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Bíblia Apócrifa - Introdução

O idoso e sábio São José


Frei Jacir de Freitas Faria
"São José, o esposo querido de Maria, é lembrado com carinho na devoção popular
como um homem bom, idoso e pai adotivo de Jesus. Poucas vezes ele é citado na
Bíblia. No entanto, é na literatura alternativa apócrifa, isto é, os livros que não
entraram na Bíblia canônica, é que encontramos de modo carinhoso a memória de
José que a tradição oral insistiu em conservar. No evangelho apócrifo, A História de
José, o carpinteiro, conta que Jesus “tendo reunido os seus apóstolos, no monte das
Oliveiras, Jesus contou-lhes a vida de seu pai José, o bendito ancião carpinteiro”.

José nasceu na cidade de Belém, cidade da Judéia e terra natal do rei Davi. Era
carpinteiro e vivia do trabalho de suas mãos. Com 40 anos de idade casou-se uma
mulher que lhe dera seis filhos, quatro homens e duas mulheres. Os homens se
chamavam Judas, Josetos, Tiago e Simão; a mulheres, Lísia e Lídia. Com a sua
esposa, José viveu 49 anos de matrimonio. Quando essa faleceu, Tiago era ainda
uma criança muito pequena. José ficou viúvo durante um ano. Seus dois filhos
maiores, Josetos e Simão, contraíram matrimônio e foram viver em suas casas.
Casaram-se, do mesmo modo, suas duas filhas.
A sabedoria de José era reconhecida por todos. José era um homem justo e louvava
a Deus em todos os seus atos. Por isso foi escolhido pelos sacerdotes do templo
para receber Maria em sua casa. José tinha 89 anos quando se casou com Maria. O
tempo entre namoro, noivado e casamento durou três anos. Nesse ínterim, Maria
ficou grávida do Espírito Santo. José, depois de muita angustia e sofrimento,
compreendeu os mistérios de Deus e, por isso, casou-se com ela. Houve uma
grande festa no dia de seu casamento em Belém. Quando Jesus estava para
nascer, José teve que cumprir o mandato de recenseamento decretado pelo
Imperador Augusto. Em Belém, José apresentou seu nome ao escrivão, bem como o
de Maria, sua esposa e o de Jesus que estava para nascer. Quando Jesus nasceu,
José tinha 93 anos de idade. Logo após o nascimento de Jesus, José teve que fugir
para o Egito com Maria, Jesus e a parteira Salomé. No Egito, José permaneceu por
um ano, até a morte de Herodes, o Grande. Quando voltou para Israel, José voltou
a viver em Nazaré, na Galiléia. Ali, José continuou a exercer a profissão de
carpinteiro para sustentar a família.
Quando José completará 111 anos, seu corpo já debilitado, veio um anjo anunciou-
lhe que a sua morte se daria naquele ano. O espírito de José ficou apreensivo. Foi a
Jerusalém, entrou no templo, se ajoelhou e rezou pedindo a Deus que o seu anjo
estivesse com ele no momento em que a alma deveria sair do corpo e voltar para
Deus. Que essa separação fosse feita sem dor. Que ele e a sua viagem fossem
tranqüilos. Que a sua alma não fosse retida pelo porteiro do inferno.

Quando José voltou de Jerusalém, foi acarretado de uma doença que o levaria a
morte. Ele perdeu a vontade de comer e beber. Sentiu vacilar a habilidade no
desempenho de seu ofício. Em Nazaré, a suas lamentações continuaram. Como o
profeta Jeremias e Jó, José se lamentou do dia em foi gerado, do seio que o
amamentou, da sua língua, pés, mãos, estômago e corpo. E quando José estava
proferindo essas palavras, Jesus entrou no seu quarto e disse-lhe: -“Salve, José,
meu querido pai, ancião bondoso e bendito!” José respondeu a Jesus enaltecendo-o
na sua bondade. Contou como foi a sua vinda ao mundo, como custou para
acreditar no seu nascimento virginal. Lembrou-lhe também do dia em teve que

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puxar a orelhas de Jesus, como repreensão. José pediu perdão a Jesus e professou
a fé em Jesus como filho de Deus e de homem.
Jesus, ao ouvir os lamentos de José, não se conteve e chorou. Ele chegou a pensar
na morte de cruz que estava reservada para ele. Jesus chamou Maria, sua mãe. E
ela entrou no quarto de José e se colocou a seus pés. José suplicava que eles dois
não o abandonassem. José tocou o seu peito e a febre o abandonou. Maria, ao tocar
os pés de José, percebeu que ele estava para morrer. Chamou os outros filhos para
conversar pela última vez com ele. Lísia lembrou-lhes que a enfermidade de José
era a mesma que provocou a morte de sua mãe. Todos os filhos de José
prorromperam em lágrimas.

