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REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA DO LIVRO E DA EDIÇÃO ‑ ANO XVI, nº. 35‑36 ‑ 2015, pp.
1
de Francisco Ramos Paz, publicado em 1920.1 Nenhum
exemplar da edição de 1813 foi encontrado, sendo que,
por isso, Borba Moraes e Berbert de Castro duvidaram
da sua existência. Da edição de 1815 existem cerca de
duas dezenas de exemplares identificados em bibliotecas
públicas e coleções particulares. Há, decerto, uma edição
impressa no Rio de Janeiro, em 1841, sem o texto latino.
2
A Parafraze dos Proverbios de Salomão pode ser con-
siderada um símbolo da influência dos pedreiros livres
na imprensa e na literatura colonial. Mais do que isso, o
referido livro é um código moral, orientado pelos valores
e simbologia propagados pela maçonaria luso-brasílica.
Curiosamente, não existe registro de qualquer associação
entre Paráfrazes dos Provérbios de Salomão e os pedrei-
ros-livres. Mesmo os historiadores da maçonaria no Bra-
sil e a Academia Maçônica de Letras parecem ignorar
completamente o livro de José Eloi Ottoni.
3
Ottoni educou-se no Arraial de Catas Altas e, ainda
muito jovem, estudou na Itália, retornando para Minas
Gerais em 1791 ou 1792. Lecionou latim na Vila de Nossa
Senhora do Bom Sucesso do Fanado (Minas Novas),
sendo espectador das agitações geradas pela Inconfi-
dência Mineira, quando os principais poetas da capita-
nia foram arrolados como réus. Ali se casou com Maria
Rosa do Nascimento, filha do Coronel Manoel José Este-
ves, tendo por filhos Honório Esteves Ottoni e Eduviges
Esteves Ottoni. Em março de 1798, com os vencimentos
de professor régio alguns anos atrasados, sobrevivendo
com ajuda do sogro, Ottoni recorreu ao governador de
Minas Gerais, Bernardo José de Lorena, que intercedeu
favoravelmente junto a D. Rodrigo de Sousa Coutinho.7
Ainda na terra natal, Ottoni deve ter começado a pre-
parar o manuscrito intitulado Memória Sobre o Estado
Atual da Capitania de Minas Gerais, mas o terminou em
1798 “estando em Lisboa”.8
4
seus amigos de letras, entre os quais circulava o boato
de que Ottoni, e não o inconfidente Tomas Antonio Gon-
zaga, seria o verdadeiro autor da terceira parte da Marilia
de Dirceo, publicada na oficina de Joaquim Thomas de
Aquino Bulhoens, em 1800.9
5
do Nascimento (Filinto Elisio ou Agostinho Soares de
Vilhena e Silva) e Manoel Maria du Bocage (Elmano
Sadino), que a Oyenhausen dedicou o volume terceiro
de suas Poesias, publicadas em 1804. Há outros con-
sórcios da Sociedade da Rosa, como Antonio Bressane
Leite (Tiónio ou Anélio), Francisco de Paula Medina e
Vasconcellos (Fileno) e o baiano José Francisco Cardoso
de Moraes (Josino). Não é possível afirmar que José Eloi
Ottoni integrou a Sociedade da Rosa, mas ele publicou,
em 1801, uma Poesia dedicada á ill.ma e ex.ma sr.a Con-
dessa de Oyenhausen, na Officina de João Procópio Cor-
rêa da Silva.12 A dedicatória indica o quão Ottoni estava
próximo de Alcipe (ou Lilia, como Ottoni a chamava) ao
tempo em que a Sociedade da Rosa estava ativa:
6
o Agricultor lança na terra; o qual se fructifica, he
seomente, quando chega a própria Estação.13
7
A obra prima de Ottoni foi, entretanto, a Parafraze
dos Proverbios de Salomão, para a qual recorreu às obras
de Augustin Calmet,17 Antonio Pereira18 e Vence.19 Curio-
samente, Ottoni não fez qualquer referência a José Anto-
nio da Silva Rego, o militar português que foi o primeiro a
parafrasear na língua portuguesa, em 1774, os Provérbios
de Salomão. 20
17
Antoine Augustin Calmet, O.S.B. (26 de fevereiro de 1672 – 25 de
outubro de 1757), foi um monge beneditino francês que nasceu em
Ménil-la-Horgne e estudou no mosteiro Beneditino de Brevil, ingres-
sando na ordem em 1688. Sua monumental obra foi a La Bible en
latin et en français, avec un Commentaire littéral et critique, Paris,
1707-1716, 23 vol. in-4 (le commentaire a été reproduit à part sob o
título de Trésor d’antiquités sacrées et profanes, 9 v., publicados a
partir de1722);
18 António Pereira de Figueiredo (1725-1797) foi um padre português
que desempenhou inúmeras atividades, sendo latinista, historiador,
canonista e teólogo. Seu trabalho mais importante foi a tradução da
Bíblia da Vulgata Latina para a língua portuguesa. O processo du-
rou 18 anos para ser completado. Inicialmente, foi publicado o Novo
Testamento, entre 1778 e 1781 em seis volumes. O Antigo Testamen-
to foi publicado entre 1782 e 1790 em 17 volumes, tendo a Bíblia, ao
todo, 23 volumes. Uma versão mais reduzida (em sete volumes), é
considerada padrão, e foi publicada em 1819. A versão em volume
único só foi publicada em 1821.
