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FUNDAMENTOS

SOCIOANTROPOLÓGICOS
DA SAÚDE

autora
MARCELA MIWA

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2015
Conselho editorial  sergio augusto cabral; roberto paes; gladis linhares.

Autora do original  marcela miwa

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  gladis linhares

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão linguística  jéssyca andrade e amanda duarte aguiar

Revisão de conteúdo  ralph ribeiro mesquita

Imagem de capa  photowitch | dreamstime.com

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2015.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

M618f Miwa, Marcela


Fundamentos Socioantropológicos da Saúde / Marcela Miwa
Rio de Janeiro : SESES, 2015.
128 p. : il.

isbn: 978-85-5548-127-7

1. Organização social. 2. Saúde-doença. 3. Políticas públicas - Saúde.


I. SESES. II. Estácio.
cdd 610.1

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 5

1. Introdução às Ciências Sociais 7


1.1  Contexto do surgimento 9
1.2  A Sociologia Positivista: história, princípios e conceitos. 11
1.3  O Materialismo Dialético de Karl Marx 13
1.4  A Sociologia Compreensiva e Max Weber 19
1.5  Outros conceitos sociológicos 22
1.6  A história da Antropologia e alguns conceitos 25

2. Sociologia e Antropologia na Saúde 37

2.1  Saúde e doença ao longo da história 39


2.2  Contexto histórico da Sociologia da Saúde 42
2.3  Contribuições do materialismo histórico
para pensar o processo saúde-doença 47
2.4  A Antropologia na saúde 52
2.5  Sociologia e Antropologia na saúde no Brasil 56

3. A Saúde Como Fenômeno Multideterminado:


Problematizando Um Conceito 63

3.1  Saúde: ausência de enfermidade? 65


3.2  A Organização Mundial de Saúde e o conceito de saúde 71
3.3  A 8ª Conferência Nacional de Saúde e a
Constituição Federal de 1988 77
4. Aspectos Sociológicos do
Mundo Contemporâneo 87

4.1  Políticas públicas de saúde 89


4.2 Cidadania 94
4.3 Globalização 96
4.4  Desigualdades sociais 100
4.5  Pobreza e exclusão social 104

5. Corpo e Saúde na Visão Socioantropológica 113

5.1  Estética, cultura e sociedade: padrões e valores 115


5.2  Corpo, cultura e subjetividade 120
5.3  Sociedade, saúde, doença e cura 128
Prefácio
Prezados(as) alunos(as),

Você já se questionou por que alguns grupos humanos apresentam determina-


dos tipos de doença e outros não? Você já notou que alguns grupos preferem de-
terminados tipos de tratamentos de saúde ao invés de práticas médicas convencio-
nais? Como você explicaria isso?
Nas páginas seguintes procuraremos demonstrar como a Sociologia e a An-
tropologia podem ajudar-nos a pensar, e até melhorar, a saúde. Ao se debruçarem
sobre questões como: a organização social, a cultura e as visões de mundo, essas
disciplinas ajudam-nos a entender como tais questões influenciam os processos
saúde-doença e tratamentos em saúde.
Esperamos que depois de conhecer as teorias socioantropológicas e seus prin-
cipais conceitos você seja capaz de elaborar uma compreensão mais ampla do pro-
cesso saúde-doença, não se restringindo a questões puramente biológicas do fenô-
meno, desenvolvendo uma visão crítica-reflexiva acerca do tema.

Bons estudos!

5
1
Introdução às
Ciências Sociais
O objetivo deste capítulo é apresentar a história do surgimento das Ciências
Sociais, especialmente a Sociologia e a Antropologia, suas principais corren-
tes de pensamento e autores. Ao longo da apresentação das teorias socioan-
tropológicas, também abordaremos os conceitos mais importantes de cada
vertente de pensamento.
Você acaba de ser convidado para uma viagem pelos anos da história da cons-
trução do pensamento científico. Peguemos nossas mochilas, pois, como di-
ria o poeta Fernando Pessoa, “navegar é preciso”!

OBJETIVOS
Este capítulo trabalhará as histórias das Ciências Sociais. Esperamos que a partir das informa-
ções apresentadas, você seja capaz de:

•  Identificar as principais correntes do pensamento socioantropológico;


•  Compreender os conceitos e contribuições de cada autor;
•  Entender o processo de construção do pensamento científico;
•  Aprender conceitos e categorias que o(a) auxiliem a compreender a realidade sociocultural
na qual está inserido(a).

8• capítulo 1
1.1  Contexto do surgimento
Pensar a respeito sobre a condição humana, sobre as formas de viver é algo pre-
sente nos indivíduos e coletividades. Contudo, pensar o ser humano enquanto ser
social de maneira sistematizada, isto é, cientificamente, demorou a acontecer.
Você deve se lembrar dos filósofos da Grécia Antiga e deve estar se questio-
nando: “Mas eles pensavam a respeito do homem, da política, etc...”. Claro que
sim, concordo plenamente com você. A Filosofia, que em grego significa “amor
à sabedoria” (Ferreira, 1997: 779), ampliou as formas de pensar o “porque” e
“para que das coisas” (cf. Costa, 1987). Foi um período de grandes questiona-
mentos e teorizações. Você já deve ter ouvido falar de Tales de Mileto, Pitágoras,
Sócrates, Platão e Aristóteles, etc., figuras que influenciaram e influenciam ain-
da hoje nossas vidas.

Tales de Mileto (623-548 a.C. aproximadamente) ficou conhecido pela sua maestria em
filosofia, matemática, engenharia, astronomia, entre outros saberes.
Pitágoras (571-570 a.C aproximadamente) foi outro filósofo matemático renomado.
Sócrates (470-399 a.C): filósofo grego que ensinava por meio do diálogo e discussão,
induzindo seu interlocutor a perceber as falhas do próprio raciocínio. Não deixou registros
de seus pensamentos. Conhecemos parte da sua vida por meio das obras de Platão.
Platão (427-347 a.C): foi discípulo de Sócrates. Platão compreendia a realidade dividi-
da em duas partes: uma era a do mundo dos sentidos onde tudo flui e que poderíamos
ter apenas um conhecimento aproximado; a outra parte seria a do mundo das ideias,
em que poderíamos alcançar um conhecimento seguro uma vez que as ideias são eter-
nas e imutáveis (cf. Gaarder, 1995). Entre suas obras mais conhecidas destacamos:
República, O banquete, Fédon, Político, etc.
Aristóteles (384-322 a.C): era natural da Macedônia mas foi aluno de Platão. Diferen-
temente de Platão que privilegiava as ideias, Aristóteles voltou-se para os sentidos e
aos processos naturais. A realidade era o que podíamos perceber ou sentir. Além de
ser tido como último grande filósofo, Aristóteles também foi reconhecido como grande
biólogo (cf. Gaarder, 1995).

Entretanto, no caminhar histórico ocidental, você deve se lembrar que a que-


da do Império Romano do Ocidente marcou o fim da Idade Antiga e início da
Idade Média. Esse período foi marcado pelo forte fervor religioso, especialmente

capítulo 1 •9
influenciado pela Igreja Católica. Os conflitos religiosos, as invasões pelos povos
considerados “bárbaros”, o obscurecimento de intelectuais e filósofos pelos dog-
mas eclesiásticos, colaboraram para a configuração de um período de aparen-
te menor produção intelectual, o que levou alguns historiadores e pensadores a
classificarem essa época da Idade Média como “Idade das Trevas”.
Passados alguns séculos, já nos aproximando do fim do século XIV e iní-
cio do XV, vamos nos deparar com um movimento cultural denominado
Renascimento. Os renascentistas visavam resgatar muitos dos valores greco-ro-
manos clássicos, defendendo o antropocentrismo1 ao invés do teocentrismo,
assim como o racionalismo.
Durante o Renascimento veremos a retomada das investigações acerca de
“como” e “porque” as coisas acontecem. No século XVII, incentivada pelo movi-
mento Iluminista, assistiremos a consolidação da ciência como fonte de verdade
e conhecimento. Em 1637, o filósofo francês René Descartes publicou o Discurso
do Método, em que elaborou as regras para análise e construção do conhecimen-
to, baseando-se na razão e no questionamento. Entre seus princípios, podemos
destacar quatro: a) preceito da evidência: considerando como verdadeiro apenas
o que for evidente; b) preceito da análise: dividir os fatos ou fenômenos em parce-
las menores ou mais simples, quantas vezes forem necessárias para serem resol-
vidas; c) síntese: ordenar os pensamentos do mais simples para os mais comple-
xos; d) enumeração: enumerar as partes e conclusões para conservar a ordem do
pensamento e garantir que nada foi omitido (cf. Descartes, 1999). Além de ficar
conhecido pelo seu método “cartesiano” de pensamento, Descartes também se
tornou célebre pela frase “penso, logo existo” (cogito ergo sum).

E, por existirem homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere às


mais simples noções de geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas,
achando que estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razões que
eu tomara até então por demonstrações.

1  Antropocentrismo: doutrina que concebe o homem como centro ou medida de todas as coisas.
Teocentrismo: concepção que Deus é o centro do Universo, tudo foi criado por ele e por ele é dirigido.
Racionalismo: método de observação e pensamento baseado exclusivamente na razão.

10 • capítulo 1
E, enfim, considerando que quaisquer pensamentos que nos ocorrem quando estamos
acordados nos podem também ocorrer enquanto dormimos, sem que existam nenhum,
nesse caso, que seja correto, decidi, fazer de conta que todas as coisas que até então
haviam entrado no meu espírito não eram mais corretas do que as ilusões de meus
sonhos. Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar
que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E,
ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as
mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo [...]
(Descartes, 1999: 61-62 – grifo do autor)

A Ciência ganhou corpo com regras matemáticas e a natureza passou a ser


objeto de investigação e de controle do ser humano.
Passados muitos anos, somente nos fins do século XVIII e início do XIX que
emergiu a ciência da sociedade denominada Sociologia, fortemente influencia-
da pelas ciências da natureza e preocupada em estudar as regras que organiza-
vam a vida em sociedade.

1.2  A Sociologia Positivista: história,


princípios e conceitos.

O pensamento positivista foi fortemente influenciado pelas ciências da nature-


za. Segundo o sociólogo Michael Löwy (cf. Minayo, 2000) o positivismo surgiu
com o filósofo e matemático francês Condorcet (1743-1794), que afirmou que a
ciência da sociedade deveria ser uma “Matemática Social”, submetida à análise
rigorosa e isenta de interesses e paixões.
Segundo Minayo (2000), as premissas do positivismo podem ser resumidas
da seguinte maneira:

(1) A realidade se constitui essencialmente naquilo que nossos sentidos podem per-
ceber; (2) As Ciências Sociais e as Ciências Naturais compartilham de um mesmo
fundamento lógico e metodológico, elas se distinguem apenas no objeto de estudo;
(3) Existe uma distinção fundamental entre fato e valor: a ciência se ocupa do fato e
deve buscar se livrar do valor. (p.39 – grifo do autor)

capítulo 1 • 11
A sociedade era vista como um organismo regulado por leis naturais, que
funcionava harmonicamente (cf. Costa, 1987) e as ciências sociais deveriam
descobrir essas leis invariáveis de seu funcionamento. Saint-Simon chegou a
denominar a ciência da sociedade de “fisiologia social” (Minayo, 2000).
Foi com o filósofo francês Auguste Comte (1798-1857) que a ciência da
sociedade ganhou contornos de uma teoria social, que a princípio, foi deno-
minada “Física Social” antes de receber o nome de “Sociologia”. Contudo, foi
somente com Émile Durkheim (1858-1917) que a Sociologia atingiu status de
disciplina científica.
Ao publicar as regras do método sociológico, Durkheim estabeleceu que o
objeto de investigação do cientista social eram os “fatos sociais”, que são exter-
nos aos indivíduos, possuindo certa autonomia em relação às vontades dos su-
jeitos. Os fatos sociais (cf. Costa, 1987) seriam caracterizados por três elemen-
tos básicos: a) coerção social: a pressão que os fatos exercem sobre os sujeitos
independentemente se suas vontades e escolhas, podendo ocorrer, inclusive,
ameaça de penalidade; b) externalidade: os fatos sociais são externos aos indi-
víduos, “as regras sociais, os costumes, as leis, já existem antes do nascimento
das pessoas, são a elas impostos por mecanismos de coerção social” (Costa,
1987: 52); c) generalidade: todo fato social é geral, incidindo sobre todos ou so-
bre a maioria das pessoas.
Diante dos fatos sociais, o cientista social deveria estudar esses fenômenos
de maneira objetiva, neutra, impessoal e distanciada, postura que Durkheim
denominaria neutralidade axiológica2. Considerando a sociedade como orga-
nismo vivo que tende ao equilíbrio, Durkheim entendia que quando essa so-
ciedade apresentasse situações diferentes de seu estado harmônico, ela estaria
funcionando de forma patológica ou anômica.

2  Axiologia: “Estudo ou teoria de alguma espécie de valor, particularmente dos valores morais. Teoria crítica dos
conceitos de valor” (Ferreira, 1997: 209)
Neutralidade axiológica: neutralidade de valores.
Anomia: “ausência de leis, de leis, ou de regras de organização”. (Ferreira, 1997: 126)

12 • capítulo 1
Émile Durkheim (1858-1917)

Nasceu em Epinal, na Alsácia. Estudou na Escola Nor-


mal Superior de Paris e lecionou Sociologia na primeira
cátedra dessa ciência na França. Em 1902 transferiu-se
para Sorbonne e junto com seu sobrinho, Marcel Mauss,
entre outros estudiosos, constituiu a escola da Socio-
logia Francesa (cf. Costa, 1987). Suas principais obras
são: Da divisão do trabalho social; As regras do método
sociológico; Formas elementares da vida religiosa; O
suicídio, entre outras.

Imagem retirada: http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89mile_Durkheim (acessada


03/04/2015)

O positivismo irá influenciar algumas correntes do pensamento antropo-


lógico, como o funcionalismo antropológico que iremos tratar mais adiante
neste capítulo. Vamos agora relembrar um pouco do materialismo dialético
marxista.

1.3  O Materialismo Dialético de Karl Marx


Com o positivismo vimos a concepção de sociedade como organismo que
funciona com relativa autonomia em relação aos sujeitos. Admitimos que essa
corrente sociológica apresenta certas limitações para a interpretação da rea-
lidade social, mas foi fundamental para a apreensão e estudo das normas so-
ciais, instituições e valores produzidos pelos grupos humanos (cf. Costa, 1987).
Lembrando que o pensamento positivista surgiu no século XVIII, com
Condorcet (1743-1794), devemos recordar também que no fim do referido sé-
culo ocorreu a Revolução Industrial, com a inovação das formas de produção de
manufaturas, como por exemplo, o uso do tear mecânico e da máquina a vapor;
e consolidação do capitalismo. A revolução não incidiu somente na produção
material, mas alterou as formas de organização social, distinguindo os sujeitos
entre burgueses e proletariado.

capítulo 1 • 13
As condições degradantes de trabalho, com jornadas extenuantes, as desi-
gualdades sociais, e os ideais da Revolução Francesa de igualdade, liberdade e
fraternidade, levaram alguns intelectuais a tecerem duras críticas ao sistema
capitalista e a almejarem a transformação social sem considerarem os confli-
tos internos à sociedade. Esses intelectuais do século XIX foram denominados
socialistas utópicos.

Socialismo utópico: doutrina política surgida no final do século XVIII e início do XIX,
em que reformadores sociais propunham igualdade social por meio da união entre os
setores produtivos – burguesia e operariado – não sendo capazes de anteverem as
resistências que a sociedade capitalista oporia a eles. (Carvalho, Silva, 2006: 40)

Em meio aos questionamentos e críticas ao sistema capitalista, surgiu a fi-


gura de Karl Marx (1818-1883), intelectual alemão, propondo o socialismo cien-
tífico em contraposição ao socialismo utópico. E entendendo que a transfor-
mação social se daria por meio do papel revolucionário do proletariado.

Karl Marx (1818-1883)


Nasceu em Treves, Alemanha. Estudou na Universidade
de Berlim e doutorou-se em Filosofia. Em 1842, mudou-
se para Paris e conheceu Friedrich Engels que se tor-
nou um importante parceiro intelectual para Marx. Em
1848 escreveram O Manifesto do Partido Comunista
(cf. Costa, 1987). Entre suas principais obras, podemos
destacar: A Ideologia Alemã, Miséria da Filosofia, Para a
crítica da economia política, A luta de classes em Fran-
ça, O Capital.

Marx compreendeu que a sociedade era movida pelos conflitos sociais.


Diferentemente dos positivistas que buscavam estudar o funcionamento har-
mônico do social por meio de suas leis invariáveis, Marx revolucionou o pen-
samento social ao debruçar-se sobre as contradições e as lutas de classes. Em
sua obra Manifesto Comunista (1999), Marx afirma que “A história de todas as
sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes” (p. 40).

14 • capítulo 1
Para estudar essas contradições, Marx propôs a teoria do materialismo his-
tórico tendo como base o método dialético.
Marx entendia a sociedade dividida em duas instâncias: a infraestrutura e
a superestrutura. A infraestrutura seriam as condições econômicas de produ-
ção e a superestrutura incluiria a cultura, instituições, política, tradições, etc.
Então, sua teoria era materialista porque Marx privilegiava as condições ma-
teriais de existência, as formas de produção da sociedade, e era histórica por-
que enfocava o movimento, a dinâmica, o processo. O método dialético, ao de-
bruçar-se sobre a relação entre “tese-antítese-síntese”, permite identificar as
contradições do social. Sobre a dialética marxista, Tom Bottomore (2001), no
Dicionário do Pensamento Marxista afirma:

Marx observa que “o segredo da dialética científica” depende da compreensão “das


categorias econômicas como a expressão teórica de relações históricas de produ-
ção, correspondentes a determinada fase do desenvolvimento da produção material”.
A dialética de Marx é científica porque explica as contradições do pensamento e as
crises da vida socioeconômica em termos das relações essenciais, contraditórias e
particulares que as geram (dialética ontológica). E a dialética de Marx é histórica por-
que a mesma tem raízes nas – e é (condicionalmente) um agente das – mudanças nas
relações e circunstâncias que descreve (dialética relacional). (p.104)

CONEXÃO
O Dicionário do Pensamento Marxista pode ser acessado pela seguinte página:
http://www.academia.edu/4256841/dicionario_do_pensamento_marxista_ed_por_
tom_bottomore

Imbuído da concepção materialista dialética, Marx analisou o sistema de


produção capitalista. O primeiro dado que constatou foi que diferentemente de
outras formas de produção, o capitalismo ocasionou uma ruptura entre a pro-
priedade dos meios de produção (em posse da burguesia) e quem produzia os
bens (proletariado). A distribuição desigual dos bens e recursos é responsável
pelas desigualdades sociais e essas desigualdades, por consequência, formam

capítulo 1 • 15
as bases para a constituição das classes sociais (cf. Costa, 1987). Ao proletaria-
do, destituído dos meios de produção, restou vender sua força de trabalho em
troca de um salário que garanta, pelo menos, as condições mínimas de subsis-
tência. Nesse primeiro momento, já conseguimos visualizar alguns conceitos
importantes para a teoria marxista:

•  Forças produtivas: condições materiais de toda produção, o que inclui maté-


rias-primas, instrumentos e meios para produção, força de trabalho humano, etc.;
•  Relações de produção: organização para executar a atividade, “dimensão
social do trabalho, forma como os homens se relacionam no processo produti-
vo” (Carvalho; Silva, 2006: 44);
•  Modo de produção: forma como a sociedade organiza suas forças pro-
dutivas e suas relações de produção. No caso, Marx estava preocupado com o
modo de produção capitalista, contudo, segundo Costa (1987: 82), podemos
identificar outros tipos de modo de produção: a) modo de produção asiático:
essencialmente agrário, com manufaturas em aldeias comunais autossuficien-
tes, organizadas em torno de um governo; b) modo de produção germânico:
constituído por unidades domésticas isoladas que poderiam se unir para resol-
ver questões de disputas ou religiosas, não havendo um Estado centralizador;
c) modo de produção antigo: atividade agrícola executada por cidadãos livres,
havendo distinção entre terras do Estado e propriedades particulares;
•  Classes sociais: posição que os sujeitos ocupam na estrutura social, a par-
tir da distribuição desigual de bens e recursos sociais. Sendo que, para Marx, as
classe sociais seriam caracterizadas pela oposição, antagonismo, exploração e
complementaridade (cf. Costa, 1987).

[...] num sentido amplo, o termo classe identifica os grandes grupos humanos que se
relacionam e lutam entre si para produzir o próprio sustento, criando relações de domi-
nação para apropriarem-se do excedente gerado além do mínimo necessário à subsis-
tência. (Ridenti, 1994: 13)

A separação entre o trabalhador e os meios de produção, levou Marx a ela-


borar o conceito de alienação3 que poderia se apresentar sob duas formas: alie-
3  Alienação: “alheação; cessão de bens [...] Segundo Marx, situação resultante dos fatores materiais dominantes
da sociedade, e por ele caracterizada sobretudo no sistema capitalista, em que o trabalho do homem se processa
de modo que produza coisas que imediatamente são separadas dos interesses e do alcance de quem as produziu,

16 • capítulo 1
nação econômica: em que o trabalhador é dissociado dos meios de produção e
do produto de seu trabalho, perdendo o conhecimento e o controle acerca da
totalidade do que produz; e alienação política: o Estado não é imparcial e repre-
senta os interesses das classes dominantes. A ideologia serviria para encobrir a
realidade social, impedindo que o proletário tomasse consciência de sua con-
dição de explorado. A ideologia seria uma “distorção do pensamento que nasce
das contradições sociais e que as oculta” (Carvalho; Silva, 2006:43). Como for-
ma de romper com a alienação, Marx defendeu a “práxis” como uma “atividade
material humana, transformadora do mundo e do próprio homem” (Carvalho;
Silva, 2006:43), constituindo, assim, uma ação dotada de consciência.
Esse processo de alienação contribuiria para a configuração de um “feti-
chismo da mercadoria”, em que o próprio produto ganha autonomia em rela-
ção ao seu produtor:

[...] uma vez posta a venda no processo de circulação, a situação se inverte: o objeto
domina o produtor. O criador perde o controle sobre sua criação e o destino dele passa
a depender do movimento das coisas, que assumem poderes enigmáticos. Enquanto
as coisas são animizadas e personificadas, o produtor se coisifica. Os homens vivem,
então, num mundo de mercadorias, um mundo de fetiches. (GORENDER, 1996: 34)

Talvez você tenha se perguntado: “como as pessoas se submetem a essa si-


tuação de exploração alienante?”. Lembre-se que com o capitalismo houve uma
separação entre os trabalhadores e os meios de produção e até hoje, por causa
das desigualdades sociais e de distribuição de recursos, muitos de nós vendemos
nossas forças de trabalho em troca de salários. O salário, pequeno ou vultoso,
permite-nos comprar mercadorias e satisfazer certos desejos. Quando compra-
mos algo, o preço que pagamos é calculado levando em consideração: o tempo
necessário para produção (desde a sua produção até chegar ao destino final, que
é o consumidor); as matérias-primas utilizadas; os salários dos trabalhadores en-
volvidos e o lucro dono da produção e dos intermediadores da venda.
Quando um industrial produz algo, ele visa o lucro. Se pensarmos que ele tem
um gasto fixo com matérias-primas e meios de produção (material, ferramentas,
energia, água, etc.) como deveria aumentar seu lucro? Você poderia sugerir o au-
mento do preço do produto. Em um primeiro momento isso poderia dar certo,
para se transformarem, indistintamente, em mercadorias. Falta de consciência dos problemas políticos e sociais.[...]”
(Ferreira, 1997: 86)

capítulo 1 • 17
mas com o tempo os concorrentes, do capitalista em questão, poderiam se valer
da mesma estratégia e aumentarem o preço dos produtos ou então, os consumi-
dores poderiam deixar de comprar os produtos considerando-os caros.
Segundo Marx, o capitalista recorre ao que ele denominou de processo de
obtenção de “mais-valia”, que seriam formas de obter mais lucros. Marx iden-
tificou dois tipos de mais-valia: a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa. A
mais-valia absoluta aconteceria com o aumento da jornada de trabalho. E a
mais-valia relativa se daria com o aumento da produção por meio da mecaniza-
ção e linha de montagem (Marx, 1985).

Charles Chaplin, em seu filme Tempos Modernos, faz uma crítica bem-humorada a esse
processo de alienação implantado pela linha de montagem.
Você pode acessá-lo no seguinte endereço:
https://www.youtube.com/watch?v=ieJ1_5y7fT8

Mas o capitalismo não é somente a história da exploração do homem. De


certa forma, esse sistema contribuiu para a emancipação feminina. Devido à
necessidade crescente de mão de obra na produção capitalista, muitas mulhe-
res saíram da esfera privada, do âmbito doméstico, e ingressaram no mercado
de trabalho (cf. Durham, 2004). O sexo do trabalhador passou a ser irrelevante,
o importante era ser capaz de executar as tarefas e ser produtivo. Com a relativa
autonomia feminina, foi possível às mulheres terem maior liberdade e lutarem
por mais igualdade em relação aos homens.
Além de nos oferecer novos elementos para pensar a realidade social, o ma-
terialismo histórico-dialético também influenciou os estudos na saúde, espe-
cialmente na América Latina nas décadas de 1960-70, assunto que trataremos
no próximo capítulo.
Por ora, ainda temos que revistar outro grande sociólogo, Max Weber e sua
sociologia compreensiva.

18 • capítulo 1
1.4  A Sociologia Compreensiva e Max Weber
Para os positivistas as sociedades tendiam a conservar sua harmonia, mas po-
diam passar por transformações, uma vez que estavam submetidas a um “pro-
cesso universal de evolução da humanidade” (Costa, 1987: 61). Todas as so-
ciedades deveriam passar de um estado mais simples para organizações mais
complexas, apresentando os mesmo estágios evolutivos. Essa semelhança evo-
lutiva permitiria aos estudiosos desenvolver métodos comparativos “capaz de
aproximar sociedades humanas de todos os tempos e lugares” (Costa, 1987: 61).
E é justamente em oposição a essa concepção positivista que surge o filóso-
fo alemão Max Weber (1864-1920) defendendo a pesquisa histórica e o respeito
às características particulares de cada grupo social. Nesse caso, os estudiosos
deveriam realizar um esforço interpretativo das fontes e dos dados para enten-
der as diferenças sociais (cf. Costa, 1987). Tal esforço será reconhecido como
sociologia compreensiva:

Weber, entretanto, não achava que uma sucessão de fatos históricos fizesse sentido
por si mesma. Para ele, todo historiador trabalha com dados esparsos e fragmentários.
Por isso, propunha para esse trabalho o método compreensivo, isto é, um esforço inter-
pretativo do passado e de sua repercussão nas características peculiares das socieda-
des contemporâneas. Essa atitude de compreensão é que permite ao cientista atribuir
aos fatos esparsos um sentido social e histórico. (Costa, 1987: 62 – grifo do autor)

capítulo 1 • 19
Max Weber (1864-1920)

Nasceu em Erfurt, Alemanha. Interessou-se por estudos


sobre direito, filosofia, história e sociologia. Iniciou sua car-
reira como professor em Berlim, posteriormente, tornou-
se catedrático da Universidade de Heidelberg (cf. Costa,
1987). Entre suas obras destacamos: A ética protestante
e o espírito do capitalismo; Economia e Sociedade; Ciên-
cia como vocação.

Imagem retirada: http://www.economist.com/node/12762398 (acessado: 04/04/2015)

Um conceito importante para a sociologia weberiana é o de “ação social”.


Para este pensador, a ação é social quando se orienta pelas ações dos outros,
uma ação com sentido próprio, dirigida à ação dos outros (Weber, 1997). A ação
social pode apresentar-se em quatro tipos básico: a) ação racional com relação
a fins: determinada por expectativas de comportamento ou resultados; b) ação
racional com relação a valores: originada pela crença em determinados valores,
como o ético, estético, religioso, etc.; c) ação afetiva: ocasionada pelos afetos e
estados sentimentais; d) ação tradicional: determinada por um costume enrai-
zado (Weber, 1997: 20).
Para compreender a realidade social, Weber defendeu a elaboração de um
tipo ideal, isto é, um modelo interpretativo para determinado fato ou fenôme-
no tendo como base a observação de casos particulares.

O conceito, ou tipo ideal é previamente construído e testado, depois aplicado a dife-


rentes situações em que o cientista presume que dado fenômeno possa ter ocorrido.
Na medida em que o fenômeno se aproxima ou se afasta de sua manifestação típica,
o sociólogo pode identificar e selecionar aspectos que tenham interesse à explicação
[...] (Costa, 1987: 65)

20 • capítulo 1
Trata-se, como já dissemos acima, de um modelo interpretativo, de uma
abstração, não significando que os fenômenos tenham que se encaixar perfei-
tamente nesses tipos ideais.
Ao atribuir importância ao significado e à intencionalidade das ações, a socio-
logia compreensiva weberiana influenciou algumas abordagens teóricas do social,
entre elas podemos destacar o interacionismo simbólico e mesmo a fenomenolo-
gia. Valho-me as palavras de Cecília Minayo para explicar ambas as abordagens:

A concepção interacionista das relações sociais se fundamenta no princípio de que


o comportamento humano é autodirigido e observável em dois sentidos: o simbólico
e o interacional. Isso permite a qualquer ser humano planejar e dirigir suas ações em
relação aos outros e conferir significado aos objetos que utiliza para realizar seus pla-
nos. Além disso, a concepção interacionista concebe a vida social como um consen-
so estabelecido na inter-relação, por isso, o sentido atribuído às ações é manipulado,
redefinido e modificado através de um processo interpretativo consensual de grupo.
(Minayo, 2000: 54)

Para os interacionistas, quando os grupos sociais estabelecem regras e nor-


mas de comportamento podem desencadear e reforçar relações de poder, entre
os adaptados às tais regras e aqueles considerados “desviantes” ou inadapta-
dos (cf. Velho, 1981).
A fenomenologia ficou conhecida como “sociologia da vida cotidiana”
(Minayo, 2000: 55), atentando-se para os fenômenos das experiências subjeti-
vas e as interpretações do mundo decorrentes dessas experiências, isto é, as
visões de mundo dos sujeitos (cf. Schutz, 1979). Em relação às outras aborda-
gens teóricas, a fenomenologia, propõe uma crítica ao objetivismo da ciência,
enfatizando a subjetividade como fundante do sentido e da autocompreensão
objetiva. (cf. Minayo, 2000: 55)
Para o fenomenólogo Alfred Schutz, o modelo científico de compreensão do
mundo social deveria partir dos seguintes princípios:

(a) intersubjetividade: estamos sempre em relação uns com os outros; (b) a compreen-
são: para atingir o mundo do vivido, a ciência tem que apreender as coisas sociais como

capítulo 1 • 21
significativas; (c) racionalidade e intencionalidade: o mundo social é constituído sempre
por ações e interações que obedecem a usos, costumes e regras ou que conhecem
meios, fins e resultados. (Minayo, 2000: 57)

Assim como o materialismo histórico, a fenomenologia também influen-


ciou estudos socioantropológicos na área a saúde, especialmente aqueles vol-
tados para compreender a experiência da doença (cf. Alves, 2006).
No entanto, antes de passarmos para o próximo capítulo, em que trabalha-
remos melhor a relação da sociologia e da antropologia com os estudos da saú-
de, precisamos nos deter mais um pouco sobre alguns conceitos sociológicos
como também falarmos mais a respeito da Antropologia.