Naquele momento, Satanás e sua corte vieram em direção a José em busca de sua
alma. Jesus, e somente ele, vendo-os, os expulsou daquele lugar. Eles se puseram
em fuga, envergonhados e confusos. Jesus, então rezou a Deus pedindo que
enviasse um coro de anjos juntamente com os anjos Miguel e Gabriel para
acompanhar a alma de José até o paraíso. Jesus também pediu a Deus
misericórdia para o seu pai.

Quando José deu o último suspiro, Jesus o beijou. Os anjos tomaram o seu corpo e
o envolveram em lençóis de seda. Jesus fechou os olhos e a boca de José. Depois
disse a sua mãe: - “Ò Maria, minha mãe, onde estão os trabalhos de artesanato que
ele fez desde sua infância até agora? Todos eles acabaram neste momento, como se
ele nunca tivesse sequer vindo a este mundo.” Quando os filhos de José ouviram
Jesus dizer isso a Maria, perguntaram: -“Então nosso pai morreu, sem que nós o
percebêssemos?” Jesus lhes respondeu: - “Sim, na verdade está morto; mas sua
morte não é morte e sim vida eterna”. E quando Jesus disse a seus irmãos que
José tinha morrido, esses se levantaram, rasgaram suas vestes e choraram por
longo tempo.

Quando os habitantes de Nazaré e toda a Galiléia tiveram notícia da morte de José,


acorreram todos em massa à casa de José. Aí ficaram velando o corpo até as três
horas da tarde. Nessa hora, Jesus despediu a todos, derramou água sobre o corpo
de Jesus, ungiu-o com bálsamo, rezou por José a Deus a oração que ele mesmo
tinha escrito antes de encarnar-se no seio de Maria. Quando Jesus disse ‘Amém’
veio uma multidão de anjos. Jesus ordenou a dois deles que estendessem um
manto para nele depositar o corpo de Jesus e amortalhá-lo. Jesus colocou as mãos
sobre o corpo de Jesus e disse:
“Que o odor fétido da morte não se apodere de ti. Teus ouvidos não sofram
corrupção. Não emane podridão de teu corpo. Que a terra não destrua tua
mortalha nem tua carne, mas permaneçam intactas e aderentes a teu corpo
até o dia dos mil anos. Não envelheçam, ò querido pai, estes cabelos que
tantas vezes acariciei com minhas mãos. E a felicidade esteja contigo. Aquele
que tiver o cuidado de levar uma oferenda a teu santuário no dia de tua
comemoração, isto é, no dia 26 de Epep, eu o abençoarei com a riqueza de
dons celestes. Do mesmo modo, a todo aquele que em teu nome der pão a um
pobre, não permitirei que ele seja angustiado pela necessidade de qualquer
bem deste mundo durante todos os dias de sua vida. Eu te concederei que
possas convidar para o banquete dos mil anos a todos aqueles que, no dia de
tua comemoração, entregarem um copo de vinho na mão de um forasteiro, de
uma viúva ou de um órfão. Dar-te-ei como recompensa, enquanto viverem
neste mundo, todos os que se dedicarem a escrever livro de tua vida deste e a
conservar todas as palavras que hoje saíram de minha boca. E quando
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abandonarem este mundo, farei que desapareça o livro em que estão escritos
seus pecados e que sofram tormento algum, a não ser a morte, que é
inevitável, e o rio de fogo que está diante de meu Pai, para purificar todas as
almas. No caso de um pobre que nada possa fazer do que foi dito, mas der o
nome de José a um de seus filhos em tua honra, farei com que naquela casa
não entre a fome nem a peste, pois, na verdade, teu nome ali habita”.
Depois da oração de Jesus, chegaram os anciãos da cidade e os coveiros para
preparar o corpo de José para o enterro. Encontraram o corpo já amortalhado e
perfumado pelos anjos. Eles levaram, então, José até o túmulo. Aí Jesus não se
conteve e chorou longamente sobre o corpo de Jesus.
Tudo isso aconteceu numa manhã de domingo, no dia 26 do mês de Abib. José
morreu com 111 anos. Jesus terminou a história de José, seu pai, dizendo o
seguinte: “Entreguei a Miguel e Gabriel a alma de meu querido pai José, para que a
guardassem dos salteadores que infestam os caminhos e encarreguei os anjos
incorpóreos de cantar louvores contínuos, até que a transportassem ao céu, junto
de meu Pai”.