19 H. Francois, Abade de Vence (1675-1749), publicou em Nice uma
nova edição da Bíblia de Carrières, em 22 volumes, entre 1738 e 1743.
Rondet (1717-1785) produziu uma nova edição, impressa em Avig-
non, em 17 volumes, entre 1767 e 1773. Essa segunda edição tornou
conhecida a Biblie de Vence.
20 REGO, José Antonio da Silva. Proverbios de Salomão em parafraze
traduzidos de francez por Jozé Antonio da Silva Rego, Alferes de In-
fantaria, e Academico aplicado. Lisboa: Na Ofic. da Viuva de Igna-
cio Nogueira Xisto, 1774. Colação: xvii, [3], 387p. A tradução foi feita
pelas paráfrases de Nicolas Guilbert e de Mr. Ardene. Só encontrei
um exemplar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, sendo que
a PORBASE não indica a existência de nenhum. Apesar da atual
raridade desse lirvo, a Loja da Gazeta de Silva Serva disponibilizava
exemplares na Bahia, ao preço de 800 réis. Idade d’Ouro do Brazil, n.
72, terça-feira, 8 de setembro de 1812, p. 4. Os textos que Silva Rego
consultou foram Les Proverbes de Salomon expliqués en forme de
paraphrases, par Nicolas Guilbert. Paris, Nicolas Buon, 1625, in-8.,
e o Proverbes de Salomon dur les principaux devoirs de l’homme,
mis en vers françois de Jean Paul de Rome D’Ardène. Este último foi
sócio da Academia de Belas-Letras de Marselha.
8
Não há um consenso, pelos historiadores da literatura,
sobre Ottoni e suas obras, especialmente a Parafraze dos
Proverbios de Salomão. Joaquim Caetano Fernandes diz
que “o que constitue sua maior gloria, o seu maior mere-
cimento poetico, é a bella traducção dos Proverbios de
Salomão”.21 Edison Lins afirma que “sacro e profano foi
também José Eloi Ottoni que como Caldas recorreu ao
Velho Testamento em busca de assumpto poético. Se
Caldas tratara mal a David, Ottoni peior trataria ao filho
Salomão traduzindo-lhe os provérbios”.22 Silvio Romero
observou, corretamente, que “Eloy Ottoni, (...) é uma
physionomia literária que deve ser estudada acurada-
mente”, sublinhando que era “um continuador da velha
escola mineira tendo mais suavidade romântica de que
seus antigos companheiros”.23 Romero ainda considerou
que
9
Não há achar-lhes o sabor que do original parecem guar-
dar algumas traduções diretamente feitas em prosa ou
verso”.25 Falsos Provérbios de Salomão. Antes de exami-
nar o conteúdo do livro, entretanto, é necessário conhe-
cer o círculo de relações intelectuais de Ottoni em Lisboa,
particularmente, sua proximidade com o pedreiro livre
José Joaquim Vieira Couto.