1.5  Outros conceitos sociológicos


Você, querido(a) leitor(a), que nos acompanhou até aqui deve se lembrar que já
falamos de alguns conceitos importantes para o pensamento sociológico. Com
Durkheim vimos conceitos como “coerção social”, “neutralidade axiológica”,
“anomia”. Quando revisitamos o materialismo dialético marxista, foi a vez de
nos depararmos com “forças produtivas”, “relações de produção”, “modo de
produção”, “classes sociais”, “alienação”, “fetichismo da mercadoria”, “mais-
valia absoluta”, “mais-valia relativa”. Da sociologia compreensiva weberiana
importou-nos saber a respeito da “ação social” e “tipo ideal”. Ufa! São muitas
as informações, mas ainda não é o suficiente...
Precisamos ainda esclarecer mais alguns conceitos sociológicos, para enri-
quecer seu aprendizado e sua compreensão da realidade que o cerca.
Você já deve ter percebido que em algum momento das páginas preceden-
tes foi mencionado o termo “instituição”, parece algo óbvio, mas você saberia
definir esse termo?
Para o antropólogo Malinowski (1978) – que iremos conhecer daqui a pouco
quando falaremos de antropologia – instituição social pode ser compreendida
como uma unidade multidimensional, com um código, ou constituição, dos
valores compartilhados pelos sujeitos envolvidos, também pode ser conce-
bida como um grupo humano organizado em torno do desempenho de uma
atividade regida por normas e regras. Em outras palavras, podemos entender

22 • capítulo 1
instituição social como uma forma socialmente instituída portadora de regras
e valores que exercem influência sobre seus membros. Exemplos clássicos de
instituições sociais são: família, Estado e escolas.
A instituição família é imprescindível para o desempenho de outro conceito
caro à sociologia, que é o conceito de “socialização”. A socialização é o processo
pelo qual passamos para aprendermos a ser um membro da sociedade (Berger,
1977), por meio da internalização de valores, regras de conduta e comporta-
mento, símbolos e signos para apreendermos nossas experiências.

A interiorização [da socialização] não só controla o indivíduo, mas abre-lhe as portas


do mundo. Não só permite que o mesmo participe do mundo social externo, mas ca-
pacita-o para uma vida interior mais rica. E só por meio da interiorização das vozes
dos outros que podemos falar a nós mesmos. Se ninguém nos tivesse dirigido uma
mensagem significativa vinda de fora, em nosso interior também reinaria o silêncio.
(BERGER, 1977:82)

O principal mecanismo da socialização é a interação social e se inicia desde


a nossa mais tenra infância. Por isso a instituição família é tão importante, pois
os familiares são nossos primeiros socializadores, eles nos ensinam a lingua-
gem, os costumes e as formas de interação social.
O processo de socialização varia conforme a cultura, por exemplo, nós so-
mos socializados de maneira diferente dos indianos; mesmo no Brasil podemos
encontrar diferenças no processo de socialização, considerando as diferenças
culturais das regiões geográficas do país. Dessa forma, podemos entender a so-
cialização como um processo em constante construção, pois quando interagi-
mos e convivemos com grupos diferentes aos que estamos acostumados, inevi-
tavelmente passaremos por um processo de aprendizado para que consigamos
estabelecer um mínimo de comunicação e interação com esses grupos.

CONEXÃO
Para entender melhor a importância do processo de socialização, você pode assistir aos
seguintes vídeos:
Como seria o Tazan? https://www.youtube.com/watch?v=kKKW6RlQygM

capítulo 1 • 23
Esse vídeo demonstra de forma divertida como seria o Tarzan na realidade, já que na
história ele foi criado por gorilas.
E o segundo: O enigma de Kaspar Hauser:
https://www.youtube.com/watch?v=MxpuYFouR70
Baseado em fatos reais, o filme retrata a vida de um jovem que foi privado do convívio
social, isolado em um cativeiro, até ser encontrado por um homem que tenta reintroduzi-lo
na sociedade.

Assim que aprendemos a ser um membro da sociedade, podemos nos de-


parar com a ideia de “papel social”, isto é, uma posição social que abarca deter-
minadas características que o sujeito deve desempenhar. Por exemplo: o papel
do professor, o papel de mãe, o papel do enfermeiro, etc. são concepções deli-
mitadas que estabelecem as características dos comportamentos relacionados
a cada papel. Algumas correntes sociológicas criticam esse conceito, uma vez
que entendem que o termo “papel social” não confere autonomia ao sujeito,
ao contrário, restringe suas ações e sua autonomia (cf. Coulson, Riddell, 1977).
Ao invés de “papel”, sugere-se o uso de “expectativas de grupos”, forma mais
flexível e dinâmica sobre o comportamento humano.

Se, em vez de falar de papeis, falamos de expectativas que grupos especificados têm
quanto ao comportamento de pessoas em certas posições, torna-se muito mais fácil
verificar a correção e as consequências dessas expectativas e nos afastamos do tipo
de ideia mecânica de Sociologia de que a sociedade “cria”, através da organização
social, conjuntos de papéis aos quais uma pessoa “tem de” se conformar [...] (Coulson,
Riddell, 1977: 52-53).

Dependendo da posição social que o sujeito ou um grupo ocupa, esse posicio-


namento conferirá um determinado “status social”, que pode mudar conforme a
época e o contexto social. O status compreende tanto direitos como deveres relacio-
nados à posição em questão, podendo conferir prestígio ou estigma4 aos sujeitos.
Por fim, gostaríamos de lhe apresentar mais dois conceitos relevantes para
a sociologia, que nos ajudam a entender as formas de interação social, são: “co-
munidade” e “sociedade”. A discussão acerca desses dois termos é abundante
4  Estigma: “cicatriz, marca, sinal [...] Marca infamante, vergonhosa [...] (Ferreira, 1997: 721)

24 • capítulo 1
e já movimentou muitos debates entre intelectuais. Para não nos tornarmos
exaustivos, restringir-nos-emos aos aspectos básicos desses conceitos.
Para muitos teóricos, “comunidade” é um conceito idealizado que geral-
mente é identificado por trazer características como: espaços e interesses co-
muns, sentimento de pertencimento e participação em uma mesma cultura
(Durham, 2004: 225).
Para Weber (1987) a comunidade também se distingue por apresentar re-
lações baseadas na solidariedade de ligações emocionais ou tradicionais,
opondo-se à ideia de luta, o que não significa a ausência de coerção social. Já a
sociedade seria qualificada pela reconciliação e equilíbrio de interesses com-
petitivos motivados por juízos racionais (de valores ou fins).
Para outros sociólogos (cf. Durham, 2004), a comunidade pode ainda ser in-
terpretada como uma relação de vontades baseadas na concordância enquanto
a sociedade apresentaria vontades baseadas na convenção, legislação e opinião
pública, permeadas por uma hostilidade em potencial.
Dessa forma, podemos entender porque a comunidade tornou-se idealizada,
uma vez que transmite a sensação de acolhimento, proximidade, afeto, pertenci-
mento, homogeneidade compromisso com o grupo. Enquanto a sociedade con-
figura-se como o local da impessoalidade, da concorrência, da heterogeneidade,
da defesa de interesses pessoais, do individualismo e da racionalidade.
É importante ressaltar que essas características não são excludentes nem se
encontram isoladas nos grupos sociais. Uma comunidade pode apresentar tra-
ços de relações de sociedade, assim como uma sociedade pode abarcar várias
comunidades.
Cremos que já trabalhamos o suficiente com o referencial sociológico, ago-
ra vamos conhecer os antropólogos.

1.6  A história da Antropologia e alguns


conceitos

Antes de falarmos sobre antropologia, você já se perguntou qual é a diferença


entre antropologia e sociologia? Ambas estudam grupos humanos, então o que
as distingue?

capítulo 1 • 25
Segundo o antropólogo François Laplantine (1994), a sociologia clássica dá
“uma prioridade quase sistemática à sociedade global, bem como às formas de
atividades instituídas” (p. 152). Grosso modo, podemos entender que a sociolo-
gia se ocupa dos fenômenos e padrões comuns a uma sociedade. Já a antropo-
logia, para Laplantine (1994), apresenta uma abordagem “microssociológica”,
debruçando-se sobre o “infinitamente pequeno e cotidiano” (p. 153), interes-
sando-se pelos gestos, expressões, hábitos, percepções compartilhados por um
determinado grupo social. Dessa forma, depreendemos que os antropólogos
terão como foco a cultura e as diferenças culturais das coletividades.
Importa ressaltar que essa distinção simplificada foi realizada para fins pu-
ramente didáticos. A questão sobre as “áreas de atuação” da sociologia e da an-
tropologia é mais ampla e complexa; uma disciplina não exclui a outra e ambas
são “ferramentas” preciosas para uma compreensão mais acurada dos grupos
humanos e dos fenômenos sociais.
Deixemos de lado essas especulações e vamos ao que interessa: como sur-
giu a antropologia?
Existe um consenso que as diferenças culturais sempre despertaram a
curiosidade das pessoas. Os relatos de viajantes, navegadores e comerciantes a
respeito de povos de terras longínquas e costumes estranhos, causavam estra-
nhamento e perplexidade aos ouvintes.
Você deve se lembrar das aulas de história sobre o período das “grandes na-
vegações” portuguesa e espanhola. Os nativos das terras “descobertas” tanto
na América como na África eram tão diferentes dos costumes europeus que
não foram poucos os que debateram a respeito da “humanidade” desses povos.
Você também deve se lembrar que, na maioria das vezes, esses nativos foram
considerados selvagens que deveriam ser “civilizados”.

CONEXÃO
Um exemplo de relato de viajante é a carta que Pero Vaz de Caminha redigiu ao rei de Portugal
relatando o que encontrou na Terra de Vera Cruz (o Brasil). Você pode acessar esse conteúdo
no seguinte endereço: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/500br/carta_caminha.htm

26 • capítulo 1
Foi somente durante no século XIX, que os povos tão distantes e diferentes
começaram a despertar o interesse de um estudo mais sistematizado a respeito
desses grupos.
Você deve se recordar que no século XIX o conhecimento ocidental era forte-
mente influenciado pelo pensamento positivista, que por sua vez, era devedor
das ciências da natureza e da matemática. Nesse período, as ideias evolucionis-
tas do cientista inglês Charles Darwin (1809-1882) faziam sucesso. Sua obra A
origem das Espécies, publicada em 1859, ao discorrer sobre a evolução bioló-
gica das espécies – de organismo mais simples para formas mais complexas e
avançadas – inspirou muitos estudiosos da sociedade, que acreditaram que a
ideia de “evolução” poderia ser aplicada às sociedades, resultando na crença de
um “darwinismo social”.

Tais ideias, transpostas para análise da sociedade, fizeram surgir o darwinismo social,
isto é, a crença de que as sociedades mudariam e evoluiriam num mesmo sentido e que
tais transformações representariam sempre a passagem de um estágio inferior para
outro superior, em que o organismo social se mostraria mais evoluído, mais adaptado
e mais complexo. Esse tipo de mudança garantiria a sobrevivência dos organismos –
sociedades e indivíduos – mais fortes e mais evoluídos. (Costa, 1987: 44)

Ainda no referido século veremos a emergência de outra perspectiva influenciada pe-


las ideias darwinistas: a antropogeografia. Seus estudiosos viam uma relação entre
as condições ambientais e as diversidades dos povos e procuravam entender como
as características ambientais interferiam na evolução das sociedades. Esse posiciona-
mento levou alguns teóricos a classificarem a antropogeografia como “determinismo
geográfico” (cf. Moraes, 1990).

Quando revisitamos Weber nas páginas acima, mencionamos que o positi-


vismo concebia a sociedade como um organismo que tendia à harmonia, mas
que poderia passar por processos evolutivos, do primitivo para o mais comple-
xo e que, como todas as sociedades deveriam passar pelas mesmas etapas, era
possível realizar estudos comparativos entre elas.

capítulo 1 • 27
Então, durante o colonialismo do século XIX, assistiremos a conformação
da disciplina antropologia: esses primeiros antropólogos se encarregaram de
coletar informações sobre os povos colonizados, considerados “primitivos”, e
organizar esses dados para entender a “origem da humanidade”, uma vez que
julgavam cada cultura/ costume como exemplo do estágio evolutivo a que todas
as sociedades estavam submetidas (cf. Laplantine, 1994).
Grande parte desses antropólogos estudava os povos colonizados à distância, no
conforto de seus gabinetes, recolhendo depoimentos de viajantes e relatos de infor-
mantes bilíngues. Não tratavam contatos estreitos com seus “objetos de pesquisa”.
E conservavam uma postura que denominaríamos como etnocêntrica5, isto é, escre-
viam sobre outras culturas e povos analisando-os com base na sociedade europeia.
Foi no início século XX que a antropologia passou por uma grande transfor-
mação, liderados por Franz Boas e Malinowski.
O antropólogo Franz Boas (1858-1942) foi pioneiro nos estudos antropológi-
cos quando rompeu com a tradição da “antropologia de gabinete” se podemos
assim dizer. Boas foi um defensor da pesquisa de campo, da ida do pesquisador
ao local que estudava e, estando no campo de pesquisa, tudo deveria ser anotado.
Para Boas não havia “objeto nobre nem objeto indigno da ciência” (Laplantine,
1994:78). Outra contribuição importante de Boas foi a compreensão de que “um
costume só tem significação se for relacionado ao contexto particular no qual se
inscreve” (Laplantine, 1994: 77), sendo de grande relevância o acesso à língua
da cultura estudada, pois nem sempre as tradições e as visões de mundo podem
ser traduzidas. Apesar de sua importância, Franz Boas não se tornou muito co-
nhecido fora do âmbito acadêmico. Segundo Laplantine (1994) o motivo desse
desconhecimento se deve principalmente a dois fatores: Boas não deixou livros
destinados ao público erudito nem formulou uma teoria consistente.
Mesmo não sendo tão famoso Franz Boas foi um dos líderes do movimento
de ruptura com as ideias evolucionistas. As sociedades deveriam ser entendi-
das dentro de seus contextos socioculturais e para isso o antropólogo deveria ir
lá e conhecer essas sociedades. Estamos diante da consolidação da etnografia
profissional. Etnografia para Laplantine (1994) pode ser entendida como “uma
experiência de uma imersão total” (p.150). Para o antropólogo Clifford Geertz
(2008) – de quem falaremos mais adiante – etnografia pode ser resumida como
um esforço intelectual para uma “descrição densa” (p.04).
5  Etnocentrismo: “visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros
são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência.”
(Rocha, 1994: 07)

28 • capítulo 1
Um dos grandes ícones dos estudos etnográficos foi Malinowski (1884-1942).
Contemporâneo de Franz Boas, Malinowski também foi um defensor da pesquisa de
campo etnográfica, elaborando o conceito de “observação participante”. Entendendo
a observação participante como estar junto, conviver, com os sujeitos pesquisados,
compreendendo a cultura a partir da ótica dos nativos. Ao estudar os nativos das ilhas
Trobriand, Nova Guiné, Malinowski viveu na aldeia “afastado do convívio de outros
homens brancos e aprendendo a língua nativa” (Malinowski, 1978: XIII).

Bronislaw Malinowski (1884-1942)

Nasceu na Cracóvia e teve formação em ciências


exatas. Devido a problemas de saúde, teve de in-
terromper a carreira científica, impossibilitado de
trabalhar, leu o estudo antropológico O ramo dou-
rado de sir James Frazer que o levou a mudar de
carreira e seguir a antropologia. Entre suas obras
mais famosas destacamos: Argonautas do Pacífico
Ocidental e Os jardins de Coral.

Imagem retirada: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/360252/Bronislaw


-Malinowski (acessado: 05/04/2015)

Malinowski diverge de Franz Boas no que diz respeito à forma de compor o


relato etnográfico. Boas, baseado na ideia de que tudo deveria ser anotado, aca-
bava formulando relatórios exaustivos, sendo alvo das críticas de Malinowski.
Para este último, o trabalho etnográfico deveria mostrar “que a partir de um
único costume, ou mesmo um único objeto [...] aparentemente muito simples,
aparece o perfil do conjunto de uma sociedade” (Laplantine, 1994: 80).
Acompanhado de outros estudiosos, Malinowski foi um dos precursores da “es-
cola funcionalista”. Apesar de sofrerem influência positivista, os funcionalistas di-
vergiam de positivistas como Comte e Durkheim ao negarem “as leis gerais que re-
gem o funcionamento da sociedade como um todo” (Minayo, 2000: 46). Entendendo
que cada sociedade deveria ser estudada e entendida dentro de seu próprio contexto,
“como um todo integrado de relações e costumes” (Costa, 1987:93).

capítulo 1 • 29
Contudo, os funcionalistas conservaram a noção de sociedades como orga-
nismos vivos, sistemas que tendiam à estabilidade, podendo passar por ajustes
e adaptações, sendo que as inovações e tensões seriam formas de revitalizar o
próprio sistema, não abalando as estruturas sociais, portanto, não ocasionan-
do transformações (cf. Minayo, 2000).
Por conceber a cultura como uma totalidade integrada, Malinowski privile-
giou o estudo das instituições por considerá-las formas de ordenação e correla-
ção culturais, unidades multidimensionais que representam e reproduzem as
normas e regras sociais (cf. Malinowski, 1978). Entretanto, não estava interes-
sado em simplesmente coletar todos os aspectos da estrutura da instituição,
mas estabelecer a relação entre a instituição e a atividade humana.

Desse modo, verifica-se que os diferentes aspectos da instituição não possuem todos a
mesma relevância explicativa, pois é nas atividades, isto é, no comportamento humano
real, que se encontra o elemento verdadeiramente sintético que fornece a chave para
a apreensão da instituição na totalidade de seus aspectos. (Malinowski, 1978: XVII)

Ao conferir autonomia às sociedades estudadas, defendendo o estudo dos


povos dentro seus contextos, os funcionalistas acabaram por adotar uma pos-
tura “anticomparativa”, em oposição às generalizações e comparações efetua-
das pelos teóricos evolucionistas (cf. Laplantine, 1994). Os funcionalistas po-
dem ser considerados os precursores do relativismo cultural: “ideia básica de
que cada sociedade é diferente de outra no tempo e no espaço e não pode ser
explicada por qualquer lei geral” (Costa, 1987: 97). O relativismo cultural tam-
bém pode ser entendido como “ideia de que qualquer item do comportamento
deve primeiro ser [compreendido] em relação ao seu lugar na estrutura única
da cultura em que ocorre e em termos do sistema particular de valores daquela
cultura...” (Bastian, 1971: 84).
Um conceito caro aos funcionalistas é o de “aculturação”: “processo através
do qual sociedades diferentes, entrando em contato, tendem a manter troca de
elementos culturais” (Costa, 1987: 94).
Apesar de suas contribuições, os funcionalistas foram criticados por não
confrontarem nem censurarem as ações colonialistas nas sociedades afro-asi-
áticas (cf. Costa, 1987).

30 • capítulo 1
Com o desenvolver das pesquisas antropológicas, no início do século XX,
assistiremos a emergência de outra corrente antropológica: o estruturalismo.
Os estruturalistas se opunham à concepção funcionalista que as estruturas
sociais correspondiam diretamente aos dados empíricos, criticavam também
o apego funcionalista ao que era imediatamente observável e condenavam a
ideia evolucionista que as sociedades passariam pelos mesmos estágios de de-
senvolvimento (cf. Costa, 1987). O maior representante do estruturalismo an-
tropológico é Lévi-Strauss.

Claude Lévi-Strauss (1908-2009)


Nasceu em Bruxelas, Bélgica. Estudou direito e
filosofia na França. Foi professor de sociologia
na Universidade de São Paulo no período de
1934 a 1937. Também trabalhou nos Estados
Unidos. Em 1959 assumiu a cátedra de antro-
pologia no Collège de France (cf. Costa, 1987).
Entre suas obras, destacamos: Tristes trópicos,
As estruturas elementares do parentesco, An-
tropologia Estrutural e O pensamento selvagem.
Imagem retirada: http://pt.wikipedia.org/wiki/Claude_L%C3%A9vi-Strauss (acessa-
do: 05/04/2015)

Para Lévi-Strauss a estrutura não é empiricamente observável. Trata-se de


“uma construção teórica em conformidade com a realidade observada, capaz
de dar sentido aos aspectos empíricos de uma sociedade” (Costa, 1987: 99). É o
cientista quem deve construir a estrutura a partir de suas observações e o mo-
delo que constrói deve ser capaz de explicar a realidade social (cf. Costa, 1987).
A estrutura, para ele, é um modelo inconsciente e deve ser compreendida por
meio da linguística:

Lévi-Strauss afirma que a estrutura social é um modelo inconsciente. Exemplifica afir-


mando que raramente os homens sabem por que adotam determinada conduta ou por
que participam de certos rituais. Permanecendo, em grande parte, no inconsciente dos
agentes, a estrutura só pode ser alcançada através do método linguístico, que lida jus-
tamente com a organização inconsciente da linguagem. (Costa, 1987: 103)

capítulo 1 • 31
Ao estudar diversas sociedades, Lévi-Strauss concluiu que todas apresen-
tavam características comuns que denominou “estruturas elementares” que
se revelavam nas relações de consanguinidade, aliança e filiação. Ao estudar
as estruturas de parentesco, a linguagem, a economia, Lévi-Strauss enxerga-
va modalidades diferentes de uma mesma ação: a comunicação ou troca (cf.
Laplantine, 1994). Identificando as estruturas elementares, Lévi-Strauss foi ca-
paz de estudar os mecanismos do pensamento humano (cf. Costa, 1987).
Agora que já discorremos brevemente sobre as antropologias funcionalista
e estruturalista, resta-nos traçar algumas linhas sobre a antropologia interpre-
tativa de Geertz.

Clifford Geertz (1926-2006)

Antropólogo americano e professor emérito da Univer-


sidade de Princeton. Entre suas obras destacamos: A
interpretação das culturas, O saber local, Nova luz sobre
a antropologia, Negara.

Imagem retirada: http://ccs.research.yale.edu/events/geertz-2007/ (acessado:


05/04/2015)

Geertz, ao conceber a cultura como uma “teia de significados” que amarra o ho-
mem, propõe uma ciência interpretativa “à procura do significado” (Geertz, 2008:
4). E a forma de entrar em contato com essa teia de significados é a etnografia.

A exigência de atenção de um relatório etnográfico não repousa tanto na capacidade


do autor em captar fatos primitivos em lugares distantes e levá-los para casa como uma
máscara ou entalho, mas no grau em que ele é capaz de esclarecer o que ocorre em
tais lugares, para reduzir a perplexidade [...] (Geertz, 2008: 12)

32 • capítulo 1
Só que diferentemente de outros etnógrafos que se fiam na veracidade de
suas observações, Geertz entendeu que o trabalho etnográfico é uma constru-
ção a partir das construções de outras pessoas, “os textos antropológicos são
eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por defi-
nição, somente um “nativo” faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultu-
ra)” (Geertz, 2008: 11 – grifo do autor).
A antropologia interpretativa, tendo a cultura como contexto, pretende es-
tudar as estruturas de pensamento: como se constituem, como mudam, como
se mantém, construindo um modelo explicativo que considera a subjetividade
dos sujeitos sociais (cf. Azzan Jr, 1993).
Apenas como curiosidade, consideramos relevante mencionar algumas
nomenclaturas antropológicas: etnologia, antropologia social, antropologia
cultural. Segundo Laplantine (1994) o termo etnologia corresponde à tradição
terminológica francesa, que “insiste sobre a pluralidade irredutível das etnias,
isto é, das culturas” (p. 25); antropologia social liga-se à tradição inglesa que
privilegia o estudo das instituições e da totalidade das relações; enquanto que
antropologia cultural remete à tradição americana voltada para o estudo dos
comportamentos e das características distintivas de determinado grupo.
Espero que você tenha gostado desse breve resgate histórico das correntes
e tradições sociológicas e antropológicas. Não foi nosso intuito elaborar uma
explanação minuciosa das teorias e conceitos, mas apenas apresentar os tra-
ços principais das vertentes teóricas a fim de familiarizá-lo(a) com a discussão
socioantropológica.
No próximo capítulo abordaremos a história e contribuições da sociologia e
da antropologia nos estudos da saúde.

REFLEXÃO
Você viu que tanto a sociologia como a antropologia são áreas relativamente recentes na
pesquisa científica. Também percebeu que, conforme o período histórico e o contexto social,
a forma de pensar e teorizar as sociedades pode mudar. Por exemplo, a sociologia surgiu
fortemente influenciada pelas ciências naturais, tanto que tomou emprestados muitos termos
e conceitos evolucionistas para analisar as sociedades. Depois da Revolução Industrial as
sociedades deixaram de ser vistas como organismos harmônicos e passaram a ser interpre-
tadas como palco dos conflitos de classes.

capítulo 1 • 33
Hoje em dia, qual corrente teórica, sociológica ou antropológica, você consideraria mais
adequada para explicar a realidade que o cerca?
Você já parou para observar se suas relações sociais são de comunidade ou de sociedade?

LEITURA
Pelo evolucionismo e o funcionalismo. Em seguida, discorre sobre o exercício do trabalho de
campo e finaliza relatando sua própria experiência em antropologia social. LÖWY, Michael.
As aventuras de Karl Marx contra o barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na so-
ciologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2000.
Nessa obra Löwy parte do questionamento sobre a objetividade nas ciências sociais e
as ideologias presentes nessas ciências. Voltando-se para a análise de três correntes de
pensamento: positivismo, historicismo e marxismo, o autor pretender discutir os dilemas e
as “contribuições de cada uma destas perspectivas metodológicas para a construção de
um modelo de objetividade próprio das ciências humanas e para uma sociologia crítica do
conhecimento” (p. 9).
MATTA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Petrópolis: Vo-
zes, 1984.
Nesse livro, o antropólogo Roberto da Matta discute a perspectiva da antropologia social.
Num primeiro momento, procura situar a antropologia social no quadro das ciências; depois
percorre a história da antropologia, passando.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, PC. A fenomenologia e as abordagens sistêmicas nos estudos socio-antropológicos
da doença: breve revisão crítica. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(8): 1547-1554, ago., 2006.
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antropologias de Lévi-Strauss e Geertz. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1993.
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capítulo 1 • 35
36 • capítulo 1
2
Sociologia e
Antropologia na
Saúde
O objetivo deste capítulo é apresentar a história e as contribuições da Socio-
logia e da Antropologia na área da saúde, seus principais autores e temas
de pesquisa. Para tanto, precisamos compreender que saúde e doença não
dependem somente do aspecto biológico, concepções de saúde e doença e
seus tratamentos também variam de acordo com as épocas e os contextos
socioculturais.
Já revisitamos os teóricos da Sociologia e Antropologia, agora é o momento de
entendermos como isso pode nos ajudar a pensar e fazer saúde.

OBJETIVOS
Este capítulo trabalhará as contribuições das Ciências Sociais para a área da saúde. Espera-
mos que a partir das informações apresentadas, você seja capaz de:

•  Perceber que os conceitos de saúde e doença são influenciados pelo meio social;
•  Identificar as principais correntes do pensamento socioantropológico na saúde;
•  Compreender os conceitos e contribuições de cada autor;
•  Entender a importância dos estudos sociais em saúde;
•  Aprender conceitos e categorias que o(a) auxiliem a compreender como a realidade socio-
cultural influencia o processo saúde-doença e seus tratamentos..

