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Conhecimento,

Ciência e Fé

Entre o Deus dos filósofos


e o Deus de Jesus Cristo:
considerações sobre linguagem
científica e linguagem religiosa
Between the God of the philosophers
and the God of Jesus Christ: thoughts on
scientific language and religious language
Moises Abdon Coppe*

RESUMO
Este texto fala sobre a conflituosa relação entre a estrutura científica
e a linguagem religiosa. Aborda o procedimento hermenêutico feno-
menológico, segundo Paul Ricoeur, evidenciando-o como a melhor
possibilidade de resolução do impasse. Efetua, de igual modo a
re-descrição da linguagem religiosa por intermédio da experiência-
-limite ou experiência comum que, por sua vez, está inserida no
confronto entre razão e fé, prova e crença, ou ainda: o confronto
entre o Deus dos filósofos com o Deus de Jesus Cristo.
Palavras-chave: ciência; religião; hermenêutica; fé; razão.

Abstract
This text talks about the conflicting relationship between scientific
and religious language structure. Addresses the phenomenological
hermeneutical procedure, according to Paul Ricoeur, showing it as the
best chance of resolving the impasse. Performs likewise re-description
of religious language through the limit-experience or common expe-
rience, which in turn, is embedded in the clash between reason and
faith, race and creed, or: the confrontation between the God of the
philosophers with the God of Jesus Christ.
Keywords: sciencie; religion; hermeneutics; faith; reason.

* Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).


Professor de Teologia e Cultura da Faculdade Metodista Granbery. macoppe@gmail.com
Resumen
En este texto se habla de la relación conflictiva entre la estructura del
lenguaje científico y religioso. Aborda el procedimiento hermenéutica
fenomenológica, según Paul Ricoeur, mostrándole como la mejor
oportunidad de resolver el impasse. Realiza asimismo re-descripción
del lenguaje religioso a través de la experiencia-límite o experiencia
común, que a su vez, está incrustado en el choque entre la razón y
la fe, raza y credo, o: el enfrentamiento entre el Dios de los filósofos
con el Dios de Jesucristo.
Palabras clave: ciencia; religión; hermenéutica; fe; razón.

Introdução

Rubem Alves (1999) narra a história de uma comunidade que


vivia às margens de um grande rio. Essa comunidade vislumbrava
os seres que habitavam nas profundezas do rio e buscava conhecê-
-los, mas em vão, pois todas as suas ferramentas eram impróprias.
Até que um dos moradores inventou um instrumento vazado, feito
de barbantes – uma rede. Por meio desse instrumento ele conseguiu
pegar um peixe dourado. Seus amigos se dividiram: alguns ficaram
com inveja, outros queriam matá-lo e outros, enfim, gostaram tanto
da ideia que resolveram confeccionar redes para si próprios. A rede,
então, se tornou um instrumento tão preciso e precioso, que os mo-
radores daquela comunidade inventaram uma nova linguagem: o
ictiolalês. E assim estabeleceram uma hegemonia do real. Com base
nessa parábola, Alves comenta:

Como bem disse Wittgenstein alguns séculos depois, “os limites da minha
linguagem são os limites do meu mundo”. Meu mundo é aquilo sobre o que
posso falar. A linguagem estabelece a ontologia. Os membros da confraria,
por força de seus hábitos de linguagem, passaram a pensar que só era real
aquilo sobre que eles sabiam falar, isto é, aquilo que era pescado com redes
e falado em ictiolalês. Qualquer coisa que não fosse peixe, que não fosse
apanhado com suas redes, que não pudesse ser falado em ictiolalês, eles
recusavam e diziam: “Não é real” (ALVES, 1999, p. 84-85).

Alves (1999) critica os que colocam o todo da existência somente nos


parâmetros da ciência. Expressa que a ciência não é um órgão novo de
conhecimento. Em outras palavras, a ciência é a hipertrofia que todos
possuem. Isto pode ser bom em um aspecto, mas também tem o risco
de ser muito perigoso. Quanto maior a visão em profundidade, tanto
menor a visão em extensão. Geralmente, a tendência da especialização
é conhecer cada vez mais de cada vez menos.
Diante do exposto, teria então a ciência a última palavra ou a pers-
pectiva do real? Somente com base no marco-categorial científico, é
possível conceber o sentido de si?