2. Os amigos da virtude
10
Isto demonstra a importancia, que n’aquelle tempo
dava-se á maçonaria, e a influencia de que gosava em
Tijuco a familia Couto. (...) Em Tijuco erão principal-
mente o dr. José Vieira Couto e seu irmão José Joaquim
Vieira Couto os que mais alentavão o espirito de inde-
pendencia, que ia sempre em augmento, apesar de ter-
-se baldado a primeira tentativa, ou talvez por isso. O
dr. Couto era mais reservado; seu irmão, imprudente
e inconsiderado, deixava facilmente transpirar seu
pensamento, e por isso já era olhado como suspeito
e conhecido na corte pela liberdade de suas idéas.26
11
primo irmão de Couto. Ottoni, indo solicitar em favor
de seu parente, teve insinuação de um dos inquisido-
res para occultar o parentesco, que o ligava ao pros-
cripto, revelando-se-lhe estas palavras, que forão
attribuídas ao principe regente: O Couto e o Hypolito
são capazes de revolucionar o reino, e o que é mister é
conhecer-se-lhes os amigos.27
27 Idem.
28
SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.) Um brasileiro nas malhas da
Inquisição: o mineiro José Joaquim Vieira Couto e maçonaria. In:
Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Editorial Es-
tampa, 1995, p. 249 e seguintes. Ver também, LEITE, Paulo Roberto
Gomes. Vieira Couto e as Ligações entre a Maçonaria do Tijuco, de
Portugal e de Moçambique. In: Revista do Instituto Histórico de Mi-
nas Gerais (Belo Horizonte), vol. XXV, 2002.
12
no dia 26 de março de 1803, às 9h da manhã, José Joa-
quim Vieira Couto foi surpreendido em casa pelas auto-
ridades portuguesas, que encontram aventais de pelica
e martelos, além da obra do abade Baruel e a Sentinela
Espanhola, ambas as obras contrárias à maçonaria.29
Couto foi levado para os cárceres do Santo Ofício e ficou
quatro meses “em segredo”. Assim, seu processo teve iní-
cio somente a 9 de julho de 1803. 30
29
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo
16.809, fl.. http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=2316816 . processo
13.339, Papéis de José Joaquim Vieira Couto. (1805-12-14 a 1808-02-
23), 42 fls.
30
Ibidem, fl. 106.
31
Ibidem, fls. 101 e 117v.
32
Ibidem, fl. 118.
33
Ibidem, fls.112-112v.
13
Thomas Vieira do Couto, primo de José Vieira, natural
de Minas Gerais, que viajou a diversos países da Europa,
João Felipe da Fonseca, oficial da Secretaria de Estado
dos Negócios da Marinha, Gervasio Valladares, oficial da
mesma secretaria e primo do acima citado. Couto ainda
informou aos inquisidores que o Marquês de Alorna,
marido de Alcipe, ficou pouco tempo numa assembleia
maçônica por conta da rivalidade com o conde de Novion,
que era o Mestre de Cerimônias.34 Foi encontrado na casa
do réu uma cópia com sua própria letra de uma conven-
ção entre o Grande Oriente Inglês e o Grande Oriente
Lusitano, que “ultimamente se tinha celebrado”.35
14
Pesava ainda contra Vieira Couto uma carta de Francisco
Antonio, escrita no Arraial das Raposas (Minas Gerais), a
1 de novembro de 1799, na qual denunciava, entre outras
coisas, que o réu afirmara que “Jesus Christo fornicou a
Madalena”.38 Couto ficou preso nos cárceres da inquisi-
ção até 1807, sendo solto por Junot a pedido da maçona-
ria portuguesa.
mas Couto afirmou conter mais de duas mil obras cedidas pelos seus
confrades.
38 Ibidem, fl. 166.
39 LEITE. Antonio Bressane. Quadras Glosadas. Lisboa, Offic. de Si-
mão Thaddeo Ferreira, 1804, p. III – V.
15
4. Que nas Virtudes és Grande, 9. Cheios de Apollo, e de Ti,
Que és das Sciencias o escudo, Rompendo bravas procellas,
Que para gloria de Lysia Hirão collocar teu Nome
Já nasceste Grande em tudo: Muito acima das Estrellas.
16
Dogma funesto, detestável crença,
Que envenena delícias inocentes! (…)
Ah! Bárbaro impostor, monstro sedento
De crimes, de ais, de lágrimas, d´estragos,
Serena o frenesi, reprime as garras,
E a torrente de horrores, que derramas,
Para fundar o império dos tiranos,
Para deixar-lhe o feio, o duro exemplo
De oprimir seus iguais com férreo jugo. (…)
(…) Amar é um dever, além de um gosto,
Uma necessidade, não um crime.
Qual a impostura horrísona apregoa.
Céus não existem, não existe inferno,
O prêmio da virtude é a virtude,
É castigo do vício o próprio vício.42
17
“reeducação”, permanecendo ali até 12 de março, indo
para o Real Hospício das Necessidades, onde ficou nove
meses, de onde saiu a 31 de dezembro de 1798. Oliveira
Marques identificou Bocage filiado à Loja Fortaleza
(1800-1810) em Lisboa, que teve Fragozo Wanzeller como
Venerável.44 Em 1805, Ottoni dedicaria a Bocage uma
peça teatral pela morte do poeta português.45
18
não ter demovido seus ideais políticos, pois em 1784 com-
pôs a Ode ao homem selvagem, poema inspirado na obra
de Jean-Jacques Rousseau.