38 • capítulo 2
2.1  Saúde e doença ao longo da história
Pelo senso comum, estamos acostumados a relacionar muitas doenças com a
presença de um agente patogênico, isto é, algo como vírus, bactéria, fungos,
etc., capaz de nos causar doenças. Em outras palavras, acostumamo-nos a as-
sociar saúde-doença com seus aspectos puramente biológicos. Fazemos uma
série de exames clínicos para tentar descobrir “quem” é o responsável pela en-
fermidade. E o melhor profissional para entender, diagnosticar e tratar sujeitos
saudáveis e doentes é o médico.
Mas você sabia que nem sempre foi assim?
E você já pensou com o contexto sociocultural pode influenciar no processo
saúde-doença assim como nos tratamentos e percepções em relação ao assunto?
Na história de muitos povos, saúde e doença eram tratados pelo xamã1,
um sujeito conhecedor de rezas, símbolos e rituais, capaz de trabalhar com os
poderes da natureza e dos espíritos no intuito de restabelecer a saúde física e
mental dos membros do seu povo. Existem evidências de cultos xamanísticos
entre nativos norte-americanos, da América Central, da América do Sul, da
Oceania, Tibet, China, Índia (cf. Montal, 1986). A saúde, para o xamã, envol-
via muito mais do que simples ausência de doenças, era entendida como um
estado de harmonia: com a própria visão de mundo, com a natureza (animais,
plantas, minerais, etc.) (cf. Barros, 2008) e com o mundo espiritual. Os sujeitos
tratados por ele eram convidados a resgatar essa harmonia com o auxílio dos
saberes e intuição xamânicos.
Já em outros lugares, como na Grécia Antiga, muitos dos problemas de saú-
de enfrentados pelos sujeitos, especialmente a loucura, eram interpretados
como responsabilidade e vontade dos deuses gregos. Contudo, é interessante
mencionar que, a princípio, a interferência divina não era associada à ideia de
castigo ou culpa do sujeito (cf. Pessoti, 1994).
Foi especialmente com Hipócrates, reconhecido como o “pai da medicina”,
que doença passa a ser dissociada da vontade dos deuses e começa a ser entendida
como desequilíbrio orgânico, resultante do desequilíbrio no sistema de humores
do sujeito (sangue, pituíta, bílis amarela e bílis verde, escura) e o ambiente externo
(cf. Pessoti, 1994). O tratamento indicado seria uma limpeza do organismo ou ór-
gão, provocando um expurgo, através de mudanças alimentares ou alterações no
comportamento e modo de vida, visando ao retorno da harmonia humoral.

1  Xamã: “A palavra xamã vem do tungue saman, aparentado com o sânscrito sramana e com o pâli samana, que
significa ‘homem inspirado pelos espíritos’.” (Montal, 1986: 15).

capítulo 2 • 39
Juramento de Hipócrates dos médicos:
“Por Apolo, o médico, e por Asclépio, por Higia e Panacea e por todos os deuses e deu-
sas, a quem conclamo como minhas testemunhas, juro cumprir o meu dever e manter
este juramento com todas as minhas forças e com todo o meu discernimento: tributarei
a meu Mestre de Medicina igual respeito que a meus progenitores, repartindo com ele
meus meios de vida e socorrendo-o em caso de necessidade; tratarei seus filhos como se
fossem meus irmãos e, se for sua vontade aprender esta ciência, eu lhes ensinarei desin-
teressadamente e sem exigir recompensa de qualquer espécie. Instruirei com preceitos,
lições orais e demais métodos de ensino os meus próprios filhos e os filhos de meu Mes-
tre e, além deles, somente os discípulos que me seguirem sob empenho de suas palavras
e sob juramento, como determina a praxe médica. Aviarei minhas receitas de modo que
sejam do melhor proveito para os enfermos, livrando-os de todo mal e da injustiça, para o
que dedicarei todas as minhas faculdades e conhecimentos. Não administrarei a pessoa
alguma, ainda que isto me seja pedido, qualquer tipo de veneno nem darei qualquer con-
selho nesse sentido. Da mesma forma, não administrarei a mulheres grávidas qualquer
meio abortivo. Guardarei sigilo e considerarei segredo tudo o que vir e ouvir sobre a vida
das pessoas durante o tratamento ou fora dele.” (Gaarder, 1995:69)

Contudo, as teorias apresentadas nessa época, que se baseavam na teoria


dos humores e da fleuma2, não significaram uma ruptura com a metafísica.
Elas procuraram romper com a explicação mitológica e rejeitar a medicina sa-
cerdotal, no entanto suas proposições anatomofisiológica possuíam um teor
altamente especulativo, quase mágico, aos olhos de hoje (cf. Pessoti, 1994).
Com o passar dos anos e a configuração da Idade Média, presenciou-se o
retorno do misticismo. Nesse momento, as doenças, especialmente a loucura,
não eram mais produzidas pelos deuses do Olimpo, agora elas passaram a ser
entendidas como obras do demônio ou daqueles que pactuavam com os pode-
res do diabo, como os acusados de feitiçaria ou bruxaria.

2  Fleuma: “um dos quatro humores corporais, segundo a teoria hipocrática e a galênica. Frieza de ânimo, serenidade,
impassibilidade [...] Falta de interesse, diligência ou pressa, lentidão, pachorra [...]” (Ferreira, 1997: 787)
Metafísica: “[...] é um corpo de conhecimentos racionais (e não de conhecimentos revelados ou empíricos) em que
se procura determinar as regras fundamentais do pensamento [...] Segundo Aristóteles, estudo do ser enquanto
ser e especulação em torno dos primeiros princípios e das causas primeiras do ser. Sutileza ou transcendência do
discorrer.” (Ferreira, 1997: 1126)

40 • capítulo 2
CONEXÃO
A Inquisição católica exerceu dura perseguição às pessoas que considerava “bruxas” ou
“adoradoras do diabo”. Você pode saber um pouco mais sobre a história das “bruxas” no
seguinte documentário: https://www.youtube.com/watch?v=_QInuWRZPXQ

Por outro lado, se o demônio era capaz de produzir doenças, havia também
representantes divinos que poderiam realizar curas, como por exemplo, os reis
taumaturgos. Existem relatos como casos dos reis da França e da Inglaterra em
que seus soberanos foram considerados representantes divinos, capazes de re-
alizarem cura de escrófulas3 entre outras doenças, apenas com o toque de suas
mãos ou através de um anel tocado (“abençoado”) por esses monarcas (cf. Bloch,
1993).
No caso do Brasil, os três primeiros séculos, após a chegada portuguesa em
terras nacionais, foram marcados pelas práticas populares em saúde, que mistu-
ravam elementos da cultura negra, indígena e cristã, e eram executadas por ben-
zedeiros e curandeiros (cf. Montero, 1985). Esse cenário sofreu modificações ape-
nas com a instalação da família real portuguesa no Brasil a partir de 1808, com a
estruturação do ensino médico no país, como a abertura das Escolas de Medicina
na Bahia e no Rio de Janeiro. Tal fato contribuiu para que as práticas populares
perdessem sua hegemonia e passassem a competir com o saber médico. Para se fir-
mar como conhecimento hegemônico, a medicina valeu-se da ideia de “charlata-
nismo” das práticas populares e quem as praticassem poderiam ser denunciados à
polícia! Essa “perseguição” não foi suficiente para eliminar as práticas populares,
mas fragmentou o conhecimento tradicional e colaborou para que benzedores e
curandeiros fossem relegados às periferias urbanas (cf. Montero, 1985).
Feito esse aparte, voltemos à Europa.
Após anos de perseguição às bruxas e aos demônios, de hegemonia do clero
e do poder dos monarcas, emergiu, dentro da Europa, o Iluminismo, por volta
do século XVII.
Você, caro(a) leitor(a), deve se recordar que, no capítulo 1, aprendemos
que durante o período do Iluminismo, houve uma ruptura com as explicações
3  Escrófulas: “Designação imprecisa do estado constitucional, que se observa nos jovens, caracterizado pela falta
de resistência, predisposição à tuberculose, eczema, catarros respiratórios [...] Tuberculose ganglionar linfática em
eventualmente óssea e articular, com supuração e fistulização [...] Ocorre sobretudo em crianças e jovens.” (Ferreira,
1997: 691) Taumaturgo: “Que ou aquele que faz milagre.” (Ferreira, 1997: 1653)

capítulo 2 • 41
religiosas e a predominância do racionalismo e dos métodos científicos de in-
vestigação. Foi a partir desse momento que a ciência se consolidou como prá-
tica imprescindível para o conhecimento. Os saberes que produzia passaram a
explicar, não somente como funcionava o mundo, mas também como os cor-
pos adoeciam ou permaneciam saudáveis.
Foi por meio da experimentação, fragmentação e classificação da natureza,
dos corpos e dos sintomas que foi possível construir as bases para o surgimento
da medicina moderna que, segundo Foucault (1977), pode ser datada em fins
do século XVIII e início do XIX.
Com o desenvolvimento das experiências e instrumentos científicos, como
por exemplo, o microscópio, constatou-se que não eram os deuses ou os de-
mônios que provocavam as doenças, mas as condições ambientais e orgânicas
eram as responsáveis pelas enfermidades e o saber médico era o mais indicado
para tratar tais casos.

2.2  Contexto histórico da Sociologia da


Saúde

Não foi apenas o surgimento da medicina moderna que ocorreu nos fins do sé-
culo XVIII; como vimos no capítulo anterior, esse também foi o tempo da Revo-
lução Industrial. As condições de trabalho, a vida da população trabalhadora e os
problemas sociais da época despertaram o interesse do conhecimento médico.
Em 1848, foi publicado, em Paris, o texto intitulado “Médicine Sociale” de au-
toria de Jules Guérin (Nunes, 2007). Para Guérin, competia ao corpo médico “me-
lhorar as classes inferiores”, desenvolvendo a moral, a educação e o saneamento
do vício, sugeria também a redução das horas de trabalho e aumento dos salários
para que o trabalho fosse mais eficaz e produtivo (cf. Nunes, 2007: 31ss).

Em lugar de aplicações vacilantes e isoladas agrupadas em títulos como polí-


cia médica, higiene pública, ou medicina legal, chegou a hora de reunir estes fa-
tos dispersos, regularizá-los em um todo e de levá-los à sua significação mais ele-
vada, sob o nome, mais apropriado para suas funções, de medicina social. [...]

42 • capítulo 2
Por quem serão determinadas, senão pelo médico, as causas da deterioração física da
classe para quem se acaba de por abaixo a estrutura de privilégios, e que conhece os
meios para torná-la mais sã, forte e feliz? [...] (Guérin apud Nunes, 2007: 31)

Jules Guérin (1801-1886)


Nasceu em Boussu, “estudou em Lovaina e Paris, de 1821 a 1826. Diplomou-se em
medicina, tendo se encarregado da direção da Gazette de la Santé a partir de 1828.
Rebatizado com o nome de Gazette Médicale de Paris, tornou-se a publicação médica
mais importante na França”. (Nunes, 2007: 29)

Além da França, outros países também começaram a discutir acerca da


“medicina social”, como no caso da Alemanha, em que seus teóricos destaca-
vam a importância das condições sociais para o processo saúde-doença, assim
como, percebiam a saúde como uma questão de interesse social (cf. Nunes,
2007). O termo “sociologia médica” foi utilizado em um texto de 1894, de auto-
ria de Charles McIntire, médico de Easton, Pensilvânia, em uma conferência na
Academia de Medicina nos Estados Unidos (cf. Nunes, 2007).

[a sociologia médica é] a ciência que investiga as leis que regulam as relações entre
a profissão médica e a sociedade humana como um todo; tratando da estrutura de
ambas, como as condições atuais emergiram e como o progresso da civilização tem
afetado essas relações (McIntire apud Nunes, 2007: 38).

As concepções relacionadas a uma “medicina social” ou “sociologia médi-


ca” contribuíram para que se atentasse para as relações entre médico, paciente
e sociedade. O próprio Charles McIntire chamou a atenção para a linguagem
médica que poderia dificultar o entendimento para quem não estivesse acostu-
mado (cf. Nunes, 2007: 38).
Em 1929, o médico Henry Sigerist, ao publicar “The Special Position of the
Sick” (“Da posição do doente na sociedade”) foi pioneiro ao retirar o foco da me-
dicina e enfatizar a importância da pessoa doente no contexto social. Sigerist en-
tendia que o doente ocupava uma posição específica na sociedade, uma vez que a

capítulo 2 • 43
doença ocasionava uma interrupção na vida e que o status do doente só poderia
ser compreendido por meio de uma análise histórica (cf. Nunes, 2007: 47).

Um ritmo sem distúrbio significa saúde. [...] Então, a doença surge abruptamente na vida
da pessoa. Ela nos lança para fora de nossa rotina. [...] Ser doente significa sofrer – so-
frer em um duplo sentido. Sofrer significa ser passivo. O homem doente está cortado da
vida ativa, uma vez que ele é incapaz de procurar seu próprio alimento. Está literalmente
abandonado e entregue aos cuidados de outras pessoas. Mas sofrer também significa
desconforto. [...] Este desconforto é chamado dor. Dor pressupõe uma unidade orgânica
e significa que esta unidade foi quebrada. Seu próprio funcionamento, para qual esta-
mos acostumados, não nos chama atenção. A dor é um grito de alarme que nos conta
que em alguma parte específica de nossos corpos uma luta está acontecendo. [...] Mas,
para retornar, nós devemos considerar a posição da pessoa doente nas culturas que têm
contribuído para a estrutura da civilização ocidental. [...] (Sigerist apud Nunes, 2007: 48)

Henry Ernest Sigerist (1981-1957)


Nasceu em Paris. Foi professor de História da Medicina e diretor do Instituto de His-
tória da Medicina da Universidade de Leipzig, até 1932. Depois, transferiu-se para a
Universidade de Johns Hopkins, nos EUA, permanecendo até 1947, após esse período
muda-se para a Suíça, lá vivendo até seu falecimento. (Cf. Nunes, 2007: 45-46)

Em 1935, o médico Lawrence Henderson realizou uma palestra denomi-


nada “Physician and Patient as a Social System” (“A relação médico/paciente
como um sistema social”), chamando atenção para a questão da comunicação
entre médicos e seus pacientes (cf. Nunes, 2007).

Uma profusão de importantes fatos e teorias novos, de novos métodos e rotinas, absor-
ve de tal maneira a atenção dos médicos e dominam seus interesses que as relações
pessoais parecem ter-se tornado menos importantes, se não absolutamente, pelo me-
nos relativamente, ante a nova e poderosa tecnologia da prática médica. (Henderson
apud Nunes, 2007: 61)

44 • capítulo 2
Esse distanciamento entre o saber médico-científico e conhecimento popu-
lar será tema de posteriores pesquisas e críticas, como por exemplo, estudos
que evidenciam as relações de poder que o primeiro exerce sobre o segundo (cf.
Boltanski, 1989). Um estudo célebre, sobre a crescente medicalização da saúde
e consequente distanciamento em relação ao conhecimento popular, é o texto
de Illich (1975), A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. O autor discute
como a elevada medicalização da saúde fez com que os sujeitos perdessem sua
autonomia sobre a própria saúde, passando a serem dependentes exclusiva-
mente do saber médico-científico que, por sua vez, nem sempre é acessível ou
compreensível para todos que o procuram.

Lawrence Joseph Henderson (1878-1942)


Nasceu e faleceu nos EUA. “Graduou-se em 1898 no Harvard College e em 1902 na
Harvard School of Medicine. [...] nunca praticou a medicina, embora dela tivesse grande
conhecimento, até mesmo do papel que o seu rápido desenvolvimento científico estava
tendo na época. [...] O interesse de Henderson pelas ciências sociais foi derivado das
suas leituras de Pareto, levando-o a desenvolver constantes análises em torno dos
conceitos de sistema, equilíbrio, dependência mútua e as funções dos esquemas con-
ceituais [...]” (Nunes, 2007: 60)

Contudo, voltemos a Lawrence Henderson.


Esse médico irá influenciar o sociólogo americano Talcott Parsons, que
na década de 1950 publicou o livro The Social System, cujo capítulo X, “Social
structure and Dynamics process: the case of the modern medical practice” ex-
plicita suas preocupações com a área da saúde. Segundo o médico e sociólogo
Juan César García (1983) – de quem falaremos mais adiante – Parsons fez parte
da corrente sociológica do neopositivismo ou funcionalismo sociológico. Para
essa corrente, as sociedades são como totalidades que compõem um sistema
social de elementos interdependentes que tendem ao equilíbrio e à estabilida-
de; elementos desviantes ou desarmônicos seriam considerados “disfuncio-
nais” e as mudanças sociais não eram revolucionárias, mas adaptativas e lentas
(cf. García, 1983). Ainda segundo García (1983: 106), Parsons entendia a doença
como parte do equilíbrio social, uma forma de conduta desviada, e a medicina
serviria como um mecanismo de controle social.

capítulo 2 • 45
Uma breve meditação nos fará ver imediatamente que o problema da saúde encontra-
se intimamente implicado nos pré-requisitos funcionais do sistema social [...] a doença
incapacita para desempenhar efetivamente os papeis sociais. [...] A prática médica [...] é
um ‘mecanismo’ no sistema social para enfrentar as doenças de seus membros. (Par-
sons apud Nunes, 2007: 91-92)

Talcott Parsons (1902-1979)


Nasceu no Colorado, EUA. Cursou a Universidade de Amherst onde se interessou pe-
las ciências sociais. Trabalhou em Harvard, onde construiu sua carreira. Presidiu as
Eastern Sociological Society (1942), American Sociological Association (1949), Ame-
rican Academy of Arts and Science (1967). (cf. Nunes, 2007: 90)

Nunes (2007: 92-93) chama-nos atenção para o fato de Parsons reconhecer


que existem outras formas de lidar com a doença além da medicina científica,
como por exemplo: a magia e a religião. Outros aspectos interessantes, aponta-
do pelo mesmo autor, foram os estudos de Parsons sobre as características do
papel do médico e sua competência técnica e do papel do doente, considerado
leigo, desqualificado ou limitado para recuperar a própria saúde.
Apesar das contribuições de Parsons, este também sofreu críticas. Conforme
Nunes (2007:101) as três limitações apontadas às obras parsonianas são: a) não
reconhecer as divisões sociais estabelecidas pelo sexo, classe social e etnia que,
por sua vez, influenciam as experiências acerca do processo saúde-doença e
seus tratamentos; b) utilizar uma abordagem a-histórica sem se atentar para as
diferenças das instituições de saúde das diversas sociedades; c) idealização do
relacionamento médico-paciente.
Essas críticas nos apontam outro prisma para compreender o processo saú-
de-doença. Quando indicam que Parsons não reconhece as divisões sociais,
como as classes sociais, e que ele não se atenta para a historicidade4 dos fenô-
menos sociais, vislumbramos a influência do materialismo histórico dialético.

4  Historicidade: “Caráter do que é histórico. Atuação do homem como agente no processo histórico-literário”.
(Ferreira, 1997: 901)

46 • capítulo 2
Sociologia Médica ou Sociologia da Saúde?
Segundo Nunes (2006) o termo Sociologia Médica foi definido por Charles McIntire
em 1894. Nos fins dos anos 1960 e início dos 70, começaram a ocorrer mudanças
nas perspectivas na abordagem da sociologia médica, retirando o foco da medicina e
da profissão médica para “deslocar-se em direção à saúde e a outras profissões dessa
área” (p. 290), configurando, dessa forma, a ideia de uma sociologia da saúde.

2.3  Contribuições do materialismo histórico


para pensar o processo saúde-doença

Você querido(a) leitor(a) deve se lembrar que no capítulo anterior falamos do


materialismo histórico dialético. Resumidamente, o materialismo focará as
condições materiais de existência, as formas de produção da sociedade; o his-
tórico relaciona-se ao movimento, a dinâmica, o processo; e o método dialético,
debruça-se sobre as contradições do social.
Você também deve se recordar que, páginas acima, mencionamos que
a ideia de uma “medicina social” coincidiu com as realidades urbanas pós
Revolução Industrial.
Um pensador da sociologia da saúde marcadamente marxista foi o sociólo-
go americano Bernhard Stern.

Bernhard Joseph Stern (1894-1956)


Nasceu em Chicago, EUA. Estudou na Universidade de Cincinnati. No início da década
de 1920 passou um tempo estudando na Europa, retornando aos EUA em 1924. Em
1927, na Columbia University, obteve o título de doutor em Sociologia e Antropologia
com a tese Social factors in medical progress em que analisava a “resistência social à
inovação médica”. (cf. Nunes, 2007: 74-75)

Em 1959 Stern publicou o texto “The physician and society” (“O médico
e a sociedade”) em que analisa “as relações entre as mudanças sociais e as

capítulo 2 • 47
mudanças na prática médica” (Nunes, 2007: 77), isto é, ele relaciona a medicina
com o contexto sociocultural.

[...] estudar as mudanças ocorridas na prática médica em face da vida urbana; o desen-
volvimento das formas corporativas de negócios empresariais; os diferenciais do poder
aquisitivo; a variável composição etária da população pela qual a ciência médica é em
grande parte responsável; a melhoria em transporte e comunicação; as mudanças nos
padrões (ou níveis de vida); o avanço nos padrões educacionais da população americana;
as tendências do declínio da autoridade governamental local e crescimento do papel do
governo federal em todos os aspectos da vida americana”. (Stern apud Nunes, 2007: 76)

A partir do trecho citado acima, podemos constatar que, além de privilegiar


a perspectiva histórica, Stern ressalta a importância de voltar-se para as con-
dições materiais de existência para compreender a própria ação da medicina.
Para García (1983: 110-112) poderíamos dizer que Stern percebia o vínculo da
medicina com o desenvolvimento das forças produtivas e que a própria ciência
estava sob a influência do seu meio econômico.

Stern e outros autores, aceitando a concepção geral de que historicamente existe um


melhoramento dos níveis de saúde, concentram-se no estudo dos determinantes da
distribuição desigual da morbi-mortalidade. No capitalismo ocorre um melhoramento
dos níveis de saúde quando comparado a outros modos de produção pré-capitalistas
existindo a possiblidade de um melhoramento para as classes sociais dominadas. São
as relações de produção capitalistas, sem dúvida, que estão impedindo um melhora-
mento homogêneo de saúde para todas as classes sociais pois não permitem uma
distribuição igualitária do excedente. Essa contradição se resolverá com a mudança
das relações de produção, que permitirá uma distribuição segundo necessidades e,
por conseguinte, uma homogeneização do estado de saúde ao nível alcançado pelas
classes dominantes no modo de produção superado” (García, 1983: 113-114).

Como já apontado acima por García, Stern evidenciou como as desigual-


dades sociais influenciam na manutenção da saúde. Ao estudar os anos de
1938-1940 da cidade de Nova Iorque, Stern constatou as diferenças de morta-
lidade infantil entre brancos e negros (66% maior para negros em relação aos

48 • capítulo 2
brancos), como também, percebeu que havia diferenças semelhanças entre
grupos de brancos com rendas diferentes e entre os que moravam na zona rural
e na área urbana (cf. Nunes, 2007: 79).
Outro pensador marxista na área da saúde, que foi muito influente na
América Latina, desde meados da década de 1960 até os anos 80, é o médico e
sociólogo argentino Juan César García (cf. Nunes, 2013).

Juan César García (1932-1984)


Nasceu em Necohea, Argentina. “Graduou-se em medicina pela Universidade de La
Plata (Argentina) e foi chefe do Centro de Saúde de Berisso, província de Buenos Ai-
res. Estudou sociologia na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso),
Chile, onde lecionou Teoria Sociológica. Em 1965 foi nomeado assistente de investiga-
ção na Universidade de Harvard em 1967 incorporou-se à Organização Pan-America-
na da Saúde, em Washington, DC.” (Nunes, 2007: 107)

Até a década de 1960, os estudos sociais sobre a saúde na América Latina es-
tavam voltados “a descrições de padrões sociais e culturais que afetam a saúde
em pequenas comunidades campesinas ou aldeias indígenas; havia poucos es-
tudos sobre aspectos sociais de algumas enfermidades [...]” (Nunes, 2007: 106).
García inicia sua discussão na área da saúde, na década de 60, estudando a rela-
ção médico-paciente (cf. Nunes, 2013, 2007). Em 1972, publicou “Las Ciencias
Sociales en Medicina”. Nesse manuscrito, o autor ressalta quatro pontos que
deveriam ser relevados pelos estudos das ciências sociais em saúde:

a) a localização da medicina na estrutura social [...]; b) a influência da estrutura social


na produção e distribuição da doença [...]; c) análise da estrutura internada produção
de serviços médicos e d) a relação da formação de pessoa de saúde com o médico
(Nunes, 2007: 108).

Os estudos de García entre os anos de 1960 e 1980 não se limitaram às rela-


ções médico-paciente, contemplaram também temas como: educação médica;
estudante de medicina; ensino das ciências sociais; doenças; artigos sobre as
origens da medicina social; o conceito e a história da medicina comunitária; es-
colha da enfermagem como profissão; a articulação da educação e da medicina

capítulo 2 • 49
na estrutura social, história das instituições de pesquisa na América Latina e
relações entre medicina e o Estado, de 1880 a 1930 (cf. Nunes, 2013: 1755-56).
Uma estudiosa que realizou interessantes investigações acerca do processo
saúde-doença, sob a ótica do materialismo histórico, foi Asa Cristina Laurell.

Asa Cristina Laurell (1971- )


“Graduou-se em medicina, em 1971, pela Universidade de Lund (Suécia) e obteve o
grau de Mestre em Saúde Pública pela Universidade da Califórnia, Berkeley, especia-
lizando-se em epidemiologia. De 1972 a 1974 coordenou pesquisa sobre problemas
socioeconômicos nas áreas de cortiços da cidade do México. [...] coordenadora do cur-
so de pós-graduação de Medicina Social na Universidade Autônoma Metropolitana de
Xochimilco, na cidade do México [...]” (Nunes, 2007: 134)

Laurell compreende que saúde e doença não se restringem ao âmbito bio-


lógico, estão relacionados a: formas de organização da sociedade; a lógica dos
interesses econômicos; a relações de poder e a representações sociais (Laurell,
1983). Em outras palavras, Laurell entende saúde como um processo social em
que é preciso relevar o nexo biopsíquico, isto é, a historicidade dos processos
biológicos e psíquicos humanos (Laurell, 1989).
Ao estudar as influências do processo de produção sobre a saúde, Laurell
(1989) compreende que o processo de produção, a forma de organização das
forças produtivas e as formas de produção originam processos de adaptação e
padrões de desgaste nos sujeitos. Os processos de adaptação, ou melhor, os “es-
tereótipos de adaptação” para usarmos as palavras de Laurell, são entendidos
como um fenômeno da coletividade, do grupo social em determinada posição
na produção, e essa adaptação ocasiona mudanças específicas nos processos
corporais para a sobrevivência e para lidar com o estresse. Essas adaptações são
respostas às cargas de trabalho que os sujeitos enfrentam durante a produção.

Para Laurell (1989:111ss), as cargas de trabalho podem ser classificadas como: a)


cargas físicas – como por exemplo: calor ou som excessivo; b) químicas – pó, fumaça,
etc; c) biológica – microorganismos, etc; d) fisiológicas; e) psicológicas.

50 • capítulo 2
Já o processo de desgaste é definido por Laurell como: “perda da capacidade
efetiva / potencial, biológica e psíquica” (1989: 115) ocasionada pelas formas
de produção. Essa perda não é irreversível, caso haja uma mudança na forma
de produção ou se os sujeitos deixarem o trabalho que ocasiona o desgaste, é
possível reverter essa condição.
As desigualdades sociais, desencadeadas pela divisão social do trabalho e
pela distribuição desigual de bens e recursos entre as classes sociais, influenciam
os perfis patológicos das coletividades. Esses perfis patológicos podem se alterar
conforme as transformações das sociedades (cf. Laurell, 1983). Para ilustrar isso,
Laurell, em seu texto “A saúde-doença como processo social” (1983), comparou
os índices de mortalidade no México entre os anos de 1940 e 1970 e constatou
que as mudanças histórico-sociais ocorridas, no referido país, influenciaram a
diminuição das doenças infecciosas. No mesmo manuscrito, a autora comparou
os diferenciais de mortalidade entre as classes sociais, da Inglaterra, no perío-
do de 1921 a 1972, dando relevância aos dados referentes aos anos posteriores
a 1949, devido ao fato que em 1946 foi implantado o Serviço Nacional de Saúde
inglês, que garantia a toda a população o acesso ao serviço médico.
Comparando os dados no referido intervalo de tempo (1921-1972) Laurell ve-
rificou que não houve diminuição dos diferencias de mortalidade entre os gru-
pos sociais. Quando analisados isoladamente, cada grupo até apresentou uma
diminuição em seus índices de mortalidade, contudo, a proporção dos índices
de mortalidade entre os grupos permaneceu relativamente os mesmos. Tal per-
cepção levou Laurell a concluir que os diferencias de mortalidade não são resul-
tantes diretos de acesso diferente aos serviços médicos. Os grupos sociais apre-
sentam perfis patológicos5 que se “distinguem conforme o modo particular de
combinar-se o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de
produção” (Laurell, 1983: 148). Indicando a importância de “estudar o tipo, a fre-
quência e a distribuição da moléstia nos diversos grupos sociais que constituem
a sociedade [...] a distribuição da doença e da morte é desigual” (idem: 145).

5  Perfil patológico: “O perfil patológico se constitui considerando o tipo de patologia e a frequência que determinado
grupo apresenta em um dado momento.” (Laurell, 1983: 137)

capítulo 2 • 51
CONEXÃO
Caso tenha interesse em saber mais detalhes sobre o texto “A saúde-doença como pro-
cesso social”, você pode encontrá-lo no seguinte endereço: https://fopspr.files.wordpress.
com/2009/01/saudedoenca.pdf

Mas será que o processo de produção ainda hoje é tão influente no processo
saúde-doença?
Para uma pensadora brasileira (Luz, 2013), a lógica de produção capitalista
gera uma perda de sentido do estar e agir social no mundo, desencadeada por
sentimentos de confinamento, limitação e insegurança. A lógica da produtivi-
dade e a racionalidade de mercado estimulam a competição, a busca pelo su-
cesso, o individualismo e o consumo, que dificultam a sociabilidade e levam
os sujeitos a um estado de tensão permanente. Tal situação acaba afetando o
bem-estar e acentua o sentimento de desamparo e perigo, desencadeando uma
busca por cuidado e atenção em saúde “como forma de compensar o vazio de
sentidos culturais da sociedade capitalista atual” (p. 20).
A busca por cuidado não se delimita apenas ao saber médico-científico, o
cuidado pode ser encontrado em outros lugares, em outras formas, por exem-
plo, alguns grupos sociais recebem cuidados e apoio social em instituições re-
ligiosas (cf. Valla, Guimarães, Lacerda, 2013). Reiterando, tudo dependerá do
contexto sociocultural em que os sujeitos e os grupos estão inseridos.
Vimos que a sociologia e a sociologia na saúde podem nos ajudar a compre-
ender como as condições sociais (organização, processo de produção, desigual-
dades na distribuição de renda e recursos, etc.) podem influenciar o processo
saúde-doença. Vamos agora tentar entender como a antropologia e a antropo-
logia da saúde pode nos auxiliar a compreender como a cultura interfere no
processo saúde-doença e nas formas de tratamento.