Simbologias de Maria

A história de Maria nos evangelhos apócrifos, textos das origens do cristianismo


que não fizeram parte da Bíblia, nos traz novidades sobre a vida dessa personagem
tão cara e polêmica entre os cristãos. Os principais textos e evangelhos apócrifos
que falam sobre Maria são: O nascimento de Maria: Proto-evangelho de Tiago; O
nascimento de Maria: Papiro Bodmer; Evangelho do Pseudo-Mateus; História de
José, o carpinteiro; Evangelho armenio da infância; Evangelho dos Hebreus; Livro
da infância do Salvador; Pistis Sophia; Aparição à Maria: Fragmentos de textos
coptas; Lamentação de Maria: Evangelho de Gamaliel; Maria fala aos apóstolos:
Evangelho de Bartolomeu; Trânsito de Maria do Pseudo-Militão de Sardes; Livro do
descanso; O evangelho secreto da Virgem Maria.
A leitura desses escritos apócrifos sobre Maria, a mãe de Jesus, é uma viagem
fascinante. Quem começa não quer parar. Muitas curiosidades são sanadas ou
deixadas em aberto diante das possíveis “fantasias” relatadas. Muitas tradições
religiosas em relação à Maria, guardadas na memória popular e em dogmas de fé,
têm suas origens nos apócrifos, assim como: a palma e o véu de nossa Senhora; as
roupas que ela confeccionou para usar no dia de sua morte; sua assunção ao céu;
a consagração à Maria e de Maria; os títulos que Maria recebeu na ladainha
dedicada a ela; os nomes de seu pai e de sua mãe; a visita que ela e Jesus
receberam dos magos; o parto em uma manjedoura, etc. A nossa devoção mariana
é mais apócrifa que canônica.
A virgindade de Maria é defendida pela quase totalidade dos apócrifos. Segundo
essa tradição, ela era virgem antes, durante e depois do parto. Uma opinião
apócrifa, para demonstrar sua total à idéia da concepção virginal de Maria, chega a
dizer que Maria concebeu pela orelha. No entanto, havia também vozes
discordantes, como a da comunidade do Evangelho de Filipe que defendia o
relacionamento marital entre José e Maria, sendo que também o seu parto teria
sido normal. Ao falar da virgindade de Maria, a comunidade dos apócrifos tem
intenção mais apologética que histórica. A pureza de Maria é demonstrada pela sua
vida consagrada no templo de Jerusalém. Ela está sempre em contato com o
sagrado. Quando Jesus nasce, a virgindade de Maria é mantida. A parteira Salomé
ousou testar a sua virgindade colocando o seu dedo na “natureza de Maria” e suas
mãos pegaram fogo. Assim, o teste corporal feito por Salomé comprovou a
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virgindade de Maria. Mais tarde, quando a gravidez de Maria é denunciada aos
sacerdotes, esses confirmam a sua virgindade com outro teste comum entre os
judeus, o da água amarga (Nm 5,11-31). Maria não foi culpada de adultério pelos
sacerdotes. José tinha certeza que não teve nenhum relacionamento sexual com
ela, portanto, ela continuava virgem. Quanto aos outros filhos de José (4 homens e
2 mulheres), os apócrifos dizem que eles eram do primeiro casamento. Logo, Maria
não teve outros filhos, permaneceu virgem até a morte. Os irmãos de Jesus eram
irmãos de criação. Nem é preciso recorrer à interpretação de Jerônimo (séc.IV E.C.)
que entendeu o substantivo irmão dos evangelhos canônicos como primos,
parentes. Além disso, José já tinha 93 anos, quando se casou com Maria, uma
jovem entre 14 e 15 anos. Nos diálogos que Maria tem com os apóstolos, anjos e
Jesus, sempre vem ressaltado a sua condição de virgem. As virgens são suas
amigas no templo. Um grupo delas é designado para o seu cuidado na casa de
José. Após a morte de Maria, são outras virgens, iguais a ela, que preparam o seu
corpo e seguem o cortejo. João, aquele que recebeu o encargo de cuidar dela, levou
a palma da virgindade de Maria, porque também se manteve virgem. Por isso se
oferece a palma à Maria nas coroações de Nossa Senhora. Esses e tantos outros
elementos nos mostram como as comunidades discutiram a questão da virgindade
de Maria, bem como reafirmam as informações sobre esse tema conservadas nos
evangelhos de canônicos, oficiais. Por outro lado, defender a virgindade era também
sinal que o corpo não tinha valor. Esse desprezo pelo corpo e seus prazeres não