19
As relações de Ottoni com indivíduos influentes na
Bahia também se estreitaram em Lisboa. Na Poesia dedi-
cada á ill.ma e ex.ma sr.a Condessa de Oyenhausen, em
1801, Ottoni ofereceu um soneto para um certo Aonio,
que teve o nome resguardado pelas iniciais M. J. de A.
T., mas que pude apurar tratar-se de Manoel José de
Araújo Tavares, nomeado por D. Maria I juiz do Tribunal
da Relação da Bahia.51 Araújo Tavares tomou gosto pela
Bahia, onde casou-se e passou a residir após 1809.52 Após
a Independência, atuou como desembargador no Tribu-
nal da Relação do Rio de Janeiro.
51
AHU, Bahia, Caixa. 209, Documento 14831. 1798, Maio, 19, Queluz
DECRETO da rainha D. Maria I nomeando Manuel José de Araújo
Tavares, Antônio Saraiva de Sampaio e Manuel de Macedo Pereira
Coutinho para a ocupação de postos de desembargador na relação
da Bahia.
52 AHU, Bahia, Cx. 219, D. 15300 [ca, 1800] LEMBRETE do [Conselho
Ultramarino], sobre à solicitação de licença de casamento de Ma-
nuel José de Araújo Tavares, desembargador da Relação da Bahia.
AHU, Bahia, Cx. 252, D. 17405, [c. 1809] REQUERIMENTO de Ma-
nuel José de Araújo Tavares, natural de Coimbra, ao príncipe re-
gente [D. João] solicitando licença de regresso para a Bahia, onde
serviu como desembargador da Relação por oito anos, fixando mo-
radia.
20
(...) a malvada seita dos Pedreiros Livres, cujo
principal acento he nesta Cidade, plantada, há mais
de vinte annos por Joze Francisco Cardozo (...). Os
Padres Ignacios, Gazeteiro, o M.e de Grammatica, e
outro mestre da mesma lingoa, Dominicano, e o Subs-
tituto das mesmas Cadeiras são iguaes aos antece-
dentes, todos elles profanadores do seo estado, e as
mais fortes columnas da Massonaria; elles são, q.
explicão o cathecismo, e Ritual das funçoes massoni-
cas, cujo livro foi impresso em Londres com o titulo =
Compendio p.a o Oriente da Bahia= na Impressão de
Segredo. (...) A Justiça, Senhor, vendesse por dinheiro,
não se administra como V. Mag.de manda. Ajustão os
Ministros com as Partes quanto hão de dar, e os mais
desmascarados nesse proceder he o (...) Manoel J.e de
A. Tavares.53
21
P.a V. A. R. seja servido conceder-lha por Portaria
R. M.
Joze Eloi Ottoni
[Anexo]
Snr João Felipe da Fonseca
Remeto a Petição incluza em que falei a V. S.a e
juntamente fico pello sugeito q requer. Sou D. V. S.a
Junqr. 22 de Abril de 1807 Attento Serv.or e Obrig.do
Joaquim de Sald.a e Albuquerque54
22
“acolhido com frieza pelo Príncipe Regente”.56 Publicou
na Impressão Régia alguns elogios bajulatórios aos mem-
bros da família real portuguesa, mas dedicou-se, sobre-
tudo, ao estudo dos textos bíblicos, tendo traduzido o
Stabat Mater e o Miserere. 57 Na tradução deste último,
Ottoni incluiu um voto de abnegar das coisas profanas e
seguir a luz:
I. III.
A lyra, que à flor dos annos Heróes, fortuna, grandeza
Consagrei, cantando objectos Que o tempo leva e consome,
Tão futeis, como indiscretos, Graças que morrem sem nome,
Hoje é só prestigio e damnos. Attractivos da belleza,
Encontra só desenganos Tudo é pó, tudo é fraqueza,
Quem busca em trevas amor: E’ tudo miséria e pranto;
Mas eu presinto o calor Ou desdobre a noite o manto,
De nova luz que me inspira; Ou desponte a luz do dia,
Agora dá-me outra lyra ! Desenvolvendo a harmonia,
Unge meus lábios, Senhor! Será o Eterno meu canto.