2.4  A Antropologia na saúde


Uma das principais contribuições da Antropologia para a saúde é “relativizar
conceitos biomédicos” (Minayo, 2009), as explicações baseadas na ciência e
na biologia são importantes, entretanto, não constituem as únicas formas de

52 • capítulo 2
interpretação e compreensão do processo saúde-doença. Segundo Langdon e
Wilk (2010: 179), “todas as culturas possuem conceitos sobre o que é ser doente
ou saudável”, que extrapolam as teorias médico-científicas.
Você já deve ter ouvido expressões como: “ele pegou um vento gelado e aí fi-
cou gripado”. Não queremos deslegitimar essa explicação, contudo, você percebe
que não há menção ao vírus da gripe, que seria a interpretação biomédica para a
doença? Mesmo que não acreditemos na relação “vento gelado-gripe”, temos de
reconhecer que expressões como essa são difundidas em nosso senso comum.
Cada grupo social também possui uma compreensão própria a respeito do
corpo e do seu funcionamento. Segundo Helman (2009), a cultura irá influen-
ciar a relação dos sujeitos com seus corpos da seguinte maneira:

1. Crenças sobre a forma e o tamanho ideais do corpo, incluindo as rou-


pas e a ornamentação de sua superfície
2. Crenças sobre os limites do corpo
3. Crenças sobre a estrutura interna do corpo
4. Crenças sobre o funcionamento do corpo”. (Helman, 2009: 27)

As formas de compreender o corpo e seu funcionamento, por sua vez, determi-


narão “os tipos de recursos e práticas aceitas em cada sociedade” (Víctora, 2000: 19).
Lembra-se do xamã que mencionamos no começo deste capítulo? O xamã en-
tende as doenças como provenientes da desarmonia do sujeito com suas visões
de mundo, com a natureza e com os espíritos. Dessa forma, seus tratamentos não
se restringirão à doença orgânica, mas envolverão os aspectos psicoespirituais.
Talvez você esteja se questionando “mas será que isso funciona?”.
O antropólogo Lévi-Strauss, em seu célebre estudo “O feiticeiro e sua magia”
(1973a) procurou explicar o mecanismo da eficácia da magia e dos rituais do fei-
ticeiro ou xamã. Para que as práticas mágicas funcionem são necessários três
elementos: a) a crença do feiticeiro em suas técnicas – se não acreditar, prova-
velmente ele não irá praticá-las; b) crença do doente no poder do feiticeiro – se
o doente não acreditar no feiticeiro, certamente não irá procurar seus serviços;
c) aprovação da opinião coletiva. Podemos entender que a questão da magia ul-
trapassa a busca da simples busca da cura orgânica, a “eficácia simbólica” (Lévi-
Strauss, 1973b) dos rituais, símbolos e tratamentos do xamã/feiticeiro é capaz de
conferir sentido ao processo saúde-doença e pode, até mesmo, levar à cura.

capítulo 2 • 53
CONEXÃO
A prática xamânica não exclui o conhecimento biomédico. Por vezes, é possível que atuem
em conjunto, considerando o bem-estar do sujeito enfermo, como você poderá ver no seguin-
te vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=YKubroVL-Xs

A experiência da dor também sofre influência da cultura (Adam, Herzlich,


2001), por exemplo, às vezes, para uma mesma doença, certos grupos manifes-
tam sua dor de maneira intensa, associam outros sintomas à doença e quei-
xam-se de forma imprecisa, enquanto outros grupos podem ser mais comedi-
dos ao expressarem suas dores e mais precisos na descrição dos sintomas.

O caso da influência cultural na experiência da dor e descrição dos sintomas


Trata-se de um estudo realizado por Irving Zola, na década de 1960, com grupos de
americanos, um de origem italiana e outro de origem irlandesa. Esse estudo foi citado
por Philippe Adam e Claudine Herzlich:
“O autor estudou a descrição que os pacientes faziam de seus sintomas ao clínico geral,
ao oftalmologista e ao otorrinolaringologista, e comparou com grande precisão a ex-
pressão das reclamações em pares de doentes, um de origem italiana, outro de origem
irlandesa, que tinham recebido o mesmo diagnóstico. Os irlandeses localizavam preci-
samente com maior frequência os sintomas, descrevem uma disfunção cirscuncrita e
minimizam o sofrimento. Os italianos reclamam de sintomas mais numerosos e mais
difusos; eles insistem sobre a dor e exageram, afirmando que seu humor e suas rela-
ções estão perturbadas. Assim, para um mesmo problema de visão, à questão ‘Qual é o
seu problema?’ um americano de origem irlandesa responde: ‘Não consigo enxergar o
suficiente para por um fio no buraco de agulha ou ler o jornal’, enquanto que o paciente
de origem italiana responde: ‘Estou com uma dor de cabeça que nunca passa, os olhos
escorrem e ficam vermelhos’.” (Adam; Herzlich, 2001: 71-72)

Apesar de existirem estudos antropológicos que abordassem saúde e doença,


a ideia de antropologia médica surgiu nos EUA na década de 1960, “fortemente
associada à Epidemiologia e à Clínica, dedicando-se em linhas gerais ao estudo
da incidência e distribuição das doenças, aos cuidados em instituições médi-
cas, aos estudos dos problemas de saúde em geral e à etnomedicina” (Canesqui,

54 • capítulo 2
1994:15). Posteriormente, a antropologia médica ampliou sua área de atuação,
para além de suas raízes epidemiológicas e clínica, dedicando-se a estudar

[...] a forma como as pessoas, em diferentes culturas e grupos sociais, explicam as cau-
sas dos problemas de saúde, os tipos de tratamento nos quais elas acreditam e a quem
recorrem quando adoecem. Ela também é o estudo de como essas crenças e práticas
relacionam-se com as alterações biológicas, psicológicas e sociais no organismo hu-
mano, tanto na saúde quanto na doença. A antropologia médica, por fim, é o estudo
do sofrimento humano e das etapas pelas quais as pessoas passam para explicá-lo e
aliviá-lo.” (Helman, 2009:11)

Dessa forma, depreende-se que para entender o processo saúde-doença


e tratamentos é fundamental considerar o contexto sociocultural do grupo
estudado.

“A expressão antropologia médica vem de uma tradição de pesquisa anglo-saxônica


atuando diretamente no campo da biomedicina e das terapêuticas tradicionais, de pre-
ferência em países da Ásia, da África e da América Latina. No Brasil foi bastante usada
por antropólogos da saúde formados na Inglaterra e nos Estados Unidos. [...] Por sua
vez, a expressão antropologia da saúde tem origem francesa e trabalha com um marco
referencial mais amplo e contextualizado”. (Minayo, 2009: 204-205)

Além da relevância do contexto, alguns autores em antropologia médica,


valem-se da distinção de três perspectivas sobre a doença: disease; illness e
sickness.

A palavra disease é utilizada para referir estados orgânicos e funcionais, ou seja, a do-
ença tal como ela é identificada pelo modelo biomédico. Já illness remete à percepção
que o indivíduo possui de seu estado, é a perspectiva leiga sobre o fenômeno, refere-
se a situação da doença no seu sentido mais amplo. Por fim, sickness situa-se entre a
concepção biomédica e a leiga, é uma espécie de consenso negociado entre os dois
modelos. (Víctora, 2000: 21)

capítulo 2 • 55
Inspirado em Geertz – lembra-se de Geertz? O antropólogo norte-america-
no que propôs a Antropologia Interpretativa – o médico e antropólogo Arthur
Kleinman concebeu que os comportamentos humanos no processo saúde-doen-
ça são respostas socialmente construídas; e os traços cognitivos e as noções ela-
boradas sobre as doenças poderiam ser estudados como “modelos explicativos”,
havendo diferenças entre os modelos explicativos dos profissionais e os modelos
explicativos dos doentes (Uchôa; Vidal, 1994: 500-501). A antropologia na saúde,
nesse caso, ao relevar o contexto cultural e ao identificar os modelos explicativos,
nos ajudaria a apreender os significados socialmente atribuídos a saúde-doença.
Além disso, a antropologia auxilia a área da saúde a compreender os “iti-
nerários terapêuticos” dos sujeitos. Esses itinerários seriam as elaborações e
trajetórias dos sujeitos em busca dos tratamentos de sua doença, quais as pos-
siblidades socioculturais que eles encontram e utilizam, podendo, inclusive,
ser contraditórias (cf. Alves, Souza, 1999: 125).
Para conseguir estudar esses modelos explicativos, os itinerários terapêuti-
cos e compreender o contexto sociocultural em que esses modelos estão inseri-
dos, a pesquisa etnográfica pode ser de grande valia para os estudos da saúde.

2.5  Sociologia e Antropologia na saúde no


Brasil

A inserção da sociologia e da antropologia na área da saúde, no Brasil, é relati-


vamente recente. Você deve se recordar que o termo “sociologia médica” surgiu
com Charles McIntire, em 1893 (cf. Nunes, 2007). Contudo, a disciplina “socio-
logia” só foi institucionalizada no Brasil na década de 1930 com a criação da
cátedra na Escola Livre de Sociologia e Política em São Paulo em 1933 e a Facul-
dade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo, em 1934 (cf.
Nunes, 2007: 156).
Os estudos sociológicos e antropológicos em saúde no Brasil apenas ganha-
ram força a partir da década 1960, acompanhando o movimento das ciências
sociais em saúde na América Latina. Nos anos de 1950-60, na América Latina, os
estudos antropológicos davam maior ênfase à etnomedicina (cf. Nunes, 2007,
158). Nos anos 70, vimos que os estudos sociológicos em saúde passaram a so-
frer maior influência do pensamento do materialismo histórico (idem p. 159).

56 • capítulo 2
Ainda na década de 70, ocorreu uma crise econômica na América Latina que
desencadeou aumento da inflação, aumento da dívida externa, aumento do de-
semprego. Por outro lado, na mesma época, presenciamos o fortalecimento do
discurso internacional sobre a Atenção Primária em Saúde (Nunes, 2007: 160).
Nesse período, surgiram, no Brasil duas importantes organizações acadêmico
-políticas em saúde: o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) em 1976;
e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), em
1979 (Nunes, 2007: 160).
Esses dois movimentos organizados, de inspiração acadêmica e política,
influenciaram fortemente a elaboração do capítulo dos direitos sociais na
Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã. Nele a saúde é defini-
da de forma ampliada, como resultante de condições e qualidade de vida. Sua
conceituação ultrapassa a visão biomédica, permite a integração, na sua elabo-
ração histórica, tanto da interdisciplinaridade, da discussão do híbrido bioló-
gico-social, como da incorporação da cultura e do protagonismo dos movimen-
tos e dos sujeitos sociais. (Minayo, 2000: 46)

CONEXÃO
Caso tenha interesse em conhecer melhor a Abrasco, visite o site da associação:
http://www.abrasco.org.br/site/
Além de notícias sobre eventos como congressos, seminários, simpósios, você poderá
conhecer publicações, como revistas e livros, editados pela Abrasco.

Nos anos 80, cresce o interesse por pesquisas sobre: previdência social; políti-
cas públicas de saúde no país, práticas sanitárias, mercado de trabalho, profis-
sões de saúde (cf. Nunes, 2007: 161). E notam-se um progressivo rompimento
com o materialismo histórico e maior relevo a estudos de microfenômenos, de
subjetividades e análises empíricas (cf. Minayo, 2000). Assistimos também uma
maior contribuição da política, da sociologia, da antropologia, da psicologia e
da filosofia para compreensão de temas como: sexualidade, gênero, violência
doméstica e social, representações sociais de saúde e doença, uso de drogas,
práticas de saúde corporais, busca de outras formas de tratamento, como as
terapias alternativas / complementares, etc (cf. Luz, 2011).
Nos anos 90, os principais assuntos sociológicos e antropológicos em saúde

capítulo 2 • 57
foram: estudos sociais da ciência e da técnica; políticas públicas e de saúde,
racionalidade e práticas médicas, avaliação de políticas e programas de saúde,
comunicação e redes de informação e construção social da saúde e da doença
(cf. Nunes, 2006: 305).
Atualmente há uma pluralidade de temas que podem ser trabalhados e estuda-
dos pela Sociologia e Antropologia na saúde. Apresentaremos a seguir uma ex-
tensa lista de temas (sublinhados), e seus subtemas pesquisados, que Minayo
(2000: 49-50) identificou no campo das Ciências Sociais em saúde, no Brasil:

“Políticas, instituições e Gestão de Serviços

•  Relações entre o papel da medicina e a reprodução capitalista;


•  A produção social da saúde e da doença;
•  A crescente subordinação da prática médica nos interesses da indústria
farmacêutica;
•  A política da previdência social no Brasil;
•  A constituição das várias formas dos serviços sanitários;
•  O papel do estado como organizador do imaginário de saúde;
•  A reforma sanitária;
•  Avaliação dos serviços e da implantação do SUS;
•  Políticas para grupos específicos: mulheres, crianças, adolescentes, ido-
sos, indígenas, trabalhadores;
•  Políticas relacionadas à prevenção ou tratamento de enfermidades ou
problemas específicos: AIDS, mentais, endemias, crônico-degenerativas, vio-
lências, doenças do trabalho;
•  Reforma do Estado e do SUS;
•  Padrões de consumo em saúde;
•  Municipalização e formas de gestão participativa;
•  Reformas asilares e desospitalização;
•  Sistemas de saúde comparados;
•  Sistemas de gerenciamento do setor;
•  Avaliação de acessibilidade e qualidade dos serviços;
•  Sociologia das instituições, das práticas institucionais e avaliação
institucional;
•  Gestão de serviços.” (Minayo, 2000: 49-50)

58 • capítulo 2
“Processos de Saúde e Doença

•  Relações entre os processos de trabalho e a saúde-doença;


•  Articulação entre o biológico e o social;
•  Inclusão da questão cultural nos fenômenos do adoecer, morrer e vida;
•  Abordagens antropológicas e etnográficas sobre doença, cura e
representações;
•  Análises de relações entre religião e saúde-doença;
•  Questões de gênero, sexualidade e etnia e sua relação com enfermidades
específicas;
•  Estudos de intervenções médicas e específicas;
•  Análises de diversas racionalidades terapêuticas;
•  Análises filosóficas e sociológicas das representações.” (Minayo, 2000: 50)
“Formação de Recursos Humanos
•  Análise da magnitude das tendências do mercado e da força de trabalho;
•  Relações entre mudanças tecnológicas e as especializações;
•  Análises contextuais e históricas dos cursos e das carreiras;
•  Abordagens dos movimentos sindicais e corporativos do setor;
•  Análises de demanda, oferta e dos egressos dos cursos do setor.” (Minayo,
2000: 50)

“Movimentos Sociais

•  Estudos de origem, institucionalização e significado;


•  Abordagens sobre sua relação com o estado;
•  Análises de estudo de casos específicos, com ênfase em processos
participativos;
•  Discussões sobre organização e representação de interesses.” (Minayo,
2000: 50)

Ufa! A lista foi longa! Contudo, ainda existem outros assuntos que podem ser
trabalhados. Ao reproduzirmos a preciosa lista de temas e subtemas identifica-
dos por Minayo, intencionamos apenas ilustrar as múltiplas possiblidades que
os estudos sociológicos e antropológicos encontram na área da saúde.
Algum lhe interessou?
Esperamos que você tenha apreciado essa rápida passagem pela sociologia e an-

capítulo 2 • 59
tropologia da saúde. Cremos que apresentamos os elementos necessários para
que você possa se situar dentro desse campo de estudos. A partir das informações
expostas juntamente com as referências utilizadas, é possível iniciar uma pesqui-
sa mais profunda acerca dos teóricos da sociologia e antropologia da saúde, as-
sim como, sobre alguns de seus referenciais teórico-metodológicos de pesquisa.
No próximo capítulo, pretendemos trabalhar com o conceito de saúde, suas re-
presentações e definições.

REFLEXÃO
Você viu que saúde e doença são conceitos que não se restringem a definições biológicas-
científicas, dependem também das construções socioculturais acerca dessas questões.
Observe seu cotidiano. Você conseguiria identificar um exemplo de como a cultura interfere
na compreensão do processo saúde-doença e na escolha dos tratamentos?
Considerando os conceitos do materialismo histórico, os conceitos de cargas de traba-
lho, processos de adaptação e desgaste mencionados por Asa Cristina Laurell, analise sua
realidade social, reflita sobre seu trabalho ou sobre o trabalho de seus pais ou amigos, você
conhece algum caso de adoecimento que possa atribuir à lógica do processo produtivo?
Você também percebeu que existem muitas possibilidades de pesquisa sociológica / antro-
pológica em saúde. Pensando na realidade da saúde no Brasil, você considera que algum
tema ou subtema deveria receber uma maior atenção dos pesquisadores? E você, qual tema
ou subtema preferiria estudar?

LEITURA
HELMAN, C. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artmed, 2009.
Nessa obra, Helman demonstra, de forma bem didática, as contribuições da antropologia
nos estudos da saúde, trazendo, inclusive muitos exemplos de estudos de caso. Seu texto
procurará demonstrar a importância da cultura e dos fatores socioeconômicos para a com-
preensão do corpo, da dor, do cuidado e cura, gênero e reprodução, etc.
PINHEIRO, R; MATTOS, RA (org). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro:
CEPESC/UERJ, IMS: Abrasco, 2013.
Essa obra é resultante do esforço de profissionais de saúde (médico, enfermeiros, psi-
cólogos, etc.) em conjunto com sociólogos e antropólogos para pensar o Cuidado e a ideia
de “integralidade” nas práticas de saúde. “[...] parece-nos evidente que esta coletânea vem

60 • capítulo 2
cumprindo o papel de compartilhar o entendimento do grupo acerca do potencial dos temas
integralidade e cuidado como objeto de investigação, para o qual divulgamos as diferentes
vertentes teóricas, metodológicas e procedimentos de pesquisa destinados a sua compreen-
são, como artefato estratégico de debate no âmbito da Saúde Coletiva.” (p. 08)

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saúde: uma proposta de investigação voltada para as classes populares”. In: PINHEIRO, R
e MATTOS, RA (orgs.) Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Cepesc/UERJ, IMS:
Abrasco, 2013. p.105-19.
VÍCTORA, CG. Corpo, saúde e doença na Antropologia. In: Pesquisa qualitativa em saúde: uma
introdução ao tema. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000.

62 • capítulo 2
3
A Saúde Como
Fenômeno
Multideterminado:
Problematizando
Um Conceito
No capítulo anterior, vimos brevemente como as concepções sobre saúde e do-
ença modificaram-se ao longo da história e qual a importância da Sociologia e da
Antropologia na área da saúde.
O objetivo deste capítulo é apresentar discussões que envolvem o conceito de saú-
de e revisitar algumas de suas definições. Além disso, desejamos entender como
as políticas nacionais e internacionais influenciaram no acesso aos serviços de
saúde. Assim como compreender a organização do sistema de saúde brasileiro.

OBJETIVOS
Este capítulo focará o conceito de saúde e como se deu a organização do sistema de saúde
brasileiro. Esperamos que a partir das informações apresentadas, você seja capaz de:

•  Compreender o conceito de saúde e como isso pode variar conforme o meio social;
•  Entender o conceito ampliado de saúde.
•  Reconhecer determinantes sociais de saúde.
•  Entender a organização do sistema de saúde brasileiro.

64 • capítulo 3
3.1  Saúde: ausência de enfermidade?
No capítulo anterior, vimos que as concepções de saúde e doença variaram con-
forme o meio social e o período histórico.
E para você, qual é a sua definição de saúde?
Para auxiliá-lo(a) nessa definição, vamos retomar alguns aspectos concer-
nentes à saúde.
Você deve se lembrar que há muitos anos atrás a saúde estava relacionada a
um estado de harmonia, do sujeito com a sua visão de mundo, com a natureza
e com o mundo espiritual e que por vezes, o xamã era procurado para ajudar o
sujeito a resgatar essa harmonia (cf. Montal, 1986; Barros, 2008).
Na Grécia Antiga, inicialmente, tanto a saúde como a doença estavam sob a
responsabilidade e vontades dos deuses gregos (Pessoti, 1994). Mesmo saben-
do utilizar plantas e métodos naturais para obtenção da cura, os gregos antigos
também cultuavam três divindades: Asclépio, divindade da medicina, e suas
filhas: Higieia (também chamada de Higiia ou Higeia) relacionada à saúde e
práticas higiênicas e Panacea, a cura (cf. Scliar, 2007).

Caduceu de Esculápio – símbolo da medicina

Asclépio é o nome grego da divindade da medicina, entre


os romanos ficou conhecido como Esculápio. Uma das his-
tórias mitológicas conta-nos que Asclépio era filho do deus
Apolo e da virgem Corônis. Seu pai o fez estudar com o cen-
tauro Quíron que o iniciou nas práticas curativas. A família
de Asclépio foi relacionada a diferentes atividades de cui-
dado à saúde e práticas médicas. Sua esposa Epione ficou
conhecida por aliviar a dor, sendo associada à anestesia.
Suas filhas Higeia e Panacea tornaram-se divindades da saúde/profilaxia e cura/
tratamento respectivamente. Seus filhos Macáon e Podalirio são deuses protetores
dos cirurgiões. Telésforo representava a convalescença. (cf. Rillo, 2008).
Imagem retirada: http://pt.wikipedia.org/wiki/Caduceu (03/05/2015)

capítulo 3 • 65
Quíron
Afresco Quíron e Aquiles – Museu Arqueológico Nacional – Nápoles.

Quíron era um centauro, ser metade homem e


metade cavalo, filho de Cronos e Fílira. Diferen-
temente de outros centauros, Quíron era conhe-
cido pela sua benevolência com os homens. Em
uma luta foi atingido por uma flecha envenena-
da; devido a sua imortalidade, o veneno não foi
capaz de matá-lo, porém causou-lhe uma ferida
incurável gerando grande sofrimento. A busca
pela cura de sua ferida fez com que Quíron tornasse versado em várias práticas
de tratamento e cura. (cf. Kury, 2009).

Somente com Hipócrates que a saúde e doença passaram a ser dissociadas


da vontade dos deuses e começaram a ser entendidas como uma questão de
(des)equilíbrio orgânico, resultante do sistema de humores do sujeito e o am-
biente externo (cf. Pessoti, 1994). Foi com ele que houve a valorização da obser-
vação empírica do processo saúde-doença: os sintomas do doente e fatores do
ambiente (cf. Scliar, 2007).
Na Idade Média europeia, a ideia de saúde foi influenciada por concepções
religiosas e a doença foi vista como forma de punição divina ou ações demoní-
acas (cf. Pessoti, 1994).
Você deve se lembrar que entre os séculos XIV e XV, a Europa assistiu à emer-
gência do movimento Renascentista, cujos ideais de antropocentrismo e racio-
nalismo favoreceram o configuração do movimento Iluminista do século XVII.
No século XVI, houve uma mudança na concepção das formas de cura.
Paracelso (1493-1541) defendeu a ideia de que a doença era oriunda de agentes
externos ao organismo. Entendendo que os processos orgânicos eram proces-
sos químicos, Paracelso concluiu que a saúde deveria ser recobrada por meio
de remédios químicos, e passou a ministrar pequenas doses de minerais e me-
tais aos doentes (Scliar, 2007).
Com o movimento Iluminista vimos o desenvolvimento da ciência. No sé-
culo XVII foi desenvolvido o microscópio e no final do século XIX ocorreu a
“revolução pasteuriana” com a identificação de microrganismos causadores

66 • capítulo 3
de doenças e a introdução de soros e vacinas. “Era uma revolução porque, pela
primeira vez, fatores etiológicos até então desconhecidos estavam sendo iden-
tificados; doenças agora poderiam ser prevenidas e curadas” (Scliar, 2007: 34).
Em fins do século XVIII e início do XIX, François Xavier Bichat (1771-1802)
formulou a definição de saúde como “silêncio dos órgãos” (Scliar, 2007: 34).
Tal ideia foi retomada em meados do século XX por Georges Canguilhem:
“Achamos, assim como Leriche, que a saúde é a vida no silêncio dos órgãos
[...]” (Canguilhem, 2000: 90). Podemos depreender, nesse caso, que, quando
sentimos alguma dor ou sentimos que algo não está bem em nosso organismo,
nosso corpo está tentando nos “dizer” que há algo errado e assim nos identifi-
camos com o estado de doença.

O paradigma bioenergético

Até agora vimos concepções de saúde relacionadas às ideias de ausência dos


sintomas de enfermidade física e de combate às doenças. Contudo, se nos vol-
tarmos para algumas visões de mundo orientais, veremos que saúde pode estar
relacionada a um “paradigma1 bioenergético” (Luz, 1995).
Esse paradigma bioenergético oriental está assentado na compreensão de que
a vida, e consequentemente a saúde, está atrelada ao fluxo de energias sutis.
Na Índia essa energia é denominada prana, na China, chi e no Japão ki. Essa
noção de energia sutil, por sua vez, levará a concepção de doença como um de-
sequilíbrio ou bloqueio energético e influenciará na elaboração das teorias e
dos tratamentos de medicinas orientais, como a medicina tradicional indiana
(ayurveda) e a medicina tradicional chinesa (cf. Luz, 1995, 2012, Miwa, 2012).

CONEXÃO
Se você tiver interesse em saber um pouquinho mais sobre a medicina tradicional indiana
(ayurveda) e a medicina tradicional chinesa (MTC), você pode acessar os seguintes vídeos:
Ayurveda: https://www.youtube.com/watch?v=ao-0zpTW3g0
MTC: https://www.youtube.com/watch?v=1Sim-rTsyio

1  Paradigma: “modelo, padrão” (Ferreira, 1997: 1265).

capítulo 3 • 67
O que é normal e o que é patológico?

Você se recorda que os conceitos de saúde e doença dependem do contexto so-


ciocultural para serem definidos. Cada sociedade estipula as concepções sobre
o que é um organismo “normal” e o que é um organismo “patológico”. Entre-
tanto, George Canguilhem (2000) questiona a objetividade desses conceitos.
Para ele, a doença, antes de ser diagnosticada pelo médico, passa pela experi-
ência subjetiva do sujeito. A doença não seria apenas uma ausência de norma.

Portanto, se o normal não tem a rigidez de um determinativo para todos os indivídu-


os da mesma espécie e sim a flexibilidade de uma norma que se transforma em sua
relação com condições individuais, é claro, que o limite entre o normal e o patológico
torna-se impreciso. [...] Aquilo que é normal, apesar de ser normativo em determinadas
condições, pode se tornar patológico em outra situação, se permanecer inalterado. O
indivíduo é que avalia essa transformação porque é ele que sofre suas consequências,
no próprio momento em que se sente incapaz de realizar as tarefas que a nova situação
lhe impõe. (Canguilhem, 2000: 145)

A doença não seria a ausência de qualquer norma, pois a doença ainda é


uma norma de vida “que não tolera nenhum desvio das condições em que é
válida, por ser incapaz de se transformar em outra norma” (Caguilhem, 2000:
146). A saúde, no caso, não seria um simples estado “normal”, mas a capaci-
dade de “admitir uma mudança para novas normas” (idem: 188) e a cura seria
uma forma de retornar à estabilidade fisiológica (idem: 188). “Curar é criar para
si novas normas de vida, às vezes superiores às antigas” (idem: 188).

Você sabia que “ser doente” nem sempre é visto como algo ruim?
Segundo Phillipe Adam e Claudine Herzlich (2001): “O doente viverá a doença como
‘destrutiva’ se, a partir da interrupção da atividade provocada pela mesma, que se
acompanha tanto da destruição dos laços com os outros como de perdas diversas
em suas capacidades e em seus papeis, ele não conseguir visualizar nenhuma pos-
sibilidade de reconstruir sua identidade, dependente inteiramente da integração so-
cial. [...] Ao contrário, a doença é vivida como ‘libertadora’ se quando ela é entendi-
da como possiblidade de fuga de um papel social repressor de sua individualidade.

68 • capítulo 3
Neste caso, a doença, longe de representar somente uma série de destruições, permite
reencontrar o ‘verdadeiro sentido da vida’. Ela oferece a possibilidade de uma revela-
ção, ou mesmo uma superação de si.” (p. 78)
Para os românticos do século XVIII a tuberculose era algo desejável: “era um índice de
ser distinto, delicado, sensível”, “sinal de distinção de uma origem nobre”, “simbolizava
uma vulnerabilidade atraente, uma sensibilidade superior” (Sontag, 2007: 30-31).

Quando a questão da saúde está relacionada à deficiência física, é impor-


tante distinguir o conceito de “disfunção” e “incapacidade”. Segundo Helman
(2009), disfunção seria o “corpo que não possui parte de um membro ou todo
ele, ou tem um membro ou algum outro mecanismo corporal defeituoso” (p.
41); Já o corpo incapacitado “se refere às muitas desvantagens sociais e outras
impostas pela sociedade às pessoas com restrições físicas” (p. 41). Um corpo
incapacitado não significa um corpo doente, contudo o estigma associado à in-
capacidade pode acarretar desvantagens sociais ao sujeito considerado incapa-
citado (cf. Helman, 2009: 41).