teve um desfecho feliz na história da humanidade cristã. Os primeiros cristãos
receberam influência do pensamento dualista que pregava a separação entre alma e
corpo, trevas e luz, vida e morte, Deus e mundo. Assim, tudo o que se dizia
pertencer ao mundo era desprezado, pois o mundo era considerado uma armadilha
dos poderes do mal. Deus está longe do mundo e não tem muita influência sobre a
vida espiritual das pessoas. A cada ser humano restava o desafio e tornar-se um
espiritual de verdade, abstendo-se da vida sexual ou cair na desgraça total, nos
prazeres do corpo. Pensava-se que a alma, tendo sua morada no céu, caiu no
corpo. Um dia ela teria que retornar ai céu. Na viagem de volta, encontraria o
demônio, na figura de um cão e pronto para tomá-la. A alma, então, tinha de ser
sábia para enfrentá-los. A sua única arma seria a pureza virginal que lhe garantiria
a natureza divina. Os evangelhos apócrifos do Trânsito e Descanso Maria revelam
que Maria teve medo de encontrar com satanás, quando saísse do seu corpo, por
isso, ela pediu a proteção dos apóstolos na custodia do seu corpo.
As atitudes de Maria relatadas pelos apócrifos mostram a sua liderança entre os
primeiros cristãos, sobretudo os apóstolos. Ela tinha poder de convocá-los para
uma assembléia. Ela era a Senhora dos apóstolos. Nos apócrifos não é Maria
Madalena que vai ao túmulo de Jesus, mas Maria, o que parece mais lógico. E
nesse encontro, Jesus a encarregou de anunciar aos apóstolos a sua ressurreição.
No templo, Maria despertava a admiração dos homens sacerdotes. Quiseram
arrumar um casamento para ela com um filho de um sacerdote, ma ela mesma
rejeitou a proposta. Maria é chamada nos apócrifos de a “Força”, “Mãe das luzes”.
Ela era discípula e apóstola de seu filho. Teve o poder de conversar com o
ressuscitado. É bem verdade que Pedro aparece em vários episódios da vida de
Maria. Ele é quase sempre chamado de bispo e pai da comunidade. A defesa do
primado de Pedro nos apócrifos sobre Maria é compreensível na medida em que o
lemos no contexto da disputa de liderança entre os primeiros cristãos. Maria era
uma dessas fortes lideranças. Maria Madalena também foi outra personagem
feminina de grande poder entre os discípulos. No entanto, ambas Marias foram
subestimadas nos evangelhos canônicos. Maria não foi somente a intercessora,
como quiseram os canônicos, mas discípula e apóstola de seu filho, Jesus, a quem
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ela amou com amor de mãe e sofreu sem perder a fé. Como toda mãe, Maria chorou
diante de seu filho morto na cruz. Maria é uma mulher judia, piedosa e sempre
preocupada com os afazeres domésticos. As mulheres não tinham o direito de
estudar a Torá (Leis/Conduta/Caminho), mas a Maria dos apócrifos desafiou esse
costume. Como liderança nata, ela estudou a Torá.
A presença de Maria nos evangelhos apócrifos nos ensina que o masculino e
feminino devem ser integrados dentro de cada um de nós. João e Maria viveram
muito próximos. O evangelho secreto da Virgem Maria é uma obra literária
belíssima que coloca Maria narrando a sua história para João, seu discípulo
predileto. Os apóstolos a chamavam de mãe, porque ela era exemplo de mulher
integrada.
Maria seguiu os costumes judaicos. Ela casou-se com José, conforme previa a Lei
(Torá), que ela tanto observava e estudava. Seguiu o marido até Belém. Seus pais
eram descendentes de Davi, também o seria seu filho, Jesus. O seu nascimento foi
impedido pela esterilidade da mãe, mas a bênção de Deus possibilitou o seu
nascimento. Somente uma boa judia podia receber essas bênçãos de Deus. Além
dos costumes judaicos, a história dos pais de Maria, Joaquim e Ana, se parece com
a dos casais do Primeiro Testamento: Elcana e Ana, Abraão e Sara, os quais
geraram, respectivamente, a Samuel e Isaac. Assim, a história de Israel pode
continuar de modo fecundo e eficaz. O nascimento de Maria é importante para a
história de Israel, assim como foi o de Jesus.
A história de Maria nos apócrifos é permeada de simbolismos, tais como: a) Pomba,
símbolo da Torá (Pentateuco), saiu da vara de José confirmando que ele devia