II. IV.
Manda a luz que aponte a lei, Do que a terra e os céos m’inspirão,
Dá-me o tom que o pelctro afaga, Os pregoeiros são estes,
Os caracteres apaga, Todos os corpos celestes,
Que eu por delirio gravei. Que em curvas orbitas girão,
Também quantos entoei Que inúmeros sóes se virão
Hymnos de amor ou vaidade: No centro da immensidade,
Seguindo a luz da verdade, Na extensão da Eternidade,
Que brilha de quando em quando, Se eu abrangesse a harmonia,
Ao pó da terra escapando, A luz meu écho seria,
Voarei á Divindade. Meu instrumento a Verdade.
23
3. Na Bahia sob o signo de Salomão
24
O governador de Minas teria recomendado este livro aos
iniciados nas sociedades de pedreiros livres?
25
Não é uma tarefa fácil investigar as sociedades iniciáti-
cas na América portuguesa, particularmente a maçonaria,
em decorrência de alguns fatores. Primeiro, obviamente,
por se tratar de uma organização (ou organizações) onde
apenas os iniciados têm acesso aos rituais e à circulação
de informações. Segundo, porque não existe significativa
documentação acerca das primeiras lojas maçônicas no
Brasil, na transição entre o século XVIII e o XIX. Even-
tualmente, os pedreiros-livres foram arrolados em devas-
sas de conjurações e inconfidências em Portugal, Brasil
e Ilhas Atlânticas. A maçonaria na Capitania da Bahia
aparece pela primeira vez, deste modo, no episódio da
Conspiração dos Alfaiates (1798) e em decorrência de
supostamente ter sido organizada pela Loja Cavaleiros
da Luz, da qual praticamente nada pode ser afirmado
com fundamentos documentais. O fato é que maçonaria
e conspiração política passaram a ser sinônimos naquele
período.
26
Ver Huell, na sua estadia forçada de fevereiro de 1808 a
julho de 1810, quando toda a equipagem do seu navio De
Vlieg ficou retido em prisão domiciliar por causa do vir-
tual estado de guerra entre Portugal e a Holanda napo-
leônica.63 O segundo relato é de Sir James Prior que, em
novembro de 1813, registrou a presença da maçonaria em
Salvador. Prior diz que “a greater curiosity, considering
the place, is a full-lenght picture of his Royal Highness
the Prince Regent of England, in masonic regalia, occa-
sionally seen in a recess of the body of the church”.64 Essa
pintura do príncipe regente da Inglaterra com insígnias
maçônicas, ao que parece, estava exposta na Basílica de
Nossa Senhora de Conceição da Praia, pois Prior estava
descrevendo o templo mais rico na Cidade Baixa (lower
town) “built with a species of blue stone, resembling mar-
ble, brought hither for this express purpose from Lisbon”.
63
HUELL, Maurits Rudolf Ver. Herinneringen van eene reis naar de
Oost-Indien. Haarlem: Vincent Loosjes, 1836.
64 PRIOR, James. Voyage Along the Eastern Coast of Africa: To
Mosambique, Johanna, and Quiloa and Srt. Helena; to Rio de Janei-
ro, Bahia, and Pernambuco in Brazil. In the Nisus firgate. London:
Sir Richard Phillips and Co., p. 103.
65 Ibdem, pp. 104-105.
27
A existência de três Lojas em Salvador possibilitou a
criação de uma Grande Potência maçônica e da sua jun-
ção surgiu o Grande Oriente Brasileiro (GOBra), sendo
seu Grão-Mestre Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e
Silva, irmão de José Bonifácio. O GOBra teve existência
efêmera, sendo desativado em conseqüência das turbu-
lências políticas advindas da Revolução de Pernambuco
em 1817.66 Naquele mesmo ano, D. João VI recebeu uma
carta de certo frade chamado frei Amador da Santa Cruz.
Nela, o “fiel vassalo” afirmou que a cidade de Salvador
estava infestada por seis mil membros, de toda “hierar-
quia, classe e qualidade”, da “malvada seita dos Pedrei-
ros-Livres”. Nas palavras do frade:
28
Recordemos, ainda, a afirmação do frei Amador
de Sancta Cruz de que o Governador da Bahia estava
rodeado por pedreiros-livres. Seria uma referência à
presença de Ottoni na residência do Conde dos Arcos?
Recordemos, também, que Theophilo Ottoni afirmou
que seu tio viveu na casa do Conde dos Arcos.
29
Lysia, berço de herôes, oh Lysia, alerta!