CONEXÃO
Corpos que fogem aos padrões estéticos de beleza e normalidade podem causar estranha-
mento e serem alvos de estigmas. Houve um período da história humana, entre os séculos
XIX e XX, em que corpos diferentes serviram ao entretenimento dos considerados “normais”.
Esses eventos de “entretenimento” ficaram conhecidos como “circo de horrores”, “show de
horrores”, “show de aberrações” ou freak show.
Você pode conhecer um pouco mais sobre esses shows de horrores no seguinte link:
https://www.youtube.com/watch?v=hp-QwsYeBdg

Mesmo compreendendo que normal e patológico dependem da experiência


subjetiva dos sujeitos, temos de reconhecer que todas as sociedades formulam re-
presentações sobre a “normalidade”. Quando tiramos o foco da normalidade bio-
lógica e olhamos para a ideia de normalidade de comportamento, veremos que não
se trata mais de normal x patológico, mas de comportamento normal x desviante.
Segundo Gilberto Velho (1981), “a ideia de desvio, de um modo ou de outro,
implica a existência de um comportamento ‘médio’ ou ‘ideal’ que expressaria

capítulo 3 • 69
uma harmonia com as exigências do funcionamento do sistema social” (p. 17).
Sujeitos incapazes de corresponder a esse padrão de comportamento social são
considerados desviantes ou inadaptados.
Os conceitos de “inadaptado” ou de “desviante” estão amarrados a uma vi-
são estática e pouco complexa da vida sociocultural. Por isso mesmo devem ser
utilizados com cuidado. (Velho, 1981: 21)
Velho (1981) chama a atenção para o fato que nem sempre ser “inadapta-
do” seja algo ruim, às vezes ser inadaptado denota que o sujeito consegue atri-
buir outros significados à realidade que sujeitos “normais” ou “ajustados” não
conseguem compreender. A cultura é multifacetada, ambígua e dinâmica (cf.
Velho, 1981:21) o que permite uma pluralidade de comportamentos e signifi-
cados. Por vezes, essa classificação normal/desviante pode ser um reflexo de
relações de poder, uma vez que o desviante apenas pode emergir no momen-
to em que um determinado grupo estabelece o que é o “normal” socialmente
aceito. Em outras palavras, o desviante só pode aparecer quando inserido em
determinado contexto, dependendo das relações de forças (jogo político) que
se estabelece com a cultura dominante (cf. Velho, 1981).

Patologia e produtividade

Vimos anteriormente, com os estudos de Marx, que o capitalismo hipervalori-


zou a questão da produtividade. A busca pelo lucro e pelo acumulo de capital
desencadeou uma crescente exploração e regulação da mão-de-obra operária.
O historiador E. P. Thompson (1998) ilustrou bem o impacto da Revolução In-
dustrial na vida dos sujeitos. Em sua obra Costumes em comum, o autor nos
conta, por exemplo, a necessidade do uso do relógio para sincronizar o trabalho
dos operários e reduzir o tempo ocioso, aumentando, assim, a produtividade. O
trabalhador perdeu a autonomia sobre seu corpo, foi submetido ao relógio da
fábrica e pela linha de produção.
Além das exigências do capital, no século XVIII, segundo Foucault (2002)
a concepção do corpo humano como máquina colaborou com o movimento
de “disciplina” dos corpos, no intuito de moldar corpos dóceis, submissos,
disciplinados, especializados, que não oferecessem resistências, facilitando a
dominação. A disciplina dos corpos serviria para organizar o espaço entre os
homens (lugares, fileiras, etc), controlar das atividades (horários, gestos) e au-
mentar a eficiência das atividades. Mesmo nos hospitais, os internos deveriam

70 • capítulo 3
disciplinar até suas necessidades fisiológicas de acordo com os horários e nor-
mas estabelecidos. O comportamento, os gestos, as reações, passaram a se sub-
meter a regras socialmente instituídas, visando a otimização do uso do corpo.
Essa intensa disciplina do corpo e o controle de suas atividades, somados à
lógica de produção capitalista, colaboraram para a configuração das ideias de
saúde como capacidade para o trabalho e doença associada a não produtivida-
de, tão difundidas no senso comum.

3.2  A Organização Mundial de Saúde e o


conceito de saúde

O conceito ampliado de saúde

Até agora trabalhamos com a ideia de saúde ligada diretamente com o estado
patológico do sujeito, isto é, a saúde concebida pela ausência de sinais e sinto-
mas do organismo. No entanto, devemos entender que saúde não é a simples
ausência de doenças, o conceito engloba muitos outros aspectos como vere-
mos a seguir.
No capítulo anterior, mencionamos que a partir do século XIX começou a
aumentar a preocupação com os aspectos sociais da saúde, especialmente no
que dizia respeito à saúde dos trabalhadores. Tais questionamentos e estudos
contribuíram para o surgimento de uma medicina social e posteriormente uma
sociologia da saúde (cf. Nunes, 2007).
Questões como nível de renda, questões sanitárias, desigualdades sociais,
relações de poder, passaram a ser reconhecidas como influentes no processo
saúde-doença (Laurell, 1989).
A revolução pasteuriana, em fins do século XIX, permitiu identificar fatores
etiológicos de certas doenças e com isso foi possível realizar uma “contabilida-
de da doença”, seus indicadores poderiam ser estudados por análises estatísti-
cas sobre a distribuição saúde-doença (cf. Scliar, 2007: 35).

capítulo 3 • 71
“Caráter pioneiro nas estatísticas de saúde é atribuído a William Farr (1807-1883).
Médico, Farr tornou-se em 1839 diretor-geral do recém estabelecido General Regis-
ter Office da Inglaterra, e aí permaneceu por mais de 40 anos. Seus Annual Reports,
nos quais os números de mortalidade se combinavam com vívidos relatos, chamaram
a atenção para as desigualdades entre os distritos “sadios” e os “não-sadios” do país.
Em 1842, Edwin Chadwick (1800-1890) escreveu um relatório que depois se tornaria
famoso: As condições sanitárias da população trabalhadora da Grã-Bretanha. Chadwi-
ck, que não era médico nem sanitarista, mas advogado, impressionou o Parlamento,
que em 1848 promulgou lei (Public Health Act) criando uma Diretoria Geral de Saúde,
encarregada, principalmente, de propor medidas de saúde pública e
de recrutar médicos sanitaristas. Dessa forma teve início oficial o trabalho de saúde
pública na Grã-Bretanha.” (Scliar, 2007: 35)

A preocupação com as condições sanitárias da população não se restringiram


à Inglaterra. Os Estados Unidos, a Alemanha e a França também apresentaram
ações em direção ao incremento da saúde pública. Porém, ainda não havia um
consenso do que era saúde. A primeira tentativa para alcançar uma definição de
saúde para todos os países foi com a Liga das Nações, organismo internacional
que surgiu após a Primeira Guerra Mundial, contudo, o esforço não deu certo.
Somente com o término da Segunda Guerra Mundial e consequente surgimento
da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial da Saúde
(OMS) que foi possível atingir um consenso sobre saúde (Scliar, 2007: 36).
Em 1948, a OMS publicou em sua constituição (WHO, 2006) a seguinte defi-
nição de saúde: “saúde é um estado completo de bem-estar físico, mental e so-
cial, e não apenas ausência de doença ou enfermidade”. Reconhecendo a saúde
como um direito de todas as pessoas sem distinção de etnia, religião, concep-
ção política e condições econômicas ou sociais. Sendo um dever dos Estados:
promover a saúde e protege-la.

“Health is a state of complete physical, mental and social well-being and not merely the
absence of disease or infirmity.
The enjoyment of the highest attainable standard of health is one of the fundamental
rights of every human being without distinction of race, religion, political belief, econo-
mic or social condition.

72 • capítulo 3
The health of all peoples is fundamental to the attainment of peace and security and is
dependent upon the fullest co-operation of individuals and States.
The achievement of any State in the promotion and protection of health is of value to
all.” (WHO, 2006)

Como se pode observar, esse conceito da OMS traz uma visão mais abran-
gente de saúde e não apenas a parca ideia de saúde como ausência de doença.
Considerando o contexto do pós-guerra, de países arrasados pelos confrontos
bélicos e pela polarização político-econômica entre capitalistas e socialistas,
encabeçados pelos EUA e Rússia respectivamente, esse conceito amplo de saú-
de também foi importante para ressaltar a ideia de saúde como um “direito a
uma vida plena, sem privações” (cf, Scliar, 2007: 37).
Em 1974, Marc Lalonde, então ministro da Saúde e do Bem-estar do Canadá,
enriqueceu a compreensão da saúde e os estudos em saúde pública ao refor-
mular o conceito de “campo da saúde” (cf. Scliar, 2007). Em seu texto, A new
perspective on the health of Canadians – a working document (Lalonde, 1981),
Lalonde reconhece que um estado de complete bem-estar poder ser difícil de
alcançar, contudo, muito pode ser feito de forma a aumentar a liberdade de
doenças e promover bem-estar suficiente para realização de atividades físicas,
metais e sociais. Baseando-se no sistema de saúde canadense, Lalonde consta-
ta a necessidade de estabelecer uma estrutura de análise e avaliação do campo
da saúde. Para isso, ponderou que o campo da saúde deveria ser estudado a par-
tir de quatro elementos principais: a) biologia humana; b) ambiente; c) estilo
de vida e d) organização dos cuidados de saúde.

a) Biologia humana: inclui todos os aspectos da saúde, tanto física como


mental. Diz respeito à herança genética, ao processo de envelhecimento, assim
como, aos sistemas internos do organismo (por exemplo: muscular, nervoso,
digestivo, etc.)
b) Ambiente: abarca as questões de saúde que são externas ao corpo hu-
mano, as quais os sujeitos têm pouco ou nenhum controle. Essa categoria
envolve qualidade do solo, ar, água, alimentação, controle de poluição, sanea-
mento básico, etc.

capítulo 3 • 73
c) Estilo de vida: relaciona-se com as decisões e escolhas dos sujeitos que
podem influenciar em sua saúde. Podemos pensar em exemplos como hábitos
alimentares, tabagismo, etc.
d) Organização dos serviços de saúde: consiste em apreender a quantida-
de, qualidade, arranjo / organização, natureza e relações de pessoas e recursos
na prestação de cuidados em saúde. São relevados aspectos como: assistência
médica, serviços hospitalares, medicamentos, serviços de saúde públicos e co-
munitários, tratamento odontológico, etc. (Lalonde, 1981: 31-32)

Lalonde (1981: 33) aponta para cinco contribuições do conceito “campo da


saúde”. Primeira, foi reconhecer que as categorias biologia humana, ambiente
e estilo de vida são tão importantes quanto a categoria organização dos servi-
ços de saúde. Segunda, é que ele é abrangente, atentando para vários aspectos
da saúde. Terceira, o conceito permite um sistema de análise porque qualquer
questão pode ser examinada sob os quatro elementos, a fim de avaliar sua im-
portância relativa e interação. Quarta, admite uma maior subdivisão de fatores
e quinta, fornece uma nova perspectiva de saúde, explorando campos até então
negligenciados.
Apesar de se reconhecer os benefícios que o conceito de saúde ampliado da
OMS gerou, especialmente na época que foi postulado, ele não passou ileso de
críticas. Baseando-se na tradução de saúde como “situação de perfeito bem-es-
tar físico, mental e social”, há quem o avalie como “irreal, ultrapassado e unila-
teral”, uma vez que a ideia de “perfeição” é uma utopia, além de não existir mais
a necessidade de distinguir físico, mental e social, uma vez que se percebe que
não há grandes separações entre eles (Segre e Ferraz, 1997: 539).
Um opositor desse conceito ampliado de saúde foi Christopher Boorse, pro-
fessor de filosofia da biologia e filosofia da medicina na Universidade de Delaware
(EUA). Na década de 1970, voltou-se para os problemas filosóficos e conceituais
de saúde e doença, que alguns autores denominaram Teoria Bioestatística da
Saúde. Boorse seguia uma vertente “naturalista” que entendia que saúde e do-
ença não dependiam de julgamentos de valor ou das experiências dos sujeitos,
mas poderiam ser puramente descritivos, isentos de valor. Para Boorse, doença
era um conceito teórico e saúde seria o oposto de doença (cf. Almeida Filho. Jucá,
2002). Dessa forma, “a classificação dos seres humanos como saudáveis ou do-
entes seria uma questão objetiva, relacionada ao grau de eficiência das funções
biológicas, sem necessidade de juízos de valor” (Scliar, 2007: 37).

74 • capítulo 3
Em 1978, a Conferência Internacional de Assistência Primária à Saúde, or-
ganizada pela OMS, em Alma-Ata (atual Cazaquistão) evidenciou a oposição às
ideias de Boorse (cf. Scliar, 2007). A Declaração de Alma-Ata enfatizou o concei-
to ampliado de saúde apresentado pela OMS em 1948, ressaltou a influência
das desigualdades sociais sobre a manutenção e acesso à saúde, destacando a
responsabilidade dos governos pela saúde de seus povos e defendeu os cuida-
dos primários à saúde como cuidados fundamentais.

CONEXÃO
Você pode ler a Declaração de Alma-Ata, basta acessar o seguinte link:
http://cmdss2011.org/site/wp-content/uploads/2011/07/Declara%C3%A7%-
C3%A3o-Alma-Ata.pdf

Os cuidados primários em saúde deveriam seguir as seguintes estratégias:

1) as ações de saúde devem ser práticas, exequíveis e socialmente aceitáveis; 2) de-


vem estar ao alcance de todos, pessoas e famílias - portanto, disponíveis em locais
acessíveis à comunidade; 3) a comunidade deve participar ativamente na implantação
e na atuação do sistema de saúde; 4) o custo dos serviços deve ser compatível com a
situação econômica da região e do país (Scliar, 2007: 38)

Essas ações não deveriam se restringir às práticas clínicas de saúde, mas


envolver também educação em saúde, nutrição adequada, saneamento básico,
planejamento familiar, imunizações, prevenção e controle de doenças, ao invés
de usar tecnologias caras e sofisticadas, preferir o uso de tecnologias simples e
acessíveis à população (cf. Scliar, 2007: 39).

Sobre determinantes sociais de saúde

A partir da década de 1970, sobretudo com o conceito de campo da saúde de


Marc Lalonde, ressaltou-se a importância dos fatores sociais no processo saú-
de-doença. A relevância do contexto, isto é, dos aspectos socioambientais sobre
a saúde ficou conhecido como “determinantes sociais de saúde”. Em 2005, a

capítulo 3 • 75
OMS criou uma comissão sobre determinantes sociais de saúde para apoiar pa-
íses e chamar a atenção dos governos e das sociedades para esses determinan-
tes, buscando melhores condições sociais de saúde, especialmente para popu-
lações mais vulneráveis. Essa comissão foi extinta em 2008, após entregar um
relatório com recomendações para reduzir as iniquidades em saúde (cf. http://
www.who.int/social_determinants/thecommission/en/ - acessado 03/05/2015).
Em 2011, a OMS publicou outro documento sobre determinantes sociais
em saúde (OMS, 2011) com objetivo de: estimular ações sobre esses determi-
nantes, promover a participação da população e de lideranças comunitárias
nas decisões e ações de políticas de saúde; orientar serviços de saúde e progra-
mas de saúde pública para diminuir as iniquidades em saúde; estabelecer prio-
ridades e reconhecer interesses em nível local como internacional e desenvol-
ver estudos para avaliar a efetividade dessas ações e divulgar seus resultados e
informações. As recomendações da Comissão sobre determinantes sociais da
saúde têm como foco: a) melhorar as condições de vida; b) combater a distribui-
ção desigual de poder, dinheiro e recursos; c) medir a magnitude do problema,
compreendê-lo e avaliar o impacto das intervenções (OMS, 2011: 05).

A maior parte da carga das doenças - assim como as iniquidades em saúde, que exis-
tem em todos os países -, acontece por conta das condições em que as pessoas nas-
cem, vivem, trabalham e envelhecem. Chamamos esse conjunto de “determinantes so-
ciais da saúde”, um termo que resume os determinantes sociais, econômicos, políticos,
culturais e ambientais da saúde.
Nem todos os determinantes são igualmente importantes. Os mais importantes são
aqueles que geram estratificação social - os determinantes estruturais -, tais como a
distribuição de renda; o preconceito com base em fatores como o gênero, a etnia ou
deficiências; e estruturas políticas e de governança que alimentam - ao invés de reduzir
- iniquidades relativas ao poder econômico. Esses determinantes geram posicionamen-
tos socioeconômicos dentro de estruturas de poder, prestígio e acesso a recursos.
(OMS, 2011: 07)

76 • capítulo 3
3.3  A 8ª Conferência Nacional de Saúde e a
Constituição Federal de 1988

Antes de adentrarmos no assunto desse subtítulo, 8ª CNS e a Constituição de


1988, precisamos compreender os movimentos das ações e políticas em saúde
que ocorreram no Brasil.

A saúde antes da década de 1980 no Brasil

O fim da escravidão, pós 1888, e a crescente onda de imigrantes europeus para


suprir a falta de mão-de-obra nas lavouras de café, favoreceu o aumento do con-
tingente populacional nas áreas urbanas no país (Fausto, 1998). No período de
1897 a 1930, os assuntos de saúde eram tratados pelo Ministério da Justiça e Ne-
gócios Interiores, especificamente pela Diretoria Geral de Saúde Pública, com
ações voltadas para o saneamento e endemias (cf. Paulus Jr; Cordoni Jr, 2006).
Uma das intervenções mais famosas desse período foi a Revolta da Vacina,
ocorrida no Rio de Janeiro, em 1904. A ideia era modernizar a antiga capital bra-
sileira, derrubando cortiços e construindo novas edificações, tal fato revoltou a
população desapropriada de suas habitações. Em meio a esse movimento de mo-
dernização, o sanitarista Oswaldo Cruz defendeu o combate à peste bubônica, a
malária e a varíola. Em 1904, tornou-se obrigatória a vacinação de todos contra a
varíola. A população, desconfiada dos efeitos da vacina, revoltada contra o autori-
tarismo e violência do governo, insurgiu-se contra o poder público (cf. Vicentino,
Dorigo, 1997: 298-300). Nesse período surgiu também uma Liga do Saneamento,
caracterizada por “criticar os excessivos urbanismo e regionalismo da política de
saúde então vigente.” (Merhy, Queiroz, 1993: 178). A corrente médico-sanitária
predominou nos grandes centros urbanos (cf. Merhy, Queiroz, 1993).
A Previdência Social foi criada no Brasil em 1923, estabelecendo as Caixas
de Aposentadorias e Pensões (CAPS) que deveriam ser organizadas pelas em-
presas e oferecer assistência médica, medicamentos, aposentadorias e pen-
sões. Em 1933 surgiram os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP), enti-
dades que abrangiam os trabalhadores conforme ramos de atividades. Nesse
período, a assistência médica estava atrelada aos vínculos trabalhistas e os be-
nefícios eram restritos aos trabalhadores que contribuíam com a Previdência
(cf. Paulus Jr; Cordoni Jr, 2006).

capítulo 3 • 77
Em 1930, durante o governo de Getúlio Vargas, foi criado o Ministério da
Educação e Saúde. Somente em 1953 que o Ministério da Saúde separou-se do
Ministério da Educação. Contudo, a assistência médica continuou vinculada às
instituições previdenciárias (cf. Paulus Jr; Cordoni Jr, 2006).
Nos anos 1940, os gastos públicos começaram a favorecer a assistência mé-
dica individual em detrimento da saúde pública. Nos anos 60, as ações institu-
cionais não eram mais capazes de combater “a miséria e as péssimas condições
de saúde da população brasileira” (Merhy, Queiroz, 1993: 179).
Passados alguns anos, durante o governo militar de Castelo Branco, surgiu o
Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, com a fusão dos IAPs,
uniformizando e centralizando a previdência social. O INPS tornou-se o “princi-
pal órgão de financiamento dos serviços de saúde” (Paulus Jr; Cordoni Jr, 2006:
14). Em 1974, as políticas de saúde privilegiaram a privatização dos serviços e
acentuou a ênfase na assistência médica individualizada. Nesse mesmo ano,
surgiu o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS) que foi um fundo de
recursos públicos que emprestava dinheiro predominantemente para a constru-
ção de hospitais privados. Ainda em 74, também foi instituído o Plano de Pronta
Ação (PPA) que abarcava uma série de ações para desburocratizar o atendimento
de emergência ao segurado e “permitiu atendimento ambulatorial a toda a popu-
lação nos casos de urgência” (cf. Paulus Jr; Cordoni Jr, 2006: 15). Vislumbramos,
nesse momento, o começo da universalização do atendimento à saúde.
A partir de 1977, quando se ampliou o atendimento de urgência a todos os
indivíduos, tornaram-se mais frequentes déficits no orçamento previdenciário,
indicando a necessidade de maior racionalidade do serviço de saúde. Algumas
das medidas tomadas foram o Programa de Nacional de Serviços Básicos
de Saúde (Prev-Saúde) e o Conselho Consultivo de Administração da Saúde
Previdenciária (Conasp) (cf. Merhy, Queiroz, 1993).
Este último, em particular, propunha a descentralização do sistema de as-
sistência médica através da criação de uma “única porta de entrada”, integran-
do, numa rede básica de serviços públicos de saúde, a capacidade instalada já
existente no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
(Inamps), nos estados e nos municípios, entrando a rede privada apenas onde
não existissem unidades estatais. (Merhy, Queiroz, 1993: 180)
Um ano antes, 1976, foi fundado o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
(Cebes) que marcou a mobilização social em relação à saúde, sendo também

78 • capítulo 3
identificado como Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (cf. Paulus Jr;
Cordoni Jr, 2006).
No início de 1980, foi instituído do Plano de Ações Integradas de Saúde (AIS)
com o objetivo de descentralizar a assistência médica, com a regionalização do
sistema e gerenciamento com a participação da comunidade usuária dos servi-
ços (cf. Pimenta, 1993). As AIS integraram “os serviços estaduais e municipais à
rede de serviços pagos pelo Inamps” (Paulus Jr; Cordoni Jr, 2006: 16).
O processo de integração dos serviços de saúde, a possiblidade da universali-
zação da assistência e as discussões suscitadas pelo movimento da reforma sani-
tária brasileira ganharam força e forma com a 8ª Conferência Nacional de Saúde.

A 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS)

A 8ª CNS ocorreu em Brasília, em 1986, durante o governo de José Sarney. Sua


Comissão foi presidida pelo professor Sérgio Arouca, um dos principais líderes
da Reforma Sanitária.

“Reforma Sanitária foi a denominação substituiu aquela do movimento da democratiza-


ção da saúde” (Paim, 2012: 10)

As discussões da 8ª CNS giraram em torno dos seguintes itens: “1) saúde


como direito; 2) reformulação do Sistema Nacional de Saúde; e 3) financiamen-
to do setor” (Brasil, 2009: 17). Os textos produzidos para a Conferência contem-
plaram ainda conceitos como “determinação social da saúde-doença”, “orga-
nização das práticas de saúde”, “consciência sanitária”, “promoção de saúde”,
“intersetorialddade” e contaram com a colaboração de professores e pesquisa-
dores do Cebes e da Abrasco (Paim, 2012: 10).
No relatório final da 8ª CNS (Brasil, 1986:02-03), destacaram-se: a) a neces-
sidade de modificações no setor da saúde, não se restringindo a reformas ad-
ministrativas ou financeiras, mas revendo o conceito de saúde, assim como,
a própria legislação no que diz respeito à promoção, proteção e recuperação
da saúde; b) um novo sistema de saúde nacional, reconhecendo a importân-
cia do fortalecimento e expansão do setor público; c) separação da Saúde da
Previdência; d) conveniência de discussões mais aprofundadas sobre o finan-
ciamento do setor saúde.

capítulo 3 • 79
Dentre os ideais defendidos no relatório da 8ª CNS, destacamos:

Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação,


habitação, educação, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade,
acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o re-
sultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes
desigualdades nos níveis de vida.
Direito à saúde significa a garantia, pelo Estado, de condições dignas de vida e de
acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação
da saúde, em todos os seus níveis, a todos os habitantes do território nacional, levando
ao desenvolvimento pleno do ser humano em sua individualidade.
A reestruturação do Sistema Nacional de Saúde deve resultar na criação de um Siste-
ma Único de Saúde que efetivamente represente a construção de um novo arcabouço
institucional separando totalmente saúde de previdência, através de uma ampla Refor-
ma Sanitária.
Os Fundos de Saúde, em diferentes níveis, serão geridos conjuntamente com a partici-
pação colegiada de órgãos públicos e da sociedade organizada. (Brasil, 1986: 04-19).

CONEXÃO
Você pode acessar o Relatório Final da 8ª CNS pelo seguinte link:
http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/relatorios/relatorio_8.pdf
Como também pode assistir à abertura da 8ª CNS realizada pelo professor Sérgio Arouca:
https://www.youtube.com/watch?v=NtdIGv8mfDI

No ano subsequente, os ideais da Reforma Sanitária começaram a ganhar


forma com o SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde, mas ainda
com algumas restrições. Foi em 1988, por meio da Constituição Federal, que o
conceito de saúde foi efetivamente ampliado e vinculado a políticas socioeco-
nômicas, e lançaram-se as bases para o Sistema Único de Saúde (cf. Paulus Jr;
Cordoni Jr, 2006).

80 • capítulo 3
A Constituição Federal de 1988

A Constituição Federal de 1988, também chamada de Constituição Cidadã (cf.


Minayo, 2000), assimilou muitas das proposições da Reforma Sanitária, reco-
nhecendo o direito à saúde e a responsabilidade do Estado em garantir “um
conjunto de políticas econômicas e sociais, incluindo a criação do Sistema Úni-
co de Saúde (SUS), universal, público, participativo, descentralizado e integral”.
(Paim, 2013: 1928).
No título VIII – Da ordem social; capítulo II – seção II, da Saúde, os artigos
196 a 200, destacamos os seguintes trechos:

Art. 196. A saúde é direito e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 198. As ações e serviços públicos integram uma rede organizada e hierarquizada e
constituem um sistema único [...]
§ 1°. O sistema único de saúde será financiado [...] com recursos do orçamento da
seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além
de outras fontes.
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 1°. As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema
único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou con-
vênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos;
§ 2°. É vedada a destinação de recursos públicos para auxílio ou subvenções às insti-
tuições privadas com fins lucrativos.
Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
I. controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para
a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos,
hemoderivados e outros insumos;
II. executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde
do trabalhador;
III. ordenar a formação de recursos humanos na área da saúde; [...]
VIII. colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. (Bra-
sil, 2013: 33-34).

capítulo 3 • 81
A consolidação do SUS se deu ao longo da década de 90. A lei 8.142/90 es-
tabeleceu a criação de conselhos de saúde em cada esfera do governo, como
órgãos colegiados deliberativos compostos por “representantes do governo,
prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários” (Brasil, 1990) com
capacidade de avaliar e fiscalizar serviços e recursos em saúde. A lei 8.142/90
também definiu as transferências de recursos financeiros, dispensando a ne-
cessidade de convênios (cf. Paulus Jr; Cordoni Jr, 2006: 17).
Não obstante os incentivos do poder público, passadas algumas décadas,
o SUS ainda enfrenta desafios semelhantes aos da época de seu surgimento.
Segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), em documen-
to publicado em 2006 (Brasil, 2006), o SUS precisa superar grandes desafios:

•  Desafio da universalização;
•  Desafio do financiamento;
•  Desafio do modelo institucional;
•  Desafio do modelo de atenção à saúde;
•  Desafio da gestão do trabalho no SUS; e
•  Desafio da participação social (Brasil, 2006: 19).

Em documento mais recente, o conselheiro da Organização Pan-Americana


de Saúde, Eugênio Vilaça Mendes (2013) concedeu entrevista refletindo a res-
peito dos benefícios alcançados pelo SUS assim como sobre os seus desafios.
Entre os benefícios e conquistas, Mendes (2013) reconheceu que, apesar do
SUS ter uma história recente, ele já é responsável exclusivo pela assistência à
saúde de 140 milhões pessoas.

O SUS apresenta números impressionantes: quase seis mil hospitais e mais de sessen-
ta mil ambulatórios contratados, mais de dois bilhões de procedimentos ambulatoriais
por ano, mais de onze milhões de internações hospitalares por ano, aproximadamente
dez milhões de procedimentos de quimioterapia e radioterapia por ano, mais de duzen-
tas mil cirurgias cardíacas por ano e mais de 150 mil vacinas por ano. O SUS pratica
programas que são referência internacional, mesmo considerando países desenvolvi-
dos, como o Sistema Nacional de Imunizações, o Programa de Controle de HIV/AIDS
e o Sistema Nacional de Transplantes de Órgãos que tem a maior produção mundial
de transplantes realizados em sistemas públicos de saúde no mundo, 24 mil em 2012.

82 • capítulo 3
O programa brasileiro de atenção primária à saúde tem sido considerado, por sua ex-
tensão e cobertura, um paradigma a ser seguido por outros países. (Mendes, 2013: 28)

Contudo, mesmo considerando os êxitos do SUS, ele ainda se depara com


três grandes desafios: “a organização macroeconômica do sistema de saúde no
Brasil; a organização microeconômica expressa no modelo de atenção à saúde
que pratica; e financiamento.” (Mendes, 2013: 28).
A eficácia do SUS não depende somente das ações governamentais e da am-
pliação de investimentos. A participação social, no gerenciamento e na formu-
lação de políticas, também é muito importante para melhorar os serviços de
saúde e reduzir as iniquidades em saúde (OMS, 2011).

REFLEXÃO
Você viu como o conceito de saúde é complexo e variável conforme o período e os sujeitos
envolvidos.
E você, como definiria saúde?
Você acompanhou os movimentos da história brasileira para a consolidação do SUS. O
que você pensa sobre o serviço? Considerando que o Sistema Único de Saúde é ainda re-
cente no país, você acha que ele tem solução? O que você sugeriria para superar os desafios
apontados pelos autores mencionados acima?

LEITURA
LUZ, MT e BARROS, NF (orgs.). Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde:
estudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS-UERJ/ABRASCO, 2012.
Essa obra é interessante para relativizar o conceito de saúde e seus tratamentos, uma
vez que traz textos de vários autores que discorrem sobre outras formas de medicina e tra-
tamento, como por exemplo: a medicina tradicional chinesa, a medicina antroposófica, a ho-
meopatia, etc., demonstrando como essas outras medicinas podem sem conceituadas como
racionalidades médicas, equiparando-as à racionalidade da medicina convencional.
OMS – Organização Mundial de Saúde. Diminuindo diferenças: a prática das políticas
sobre determinantes sociais da saúde – documento de discussão. Rio de Janeiro, 2011.

capítulo 3 • 83
Apesar de ser um documento técnico da OMS, o texto suscita questionamentos e refle-
xões acerca do conceito ampliado de saúde e sobre os determinantes sociais de saúde. Ao
trabalhar questões como governança, participação social, políticas públicas, ações globais
sobre os determinantes sociais e monitoramento das intervenções, o documento fornece
diretrizes prático-conceituais para redução das iniquidades em saúde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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84 • capítulo 3
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capítulo 3 • 85
86 • capítulo 3
4
Aspectos
Sociológicos
do Mundo
Contemporâneo
No capítulo anterior vimos os meandros da construção do conceito ampliado
de saúde e como as políticas nacionais e internacionais contribuíram para a
conformação do sistema de saúde brasileiro.
O objetivo deste capítulo é apresentar algumas políticas públicas de saú-
de brasileiras após a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) e trabalhar
aspectos da realidade social, como cidadania, globalização, pobreza, etc., que
contribuem para a desigualdade no acesso e na manutenção da saúde.