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O presente artigo visa contribuir com essa sempre renovada dis-
cussão que envolve a linguagem científica e a linguagem religiosa, a
partir dos referenciais hermenêuticos filosóficos de Paul Ricoeur. Em
nossa concepção, os desdobramentos dessa abordagem no arcabouço
da filosofia desse autor francês, ampliam os horizontes interpretativos
da linguagem religiosa, contrapondo-a à estrutura científica carac-
terizada pelo cogito cartesiano. Assim, diante do movimento de se
conhecer cada vez mais de cada vez menos, pelo menos trará novas
percepções do fenômeno.
As ciências têm
É possível conciliar ciência e religião? sido questionadas,
e em muitos níveis,
conceitos concretos
O mundo contemporâneo é marcado por uma atmosfera de incer-
e paradigmas bem
tezas. Já não é possível a afirmação de verdades absolutas, tampouco formatados estão
as atitudes insensíveis ante o outro. As ciências têm sido questionadas, sendo superados
e em muitos níveis, conceitos concretos e paradigmas bem formatados
estão sendo superados.
Essa constatação nos põe novamente na discussão da primazia das
ciências sobre o campo da linguagem religiosa, bem como a possibilidade
de conciliação entre os dois campos. Mas será isso possível realmente?
O biólogo Dawkins (2006), em sua obra, Deus, um delírio, procurou
evidenciar como Deus, efetivamente, é um delírio prejudicial para o
ser humano. Sua obra evidencia dois pontos: a eliminação da ideia de
Deus e a apreensão da ciência como caminho para o entendimento de
universo. Em suas palavras:

Se a eliminação de Deus vai deixar uma lacuna, cada um vai preenchê-la à


sua maneira. Minha maneira inclui uma boa dose de ciência, a empreitada
honesta e sistemática para descobrir a verdade sobre o mundo real. Vejo o
esforço humano para entender o universo como um empreendimento de
modelismo. Cada um de nós constrói, dentro de nossa cabeça, um modelo
de mundo em que vivemos. O modelo mínimo do mundo é o modelo de que
nossos ancestrais precisavam para sobreviver nele. O software da simulação
foi construído e aperfeiçoado pela seleção natural, e funciona melhor no
mundo que nossos ancestrais da savana africana conheciam: um mundo
tridimensional de objetos materiais de dimensões médias, movendo-se em
velocidades médias proporcionalmente entre si. Num bônus inesperado,
nosso cérebro revelou-se poderoso o suficiente para acomodar um modelo
de mundo muito mais rico que o mundo medíocre que nossos ancestrais
precisavam para sobreviver. A arte e a ciência são manifestações desse
bônus (DAWKINS, 2006, p. 367).

O que Dawkins aponta tem a ver com as mais sugestivas críticas


levantadas pela ciência em relação à linguagem religiosa em suas múl-
tiplas configurações nas distintas culturas.

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Na mesma linha de Dawkins, o filósofo Luc Ferry (2007) demons-
tra que, por intermédio da filosofia, do conhecimento de mundo, do
entendimento de nós mesmos, da compreensão dos outros e do de-
senvolvimento da inteligência, pode-se, com lucidez, e não por uma
fé cega, vencer o medo da finitude e abraçar um projeto de salvação.
“Em outras palavras, se as religiões se definem ‘doutrinas da salvação’
por um Outro, pela graça de Deus, as grandes filosofias poderiam ser
definidas como doutrina da salvação por si mesmo, sem a ajuda de
Deus” (FERRY, 2007, p. 23-24).
Na contramão dessas perspectivas sinalizadas, encontramo-nos com
outra grande gama de pensadores que refletem sobre a linguagem reli-
giosa de forma contundente. É o caso, por exemplo, do filósofo e teólogo
Keith Ward (2009). Em sua obra, Deus, um guia para os perplexos, este
autor, fugindo de um discurso piedoso ou mesmo “delirante”, empre-
ende sólida argumentação mediante os escritos de filósofos e teólogos
ao longo da história humana, tendo como base a seguinte pergunta: o
que os seres humanos querem significar quando se referem a Deus?
Ao que responde:

Eu responderia que é acreditar que existe uma base pessoal do ser, que o
universo é, sob certo sentido, baseado em uma realidade pessoal. O uni-
verso não é produto de uma lei, acidente ou desejo cego ou inconsciente.
Ele é produto de uma realidade que podemos acertadamente chamar de
consciente, que tem um propósito, é sábia e boa. Além disso, é possível
estabelecer uma forma de relação com essa realidade pessoal transcendente
que conduz na direção da superação do egoísmo e de uma vida de com-
paixão, sabedoria e felicidade. Faz sentido nos aproximarmos de todas as
nossas experiências como encontros com essa realidade pessoal, inseridos
e mediados por uma rede extremamente complexa de leis físicas e atos
livres e finitos que formam o mundo onde vivemos (WARD, 2009, p. 315).

A perspectiva do que nos aponta Ward é conciliatória. Ela não


anula a tarefa do pesquisador e a busca por respostas mediante os
caminhos abertos pela ciência, mas ao mesmo tempo, não desconsi-
dera o fundamento ontológico da crença no ser pessoal que recebeu
a alcunha de Deus.
Na mesma linha reflexiva e procurando dar uma amplitude à lin-
guagem religiosa, Delumeau (1989) afirma que a pesquisa religiosa
não precisa prescindir da sobriedade geral exigida pela ciência. Para
ele, ciência e fé não se contradizem e não se conflitam, pois não se si-
tuam em um mesmo plano. “Uma tela de Rembrandt não será nunca
reduzida a uma adição de pinceladas e ingredientes químicos. O gênio
de Rembrandt é do domínio da liberdade e a liberdade tem a ver com
Deus” (DELUMEAU, 1989, p. 9).

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Mais do que oferecer uma resposta final, entendemos que a distinção
dos campos favorece em muito nossa abordagem sobre o fenômeno re-
ligioso. Essa distinção é importante, pois não se pode colocar em pé de
igualdade o fenômeno religioso e a análise científica. Por exemplo, quando
da análise dos textos da Bíblia ou do Corão, a inferência de ferramentas
cartesianas e lógicas se torna secundária, pois o texto primordial é um
relato mítico que recorre ao gênero lítero-narrativo para compreender a
formação do mundo segundo a leitura dos escritores bíblicos. O olhar Mais do que ofe-
puramente científico sobre um texto religioso fere o esquema poesia-cos- recer uma resposta
final, entendemos
mogonia e secciona as formulações no campo da fé, desmancha a ficção, que a distinção dos
fragilizando demasiadamente a interpretação de sentido por parte do ser campos favorece em
humano, bem como o seu conhecimento de mundo na experiência-limite. muito nossa aborda-
gem sobre o fenô-
meno religioso
A linguagem religiosa sob o olhar da hermenêutica
fenomenológica

A estrutura científica e a linguagem religiosa são realidades presen-


tes em nosso mundo contemporâneo. A análise dessas esferas pertence
aos campos das multidisciplinaridades.
Se as ciências possuem suas ramificações cartesianas e fundamentos
que buscam aferir o real, os campos do religioso precisam de uma abor-
dagem que não esteja fixada num único arcabouço, embora a fragilidade
da linguagem religiosa não possa prescindir de uma análise acurada,
por se tratar de fenômeno inerente ao ser humano. Entretanto, as duras
ferramentas das ciências podem fracioná-la, embotando a sua riqueza
e expressividade como manifestação do sagrado. Sem desconsiderar o
valor da ciência, Mendonça (1999), por exemplo, sempre sinalizou com
simpatia a fenomenologia – disciplina filosófica – como boa ferramenta
para a análise do fenômeno religioso. Em suas palavras: “a fenomeno-
logia da religião passa a ser [...] o núcleo em torno do qual poder-se-ia
erigir uma ciência da religião” (MENDONÇA, 1999, p. 77).
No que concerne ao campo da fenomenologia, atentamos aos funda-
mentos evidenciados pela filosofia de Paul Ricoeur. Em nossa concepção,
os percursos apontados por esse autor nos ajudam na consideração do
impasse gerado entre as estruturas dos sistemas científicos e a lingua-
gem religiosa.