Cumpre que os ferros o Brazil arroje,
Seguindo o impulso que a razão desperta.
A expressão de terror desmaia e foge,
Graças â invicta mão que nos liberta;
Escravos hontem, sois Romanos hoje!70
30
Oficial da Secretaria da Academia da Marinha no Rio
de Janeiro. Para conseguir o cargo, porém, Ottoni teve
que se justificar ao Imperador pelos versos proclama-
dos contra monarquia portuguesa em fevereiro de 1821.
Isto posto, Ottoni tornou-se próximo ao Imperador, para
quem a Parafraze dos Proverbios de Salomão havia sido
dedicado.
4. O Livro de Salomão
31
maçonaria francesa, acerca do simbolismo ligado ao Rei
Salomão observou que
32
dez vir de Tiro a Hiram, homem cheio de sabedoria
e inteligência, para confiar-lhe a execução dos tra-
balhos do Templo. È por causa desta velha lenda dos
“construtores” que o nome do monarca foi misturado
aos “mistérios” do “Companherismo” (VEP) como nos
da maçonaria. Existem muitos graus na Maçonaria,
chamados bíblicos salomõnicos, em que pe destacada
a figura de Salomão. Estes graus pertencem a vários
Ritos, e principalmente ao R.E.A.A., graus inefáveis,
e ao Real Arco, e são rodeados de numerosas lendas
relacionadas com a construção do Templo e com os
atos do famoso rei-profeta, servindo de base, princi-
palmente, ao grau de Mestre Maçom. (...) é certo que
não é conhecida na Maçonaria qualquer referência
aos Templo ou à Lenda de Hiram, antes de 1723. Os
Maçons fizeram do Templo de Salomão um arquétipo
ideal e iniciático e não um modelo material para as
suas Lojas. De fato, do ponto de vista maçônico,
é um Templo alegórico, imagem e representação
do Universo, e das maravilhas da criação, que foi
adotado para o ensino e explicação das doutrinas da
Maçonaria.76
33
O símbolo de Salomão foi adotado para o ensino e
explicação das doutrinas maçônicas. Sob a capa de poe-
mas inspirados no texto bíblico, descerto para escapar às
censuras sofridas pelas sociedades iniciáticas da época,
a Parafraze dos Proverbios de Salomão é um código de
moral para os iniciados na maçonaria. Antonio Dias, por-
tuguês e autor da Bibliotheca Maçônica, escreveu uma
peça de teatro publicada em 1851, Salomão, ou um dia
em Jerusalem, drama allegorico em cinco actos, onde afir-
mou que o texto era composto por “Dois dramas diversos,
um escrito para todos, e outro alegórico e particular para
os iniciados [na maçonaria]”.78 Ao contrário de Antonio
Dias, em 1815, Ottoni não poderia tornar explícito o signi-
ficado da sua obra, sem sofrer alguma represália.
34
Quanto ao livro de Ottoni servir como um código
moral foi o próprio autor quem admitiu em duas ocasiões.
Primeiro, no prefácio:
35
impressas em toda Europa, como o Caramuru de frei
Santa Rita Durão, visto que era também um símbolo dos
poetas árcades, para além de uma representação maçô-
nica. Aliás, o mesmo símbolo pode ser observado, nova-
mente, em outra obra de Ottoni publicada em 1851, desta
vez entremeada pelas letras P e H, que podem significar
Prudência e Harmonia.
As palavras da prudência,
A erudição da verdade,
Com que a doutrina produz;
Justiça, Juízo, equidade.
36
O sábio ouvindo he mais sábio;
Na do governo lição
O inteligente consegue
O dom da penetração.
As parabolas discute,
D’enigmas doutos, e sérios
O nó subtil desatando,
Desata occultos mysterios.79
79
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo
16.809, fl. 101v: “ficando o hombro e peito nu, atandome huma cor-
da ao pescoço e vendado-me os olhos”. Parte do rito de iniciação,
no qual o candidato é levado com uma corda amarrada ao pescoço,
sendo retirada após ter sido aceito.