OBJETIVOS
Este capítulo focará as políticas públicas de saúde e como elas podem interferir na realidade
social por meio de mecanismos de inclusão e redução das iniquidades em saúde. Esperamos
que a partir das informações apresentadas, você seja capaz de:

•  Compreender o processo de consolidação do SUS;


•  Conhecer as principais políticas de saúde;
•  Entender a relação da saúde com o direito e a cidadania;
•  Compreender como a organização social e a globalização podem influenciar nas desigual-
dades sociais em saúde.

88 • capítulo 4
4.1  Políticas públicas de saúde
No capítulo anterior, vimos brevemente a história da saúde no Brasil e como
que a VIII Conferência em Saúde, de 1986, e a Constituição de 1988 foram fun-
damentais para a conformação do nosso Sistema Único de Saúde (SUS). Agora
vamos explorar a forma de organização do SUS e as políticas de saúde relacio-
nadas a esse serviço de saúde.
Como já dissemos a Constituição Federal de 1988 assegurou as bases para a
criação do SUS. Em setembro de 1990, foi aprovada a Lei n° 8080 que constituiu
o SUS e dispôs “sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da
saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes” (Brasil,
1990a); detalhando diretrizes, organização, gestão, participação do sistema
complementar, financiamento e planejamento (cf. Reis, Araújo, Cecílio, s/d).
Ainda no mesmo ano, em dezembro, foi publicada a Lei n° 8142 que tratou da
participação da comunidade na gestão do SUS, como por exemplo, por meio
dos Conselhos de Saúde – assunto que trataremos mais adiante – e as formas
de financiamento do serviço; a lei conferiu também legitimidade ao Conselho
Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS) e ao Conselho Nacional
de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), assim como elaborou o arca-
bouço jurídico do SUS (cf. Reis, Araújo, Cecílio, s/d).

CONEXÃO
Você pode acessar a Lei n° 8080, de 1990, no seguinte link:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm
Assim como a Lei n° 8142, também de 1990:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8142.htm

No ano de 1991, foi criada a Comissão de Intergestores Tripartite (CIT):

Com representação do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais de saúde e das


secretarias municipais de saúde e da primeira norma operacional básica do SUS, além
da Comissão de Intergestores Bipartite (CIB), para o acompanhamento da implantação
e operacionalização da implantação do recém criado SUS. (Reis, Araújo, Cecílio, s/d: 35)

capítulo 4 • 89
Segundo o site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(http://www.mds.gov.br/acesso-a-informacao/orgaoscolegiados/orgaos-em-des-
taque/cit) o CIT também viabiliza a Política Nacional de Assistência Social (PNAS).

A Política Nacional de Assistência Social apresenta os seguintes princípios:

I. Supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de ren-


tabilidade econômica;
II. Universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assis-
tencial alcançável pelas demais políticas públicas;
III. Respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios
e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se
qualquer comprovação vexatória de necessidade;
IV. Igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer
natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais;
V. Divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais,
bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua conces-
são.” (Brasil, 2004a).

Em 1993, foi publicada a NOB-SUS 93 (Normas Operacionais Básicas) que


incentivou o processo de descentralização político-administrativa do serviço em
saúde e início da municipalização, instituindo “níveis progressivos de gestão lo-
cal do SUS” (Reis, Araújo, Cecílio, s/d: 36). No ano seguinte, o governo federal im-
plantou o Programa Saúde da Família (PSF), defendendo o modelo de assistência
baseado na promoção, proteção, tratamento e recuperação da saúde tanto para
indivíduos, famílias e comunidades (Santana; Carmagnani, 2001).
Dois anos depois, com a NOB 96, houve uma aceleração da descentralização
da gestão em saúde, assim como, um incremento aos programas destinados
às populações mais carentes, como o Programa de Agentes Comunitários de
Saúde (PACS) e incentivos ao PSF (Reis, Araújo, Cecílio, s/d: 37).

90 • capítulo 4
CONEXÃO
Você pode obter mais informações sobre a NOB-SUS 93 e a NOB96 pelos seguintes links:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/1993/prt0545_20_05_1993.html
http://conselho.saude.gov.br/legislacao/nobsus96.htm

Em 2002 foi editada a Norma Operacional de Assistência à Saúde (NOAS-SUS),


incentivando o processo de regionalização do SUS (Reis, Araújo, Cecílio, s/d: 38).

Norma Operacional de Assistência à Saúde


Entre as especificidades da NOAS-SUS destacamos:
“O processo de regionalização deverá contemplar uma lógica de planejamento integrado,
compreendendo as noções de territorialidade, na identificação de prioridades de interven-
ção e de conformação de sistemas funcionais de saúde, não necessariamente restritos à
abrangência municipal, mas respeitando seus limites como unidade indivisível, de forma a
garantir o acesso dos cidadãos a todas as ações e serviços necessários para a resolução
de seus problemas de saúde, otimizando os recursos disponíveis.” (Brasil, 2002)
“Região de Saúde - base territorial de planejamento da atenção à saúde, não neces-
sariamente coincidente com a divisão administrativa do estado, a ser definida pela
Secretaria Estadual de Saúde, de acordo com as especificidades e estratégias de re-
gionalização da saúde em cada estado, considerando as características demográficas,
socioeconômicas, geográficas, sanitárias, epidemiológicas, oferta de serviços, relações
entre municípios, entre outras. Dependendo do modelo de regionalização adotado, um
estado pode se dividir em macrorregiões, regiões e/ou microrregiões de saúde. Por sua
vez, a menor base territorial de planejamento regionalizado, seja uma região ou uma
microrregião de saúde, pode compreender um ou mais módulos assistenciais.”
(Brasil, 2002)

No ano de 2003, visando a integralidade, a universalidade, a equidade em


saúde e a superação da assistência fragmentada e burocratizada, o governo
federal publicou a Política Nacional de Humanização, enfatizando o resgate
do cuidado, da autonomia e o protagonismo dos sujeitos, estimulando a cor-
responsabilidade na produção e na gestão de saúde por meio do diálogo, da
troca e construção de saberes, vínculos solidários e adequação dos serviços ao

capítulo 4 • 91
ambiente e cultura local, garantindo o acolhimento, inclusão e combate à dis-
criminação (Brasil, 2004b)
Em 2006, no intuito de regulamentar as relações institucionais e fortalecer
a gestão do SUS, instituiu-se o Pacto pela Saúde, centrada em três dimensões:
Pacto pela Vida; Pacto em Defesa do SUS e Pacto de Gestão.
O Pacto pela Vida, visando melhorias na saúde da população, estabeleceu
algumas prioridades a serem alcançadas tanto em nível municipal, estadual,
como federal. Entre as prioridades:

1. Saúde do Idoso;
2. Controle do Câncer do colo do útero e da mama;
3. Redução da mortalidade infantil e materna;
4. Fortalecimento da capacidade de resposta às doenças emergentes e en-
demias, com ênfase na dengue, hanseníase, tuberculose, malária e influenza;
5. Promoção da Saúde;
6. Fortalecimento da Atenção Básica. (Reis, Araújo, Cecílio, s/d: 45)

Já o Pacto em Defesa do SUS procurou aproximar a população do SUS, por


meio das seguintes diretrizes:

•  A repolitização da saúde, como movimento que retoma a Reforma Sanitária


Brasileira, atualizando as discussões em torno dos desafios atuais do SUS;
•  Promoção da Cidadania como estratégia de mobilização social tendo a
questão da saúde como direito;
•  Garantia de financiamento de acordo com as necessidades do Sistema.
(Reis, Araújo, Cecílio, s/d: 45-46)

No Pacto de Gestão, as ações voltaram-se para:

•  A Regionalização;
•  A qualificação do processo de descentralização e ações de planejamento
e programação;
•  Mudanças no financiamento. (Reis, Araújo, Cecílio, s/d: 46)

No mesmo ano, no mês de março, foram lançadas: a Política Nacional de


Atenção Básica (PNAB) e a Política Nacional de Promoção de Saúde (PNPS).

92 • capítulo 4
A Política Nacional de Atenção Básica defende os “princípios da universali-
dade, da acessibilidade, do vínculo, da continuidade do cuidado, da integralida-
de da atenção, da responsabilização, da humanização, da equidade e da partici-
pação social” (Brasil, 2012:9). A PNAB conta com ações do Programa Saúde da
Família (PSF), Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), Unidades
Básicas de Saúde Fluviais (UBSF), Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF)
e Equipes do Consultório na Rua (Brasil, 2012).
A Política Nacional de Promoção de Saúde busca a promoção da qualidade de
vida e redução da vulnerabilidade e riscos à saúde. Enfatizando a “integralidade,
equidade, responsabilidade sanitária, mobilização e participação social, interseto-
rialidade, informação, educação e comunicação, e sustentabilidade” (Brasil, 2006:
14) e estimulando o uso de alternativas inovadoras e socialmente inclusivas.
Em maio de 2006, o governo federal publicou a Política Nacional de Práticas
Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC-SUS) com a proposta ampliar
a oferta de ações de saúde no SUS, oferecendo alternativas a tratamentos con-
vencionais no âmbito do SUS, como: a homeopatia, acupuntura (medicina tra-
dicional chinesa), uso de plantas medicinais – fitoterapia, termalismo-crenote-
rapia1 e medicina antroposófica. Tendo como princípios: a visão ampliada do
processo saúde-doença e a promoção global do cuidado (Brasil, 2008).
Com o intuito de aproximar ainda mais a população aos serviços do SUS, em
2013, o governo federal instituiu a Política Nacional de Educação Popular em
Saúde, (PNEPS-SUS) para “promover o diálogo e a troca entre práticas e saberes
populares e técnico-científico no âmbito do SUS” (Brasil, 2013), estimulando
diálogos multiculturais, a socialização de tecnologias e perspectivas integra-
tivas e a amorosidade, favorecendo o protagonismo popular na resolução de
questões sociais de saúde.
Como você pode perceber, houve um esforço das instâncias políticas para
assegurar um melhor e mais amplo atendimento de saúde à população brasilei-
ra após a criação do SUS. Recordando que o SUS é um serviço recente na nossa
história, é compreensível que ainda apresente falhas, lacunas, incongruências e
1  Crenologia: “é o estudo das fontes de águas minerais, sendo um capítulo da Hidrologia.” (Brasil, 2008: 68)
Crenoterapia: “tratamento pelas águas minerais.” (Brasil, 2008: 68)
Medicina termal: “ramo da medicina clínica que se ocupa do uso das águas minerais como terapêutica suplementar.”
(Brasil, 2008:68)
Medicina Antroposófica: originou-se com os trabalhos do filósofo e cientista Rudolf Steiner (1861-1925). “É um
sistema de tratamento que faz uso dos recursos diagnósticos e terapêuticos da medicina convencional, mas que se
propõe a ampliar essa atuação a partir de uma base filosófica própria, a Antroposofia. Em consequência, provê uma
visão humanista da medicina, pois trabalha a partir de uma imagem mais completa do ser humano na saúde e na
doença. Esse método de diagnóstico e terapia olha para o homem como um ser que tem uma unidade de corpo, alma
e espírito dentro do contexto do meio social que ele vive.” (Follador, 2013: 167)

capítulo 4 • 93
enfrente dificuldades. Um aspecto importante a ser ressaltado é que a assistência
à saúde não é um favor do Estado, mas um direito humano fundamental “que
requer a participação da sociedade no planejamento e na prestação de serviços e
cuidados” (Ventura, et al, 2012: 894). Trata-se de um exercício de cidadania.

4.2  Cidadania
A ideia de cidadania surgiu com a vida nas cidades, com a “capacidade de os homens
exercerem direitos e deveres de cidadão” (Covre, 2002: 16). A ascensão burguesa, a
constituição do Estado de Direito e a edificação dos Estados-Nação colaboraram para
a construção de uma cidadania com conteúdo mais universal (Covre, 2002).
A concepção de “cidadania moderna” mais conhecida é atribuída a T.H.
Marshall (Lavalle, 2003). Segundo Marshall:

Cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comu-
nidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e
obrigações pertinentes ao status. Não há nenhum princípio universal que determine o
que estes direitos e obrigações serão, mas as sociedades nas quais a cidadania é uma
instituição em desenvolvimento criam uma imagem de uma cidadania ideal em relação
à qual o sucesso pode ser medido e em relação à qual a aspiração poder ser dirigida.
(Marshall, 1967: 76 – grifo do autor)

Para o referido autor (Marshall, 1967), a constituição da cidadania moderna


pode ser entendida pela análise de três elementos principais que se desenvolve-
ram em períodos históricos distintos no Ocidente: a) elemento civil; b) elemen-
to político; e c) elemento social.

a) O elemento civil “é composto dos direitos necessários para a liberdade


individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, liberdade de pensa-
mento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à
justiça” (Marshall, 1967: 63). Os direitos civis ganharam força a partir do século
XVIII, associado ao status de liberdade (Marshall, 1967), contudo, esses direi-
tos contemplavam majoritariamente os homens, nesse período as mulheres
ainda enfrentavam certas restrições.

94 • capítulo 4
b) O elemento político: consagrou-se no século XIX, com a “doação de ve-
lhos direitos a novos setores da população” (Marshall, 1967: 69), atribuindo o
“direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um
organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros
de tal organismo” (idem: 63).
c) O elemento social: “se refere a tudo o que vai desde o direito a um míni-
mo bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na
herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que
prevalecem na sociedade” (Marshall, 1967: 63-64). As ações em prol dos direi-
tos sociais tornaram-se mais robustas a partir do século XX. Reconhecendo-se
o direito à educação com um dos mais genuínos direitos sociais de cidadania,
“basicamente, deveria ser considerado não como o direito da criança frequen-
tar a escola, mas como o direito do cidadão adulto ter sido educado” (idem: 73).

Apesar de sua influência, a perspectiva teórica de Marshall foi criticada por


estabelecer uma sequência evolutiva na construção da cidadania, partindo dos
direitos civis, passando pelos direitos políticos e culminando nos direitos so-
ciais, sem considerar outros caminhos para a cidadania (cf. Serapioni, 2014).
Mais recentemente, a partir da década de 1990, começou a se elaborar uma
“nova noção de cidadania” caracterizada pelos movimentos sociais e a luta por
direitos de igualdade e de diferença; uma cidadania entendida como estratégia
politica de construção democrática e de transformação social (Dagnino, 1994).

Afirmar a cidadania como estratégia significa enfatizar o seu caráter de construção


histórica, definida portanto por interesses concretos e práticas concretas de luta e pela
contínua transformação. Significa dizer que não há uma essência única imanente ao
conceito de cidadania, que o seu conteúdo e seu significado não são universais, não es-
tão definidos e delimitados previamente, mas respondem à dinâmica dos conflitos reais,
tais como vividos pela sociedade num determinado momento histórico. Esse conteúdo
e significado, portanto, serão sempre definidos pela luta política. (Dagnino, 1994: 107)

No caso da saúde, devemos lembrar que o direito à saúde foi proclamado,


em nível internacional, em 1948, com a Declaração dos Direitos Humanos e
no Brasil, foi assegurado, como direito fundamental a toda população, a partir
da Constituição de 1988 (Ventura, et al., 2012). Dessa forma, compreendendo,

capítulo 4 • 95
então, a cidadania como resultante de um processo político, deduz-se que a
participação social nos processos de decisão, tanto na área econômica, políti-
ca, social, assim como na área da saúde, é fundamental para a consolidação da
cidadania no país.
Para a participação cidadã na área da saúde, a população pode se valer dos
Conselhos de Saúde para manifestar-se, defender seus direitos e apresentar
demandas. Os Conselhos de Saúde são os espaços destinados às discussões,
planejamento, fiscalização e deliberações sobre as ações de saúde.
Os Conselhos de Saúde (CS) foram instituídos em 1990, com a Lei n° 8142 –
já mencionada linhas acima – como órgãos colegiados, de caráter permanente
e deliberativo, presentes nas três esferas do governo, federal, estadual e mu-
nicipal (Brasil, 1990b). A resolução n°333, de 2003, determinou a composição
da representatividade dos seus membros: 50% de entidades de usuários, 25%
de entidades dos trabalhadores de saúde e 25% de representantes do governo,
prestadores de serviço privados conveniados, ou sem fins lucrativos (Brasil,
2003). A população pode assistir às suas reuniões ou pode procurar os mem-
bros desses CS, apresentar suas demandas e exigir que eles atuem como seus
representantes nesses órgãos.
Você conhece o Conselho Municipal de Saúde ou algum Conselho Local de
Saúde da sua cidade?

4.3  Globalização
Até agora tratamos das políticas públicas de saúde nacionais e a questão da ci-
dadania e do direito à saúde no Brasil. Contudo, não podemos nos esquecer que
estamos inseridos em um contexto maior, em um mundo globalizado. Dessa for-
ma, para pensarmos a saúde em nível local devemos considerar também os im-
pactos da globalização sobre as relações sociais e como eles afetam nossa saúde.
Mas você sabe o que é globalização?
A ideia de uma “economia global”, articulando vários países e continentes,
existe desde o período do colonialismo europeu do século XVI; já o conceito de glo-
balização constituiu-se nas últimas duas ou três décadas do século XX (Buss, 2007).
Para o sociólogo Anthony Giddens (2008), a globalização ultrapassa a di-
mensão econômica, envolvendo “fatores econômicos, políticos, sociais e cultu-
rais. O seu progresso é devido sobretudo ao desenvolvimento das tecnologias da

96 • capítulo 4
informação e comunicação, que vieram intensificar a velocidade e o âmbito das
interações entre os povos do mundo inteiro.” (p.52). Acelerando o movimento
das pessoas, das ideias, do dinheiro, dos bens e dos serviços (Helman, 2009).

As principais características da globalização são:


“– crescimento do comércio internacional de bens, produtos e serviços;
– transnacionalização de megaempresas;
– livre circulação de capitais;
– privatização da economia e minimização do papel dos governos e dos Estados-nação;
– queda de barreiras comerciais protecionistas e regulação do comércio internacional,
segundo as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC);
– facilidade de trânsito de pessoas e bens entre os diversos países do mundo e;
– expansão das possibilidades de comunicação, pelo surgimento da chamada sociedade
da informação e da grande facilidade de contato entre as pessoas devido ao aparecimen-
to de diversos instrumentos e ferramentas, entre as quais a internet.” (Buss, 2007: 1576)

CONEXÃO
A interdependência, entre grupos e nações, gerada pela globalização, ao mesmo tempo que
amplia as possiblidades de relações sociais, de comércio e transações financeiras, também
pode levar a um colapso global caso uma das partes entre em crise.
A especulação financeira e a corrupção podem ocasionar verdadeiros desastres eco-
nômicos em cadeia, como nos mostra o documentário Serviço interno que retrata o en-
redo da crise econômica de 2008. Você pode assisti-lo pelo seguinte link: https://vimeo.
com/39018226

Um fator positivo que a globalização pode ter sobre a saúde é a propagação


de informações sobre pesquisas médicas e a facilitação do comércio de técnicas,
equipamentos e fármacos (Helman, 2009: 271). No entanto, a complexidade e as
tecnologias avançadas contidas nesses produtos intensificam a “probabilidade
de acontecer algo errado” (Lucchese, 2013: 289) o que implica a necessidade de
uma maior vigilância para garantir a segurança àqueles que os utilizam.

capítulo 4 • 97
A velocidade das informações, das relações e do dinheiro, juntamente com
o crescimento das empresas transnacionais2 e a lógica do capital especulativo
causam impactos prejudiciais a muitas populações, especialmente as mais po-
bres e vulneráveis.
Uma das consequências prejudiciais da globalização para a saúde é a possi-
blidade de transmissão de doenças em escala global.

Com as facilidades das viagens internacionais e a difusão do comércio em escala pla-


netária, uma série de microrganismos podem ser rapidamente transportados, através
de pessoas, animais, insetos e alimentos, de um país a outro e de um ponto a outro no
globo (Buss, 2007: 1581).

Outro fenômeno relacionado à globalização e a facilidade das viagens in-


ternacionais é o aumento do turismo sexual e disseminação de doenças sexu-
almente transmissíveis (DST) (Buss, 2007: 1581). O maior trânsito de pessoas
e do comércio também favorece a “globalização do tráfico de drogas ilícitas,
como cocaína, heroína, marijuana e drogas químicas sintéticas” (idem: 1582),
substâncias que causam efeitos prejudiciais à saúde de seus usuários.

Uso de drogas no mundo


Segundo o World Drug Report 2014 (Relatório Mundial sobre Drogas 2014), publicado
pela United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), estimou-se que somen-
te no ano de 2012 houve 183.000 mortes relacionadas ao uso de drogas. Estimou-
se também que, no mesmo ano, cerca de 162 milhões a 324 milhões de pessoas,
na idade entre 15 a 64 anos, tenham usado uma droga ilícita pelo menos uma vez.

2  Empresas transnacionais são “empresas que produzem bens ou serviços comerciais em mais do que um
país. Estas podem ser relativamente pequenas, com uma ou duas fábricas fora do país onde estão sediadas, ou
gigantescos empreendimentos internacionais, cujas operações abrangem todo o globo. [...] As transnacionais estão
no cerne da globalização econômica: são responsáveis por dois terços de todo o comércio mundial, são cruciais para
a difusão de novas tecnologias em todo o mundo, e são atores decisivos nos mercados financeiros internacionais.”
(Giddens, 2008: 57)

98 • capítulo 4
Sobre produtores e consumidores:
Opióides: o maior produtor de papoula no mundo é o Afeganistão. A heroína é comer-
cializada em mercados na Oceania, sudoeste asiático, Europa ocidental e central.
Cocaína: seu principal produtor é a América do Sul e seus principais consumidores
encontram-se nas Américas e na Europa ocidental e central.
Marijuana: a produção da erva cannabis é disseminada pelo mundo, contudo a produ-
ção de sua resina, também conhecida como haxixe, permanece restrita a alguns países
do norte da África, Oriente Médio e sudoeste asiático. Um dos principais mercados da
marijuana é a Europa ocidental e central.
Metanfetaminas: os laboratórios desses produtos concentram-se principalmente na
América do Norte e no México. As maiores apreensões de metanfetaminas foram rea-
lizadas na América do Norte, na Europa e no leste e sudeste asiático. (UNODC, 2014)

Além dos riscos de pandemias, possibilidade do aumento da proliferação das


DSTs e do crescimento do comércio internacional de drogas, a globalização pode
desencadear conflitos e guerras motivados por “disputas econômicas e territo-
riais entre países, assim como entre grupos e etnias no interior de Estados nacio-
nais” (Buss, 2007: 1581). Essas lutas podem gerar mortes, traumas, mutilações,
violência sexual, etc. assim como desestruturar os serviços de saúde e saneamen-
to, uma vez que os recursos destinados à educação e à saúde podem ser realoca-
dos para o financiamento do conflito e compra de armamentos (idem: 1581-2).
Para o médico e antropólogo Cecil Helman (2009: 272), “um dos compo-
nentes mais importantes da globalização é a migração”, não apenas de pessoas
como também de ideias, produtos e serviços. A migração de pessoas pode ser
voluntária ou involuntária; no primeiro caso, as pessoas escolheram mudar de
lar ou país, em busca de melhores condições de vida, salário, educação, etc.;
já no segundo caso, as pessoas foram forçadas “a fugir de suas casas devido às
guerras, às perturbações políticas, à perseguição, ao sofrimento econômico ou
aos desastres naturais” (Helman, 2009: 273). Um importante resultado da mi-
gração é a diversidade cultural e social; grupos de imigrantes e minorias podem
encontrar dificuldades em juntar-se à cultura dominante, em parte pela discri-
minação econômica, social ou religiosa; o que, por sua vez, pode levar tais gru-
pos a situações de marginalidade, desemprego, crime e privação (idem: 275-6).

capítulo 4 • 99
Riscos de saúde da migração
Segundo Helman (2009) “Nos Estados Unidos [...] as minorias étnicas e raciais no país
sofrem desproporcionalmente mais de doença cardiovascular, hipertensão, diabetes,
asma, câncer e outras condições. Alguns dos riscos para a saúde dos migrantes tam-
bém assemelham-se àqueles que afligem pobres urbanos em muitos países menos de-
senvolvidos, bem como os países mais pobres que estão se ‘ocidentalizando’.” (p. 284).
Além disso, a migração, interna ou externa, pode desencadear o risco de distúrbios
mentais e desestruturação familiar. A fragmentação ou desestruturação da família mi-
grante pode reduzir o sentido de identidade dos sujeitos e prejudicar a oferta de apoio
social entre os membros, assim como pode ocasionar sofrimento mental, sensação de
confusão, alienação e raiva (p. 287). Os refugiados, em particular, são mais suscetíveis
a apresentar transtornos psicológicos uma vez que foram forçados a migrar, não tendo
tempo necessário para se prepararem psicologicamente para a situação. “Em termos
psicológicos, os refugiados podem sofrer de ansiedade, depressão, ataques de pânico
ou agorafobia como resultado de sua experiência anterior de migração forçada, bem
como de suas situações atuais (especialmente quando discriminação ou isolamento
estão envolvidos). Em termos sociais, diferentes tipos de rompimento social podem sur-
gir nas comunidades de famílias de refugiados, de ruptura conjugal e violência domés-
tica a abuso de substâncias, como uma forma de mecanismo de adaptação” (p. 287).

Como você já deve ter percebido, apesar da globalização ampliar o fluxo de


pessoas e coisas, diminuindo distâncias e rompendo fronteiras, ela também
pode acentuar ainda mais as desigualdades sociais e, consequentemente, as
desigualdades em saúde.

4.4  Desigualdades sociais


No capítulo I, quando visitamos Karl Marx, aprendemos que o capitalismo oca-
sionou a ruptura entre a propriedade dos meios de produção e quem produzia
os bens, tal fato acentuou as desigualdades sociais ao distribuir de forma desi-
gual os bens e recursos sociais e essas desigualdades caracterizaram as classes
sociais (cf. Costa, 1987).
Segundo a médica e professora Rita Barradas Barata (Barata, 2009), fatores
como riqueza, educação, ocupação, etnia, gênero, local de moradia e trabalho

100 • capítulo 4
influenciam diretamente no estado de saúde dos grupos sociais. Essas desi-
gualdades estão atreladas a certo grau de injustiça “porque estão associadas
a características sociais que sistematicamente colocam alguns grupos em des-
vantagem em relação à oportunidade de ser e se manter sadio” (p. 12).
O senso comum tenta elaborar várias explicações para as desigualdades so-
ciais em saúde, destacando-se algumas:

a) “o acesso aos serviços de saúde é diferenciado para os vários grupos”


(Barata, 2009: 14). Esse argumento apresenta-se inconsistente quando se anali-
sa países cujos sistemas de saúde oferecem acesso universal para todos os gru-
pos sociais. Reveja o capítulo II, quando falamos do estudo de que Asa Cristina
Laurell sobre o sistema de saúde na Inglaterra, em que a oferta dos serviços de
saúde era garantida a todos e nem por isso houve uma redução dos diferenciais
das taxas de mortalidade entre os grupos sociais.
b) Os países apresentam diferentes “graus de desenvolvimento da assis-
tência médica” (Idem: 14).

A difusão de tecnologias médicas, mesmo nos países menos desenvolvidos, é conside-


rável e com o passar do tempo deveria provocar a redução das desigualdades, e não o
seu aumento. Portanto, por mais importante que o desenvolvimento técnico-científico
possa ser para a recuperação da saúde, esta não parece ser a explicação mais plausível
para essas desigualdades. (Barata, 2009: 14)

c) Ideia do ciclo vicioso:


Para eles, a doença é o principal determinante da posição social, e não o
contrário, isto é, as pessoas doentes não conseguem ter um desempenho sa-
tisfatório e por isso encontram-se em posições desfavorecidas. Bastam alguns
estudos longitudinais para derrubar essa justificativa (Barata, 2009: 14)
d) O estilo de vida dos indivíduos é responsável pelas desigualdades sociais.
Tal crença é mais difícil de ser contestada com evidências empíricas ou ar-
gumentos teóricos, pois implica uma visão de mundo particular. Entretanto, os
estudos epidemiológicos têm mostrado que os fatores de risco não conseguem
explicar mais do que 25% da ocorrência dos problemas crônicos de saúde.
Portanto, mesmo que o estilo de vida seja importante individualmente, dificil-
mente seria capaz de explicar as desigualdades sociais (Barata, 2009: 15)

capítulo 4 • 101
e) Explicações baseadas em fatores genéticos: seus pressupostos baseiam-
se em uma “interpretação mecanicista da própria atuação dos determinantes
genéticos, não cremos que seja necessário perder muito tempo para refutá-la”
(Barata, 2009: 15).

Como você pode notar, as explicações acima apresentadas não foram satis-
fatórias para justificar as desigualdades sociais em saúde. A seguir, ainda nos
apoiando em Rita B. Barata (2009), apresentaremos as quatro principais teorias
que procuram compreender o processo de produção de saúde e doença e sua
distribuição na população.

I. Teoria estruturalista ou materialista:

De acordo com esse modelo, o montante de renda ou riqueza dos países, grupos so-
ciais ou indivíduos é o principal determinante do estado de saúde. A falta ou insuficiên-
cia dos recursos materiais para enfrentar de modo adequado os estressores ao longo
da vida acaba por produzir a doença e diminuir a saúde (Barata, 2009: 16).