aceitá-la em sua casa. No templo, Maria viveu como uma pomba, isto é, de forma
pura. Jesus, no dia do seu batismo no Jordão, recebeu sobre sua cabeça a visita de
uma pomba. Jesus, a nova Torá é confirmada pela Torá-pomba [1]. É também, a
pomba o sinal do Espírito Santo de Deus. b) Palma, também sinal da Torá e da
pureza, lhe é dada por Jesus, a Torá personificada, no monte das Oliveiras. c) Véu
do templo, símbolo da pureza, só podia ser confeccionado por mulheres virgens.
Maria, mesmo sendo a esposa de José, continuou virgem, por isso, podia ser
convidada pelos sacerdotes a confeccionar o véu do templo. Segundo os evangelhos
canônicos, o véu do templo se rasgou. Isso é sinal de que aquele que é puro como o
véu foi violado pela injustiça humana. d) Templo: lugar onde vivem os puros. Maria
viveu no templo, porque era pura por excelência. E ser educada no templo é ocupar
um lugar central na história da salvação. e) A vara de José que floriu mostra a
ligação desse com a história de Israel. A vara de Aarão também floresceu e ele foi
escolhido por Deus (Nm 17,16-23). f) Trombeta, usada para convocar os anciãos
para decidir quem ficar com Maria, era um instrumento usado para convocar o
povo de Israel, diante de um problema nacional. g) Anjo, sempre presente na vida
de Maria, simboliza Deus mesmo que vem ao seu encontro. Os judeus por
colocarem Deus tão distante e fora do alcance da vida, criaram a categoria anjo
para falar de Deus mesmo. O anjo é Deus, mesmo que tenha um nome próprio. h)
Luz que envolveu Maria e Jesus na gruta e o corpo de Maria, no dia de sua morte e
assunção, é sinal de Deus que manifestou no Sinai. i) Fogo que atingiu as mãos de
Salomé é sinal da presença divina (Ex 3,1-6). A ação incrédula de Salomé, ao tocar
a “natureza de Maria”, foi necessária para confirmar teologicamente o fato de Jesus
ser a luz para todos os povos. Salomé, ao receber nas próprias mãos a luz de Deus,
Jesus, e foi curada. j) Esterilidade: sinal de castigo e da não bênção de Deus.
Apesar da virgindade, Maria não era estéril, o que fundamento a teologia dos
primeiros cristãos, isto é, em Maria a promessa de Deus se realizou, porque havia
entre eles alguém preparado para essa tarefa. l) A morte de Maria anunciada para
daqui a três dias quer mostrar que, assim como Jesus, que depois de três dias
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ressuscitaria, Maria também seria visitada por Deus na pessoa de seu próprio filho,
Jesus. Os textos apócrifos dizem, no entanto, que Maria foi assunta ao céu
somente no quarto dia. m) As nuvens, nas quais os apóstolos são transportados até
à casa de Maria, representa a presença de Deus, que mora além das nuvens.
Toda a história da assunção de Maria está nos apócrifos. Os escritos sobre Maria
foram respostas aos questionamentos sobre a sua vida. Eles são a expressão da fé
na virgindade, assunção, santidade e liderança de Maria entre os primeiros
cristãos. Não só esses escritos “não autorizados” sobre Maria ajudaram a difundir a
fé nela como mãe de Deus, mas a arte e a liturgia. Em 1950, a Igreja católica
proclamou o dogma da Assunção de Maria, confirmando simplesmente um
ensinamento tradicional. Viva a mãe de Deus e nossa... eternamente. A assunção
de Maria só foi possível porque ela era virgem. A presença dos apóstolos no
momento em que Cristo vem buscá-la no sepulcro demonstra a legitimidade da
assunção. Paulo estava entre eles. Ele não poderia conhecer os mistérios que se
passavam com ela, pois era apenas um iniciado na vida cristã. Os apóstolos não
concordam com as opiniões de Paulo, mas Jesus aparece e acolhe Paulo, o que
significa que bastava um coração puro como o de Paulo e de Maria para poder
atingir a salvação.
As religiões têm suas grandes mulheres. No cristianismo e no imaginário coletivo,
Maria permanecerá sempre como modelo de mãe intercessora, mas não estaria na
hora de acrescentar a esse dado de fé a liderança apostólica e missionária de Maria
que os apócrifos nos legaram? Ademais, nos apócrifos Maria não deixou de ser
mulher para ser a mãe de Jesus. Vale a pena ler os apócrifos sobre Maria.