80 Ibidem, fl. 101v “e dise o Orador, que me partesipase o me proseso, e
os crimes de que hera arguido, e ao pr.o sinal do Prezidente, ficando
tudo em silençio, ouvi da boca do Orador ler meos crimes gradualm.
te, ate couzas bem insegnificantes do Tempo da m.a meninice, prati-
cadas em huma Região tão Remota, entre a qual há tantos mares, e
terras, e sendo eu preguntado por aqueles factos, não sem vergonha
fui obrigado a confesalos, visto que erão verdadeiros,e as minhas la-
grimas involuntarias o terião publicado, ainda coando eu tivese a
maldade de os querer ocultar, e respondendo eu com a m.a confição
que apezar daquelas razoens não hera Justiça q eu fose punido tão
severam.te [Pois já tinha ouvido huma voz destacada que morrese]
(...)Pedio o prezidente o ultimo consentimento da aprovação ou re-
provação da asemblea, a qual unanimem.te expresou com este ter-
mo “MORRA”.
37
Assim tropeça a illusão,
Tal he o impulso violento,
Que nos caminhos da fraude
Sorve a paixão do avarento.81
Convertei-vos á doutrina,
Que vos dou por correcção:
O meu espirito accenda
Em vós a luz da razão.82
81 Ibidem, fl. 101 “estive com bastante susto detido por mais de duas
horas solitario; ate que sendo ja, innopinadamente fui assaltado por
hum Homem com huma espada nua na mão, que pondo-ma aos pei-
tos com impeto me forçou a que me despojase de todos os metaes,
que trazia comigo [a saber dinheiro e trastes]”
82 GALVÃO, Fernando Abbott (ed.). O Diário de Jonathas Abbott. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 2007, pp.421-422. Ver a luz significa in-
gressar na maçonaria. Foi assim, por exemplo, que o Dr. Johnatas
Abbot registrou, na folha de guarda do seu diário manuscrito, o dia
em que ingressou na maçonaria: “Vi a luz”.
38
O Capítulo II continua a apresentar elementos da ini-
ciação maçônica:
Se a invocares ancioso,
Desvelado e submetido,
Buscando-a como dinheiro,
Ou qual thesouro escondido;
Então comprehenderás
A sciencia do Senhor,
Delle vem sabedoria,
Prudencia, e santo temor.
Desenvolvendo os principios
De virtude, e santidade,
Poderás desenvolver
Justiça, juizo, equidade.83
83
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo
16.809, fl. 102, Referência aos valores difundidos na maçonaria. O
orador da cerimônia disse ao Vieira Couto que ficasse descansado
“porque estava perante Hum Congreso que amava a Razão, a Justi-
ça, e a Santidade”.
39
Exalta a sabedoria,
Prefere a sciencia a tudo:
Terás por guia o conselho,
A prudencia por escudo.
Evitarás o perigo,
Onde o perverso se illude,
A quem passea nas trevas,
Esconde o Norte á virtude.84
O malfeitor se compraz,
Exulta, e goza o perverso:
He na infamia de seus passos
Que tem a maldade o berço.
Evitarás finalmente
Estulta mulher alheia,
Que ao som de mole artificio
Com palavras lisongea.
84 Ibidem, fl. 102v. “não atacando nunca a seus Irmaos (...) suas mulhe-
res, e filhos, (...) fugir ao crime e amar a Virtude.”
85 Ibidem, fl. 103. “o Maçon devia estimar sua Espoza, não lhe dando
nunca desgostos, nem tentando o divorçio se não em ultima nesesi-
dade, sendo o unico motivo a ofensa da onra, e da desençia, e q tudo
mais deveria ser tolerado”.
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O amante, que entra, confuso
Perde as veredas da vida :
Ao sabio assim como ao justo,
Nunca a esperança he perdida.
Misericordia, e verdade
Te illustrem sempre a razão :
Traze-as escritas no rosto,
Gravadas no coração.
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Co’ a substancia do que tens
Honra o teu Deos, e Senhor,
Da-lhe as premidas dos fructos,
Que provém do teu suor.
Bemaventurado aquelle
Que co’ a luz da sapiencia,
Achando o bem, que buscava,
S’ enriqueceo de prudência.
86 Ibidem, fl. 103. “Seguiose huma seia, ou refresco no cual houve toda
a frugalidade, sendo prohibido o demaziado comer(...) e logo ao
principio fazendo sinal o Prezidente, se puzerão todos a pe, e pe-
gando em hum copo de vinho detriminou (sic) que todos fizesem o
mesmo (...).”
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Não ha riqueza no mundo,
Qu’ iguale a sabedoria,
Comparada co’ desejo,
Inda tem maior valia.
43
Eis a vida da tua alma,
Do teu pescoço o ornamento:
Os teus pés irão seguindo
A marcha do entendimento.
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Não provoques a injustiça
D’ huma acção, que te desmente;
Autor d’ iniquo processo
Não chames reo o innocente.