O único problema dessa teoria é que nem sempre a riqueza de um país cor-
responde diretamente a um melhor nível de saúde de sua população.

II. Teoria psicossocial:

Ela dá mais importância à percepção da desvantagem social como fonte de estresse


e desencadeador de doenças. Nos países e grupos sociais em que as necessidades
básicas estão atendidas, as diferenças relativas na posse de bens e nas posições de
prestígio e poder passam a ser mais relevantes para a produção e distribuição das do-
enças do que simplesmente o nível de riqueza (Barata, 2009: 16-17)

III. a) Teoria da determinação social – muito influente na América Latina:

Essa teoria analisa a constituição do próprio sistema capitalista de produção e


suas formas particulares de expressão nas diferentes sociedades, dando maior
ênfase aos mecanismos de acumulação do capital e à distribuição de poder,

102 • capítulo 4
prestígio e bens materiais deles decorrentes. A posição de classe e a reprodução social
passam a ser vistas como os principais determinantes do perfil da saúde e doença.
(Barata, 2009: 18)

III. b) Versão brasileira da teoria da determinação social

Dá maior ênfase explicativa ao modo de vida, considerando que nele estão englobados
tanto os aspectos materiais quando os aspectos simbólicos que refletem as caracte-
rísticas sociais de produção, distribuição e consumo, às quais cada grupo social está
relacionado através do modo de vida. Ao mesmo tempo que busca articular as diferen-
tes esferas da organização social, o conceito de modo de vida reúne em um mesmo
marco teórico as condições coletivas dos grupos e os comportamentos dos indivíduos
que compõem esses grupos. (Barata, 2009: 18-19)

IV. Teoria ecossocial

Chama a atenção para o processos de incorporação, no sentido forte do termo, pelos


organismos humanos, dos aspectos sociais e psíquicos predominantes no contexto
nos quais os indivíduos vivem e trabalham. [...] a teoria ecossocial considera impossível
a separação entre biológico, o social e o psíquico. (Barata, 2009: 19)

CONEXÃO
Para conhecer melhor a opinião da professora Rita Barradas Barata, assista ao seguinte vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=nBWdUkQe6Q0

Essas teorias compreendem que as desigualdades em saúde estão relacio-


nadas às formas de organização da sociedade e dos serviços de saúde. No ca-
pítulo anterior, já mencionamos os esforços e recomendações da Organização
Mundial de Saúde (OMS) para diminuir as desigualdades e iniquidades em saú-
de, desencadeadas pelos determinantes sociais da saúde:

capítulo 4 • 103
As iniquidades em saúde causam sofrimento desnecessário e são fruto de condições
sociais adversas ou de políticas públicas que não estão dando certo. Essas iniquidades
indicam a presença dos mesmos fatores que prejudicam o desenvolvimento, a susten-
tabilidade ambiental, o bem-estar das sociedades e a capacidade dessas de oferecer
condições iguais para todos. As iniquidades em saúde são um problema em todos os
países e refletem não só as disparidades de renda e riqueza, como também diferenças
nas oportunidades dadas aos indivíduos com base em fatores como etnia, e raça, clas-
se, gênero, nível educacional, deficiências, orientação sexual e localização geográfica.
(OMS, 2011: VII)

É importante ressaltar que essas iniquidades em saúde não serão solucio-


nadas com o simples investimento de recursos financeiros. Esses recursos
podem aliviar momentaneamente a situação, contudo, são incapazes de elimi-
nar complemente o problema. As causas dessas iniquidades possuem raízes
mais profundas, uma vez que são resultantes das formas de organização social
e das culturas que diferenciam e excluem determinados grupos (mulheres,
homossexuais, negros, deficientes físicos, etc.), sendo necessárias mudanças
mais amplas, que envolvam transformações nas relações sociais e nas visões de
mundo, para que seja possível alterar os padrões socioculturais de desigualda-
de e exclusão. Por isso que a educação e o investimento na conscientização dos
sujeitos sobre seus direitos configuram-se, aos nossos olhos, como elementos
relevantes para o combate das iniquidades sociais e em saúde.
E para atingir essas desigualdades é necessário conhecer melhor alguns de seus
aspectos, dispensemos, então, algumas linhas para a “pobreza” e a “exclusão social”.

4.5  Pobreza e exclusão social


Uma das consequências perversas das desigualdades sociais é a pobreza, comu-
mente associada à falta de renda ou pouca renda (Lavinas, 2003, Buss, 2007).
Contudo, ela envolve a “combinação de fatores socioeconômicos e políticos di-
versos” (Werthein, Noleto, 2003: 11). Dessa forma:

104 • capítulo 4
Uma definição mais criteriosa vai definir pobreza como um estado de carência, de pri-
vação, que pode colocar em risco a própria condição humana. Ser pobre é ter, portanto,
sua humanidade ameaçada, seja pela não satisfação de necessidades básicas (fisio-
lógicas e outras), seja pela incapacidade de mobilizar esforços e meios em prol da
satisfação de tais necessidades. (Lavinas, 2003: 29)

Segundo Giddens (2008) há duas abordagens para a compreensão da po-


breza: a absoluta e a relativa. A pobreza absoluta é associada às condições de
subsistência para a sobrevivência da existência física; enquanto a relativa “re-
laciona a pobreza com o padrão de vida geral prevalecente numa determinada
sociedade” (p. 313), reconhecendo a importância da cultura para sua definição.
Nesse caso, as carências e necessidades podem mudar com o tempo, isto é, à
medida que as sociedades mudam, os padrões da pobreza relativa também se
alteram. Contudo, há autores que identificam duas necessidades básicas para
o ser humano: a saúde e a autonomia (Lavinas, 2003).

Sem saúde não há como assegurar uma participação social plena e consequente. Sem
autonomia para agir, as escolhas sobre o que fazer e como fazer tornam-se escassas e
impossibilitam atingir metas e objetivos ao longo da vida (Lavinas, 2003: 31)

O Prêmio Nobel de Economia de 1998, Amartya Sen, entende que, além de


terem as necessidades atendidas, os sujeitos devem ter condições que permitam
satisfazê-las; analisando a pobreza a partir da “capacidade de mobilizar meios
e habilidades para funcionar ou agir” (Lavinas, 2003: 32) e atingir o bem estar.
Além de considerar a capacidade de agir e aproveitar oportunidades, a pobreza
também deve ser estudada pelos elementos saúde, nutrição e educação, “que re-
fletem a capacidade básica para funcionar a sociedade” (Buss, 2007: 1578)

CONEXÃO
Para aumentarmos o debate acerca da pobreza e exclusão social sugerimos que você assista
a dois vídeos:
O primeiro traz o ponto de vista dos representantes da justiça e do direito social:
https://www.youtube.com/watch?v=B4libRbSXTs

capítulo 4 • 105
O segundo é uma reportagem da TV Brasil intitulada “retratos da pobreza no Brasil”:
https://www.youtube.com/watch?v=TkEYL7L4tuI

No final da década de 1970 e início dos anos 80, outra categoria foi elaborada para
melhor compreender os efeitos das desigualdades sociais, tratava-se da “exclusão”.
A exclusão social geralmente se refere a minorias como “negros, homos-
sexuais, pessoas com deficiências, favelados, meninos de rua, catadores de
lixo, etc” (Silva, 2010: 156). Não é resultado apenas da insuficiência de renda
(Werthein, Noleto, 2003); seu conceito engloba “também aspectos subjetivos,
que mobilizam sentimentos de rejeição, perda de identidade, falência de laços
comunitários e sociais, resultando numa retração das redes de sociabilidade”
(Lavinas, 2003:37), em outras palavras, está associada à ruptura dos vínculos
sociais ou simbólicos (Vaz, 2002), à falta de integração social (Lavinas, 2003).
Giddens (2008) define exclusão da seguinte forma: “Entende-se por exclu-
são social as formas pelas quais os indivíduos podem ser afastados do pleno
envolvimento na sociedade” (p. 325). E identifica três formas de exclusão: a eco-
nômica; a política e a social.
A exclusão econômica pode ocorrer na produção, por meio do desemprego,
como também na esfera no consumo: não ter acesso ao que as pessoas com-
pram, consomem ou usam. A exclusão política ocorre quando os sujeitos não
possuem “os recursos, a informação e as oportunidades necessárias para par-
ticipar do processo político” (p. 326). E a exclusão social pode ocorrer pela fal-
ta de infraestrutura sociocultural, como falta de parques, campos desportivos,
centros culturais, etc. Pode também “significar uma rede social limitada ou fra-
ca, levando ao isolamento e ao contato mínimo com outros.” (p. 327).
A exclusão, a pobreza e a vulnerabilidade decorrente de ambas podem ser
entendidas como uma afronta à cidadania, pois violam direitos civis, políticos
e sociais (Lavinas, 2003).
No Brasil, a partir da década de 1980, foi lançada uma série de políticas so-
ciais no intuito de diminuir as desigualdades sociais, a pobreza, assim como a
exclusão de grupos, apresentando “um conjunto amplo e variado, mas descon-
tínuo e deficiente, de programas sociais direcionados para segmentos empo-
brecidos da população” (Silva, 2010: 157).
Na década de 80, ampliou-se o benefício mínimo da Previdência Social para tra-
balhadores urbanos e rurais, assegurando a “aposentadoria para os trabalhadores

106 • capítulo 4
rurais, independentemente de contribuição passada” (Silva, 2010: 158). A aposen-
tadoria social rural contribuiu para combater a pobreza no campo (idem:158).
Nos anos 90, elaborou-se o Plano de Combate à Fome e a Miséria (PCFM)
durante o governo de Itamar Franco (1993-1994). Esse plano foi interrompi-
do no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998) que ins-
tituiu o Programa Comunidade Solidária (PCS) “para enfrentar a pobreza e a
exclusão social mediante a articulação de ações já desenvolvidas por diferentes
Ministérios, numa perspectiva descentralizada e com a participação e parceria
da sociedade” (Silva, 2010: 158). O PCS não foi muito eficaz, então, em 1999,
criou-se o Programa Comunidade Ativa cuja “proposta era construir uma agen-
da local integrada com programas indicados pela comunidade” (idem: 158).
Em 2001, criou-se o Fundo de Combate à Pobreza para “financiar progra-
mas de transferência de renda associados à educação e a ações de saneamento,
consideradas áreas de maior impacto sobre a pobreza” (idem: 159). No mesmo
ano foi criado o Programa de Combate à Miséria “direcionado, prioritariamen-
te, aos bolsões de miséria das regiões Norte e Nordeste” (idem: 159). Depois foi
instituída a Rede de Proteção Social “formada por 12 programas, todos situados
no campo da transferência de renda para famílias e indivíduos” (idem: 159).
Com o primeiro governo Lula (2003-2006), elaborou-se primeiramente o
programa Fome Zero, depois o Bolsa Família que “propõe articular a transfe-
rência monetária a ações complementares mediante articulação com outros
programas de natureza estruturante, com destaque para a educação, saúde e
trabalho” (idem: 159).
Apesar de muitos estudos evidenciarem o impacto do Bolsa Família na “sig-
nificativa e contínua diminuição da pobreza e da desigualdade no país desde
2001” (Silva, 2010: 159), nota-se uma inclusão muito mais voltada para a esfera
do consumo, sem ocorrer grandes modificações em outras esferas do direito e
da cidadania (Alves, Escorel, 2013).
Como já dissemos linhas acima, mais do que investir recursos financeiros,
é importante cultivar a conscientização dos sujeitos sobre seus direitos, para
que tenham condições e capacidade de agir – para nos lembrarmos de Amartya
Sen – rompendo com as amarras das desigualdades e iniquidades sociais. É ne-
cessário que haja um “empoderamento” (empowerment) desses sujeitos, para
que sejam, além de inseridos, reintegrados em seu meio social.

capítulo 4 • 107
Empowerment
Segundo Carvalho (2004), há duas noções distintas de empowerment: a) psicológica
e b) comunitária.

a) psicológica:
“Podemos definir o “empowerment” psicológico como um sentimento de maior con-
trole sobre a própria vida que os indivíduos experimentam através do pertencimento a
distintos grupos, e que pode ocorrer sem que haja a necessidade de que as pessoas
participem de ações políticas coletivas” (p. 1090)
b) comunitária:
“Considero que um aspecto central do “empowerment” comunitário seja a possibilidade
de que os indivíduos e coletivos venham a desenvolver competências para participar da
vida em sociedade, o que inclui habilidades, mas também um pensamento reflexivo que
qualifique a ação política”. (p. 1092)

Mas como operacionalizar a integração e o empoderamento dos sujeitos e


grupos sociais?
Para Lavinas (2003), no que diz respeito à pobreza, como ela está associada à
dinâmica macroeconômica, as estratégias para combatê-la devem abarcar ações
em nível nacional. Já a exclusão, por estar relacionada com a ruptura de vínculos
sociais básicos, deveria ser enfrentada com estratégias locais de inclusão.
Ao considerar o contexto de globalização, Akerman (2005) entende que o
estímulo à cidadania e à integração de sujeitos e grupos deve estar atrelado ao
Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável (Dlis).

“O ‘local’ poderia ser compreendido como pertencente ou relativo a um território, co-


marca ou comunidade, geralmente pouco menor do que a menor, ou mesmo a menor
instância da divisão político-administrativa de um país. Em outras palavras, o local po-
deria ser um município, ou ainda uma parte desse município, situado em área urbana
ou rural. Todavia, o local não pode ser considerado uma ilha sem nenhuma relação ou
influência em outros locais, mesmo do regional, do nacional ou do global. Um processo
de transformação social em determinado lugar pode, também, alterar os limites origi-
nais desta localidade, influenciando, também, outras localidades.” (Akerman, 2005: 29)

108 • capítulo 4
Esse desenvolvimento baseia-se em ações descentralizadas, com a partici-
pação dos atores em prol da cidadania e da melhoraria das condições de vida
dos habitantes de uma localidade. (Akerman, 2005: 39). As principais estraté-
gias do Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável (Dlis) são:

1. Contribuir para mobilizar a criatividade e a inovação;


2. Despertar o espírito empreendedor individual e coletivo;
3. Estimular a cooperação e o “protagonismo policêntrico” (ou as múltiplas diferenças);
4. Propiciar a captação e a multiplicação de recursos endógenos para solucionar
problemas locais;
5. Horizontalizar as relações entre grupos, pessoas e organizações;
6. Estimular o surgimento e o funcionamento de redes e atores sociais;
7. Inaugurar novas institucionalidades e novos processos participativos;
8. Democratizar decisões e procedimentos;
9. Incluir novos atores na esfera pública e ampliar a esfera;
10. Empoderar as populações e estimular a inteligência coletiva das comunidades.
(Akerman, 2005: 41-42)

Sendo que o desenvolvimento das localidades não devem se restringir a


ações isoladas do contexto global; deve, por sua vez, pautar-se na cooperação
entre os lugares e não estimular a competição entre eles (Akerman, 2005: 100).
A nosso ver, esses princípios do Dlis conformam-se como bons recur-
sos para se alcançar certos princípios preconizados pela Política Nacional de
Humanização, quais sejam: a construção de vínculos e intercâmbios solidários
de saberes, o resgate a autonomia e protagonismo dos sujeitos, para se tornem
corresponsáveis pela produção da própria saúde.

REFLEXÃO
Além de discorrer um pouco mais sobre a história do SUS e algumas políticas públicas de
saúde, tentamos demonstrar como a saúde é um direito fundamental e está relacionada ao
exercício da cidadania. Além disso, procuramos trabalhar como a globalização e as desigual-
dades sociais afetam a nossa saúde.

capítulo 4 • 109
Você saberia dar um exemplo, de algum caso recente, envolvendo saúde-doença e glo-
balização?
Depois de entender como as desigualdades sociais, a pobreza e a exclusão social podem
prejudicar a saúde, o que você pensa das Políticas Sociais de transferência de renda no país?

LEITURA
GIDDENS, A. Sociologia. 6ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
Nessa obra, Anthony Giddens trabalha a Sociologia a partir de assuntos contemporâne-
os, procurando um “equilíbrio entre o pensamento teórico e a investigação empírica” (p. xvi).
Aborda assuntos como: globalização; interação social e vida cotidiana; gênero e sexualidade;
crime e desvio; organizações modernas; meios de comunicação de massa, etc.
BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS – volumes 1, 2, 3, 4 e 5. Brasília:
Ministério da Saúde, 2010.
Os Cadernos HumanizaSUS fazem parte da série Textos Básicos de Saúde, do Ministério
da Saúde. Foram publicados em cinco volumes: o volume 1 é sobre “Formação e Interven-
ção”; o volume 2 trata da “Atenção Básica”; o 3 é sobre “Atenção Hospitalar”; o 4 discorre
sobre “Humanização do parto e do nascimento”; e o 5 é sobre “Saúde Mental”. Consideramos
que se trata de leitura conveniente para futuros profissionais de saúde.
Você pode acessar esses Cadernos pelo site: http://www.redehumanizasus.net/59383-
cadernos-humanizasus.

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Social. Brasília, DF, 2004a.
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112 • capítulo 4
5
Corpo e Saúde
na Visão
Socioantropológica
Enfim chegamos ao último capítulo da disciplina Fundamentos socioantro-
pológicos da saúde. Ao longo das outras unidades tivemos a oportunidade
de apresentar e trabalhar diversos assuntos: iniciamos com a história da So-
ciologia e da Antropologia; depois vimos as contribuições dessas disciplinas
para os estudos na área da saúde; em seguida acompanhamos o processo de
construção do conceito ampliado de saúde e suas implicações na organiza-
ção do sistema de saúde nacional; também observamos como certos aspectos
do mundo contemporâneo – como cidadania, globalização, desigualdades
sociais, exclusão – interferem no acesso e manutenção da saúde. Nosso foco
agora recairá sobre as relações entre corpo, saúde e a cultura.
O objetivo deste capítulo é evidenciar como o contexto sociocultural influen-
cia nas questões relacionadas ao corpo, ao belo, à construção da subjetivida-
de e também nas formas de tratamento e cura.

OBJETIVOS
Este capítulo concentrar-se-á em alguns padrões e valores relacionados à estética corporal e
como esses padrões podem afetar a subjetividade. Além disso, tentaremos demonstrar a im-
portância dos aspectos socioculturais para a construção de alguns sistemas de tratamento de
saúde. Esperamos que a partir das informações apresentadas, você seja capaz de:

•  Conhecer os movimentos da história do corpo e da beleza;


•  Compreender como a estética corporal pode afetar a subjetividade;
•  Entender como os aspectos socioculturais influenciam na concepção de saúde, doença e
seus tratamentos.

114 • capítulo 5
5.1  Estética, cultura e sociedade: padrões e
valores

Você já deve ter se deparado com questões relacionadas à estética1. Certamente já


observou que algumas pessoas são consideradas mais bonitas que outras e que às
vezes você mesmo(a) se sente mais ou menos belo(a) comparando-se com alguém.
A busca pelo um ideal de beleza não é novidade. A preocupação com os cui-
dados do corpo existe desde tempos remotos. Para não irmos demasiadamente
longe, fiquemos com o exemplo dos egípcios antigos.
As mulheres do Egito Antigo já possuíam técnicas para “embelezamento”
estético, valiam-se de óleos aromáticos, massagens, usavam joias e investiam
na maquiagem, especialmente o delineamento dos olhos. O uso de “maquia-
gem servia tanto para o embelezamento e sedução, quanto para a proteção, em
alguns casos” (Silva, 2012: 89).

Toucado de uma dama


Imagem retirada: http://pt.wikipedia.org/wiki/Costumes_do_Antigo_Egito#/media/File:Ma-
ler_der_Grabkammer_des_Zeserker%C3%AAsonb_001.jpg (acessado: 24/05/2015)
“A vida das damas era pautada pelos prazeres da vida: o banho perfumado, depois as
massagens com aplicações de óleos aromáticos e unguentos, a cuidada pintura do
rosto com varias cores para faces e os lábios. Particular atenção era dada a pintura dos
olhos de cuja força era apelativa [...], merecendo o embelezamento dos pés e das mãos
toda e destreza e capacidade de pedicuras e manicuras. Tudo se rematava com uma
vistosa cabeleira... com variadas joias” (Araújo apud Caria, 2013: 95)

1  Estética: “Estudo das condições e dos efeitos da criação artística. Tradicionalmente, estudo racional do belo, quer
quanto à possiblidade da sua conceituação, quer quanto à sua diversidade de emoções e sentimentos que ele suscita
no homem. Caráter estético; beleza. Beleza física [...]” (Ferreira, 1997: 720).

capítulo 5 • 115
Uma das figuras mais célebres dessa época foi Cleópatra, famosa pelas suas
invenções e usos de cosméticos. Alguns estudiosos afirmam que mais do que
fisicamente bela, Cleópatra era considerada uma mulher inteligente e sedutora
(Bernstein, 2004).

CONEXÃO
Ficou curioso(a) sobre as invenções de Cleópatra? Você pode conhecer algumas dicas de
beleza da rainha egípcia no seguinte site: https://www.youtube.com/watch?v=0A-z2d6GaBw.

Passemos agora à Grécia Antiga.


Para os gregos a beleza do corpo passou a ser almejada e admirada uma vez
que um corpo belo associado à inteligência corresponderia a um ideal de per-
feição. “O corpo era valorizado pela sua saúde, capacidade atlética e fertilida-
de” (Barbosa, Matos, Costa, 2011: 25). Um corpo saudável também permitiria
o gozo de prazeres – como comida, bebida e sexo – dos cidadãos, que era os
“homens livres, estando excluídos tanto os escravos como as mulheres. A estas
cabia cumprir funções de como obediência e fidelidade aos seus pais e marido
e a reprodução” (idem: 25). Além de belo, um corpo sadio e vigoroso poderia se
tornar um instrumento de combate.

Ainda hoje a mitologia grega influencia nossa concepção ocidental de beleza. Um ho-
mem bonito pode ser comparado a Apolo ou Adônis e uma bela e sedutora mulher
pode ser associada a Afrodite.
Adônis: ficou conhecido por ser um jovem muito belo. Na versão romana, em que Afro-
dite é denominada como Vênus, a deusa da beleza apaixonou-se por Adônis. Em uma
caçada, o belo jovem foi ferido mortalmente por um javali; Vênus, diante da dor de per-
der o ser amado, espalhou néctar no sangue do jovem e dessa mistura nasceu uma flor
chamada de anêmona ou flor do vento (Bulfinch, 2002).
Afrodite: Filha de Zeus, Afrodite era a deusa do amor e da fertilidade. (Kury, 2009).
Apolo: Filho de Zeus e irmão gêmeo de Ártemis, Apolo era conhecido pela sua beleza
e por ser patrono da arte de usar arco e flecha, da medicina, da poesia e da música e
protegia os rebanhos. Por ser também patrono da profecia, alguns templos foram con-
sagrados a ele, sendo o mais famoso o Oráculo de Delfos. (Kury, 2009)

116 • capítulo 5
A Roma Antiga preservou muitas das concepções artísticas da Grécia, assim
como, assimilou boa parte da mitologia grega. No entanto, com os romanos,
os corpos já não eram mais tão expostos e admirados como na Grécia, a força
física “demonstrada pelos gladiadores, estava agora associada ao seu destino, à
morte, à escuridão” (Barbosa, Matos, Costa, 2011: 26).
Com a disseminação dos valores do cristianismo, inclusive em Roma, o cor-
po, que antes era objeto de apreciação, fonte de prazeres e expressão da beleza,
tornou-se, nesse momento histórico, a causa do pecado. Ocorreu uma exalta-
ção dos valores espirituais e certa negação do corpo físico. A prática de dores fí-
sicas e a renúncia à alimentação seriam formas de alcançar valores espirituais
(Barbosa, Matos, Costa, 2011: 26). Tal comportamento se intensificou durante a
Idade Média: o corpo tornou-se “culpado, perverso, necessitado de ser dominado
e purificado através da punição” (idem: 27). A sexualidade, por ser associada ao
demônio, foi duramente reprimida. No período da Inquisição, muitas mulheres
perderam suas vidas por serem acusadas de bruxaria ou pactos com o diabo.
Durante o Renascimento (por volta do século XIV ao XVII), o resgate dos va-
lores greco-romanos colaborou para a revalorização do corpo que passou a ser
alvo dos estudos e experimentos científicos. E contrastando com o corpo me-
dieval, que era mal alimentado, no Renascimento veremos a opulência.

Entre os séculos XVI e XVIII, a Europa abandonava os seios pequenos e quadris es-
treitos das mulheres retratadas por pintores como Dürer, para mergulhar nas dobras
rosadas das “gordinhas” de Rubens e Rembrandt. Gordura não era só sinônimo de be-
leza, mas, também, de distinção social. [...] o regime das elites ditava um ideal feminino
que andava de par com a corpulência das grandes damas. Não havia formosura, sem
gordura! E gordura era sinônimo de riqueza. Havia também uma correlação direta entre
gosto alimentar e gosto sexual. (Del Priori, Freire, 2005: 219)

Contudo, essa exaltação da corpulência, não raro associada à ociosidade,


não durou muito tempo. O capitalismo e sua lógica da produtividade contribu-
íram para a valorização do corpo ágil, produtivo e disciplinado. Como já men-
cionamos no capítulo III, segundo Foucault (2002), a disciplina dos corpos ser-
viria para organizar o espaço entre os homens (lugares, fileiras, etc), controlar
das atividades (horários, gestos) e aumentar a eficiência das atividades. O corpo
necessita ser saudável para produzir e também para consumir.

capítulo 5 • 117
A expansão do capitalismo associado à tecnologia permitiu o desenvolvimen-
to da indústria cultural e a cultura de massas. O cinema e a publicidade passaram
a influenciar os padrões de beleza corporal. Na década de 1920, as indústrias ci-
nematográfica e publicitária aliadas às de cosmético e da moda foram preponde-
rantes para idealização do corpo esbelto e desaprovação do corpo gordo, assim
como, para a revalorização do uso da maquiagem (Castro, 2004: 2-3).
A partir dos anos 1950, com o pós-guerra, a ênfase recaiu sobre os cuidados
com o corpo, práticas de higiene, beleza e esportes; a popularização do acesso
às praias permitiu maior exposição dos corpos (Castro, 2004: 3). Os anúncios de
produtos de higiene e beleza passaram a ser associados a estrelas de cinema e
televisão, difundindo novos hábitos do corpo; a moda se democratizou com a
proliferação de revistas femininas e pelos filmes (idem: 3-4).

Os olimpianos
Edgar Morin (1997) chamaria essas figuras célebres, que povoam o imaginário social,
de olimpianos. Para o autor, os olimpianos podem ser artistas de cinema, campeões,
príncipes, playboys, exploradores, etc. “Esse novo Olimpo é, de fato, o produto mais ori-
ginal do novo curso da cultura de massa. As estrelas de cinema já haviam sido anterior-
mente promovidas a divindades. O novo curso as humanizou. [...] a vida dos olimpianos
participa da vida cotidiana dos mortais. [...] Os novos olimpianos são, simultaneamente,
magnetizados no imaginário e no real, simultaneamente ideais inimitáveis e modelos
imitáveis [...]: olimpianas e olimpianos são sobre-humanos no papel que eles encarnam,
humanos na existência privada que eles levam. A imprensa de massa, ao mesmo tempo
que investe os olimpianos de uma papel mitológico, mergulha em suas vidas privadas a
fim de extrair delas a substância que permite a identificação.” (p. 106-107).

Na década de 60, com a revolução sexual, o movimento feminista, a contra-


cultura e o movimento hippie, o corpo passou a ser símbolo da transgressão.
Nesse momento, começou a se consolidar uma cultura juvenil, de um estilo
jovem em que a velhice é negada e evitada (Castro, 2004: 4). Nos anos 80, ob-
servou-se um aumento no número de academias de ginástica e a emergência
de uma “geração saúde” defendendo hábitos de vida mais saudáveis (Idem: 4).
Entretanto, nesse período, a imagem feminina na publicidade ainda estava atre-
lada à ideia de submissão, restringindo-se ao papel de dona de casa, voltada para
os cuidados do lar, dos filhos e do marido. Foi na década de 90 que essa imagem

118 • capítulo 5
começou a mudar, o reconhecimento da inserção da mulher no mercado de traba-
lho e sua crescente projeção social colaboraram para mudar a imagem da mulher
nas propagandas, de gentis donas de casa, elas passaram a ser retratadas como “a
esposa, a mãe, a profissional e a cidadã politicamente ativa” (Nishida, 2007: 42).
Mais recentemente, podemos observar a influência das supermodelos, com
seus biótipos longilíneos, no ideal de beleza de muitas mulheres. Esse padrão
estético difere do padrão físico de muitos povos, inclusive o das brasileiras, fato
que induz uma busca crescente por cirurgias plásticas (Goldenberg, 2005). Nos
dias de hoje “o ideal a ser seguido é o do corpo (magro e malhado, mas sem
músculos, barriga ‘seca’, coxas definidas e duras e seios firmes) apresentado
e legitimado pela mídia” (Samarão, 2007: 50). Essa busca pela perfeição física
pode acarretar problemas psicológicos como anorexia, bulimia e baixa autoes-
tima, assuntos que voltaremos a falar mais adiante.

Conforme dados da Sociedade Brasileira de Cirurgias Plástica (http://www2.cirurgia-


plastica.org.br/de-acordo-com-a-isaps-brasil-lidera-ranking-de-cirurgias-plasticas-no
-mundo/), em 2013 o Brasil ficou à frente dos Estados Unidos em número de pro-
cedimentos cirúrgicos (1.491.721), no que diz respeito ao volume total de cirurgias
plásticas, o país fica atrás somente dos EUA. Entre as cirurgias mais realizadas no
Brasil estão a lipoaspiração e a colocação de prótese mamária.

Não são apenas as mulheres que se tornaram vítimas dessa busca imode-
rada pelo ideal estético, os homens também são afetados por esses padrões. A
obsessão e idealização de um corpo musculoso, associado à boa performance
sexual e a um pênis relativamente grande já estão sendo associadas, por alguns
estudiosos, a um certo “complexo de Adônis”; tal obsessão pode levar homens
e adolescentes a desenvolverem distúrbios dismórficos corporais (Goldenberg,
2005), cujas características procuraremos trabalhar mais adiante.