Escritos apócrifos retratam a vida oculta de Jesus

Verdades ou mentiras? Textos que contam outra versão sobre vida do filho de
Deus ainda suscitam polêmica na Igreja Católica
Fernando Klein
Um Jesus Cristo mais humano e místico. Uma Maria Madalena líder de uma
comunidade e não prostituta. Uma Maria, mãe de Jesus, mais participativa e
menos submissa. Um Tomé polêmico e revolucionário. Um José viúvo, pai de seis
filhos. Estas são algumas das diferenças da história do filho de Deus encontradas
nos escritos apócrifos, uma “outra bíblia” da origem do cristianismo escrita por
seguidores do Messias, mas desacreditada e mantida em sigilo pela Igreja. Ela
compreenderia uma lista de 112 livros, 52 do Primeiro Testamento e 60 do
Segundo.

A veracidade dos escritos apócrifos, no entanto, até hoje suscita polêmica.


Estudiosos da própria Igreja divergem sobre o assunto. Uns afirmam que eles são
simples expressões da piedade popular sobre Jesus, produzidas no segundo século
do Cristianismo, e que não acrescentariam nada aos textos canônicos. Outros,
porém, os defendem, afirmando que esses escritos podem aproximar mais da
mensagem de Jesus, conservando dados importantes na memória popular dos seus
seguidores.

Um dos estudiosos defensores do estudo desta “outra bíblia” da vida de Jesus é o


frade franciscano Jacir de Freitas Faria, de 40 anos, mestre em Exegese Bíblica
pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (PIB) e natural de Divinópolis (MG). Ele
esteve em Apucarana nesta semana ministrando curso sobre o assunto para leigos

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e padres da cidade e região. Frei Jacir é um dos poucos estudiosos no Brasil e no
mundo a mergulhar na literatura apócrifa.
O curso para os leigos foi realizado no Colégio Nossa Senhora, de segunda à sexta-
feira, e reuniu cerca de 120 pessoas, desde catequistas até líderes de paróquias de
toda a região. Já para os religiosos, a explanação aconteceu de quarta à sexta-feira,
no Centro de Formação Sagrada Família, com a participação de 60 padres.
Maria Madalena, discípula favorita
Dos escritos apócrifos, um dos mais estudados e que traz maiores revelações é o
Evangelho de Maria Madalena, encontrado em Nag Hamadi, em 1945, no Egito. Ao
contrário do que a maioria dos católicos pensa, em virtude de uma interpretação
errônea das passagens evangélicas, ela não foi a prostituta que teria ungido os pés
de Jesus.

O frei Jacir de Freitas Faria explica que a vinculação de Maria Madalena com a
pecadora tornou-se um arquétipo. “O inconsciente coletivo guardou na memória a
figura de Maria Madalena como mito de pecadora redimida”, explica. Segundo ele,
existiram pelo menos três Marias Madalenas, o que teria gerado a confusão.