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como resultado da vontade divina.88 Nele está registrado
o verso Per me reges regnant que, aparentemente, evoca
uma contradição com o restante do texto. Aliás, esse é o
único verso em todo o livro que possui uma nota explica-
tiva em anexo, no qual estaria explícita a ideia de que o
poder dos reis era uma concessão divina, o que não parece
estar de acordo com supostos princípios dos pedreiros-
-livres que combatiam o absolutismo das monarquias
europeias. O sobrinho de José Elói, Teóphilo Ottoni, saiu
em defesa do autor em relação do “tão fallado texto” e
explica seu significado implícito:
88 Theophilo Ottoni afirma que o texto que contem a estrofe Per me re-
ges regnant está no “capítulo terceiro”, quando, na verdade, em to-
dos os exemplares que consultei, está no capítulo VIII, assim como
no texto bíblico. OTTONI, Theophilo, op. cit., p. 18. Equívoco do
senador mineiro ou um exemplar com diferente impressão?
89 OTTONI, Theophilo, op. cit., p. 17. Teophilo Ottoni não indica quem
falava tanto deste texto.
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15.
Per me reges regnant, He por mim, que os Reis impérão90
et legum conditores justa decernunt. Nos corações, por amor:
As minhas leis he que formão
O sabio legislador
16.
Per me principes imperant, Por mim os Príncipes reinão,
Et potentes, decernunt justitiam. E a confusão dos tyrannos
He saber, que os Poderosos
Fazem justiça aos humanos.
18.
Mecum sunt divitiae, et gloria, Os thesouros da abundancia
opes superbae, et justitia. Pelo meu braço s’entornão
Riquezas, gloria, justiça,
Magnificência me adornão.
20 e 21.
In viis justitiae ambulo, in medio Nos caminhos da equidade,
semitarum judicii: Nas veredas da prudencia
Ut ditem diligentes me, Com quem me ama eu reparto,
et thesauros corum repleam Além de amor, opulencia.
27.
Quando praparabat ccelos, aderam: Quando o Autor do Firmamento
quando certa lege et gyro Aos abysmos prescrevia
vallabat abyssos: Certas leis, a tudo estava
Presente a Sabedoria.
28 e 29.
Quando aethera firmabat sursum, Ou no equilíbrio das fontes.
et librabat fontes aquarum: Sustendo as nuvens no ar,
Quando circumdabat mari terminum Regrando o peso da terra
suum, et legem ponebat aquis, Pondo limites ao mar:
ne transirent fines suos:
quando appendebat fundamenta terrae:
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30.
Cum eo eram cuncta componens, Eu fui o Grande Architecto
et delectabar per singulos dies, De que o autor lançou mão:
ludens coram eo omni tempore. Diante delle eu fui sensível
Ao prazer da creação.
32.
Nunc ergo, filii, audite me: Portanto agora que eu fallo
Beati qui custodiunt vias meas. Escutai, ó filhos meus,
Vós, ó bem aventurados
Se abraçais a lei de Deos.91
48
Jefferson e os Adams. É uma regra de deveres, e não
uma declaração de direitos. 93
Soneto.
93 Idem.
94 OTTONI, Eloy, op. cit., pp. 33 e 91
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Perfídia, e susto desdobrava o manto, / Qu’ involve, e aquece a Purpura,
e cajado. / O Tejo sobre a urna recostado, / Com a mão no rosto, vio da
Iberia o pranto.
Da Virtude as primicias corrompendo, / Rapido impulso de contagio
forte / Em Lísia faz, que soe o grito horrendo.
O furor da explosão, por salvar-se, a voz erguedo, / Proclama, e grita –
Independência, ou Morte. – 95
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José Eloi Ottoni faleceu com quase 87 anos, a 3 de
Outubro de 1851.100 Após sua morte, o cônego Joaquim
Caetano Fernandes Pinheiro cuidou da publicação pós-
tuma de Job, que dedicou ao bispo do Maranhão, D.
Manuel Joaquim da Silveira, ambos maçons.
100 José
Eloy Ottoni foi sepultado no dia 3 de Outubro, em jazigo, car-
neiro número 2963, no Cemitério da Ordem Terceira dos Mínimos de
São Francisco de Paula (Catumbi), no Rio de Janeiro. Seus restos
mortais, junto com os de Jorge Benedito Ottoni e Rosália Benedito
Ottoni, foram trasladados em 1998 para a igreja de Nossa Senhora
do Carmo da cidade de Serro, em Minas Gerais.
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