CONEXÃO
Existe um documentário interessante realizado pela National Geographic a respeito de cirur-
gias plásticas e busca do corpo ideal. Você pode acessá-lo pelo link:
https://www.youtube.com/watch?v=7N9wVtONEMY

capítulo 5 • 119
5.2  Corpo, cultura e subjetividade
Como você deve ter percebido, todas as culturas, em todas as épocas, influenciam
as noções e os comportamentos relacionados ao corpo e a seus cuidados (Víctora,
2000; Langdon, Wiik, 2010). As concepções culturais a respeito do corpo, e como
utilizar esse corpo, acabam por moldá-lo segundo os padrões de determinada cul-
tura, interferindo nas formas como esse corpo age e se expressa, como por exem-
plo, na forma de andar, como se vestir e o que vestir, como segurar objetos, etc.
Esses padrões também influenciam na imagem corporal que os sujeitos possuem
de si e nas formas de perceber o mundo à sua volta. Dessa forma, podemos relacionar
as questões do corpo e da imagem corporal à própria construção da subjetividade.
Vejamos como isso acontece.
Podemos afirmar que toda cultura imprime “marcas corporais” (Víctora,
2000), em seus membros, que permitem reconhecer o pertencimento social de
um sujeito a determinado grupo, como sua posição social (status), idade, gêne-
ro, ocupação ou identidade de grupo.

CONEXÃO
“Cada sociedade ou cada grupo social imprime marcas em seus membros, tanto através
de inscrições físicas (tatuagens, circuncisões, modelamento de determinada parte do corpo,
etc.) como estéticas (roupas, acessórios) e comportamentais (forma de andar, sentar, repou-
sar, etc.)” (Víctora, 2000: 20).
Essas marcas corporais podem causar grandes transformações nos corpos dos sujeitos.
Indicamos três exemplos dessas intervenções.
Homens crocodilo da Nova Guiné:
https://www.youtube.com/watch?v=ig6oIDsMpJg
Mulheres girafas da Tailândia:
https://www.youtube.com/watch?v=ij-YGMUKazg
No mundo contemporâneo, há aqueles que realizam intensas modificações em seus cor-
pos almejando a diferenciação. Mesmo querendo parecer diferentes, eles estão construindo
uma identidade para si e de certa forma também fazem parte de um grupo social, o grupo
daqueles que apreciam o body modification, como tatuagens, escarificações, piercings, im-
plante de próteses, etc:
https://www.youtube.com/watch?v=Gogp-0FhXJc

120 • capítulo 5
A sensação de pertencimento pode conferir conforto psíquico aos sujeitos.
As relações sociais que se estabelecem por meio da identificação entre os in-
divíduos viabilizam a construção de uma rede de apoio social que é capaz de
conferir maior coerência para a própria existência.

O apoio social pode ser entendido como os diversos recursos emocionais, materiais
e de informação que os sujeitos recebem por meio das relações sociais sistemáticas,
incluindo desde os relacionamentos mais íntimos com amigos e familiares próximos até
relacionamentos de maior densidades social, como os grupos e redes sociais. Trata-se
de um processo recíproco – isto é, que gera efeitos positivos tanto para quem recebe
como para quem oferece apoio –, o que permite que ambos tenham uma sensação
de coerência de vida e maior sentido de controle sobre a mesma. (Valla, Guimarães,
Lacerda, 2013: 106).

Vimos, linhas acima, que o capitalismo permitiu o desenvolvimento da in-


dústria cultural e a cultura de massas. O cinema e especialmente a publicidade
contribuíram para disseminar e popularizar os padrões de beleza e comporta-
mento. Nesse caso, começamos a perceber que a construção da identidade do
sujeito e a própria percepção de si e do mundo relacionam-se diretamente com
aquilo que os sujeitos consomem e ostentam.
O filósofo francês Giles Lipovetsky (2008), ao analisar nossa sociedade de
consumo, constatou uma relação muito próxima entre consumo e satisfação
emocional e estabeleceu alguns períodos para determinados tipos de consumo.
Antes da década de 1950, o consumo encontrava-se em sua “fase I”, o con-
sumo ostentatório: os sujeitos consumiam e exibiam produtos que imprimiam
uma diferenciação e os identificavam socialmente. Os produtos refletiam as
condições sociais de quem os consumia. “Nada de objeto desejável em si, nada
de atrativo das coisas por si mesmas, mas sempre exigências de prestígio e de
reconhecimento, de status e de integração social” (Lipovetsky, 2008: 38).
No período do pós-guerra, nas décadas de 50-60, houve uma melhora nas
condições de vida dos sujeitos e um maior acesso a bens e produtos, como ele-
trodomésticos, móveis, etc. Essa maior facilidade para o consumo, permitiu
que o consumo entrasse em sua fase II: o consumo experiencial.

capítulo 5 • 121
A verdade é que, a partir dos anos 1950-60, ter acesso a um modo de vida mais fácil e
mais confortável, mais livre e mais hedonista1 constituía já uma motivação muito impor-
tante dos consumidores. Exaltando os ideais de felicidade privada, os lazeres, as publi-
cidades e as mídias favoreceram condutas de consumo menos sujeitas ao primado do
julgamento do outro. [...] O culto do bem-estar de massa celebrado pela fase II começou
a minar a lógica dos dispêndios com vista à consideração social, a promover um modelo
de consumo de tipo individualista. (Lipovetsky, 2008: 39-40)
1
Hedonismo: “doutrina que considera que o prazer individual e imediato é o único bem possível, princípio e fim

da vida moral” (Ferreira, 1997: 884).

Isso não quer dizer que os produtos deixaram de exercer sua marca de dis-
tinção social, ainda hoje eles desempenham essa tarefa; contudo, na fase II, os
gastos não tinham tanto o foco exibir-se aos olhos do outro, mas experimentar
sensações de leveza, ludismo, juventude e erotismo (Lipovetsky, 2008).
Mais recentemente, com a acentuação da lógica do consumo e dinamização
das relações pessoais e comerciais, em grande parte facilitada pela globaliza-
ção, o consumo iniciou sua fase III, o hiperconsumo.

Os consumidores mostram-se mais imprevisíveis e voláteis, mais à espera de qualidade


de vida, de comunicação e de saúde, têm melhores condições de fazer uma escolha
entre as diferentes propostas da oferta. O consumo ordena-se cada dia um pouco mais
em função de fins, de gostos e de critérios individuais. Eis chegada a época do hiper-
consumo, fase III da mercantilização moderna das necessidades e orquestrada por uma
lógica desinstitucionalizada, subjetiva e emocional. (Lipovetsky, 2008: 41)

Nessa fase, o consumo volta-se para a satisfação de desejos individuais e da


felicidade privada. As diferenças sociais atreladas aos produtos são diluídas,
o consumo situa-se “fora das lógicas de rivalidade de status” (Lipovesty, 2008:
42), não há concorrência e nem luta das consciências. O produto é adquirido
não mais pelo status que ele confere, ele passa a operar pela lógica do emo-
cional, os produtos são adquiridos pelas experiências afetivas, imaginárias e
sensoriais que proporcionam. O gosto e curiosidade pelas novidades e lança-
mentos no mercado estimulam as compras. Os produtos ganharam uma fun-
ção identitária uma vez que se tornaram capazes de diferenciar aqueles que os

122 • capítulo 5
possuem da maioria. “O que importa não é mais ‘impressionar’ os outros, mas
confirmar seu valor aos próprios olhos” (idem: 48 – grifo nosso).
As marcas (de roupas, bebidas, automóveis, eletrodomésticos, alimentos,
etc.) deixam de anunciar os benefícios funcionais daquilo que produzem e pas-
sam a explorar o marketing sensorial, ou experiencial, das possiblidades emo-
cionais associadas ao que vendem, “é o ‘parecer’, a imagem criativa da marca
que faz diferença, seduz e faz vender” (Lipovetsky, 2008: 46). Cada marca tenta
associar sua imagem a um conceito ou estilo de vida e quem a compra “compar-
tilha” desse ideal. Os sujeitos permitem-se o “direito” ao luxo e ao supérfluo em
busca do prazer e da felicidade que os produtos e serviços podem proporcionar.
Em uma sociedade repleta de inúmeros referenciais e valores socais, as
marcas “tranquilizam” seus consumidores construindo referências e valores
de bom gosto e estilo pessoal. Nesse sentido, portar um logotipo “não é tan-
to querer alçar-se acima dos outros quanto não parecer menos que os outros”
(Lipovetsky, 2008: 50 – grifo do autor), dessa forma, as marcas acabam desem-
penhando também uma certa função de inclusão social.
Contudo, mesmo que as marcas sejam capazes de proporcionar experiências
aos seus compradores, elas não são capazes de assegurar sentido à existência de
seus consumidores, nem mesmo conseguem garantir a felicidade que sugerem.
Para o filósofo francês Edgar Morin (1997) a felicidade é um mito e por isso
é algo difícil de ser alcançado. Para ele, cada cultura constrói representações
acerca do que é felicidade; em nossa cultura de massa, podemos identificar
dois temas de felicidade: “um que privilegia o instante ideal na projeção ima-
ginária, outro que estimula o hedonismo de todos os instantes na vida vivida”.
(Morin, 1997: 127). No primeiro, o sujeito projeta sua felicidade em algo: será
feliz quando viajar a tal lugar, quando conseguir determinado emprego, casar
com aquela pessoa, ganhar ou acumular uma quantia x de dinheiro, etc. No
segundo, a felicidade seria encontrada na intensidade com que se vive, cada
instante seria uma oportunidade de ser feliz.
Essa busca incessante pela felicidade faz com muitos rejeitem ideias como
culpa, fracasso, envelhecimento, enfraquecimento, as tragédias e a morte;
criando, por sua vez, uma “mitologia euforizante” (Morin, 1997: 128) da realida-
de, que mascara essas zonas de desconforto, recorrendo ao uso cada vez maior
de euforizantes como álcool ou remédios tranquilizantes.
A angústia difusa ocasionada pela frustração da felicidade e o sentimento de
inadequação pela dificuldade de sentir pertencimento, a algo ou a algum grupo,

capítulo 5 • 123
podem desencadear problemas – materiais, físicos ou psicológicos – na vida dos su-
jeitos. Alguns recorrem a uso de remédios, outros, concentram-se em seus corpos.
Segundo o antropólogo francês David Le Breton (2003), o uso de psicotrópicos
– como hipnóticos, tranquilizantes, antidepressivos, estimulantes, etc . – contribui
para que os sujeitos tenham um maior controle sobre seu comportamento e fiquem
livres dos acasos do humor e das emoções. Além de sentirem-se com poder de con-
trolar seus próprios corpos, atingindo o estado desejado por meio desses psicotrópi-
cos, o uso dessas substâncias permite produzir uma identidade pessoal, pragmática
e eficaz, adaptada às condições da realidade social. “Melhor traçar um caminho bio-
químico em si do que enfrentar sem defesa a provação do mundo” (p. 57).
Percebe-se, nesse caso, que a intenção não é questionar a realidade na qual
se está inserido, mas adaptar-se, da melhor maneira possível, às condições e
intempéries experimentadas.
Outra forma de lidar com os sofrimentos causados pela realidade é voltar
a atenção para o próprio corpo. Sentimentos de inadequação ou frustrações
podem levar os sujeitos a atacarem seus corpos ou tentar modificá-los, desen-
volvendo uma percepção distorcida da própria aparência. Comecemos pelas
automutilações:
Le Breton (2010) também estudou um fenômeno que está crescendo entre
adolescentes: a escarificação ou ferimento corpóreo. Para ele, essa atitude tra-
duz o sofrimento enfrentado por jovens diante do sentimento de perda de si e
da baixa autoestima:

O adolescente sente-se enredado em um corpo que não é seu, mesmo que pertença a ele,
preso em um corpo rebelde que fracassa incorporar como o seu próprio. Ele se sente erra-
do, desajeitado, ridículo, feio, sente-se outro, sem conseguir esclarecer quem é. (idem: 26)

A pele estabelece os limites entre o mundo interno e o externo, é também a


representação simbólica da identidade, dessa forma, é compreensível que as
investidas sejam direcionadas a ela. “Aquele que está em carne viva, no plano
dos sentimentos, esfola sua pele como em uma espécie de homeopatia. Para
recuperar o controle, ele tenta se machucar, mas para ter menos dor” (idem:
27). Diante da impotência em que se encontra, o sofrimento físico é uma das
poucas coisas que consegue controlar. E é a partir do resgate desse controle que
os adolescentes conseguem continuar existindo. Nesse sentido, “as incisões, as

124 • capítulo 5
escarificações, as queimaduras, as agulhadas, os cortes, os esfolamentos, as in-
serções de objetos sob a pele não são um indício de uma vontade de se destruir
ou de morrer. Não são tentativas de suicídio, mas tentativas de viver” (idem: 28).
A insatisfação com a própria imagem pode traduzir-se de outra maneira.
Vimos que nas últimas décadas houve uma hipervalorização cultural da ma-
greza; atrizes e modelos que estampam campanhas publicitárias geralmente
são magras; as revistas femininas anunciam em suas capas, em letras garra-
fais, “a nova dieta do momento”, “o segredo da (nome da artista) para manter o
corpo em forma”, a receita de “como perder x quilos em tantos dias”, etc. Para
a grande maioria das mulheres que não se encaixa nesse ideal de beleza, essa
“pressão” sociocultural pela magreza pode desencadear distúrbios psicológi-
cos relacionados a baixa autoestima, assim como, distúrbios alimentares.

Sobre a redução do tamanho dos manequins


“Rintala e Mutajoki, por exemplo, analisaram o tamanho, a forma e as proporções dos
manequins que exibem roupas de mulheres nas vitrines das lojas de moda. Eles mos-
tram como estes emagreceram progressivamente nos últimos 80 anos, até terem ago-
ra praticamente um aspecto anoréxico. Como as mulheres necessitam no mínimo de
17% de seu peso como gordura para começar a menstruar e cerca de 22% para ter ci-
clos regulares, eles calculam que ‘uma mulher com a forma de um manequim moderno
provavelmente não menstruaria’ por estar muito abaixo do peso.” (Helman, 2009: 29)

Os dois problemas alimentares, relacionados à perda de peso, mais conhe-


cidos são: a anorexia nervosa e a bulimia nervosa.
Em linhas gerais, a anorexia nervosa (AN) pode ser definida como a busca
pela perda de peso por meio de dietas rígidas e pela distorção da imagem cor-
poral (Abreu; Cangelli Filho, 2004). Essa distorção da imagem corporal faz com
que a pessoa que desenvolve AN perceba seu corpo maior ou mais pesado do
que realmente é.
Além de dietas altamente restritivas, pessoas com AN podem recorrer à prá-
tica de exercícios físicos intensos para acelerar a perda de calorias, ao jejum e
ao uso de laxantes e diuréticos (Abreu; Cangelli Filho, 2004). Trata-se de uma
doença de difícil tratamento em parte pela resistência das pessoas com AN em
aderir aos tratamentos.

capítulo 5 • 125
Duas razões fundamentais são apontadas para justificar tais ocorrências: a) as pacien-
tes “sabem” de sua necessidade de ajuda, mas têm medo do que a mudança corporal
possa trazer e b) as restrições alimentares a que são submetidas criam, com o passar
do tempo, quadros de subnutrição que começam, progressivamente, a gerar inevitáveis
déficits cognitivos, privando-as de uma capacidade normal de entendimento de seus
problemas. Assim, estamos envolvidos no tratamento de uma doença que gera limita-
ções físicas, emocionais e sociais (Abreu; Cangelli Filho, 2004:181)

O outro distúrbio alimentar associado à perda de peso é a bulimia nervosa


(BN). Segundo Abreu e Cangelli Filho (2004), a BN pode ser caracterizada pela
ingestão de alimentos de forma muito rápida seguida de formas compensató-
rias de perda de peso como vômitos autoinduzidos, uso de medicamentos ou
de estimulantes, exercícios físicos e dietas. Pessoas com BN tendem a apresen-
tar as seguintes características:

a) baixa autoestima; b) pensamento do tipo “tudo ou nada” (ou seja, funciona através
dos valores opostos); c) ansiedade alta; d) perfeccionismo; e) incapacidade de encon-
trar formas de prazer e satisfação; f) busca de problemas nas coisas; g) exigência alta;
e h) incapacidade de “ser feliz” (Abreu; Cangelli Filho, 2004: 180)

Essa obsessão pelo corpo magro tende a atingir mais as mulheres. No que
diz respeito aos homens, contatou-se uma tendência à idealização de um corpo
musculoso que podem levar homens e adolescentes a desenvolverem distúr-
bios dismórficos corporais. Esses distúrbios, ou transtornos, estão relaciona-
dos a preocupações com a aparência, em que o sujeito pode imaginar defeitos
em seu corpo, apresentar sofrimento ou algum tipo de prejuízo em sua vida
social (Moriyama, Amaral, 2007).

Pessoas com esse transtorno sofrem de ideias contínuas sobre o modo como perce-
bem a própria aparência corporal. Esses pensamentos persistentes, intrusivos, difíceis
de resistir, invadindo a consciência e em geral acompanhados por compulsões rituais
de olhar-se no espelho constantemente, seriam muito semelhantes aos pacientes
com transtorno obsessivo-compulsivo.

126 • capítulo 5
Também insistem em dietas baixas em gorduras e ricas em proteínas e hidrato de car-
bono. Alguns podem chegar a ingerir mais de 4.500 calorias diárias (o normal para uma
pessoa é 2.500), e sempre acompanhado por numerosos e perigosos complementos
vitamínicos, hormonais e anabolizantes. Tudo isso é feito com o propósito de aumentar
a massa muscular. Portanto, comumente há o risco de abusarem dessas substâncias e
esteroides anabolizantes, mesmo quando alertados quanto aos graves efeitos colate-
rais. (Ferreira, Castro, Gomes, 2005: 177)

Ainda não é possível estabelecer um padrão exato das pessoas que desenvol-
vem esse tipo de distúrbio, no entanto, algumas características parecem estar
associadas às vidas de sujeitos com transtorno dismórfico corporal (TDC):

educação rígida ou pais superprotetores; poucos amigos durante a fase escolar; ga-
nhos secundários; famílias em que se dá maior ênfase em conceitos estereotipados de
beleza; comentários, ainda que inócuos ou neutros, em relação à aparência e acidentes
traumáticos. (Moriyama, Amaral, 2007: 14)

Pessoas com TDC geralmente apresentam também “severa ansiedade, de-


pressão, fobias, atitudes compulsivas e repetitivas (olhadas seguidas no espe-
lho)” (Ferreira, Castro, Gomes, 2005: 177).
Você pode se perguntar: “mas o que acontece com essa cultura de massas
que produz tanta gente com problemas?”.
Linhas acima, comentamos que vivemos na fase do hiperconsumo em que
há uma busca pela satisfação de desejos individuais e da felicidade privada.
Contudo, também vimos com Morin (1997) que a concretização da felicidade
na cultura de massas não passa de uma ilusão. A felicidade tornou-se ilusória
porque é supervalorizada e o fracasso não é uma opção. Aqueles que não con-
seguem consumir como desejam, ou aqueles que não conseguem se enqua-
drar dentro dos padrões a que aspiram, depararam-se, inevitavelmente, com
a fisionomia desagradável da frustração. Essa incapacidade do sujeito de ser
“bem-sucedido” ofusca seu valor aos próprios olhos, afetando a sua autoestima
e levando-o, por vezes, a autorrejeição.

capítulo 5 • 127
5.3  Sociedade, saúde, doença e cura
Até agora dedicamo-nos a compreender como aos aspectos socioculturais inter-
ferem nos corpos e nas percepções sobre os mesmos. Além de elaborar valores e
padrões dos corpos físicos, os membros de uma cultura também constroem con-
cepções e parâmetros sobre o que é ser doente ou saudável (Langdon, Wiik, 2010:
179). E dependendo do arranjo sociocultural e das crenças sobre certas doenças,
as pessoas escolhem determinados tipos de tratamentos e de cuidados.
No capítulo anterior, discutimos como as desigualdades sociais influen-
ciam no acesso e na manutenção da saúde. A partir desse momento procurare-
mos apresentar quais são os recursos utilizados pela população para conseguir
o cuidado e a cura que necessita para seus males.

Cuidado informal

Segundo Helman (2009) o cuidado informal é caracterizado por ser praticado por
pessoas leigas, isto é, por pessoas que não são especializadas em saúde. É o cuida-
do praticado por familiares, vizinhos, amigos e até colegas de trabalho, sem que
haja pagamento monetário ou consultas a médicos ou curandeiros. São os conse-
lhos e trocas de informações e experiências – em relação ao uso de determinado
medicamento, chás, ervas, alimentos, atividades, etc – que são transmitidos en-
tre pessoas próximas. A automedicação e o autotratamento são práticas comuns
nesse setor. Esse tipo de cuidado também pode ser encontrado em grupos de au-
toajuda ou grupos religiosos. Geralmente esse é o primeiro tipo de cuidado a que
as pessoas recorrem e é exercido na maior parte das vezes por mulheres.
Para García-Calvente, Mateo-Rodríguez e Eguiguren (2004) pelo fato do cui-
dado informal por não ser remunerado ele pode ser desvalorizado; além disso,
é difícil estabelecer os limites e o alcance desse tipo de cuidado – quem faz, o
que se faz, onde e por quanto tempo – todos nós, em algum momento, somos
beneficiados por esse cuidado informal assim como muitos de nós somos ou
seremos cuidadores (p. 133)

Cuidado popular (folk)

É o cuidado e práticas de cura realizados por pessoas reconhecidas pela população


como curadores mas que não fazem parte do sistema médico convencional (Helman,

128 • capítulo 5
2009). Esses curadores possuem conhecimentos específicos sobre certas doenças e
tratamentos, como é o caso dos curandeiros, dos xamãs, benzedeiras e raizeiros.
Curandeiro pode ser definido como “aquele que diz curar por meio de rezas e/ou
benzeduras, feitiçarias, chás, raízes e garrafadas2” (Matos, Greco, 2005:2). O xamã,
como já falamos no capítulo II, é o sujeito que conhece rezas, símbolos e rituais, ca-
paz de trabalhar com os poderes da natureza e dos espíritos. Benzedeiras ou benze-
dores são pessoas que praticam rezas de cura, acompanhadas ou não do uso de vege-
tais ou objetos, e que podem estar associadas a algum tipo de religião (Oliveira, 1983).
Raizeiros são pessoas popularmente consagradas pelo conhecimento que possuem
quanto aos tipos e usos de plantas medicinais (Freitas, et al., 2012).
Esses praticantes de cura populares não recebem um ensino formal sobre
suas práticas, não existe um estudo sistematizado e instituído para se tornar
um “curandeiro”. Então, como alguém se torna um curador popular? Segundo
Helman (2009), existem alguns meios:

1. Herança – ter nascido em uma “família de curandeiros”, algumas vezes


de muitas gerações.
2. Posição dentro da família, como o “sétimo filho de um sétimo filho” na
Irlanda.
3. Sinais e presságios no nascimento, como uma marca de nascença ou
“chorar no útero” ou ter nascido com a membrana amniótica o rosto (o “caul”
na Escócia).
4. Revelação – a descoberta de que alguém “tem o dom”, o que pode ocor-
rer como uma experiência emocional intensa durante uma doença, um sonho
ou um transe. [...]
5. Aprendizado com outro curandeiro – um padrão comum em todas as
partes do mundo, embora o processo possa durar muitos anos.
6. Aquisição de uma habilidade específica sem auxílio de outros [...] Os as-
pirantes a curandeiros populares modernos podem hoje adquirir seus conhe-
cimentos de cura em livros, cursos por correspondência ou mesmo internet.
(Helman, 2009: 85)

Segundo o sociólogo Luc Boltanski (1989), os curandeiros, por pertencerem


às classes populares, são capazes de explicar a doença ao doente utilizando

2  Garrafada: bebida ou fórmula elaborada a partir de ervas e plantas popularmente conhecidas como medicinais.
Pode levar ainda componentes de origem mineral ou animal. (cf. Camargo, 2011).

capítulo 5 • 129
uma linguagem acessível à população, conferindo, inclusive, um sentido ao
mal sofrido. Tal fato faz com que, por vezes, a população prefira consultar o
curandeiro ao invés de procurar a opinião médica. Esse comportamento, no en-
tanto, não significa uma rejeição da medicina oficial.
Vimos no capítulo anterior que no Brasil existe até um esforço para apro-
ximar os conhecimentos e práticas populares do serviço público de saúde. A
Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS), de 2013, defen-
de esse diálogo e trocas de saberes no âmbito do SUS (Brasil, 2013).
Para Helman (2009), a inserção de curandeiros populares tradicionais no
sistema saúde colabora para uma “profissionalização” dos curandeiros popu-
lares. Após a publicação do documento da Organização Mundial da Saúde, The
promotion and development of traditional medicine, em 1978 (WHO, 1978),
os sistemas, medicinas e terapias tradicionais começaram a ganhar, pouco a
pouco certa legitimidade dentro da possiblidades de tratamento e cura no
Ocidente, como é o caso da medicina tradicional chinesa e a ayurveda (medi-
cina tradicional indiana). Nesse documento a OMS incentiva a promoção, de-
senvolvimento e integração de medicinas tradicionais nos cuidados primários
de saúde por sua abordagem holística, qualidades inerentes e capacidade em
resolver certos problemas culturais de saúde.
Você deve se lembrar que no capítulo anterior também falamos da Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIS-SUS) que
autoriza aos usuários do serviço o uso de homeopatia, acupuntura (medicina
tradicional chinesa), plantas medicinais – fitoterapia, termalismo-crenotera-
pia e medicina antroposófica no SUS (Brasil, 2008).

Cuidado profissional

O cuidado profissional é aquele praticado por profissionais da saúde, formados


dentro dos preceitos da medicina convencional. Saúde e doença são analisadas
com base em parâmetros científicos e seus tratamentos envolvem alta tecnolo-
gia – máquinas, instrumentos ou pesquisas (Helman, 2009). O conhecimento
produzido pela medicina convencional por ser especializado é, por vezes, de
difícil compreensão para população em geral.
O emprego do conhecimento científico e tecnologia de ponta permitiu à me-
dicina convencional alcançar várias conquistas na saúde, como, por exemplo,
o transplante de órgãos, cirurgias complexas e o desenvolvimento de próteses.

130 • capítulo 5
A combinação de corpo e máquina constitui o que alguns teóricos denomi-
nam de “ciborgues” (cyber body ou corpo-máquina, cf. Barbosa, Matos, Costa,
2011: 31). Essa ligação pode incluir implantes, próteses, assim como:

Máquinas de diálise (para insuficiência renal), os sistema de suporte de vida (como


máquinas de coração-pulmão e “pulmões de aço”, as incubadoras (para lactentes pre-
maturos), os corações artificiais e as máquinas menores como aparelhos auditivos tran-
sistorizados e marca-passos cardíacos (Helman, 2009: 43-44)

Essas intervenções tecnológicas sobre o corpo podem impactar profunda-


mente a imagem corporal que os sujeitos possuem sobre si mesmos e a rela-
ção que estabelecem com o próprio corpo. Por exemplo, o uso de prótese para
compensar uma disfunção física pode ser tanto estigmatizante, ou vergonhoso,
por chamar atenção das pessoas (Meller, Tesche, 2007), como pode ser eman-
cipador, como acontece com para-atletas que, com o uso de próteses de alta
tecnologia, conseguem superar limites e apresentar uma melhor performance
nas competições (Kim, 2004).

Há um vídeo interessante que discute disfunção física, estigma e cibernética.


Você pode acessá-lo no seguinte link:
https://www.youtube.com/watch?v=kmp13M8f568

REFLEXÃO
Neste capítulo procuramos trabalhar a relação da cultura com o corpo, com a imagem cor-
poral e com a subjetividade.
Quantas vezes você já se olhou no espelho e quis mudar sua aparência para se adequar
aos padrões estéticos vigentes? Você conhece alguém que está plenamente satisfeito com
o próprio corpo?
Falamos também sobre a lógica do consumo: que tanto pode contribuir para a formação
de identidades como pode abalar o emocional dos sujeitos. Você já parou para pensar sobre
a real necessidade daquilo que compra ou deseja? Já comprou algo e se arrependeu ou
sentiu imenso prazer?

capítulo 5 • 131
No que diz respeito aos cuidados informal, popular e profissional, quais tipos de cuidados
informais que você já recebeu ou praticou? Você conhece cuidadores populares?

LEITURA
CORBIN, A; COURTINE, JJ; VIGARELLO, G. História do corpo. Vol. 1,2,3. Petrópolis, RJ:
Editora Vozes, 2008.
Trata-se de obra extensa, na qual os autores procuraram trabalhar a história do corpo,
apresentando ensaios que discorrem sobre os usos, concepções e transformações do corpo
humano, partindo da Renascença até o século XX.
Le BRETON, D. Sociologia do corpo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2007.
Nessa publicação, o antropólogo francês apresenta mais uma obra dedicada ao estudo
da corporeidade. Nas palavras do autor: “a sociologia do corpo constitui um capítulo da so-
ciologia especialmente dedicado à compreensão da corporeidade humana como fenômeno
social e cultural, motivo simbólico, objeto de representações e imaginários”. (p. 7)
WOLF, N. O mito da beleza – como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres.
Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
Em linhas gerais, a autora tenta demonstrar como a busca pela beleza ideal e pelo corpo
magro é uma “arma política contra a evolução da mulher” (p.12). O fato de serem julgadas pela
aparência torna muitas mulheres inseguras e desvaloriza suas competências. A restrição de
alimentos e regimes drásticos podem levar muitas mulheres à apatia e ao sentimento de fra-
casso, “a fome faz com que as mulheres se sintam pobres e pensem de forma pobre” (p.261).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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134 • capítulo 5
ANOTAÇÕES

capítulo 5 • 135
ANOTAÇÕES

136 • capítulo 5

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