Fenomenologia da linguagem religiosa em Paul Ricoeur

Para Ricoeur, a fenomenologia – que possui em sua etimologia a


ideia de estudo dos fenômenos ou das coisas como elas aparecem –
tem na hermenêutica a sua pressuposição básica. Isso ocorre porque,
para ele, é somente no movimento da interpretação que percebemos
o ser interpretado.

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Segundo Japiassu (2008), a hermenêutica de Ricoeur tem a ver com
a teoria da interpretação do ser. “A originalidade de Ricoeur está em
não fazer filosofia a partir da filosofia. Não reflete a partir de ideias. Seu
pensamento não se abriga nem se repousa no pensamento dos outros.
É um pensamento que recria, que se serve do pensamento dos outros
como instrumento” (JAPIASSU, 2008, p. 7). De acordo com Japiassu
(2008), nenhuma filosofia existe sem pressuposição, e o que caracteriza
o pensamento de Ricoeur é o rompimento com o idealismo e a busca
pelo esclarecimento da existência por intermédio de um movimento
dialético entre interpretação e compreensão dos vários sentidos que
a linguagem possui. “Por isso, o problema próprio a Ricoeur é o da
hermenêutica, vale dizer, o da extração e da interpretação de sentido”
(JAPIASSU, 2008, p. 7). De uma forma mais efetiva, evidenciamos o que
o próprio Ricoeur (2008) diz sobre a tarefa hermenêutica: “A herme-
nêutica é a teoria das operações da compreensão em sua relação com a
interpretação dos textos. A ideia diretriz será, assim, a da efetuação do
discurso como texto” (RICOEUR, 2008, p. 23), sendo que o texto para
A religião e seus
múltiplos desdobra-
este autor é muito mais do que um caso particular de comunicação
mentos é linguagem, inter-humana. “É o paradigma do distanciamento na comunicação.
expressa através de Por esta razão, revela um caráter fundamental da própria historicidade
textos e narrativas,
da experiência humana, a saber, que ela é uma comunicação na e pela
bem como por
intermédio de mitos distância” (RICOEUR, 2008, p. 23).
e símbolos Essa perspectiva de texto se encontra com a perspectiva da lingua-
gem religiosa. A religião e seus múltiplos desdobramentos é linguagem,
expressa através de textos e narrativas, bem como por intermédio de
mitos e símbolos. Embora Ricoeur tenha sempre se identificado como
filósofo e não como teólogo, existe uma sensível articulação entre filo-
sofia e religião, entre o Deus dos filósofos e o Deus de Jesus Cristo. A
religião para esse autor só existe enquanto experiência da vida localiza-
da nas práticas cotidianas, sempre sendo percebida de forma específica
no tempo. Em outras palavras, ela é uma maneira de re-descrever a
realidade e o ser, enquanto intencionalidade do sujeito mediada por
símbolos, implicando uma ontologia, que em Ricoeur, é sempre a aber-
tura de si no mundo.
De fato, em Ricoeur (1996), a essência da religião é a linguagem,
pois a linguagem diz o ser. Dessa forma, qualquer produção cultural,
principalmente a religião, fala do ser e das questões mais essenciais
da vida. Ricoeur (1978), por exemplo, ao considerar o ateísmo, que
é sempre um posicionamento frente ao mundo, o vê dotado de uma
significação religiosa. Segundo ele, o ateísmo não esgota a sua signi-
ficação na negação ou destruição da religião, mas, de alguma forma,
libera o horizonte para outras possibilidades, como numa espécie de fé
pós-religiosa ou uma fé para uma era pós-religiosa. Propositalmente,
no título do seu artigo, Ricoeur (1978) coloca o ateísmo entre a religião

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e a fé, e propõe que essa posição intermediária represente, ao mesmo
tempo, uma ruptura e uma aproximação entre a tríade: religião, ateísmo,
fé. Nesse mesmo artigo, Ricoeur dedica esforços para abrir um novo
caminho, demasiadamente difícil, pois o coloca na posição inevitável,
inerente ao filósofo, de enfrentar a dialética entre religião, ateísmo e fé.
Na impossibilidade de cobrir todo o campo que compreende os ques-
tionamentos dialéticos que resolve empreitar, Ricoeur (1978) sugere:

A religião tem uma significação desconhecida do crente, em razão de uma


dissimulação específica que subtrai sua origem real à investigação da cons-
ciência. É por isso que ela requer uma técnica de interpretação adaptada a
seu modo de dissimulação; vale dizer, uma interpretação da ilusão como
distinta do simples erro, no sentido epistemológico do termo, ou da men-
tira, no sentido moral corrente. A própria ilusão é um fenômeno cultural,
pressupondo que as significações públicas de nossa consciência mascarem A abordagem à lin-
as significações reais, as quais somente o olhar desconfiado da crítica, o guagem religiosa é
possível por intermé-
olhar da suspeita, pode aceder (RICOEUR, 1976, p. 369 e 370).
dio da desconfiança,
que está diretamente
A abordagem à linguagem religiosa é possível por intermédio da ligada à ideia de
interpretação
desconfiança, que está diretamente ligada à ideia de interpretação. Essa
perspectiva aponta para o fato de que o sentido religioso, em Ricoeur,
pode ser percebido pela investigação consciente do fenômeno religioso
no procedimento hermenêutico filosófico.

Experiências-limites na linguagem religiosa

A linguagem religiosa é uma metáfora-limite. Isso quer dizer que


toda e qualquer abordagem dialética dessa linguagem se abre ao poder
de re-descrição.
Para Ricoeur (2006), esse nível de linguagem tem na metáfora-
-limite sua possibilidade de designação, embora a forma de discurso
empregado nesta ou naquela narrativa venha acompanhada de um
abuso que arruína a própria forma de discurso empregado. Por
exemplo, as narrativas parabólicas que consideram o símbolo Reino
de Deus – um referente comum para os diferentes tipos de discurso
– é um referente-limite que preside sobre as expressões-limites. Ela
é ao mesmo tempo um referencial interpretativo, mas também um
enunciado frágil. Ora, não se trata de dar à linguagem religiosa um
tratamento sistemático com vias a perguntar se os enunciados são
verificáveis ou falsificáveis. Trata-se, por outro lado, de estudar seu
uso e sua função. “O funcionamento da linguagem religiosa como
expressão-limite, parece-me, orienta nossa pesquisa para uma carac-
terística correspondente da experiência humana que podemos chamar
experiência-limite” (RICOEUR, 2006, p. 204).

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Experiência-limite em Ricoeur (2006) significa falar da própria ex-
periência. Ela se baseia na linguagem religiosa que redescreve a expe-
riência religiosa humana em sua totalidade comum. Nessa perspectiva:

A linguagem religiosa projeta sua visão radical da existência e na experi-


ência ordinária torna explícita sua dimensão potencialmente religiosa, em
tensão e conflito, poderia acrescentar, como todos os traços que levam essa
experiência ordinária para um vago humanismo, ou mesmo um ateísmo
agressivo (RICOEUR, 2006, p. 208).

no encontro da O instrumento hermenêutico que orienta os paradoxos que envolvem


linguagem religiosa
com a experiência a linguagem religiosa e as experiências-limites se enquadram na sequ-
limite, as metáforas ência: orientar – desorientar – reorientar, sem refazer nunca um todo
continuam vivas e ou sistema da própria experiência em questão. Em outras palavras, no
os projetos de fazer
da existência uma encontro da linguagem religiosa com a experiência limite, as metáforas
totalidade contínua continuam vivas e os projetos de fazer da existência uma totalidade
são abandonados
contínua são abandonados radicalmente.
radicalmente

Ciência e Linguagem Religiosa nas experiências-limites

No arcabouço das linhas defendidas a partir de Ricoeur, deparamo-


-nos com o cerne da força e fragilidade da linguagem religiosa e da
experiência-limite. Essa abordagem encontra ecos em outras obras que
consideram a relação entre razão e fé. Por exemplo, Collins (2007) em
seu livro, A linguagem de Deus, faz referência a um poema de Sheldon
Vanauken que aqui transcrevemos:

Entre o provável e o provado existem hiatos, uma fenda. Com medo de


saltar, permanecemos ridículos. Então vemos atrás de nós o chão afundar-
-se e, pior, nosso ponto de vista esfacelar-se. O desespero desponta nossa
a ciência e a única esperança: saltar para o Verbo que abre o universo fechado (apud
linguagem religiosa COLLINS, 2007, p. 39).
se ocupam das
experiências-limites
da existência huma- De fato, a ciência e a linguagem religiosa se ocupam das experiên-
na, cada uma cias-limites da existência humana, cada uma apoiada em seus marcos-
apoiada em seus
-categoriais. O problema dos campos em evidência reside sempre na
marcos-categoriais
pretensão pela verdade e pela busca das respostas ante o sentido de ser
no mundo. No campo do desespero e da certeza da finitude, é preciso
saltar para a fé e vislumbrar a abertura do universo fechado.
Essa oposição do Deus dos filósofos com o Deus de Jesus Cristo é
desnecessária. A relação dialógica é possível dentro da dialética sempre
aberta da tríade ricoeuriana apresentada. Nesse contexto, a linguagem
religiosa que revela os traços do transcendente à experiência limite do

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ser humano sempre sugere seus horizontes no processo de re-descrição,
mesmo quando em amplo e aberto diálogo com a ciência.
A ciência, apoiada em bases cartesianas, elabora sua linguagem
com fundamento no que pode ser apreendido pelos sentidos, enquanto
que a linguagem religiosa, na expressão contígua de seus símbolos e
metáforas, pretende referenciar a experiência-limite religiosa. De fato, a
experiência de finitude ocasiona no ser humano a angústia e pretensão
por um chão mais seguro e menos gelatinoso.

Considerações finais

Desde a elaboração da teoria sobre o desencantamento do mundo


mediante a atuação efetiva da ciência e suas promessas prometeicas,
desembocando num processo posterior conhecido como secularização, A ciência, apoiada
em bases cartesia-
achava-se que a religião teria seus dias contados e perderia a sua lin-
nas, elabora sua
guagem e desenvolvimento entre os seres humanos. Entretanto, nos linguagem com
diversos domínios da humanidade, a força e a presença da linguagem fundamento no que
religiosa não cederam espaço, e ela, vigorosa, desfraldou as suas ban- pode ser apreendi-
do pelos sentidos,
deiras onde se fez necessária uma nova interpretação de mundo e da enquanto que a
busca de sentido. linguagem religiosa,
As temáticas que envolvem o Deus dos filósofos – razão/ciência e o na expressão con-
tígua de seus sím-
Deus de Jesus Cristo – fé/linguagem religiosa, sempre estarão na pau- bolos e metáforas,
ta das discussões em todos os ambientes acadêmicos, não como duas pretende referenciar
faces impressas em uma mesma moeda, mas como moedas diferentes a experiência-limite
religiosa
cunhadas em terrenos distintos. Em nossa concepção final, Ricoeur,
por intermédio dos mecanismos que compõem sua hermenêutica fe-
nomenológica, favorece um caminho alternativo onde os deuses serão
contrapostos e re-descritos mediante a experiência-limite da experiência
comum de qualquer ser humano inserido no tempo e no mundo. A
satisfação em relação à vida pode ser finita, mas o desejo, como campo
sempre aberto às religiões, é infinito e polissêmico.

Referências

ALVES, Rubem. Entre a ciência e a sapiência. O dilema da educação. São Paulo:


Loyola, 1999.
COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus. São Paulo: Gente, 2007.
DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
DELUMEAU, Jean et allü. Le savant et la foi. France: Champs Flammarion, 1989.
FERRY, Luc. Aprender a viver. Filosofia para novos tempos. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2007.

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JAPIASSU, Hilton. Apresentação. Paul Ricoeur: Filósofo do Sentido. In: RI-
COEUR, Paul. Hermenêutica e ideologias. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008.
MENDONÇA, Antônio Gouvêia de. A fenomenologia da experiência religiosa.
Numem, Revista de Estudos e Pesquisas de Religião. V. 2, n. 2, 1999.
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____. A Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Loyola, 2006.
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____. O conflito das interpretações. Ensaios de Hermenêutica. Rio de Janeiro:
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____. Religión, Ateísmo, Fe. In: Introduccion a La Simbolica del Mal. Buenos Aires:
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Artigo recebido em: 31/10/2013.


Aprovado em 27/03/2014.

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