo da cidade de Serro, em Minas Gerais.

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