Mas, então, quem é Maria Madalena? Para surpresa de muitos, ela era uma das
discípulas de Jesus e líder de uma comunidade. Segundo frei Jacir, entre os
primeiros cristãos existiam disputas pela liderança. “Havia o grupo de Pedro, o de
Tiago e também o de Maria Madalena”, salienta.
O fato mais surpreendente, no entanto, é a ligação dela com Jesus. Segundo os
escritos apócrifos, no Evangelho de Filipe, Maria Madalena era a discípula favorita
e a amada de Jesus. Considerada sua companheira, ela recebia beijos na boca de
Jesus e também os seus conhecimentos secretos.
O frei Jacir alerta sobre o significado do beijo na boca naquela época, o qual
correspondia à comunicação do espírito, ou seja, de ensinamentos. Essa relação
próxima causou ciúmes entre os demais discípulos, principalmente Pedro. “Esse
sentimento mostrou a rejeição ao feminino no início do cristianismo e, quem sabe,
a origem do preconceito à mulher”, observa.
Outro ponto destacado é a concepção de Maria Madalena sobre o pecado. “Para ela,
não existe pecado original. São os condicionamentos da vida que criam as situações
de pecado”, observa. Frei Jacir afirma que a Igreja, no decorrer da sua história,
enfocou muito o pecado original.
Para o religioso, os escritos apócrifos complementam os textos canônicos e também
explicam a presença de Maria Madalena, ao lado de Maria, mãe de Jesus, junto à
cruz, na qual o Messias foi pregado. (F.K.)
Imagem diferente de Maria
Os escritos apócrifos trazem uma imagem diferente de Maria, mãe de Jesus. Nos
textos canônicos, ela aparece como uma mulher submissa e subserviente, que está
junto dos apóstolos, mas não tem nenhuma liderança. Já nos apócrifos, Maria tem
papel preponderante, liderando os discípulos e discutindo de igual para igual com
eles.

O frei Jacir de Freitas Faria observa ainda que os textos apócrifos confirmam um
dos principais dogmas do catolicismo, que é a virgindade de Maria. “José une-se à
Maria com 89 anos e atua como um protetor até a sua morte, aos 111 anos”,
explica, observando que ele já teria sido casado e pai de seis filhos, estes, irmãos de
criação de Jesus. A idade avançada daria a entender que José estaria impotente e
não poderia se relacionar com Maria.

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Outro ponto destacado é o lírio de José, que aparece até hoje na imagem do santo.
Este teria sido o sinal de que ele seria o companheiro de Maria. O frei Jacir observa
ainda que toda a simbologia fundamentada em torno da mãe de Jesus é apócrifa e
não canônica. Ele cita como exemplos a ladainha, palma e “Boa Morte” de Maria.

O religioso explica que a Igreja conservou apenas algumas informações dos


evangelhos apócrifos e outras não. “Isso talvez por entender que esses textos
trazem novidades, as quais desinstalam a opinião teológica já sedimentada. E por
que eles são, de fato, já desde as origens do cristianismo, questionadores. No
entanto, temos que reconhecer que os apócrifos têm histórias aberrantes, que não
poderiam corresponder à verdade. Por isso, eles devem ser tratados como
ferramentas para compreender melhor a vida de Jesus”, assinala. (F.K.)
Na infância, um menino travesso
Retratada nos escritos apócrifos, a infância de Jesus traz várias histórias
miraculosas, segundo avaliação do frei Jacir de Freitas Faria. “É quando aparece a
maior parte dos exageros”, observa. Conforme textos de Tomé, o Israelita, Jesus é
um menino travesso. “Ele brinca com outras crianças e, quando contrariado, usa o
poder para punir de morte”, conta. Para o frei Jacir, os exageros da narrativa tiram
a sua credibilidade.
Um dos exemplos é a passagem em que Jesus indigna-se com um outro menino
que faz escoar a água represada por Ele em uma brincadeira, o qual é punido com
a morte. “Malvado, ímpio e insensato. Será que as poças e as águas te estorvavam?
Ficarás agora seco como uma árvore, sem que possas dar folhas, nem raiz nem
frutos”, diz Jesus ao outro menino na passagem. (F.K.)
O Evangelho de Tomé: místico e revolucionário
Ao lado do Evangelho de Maria Madalena, o Evangelho de Tomé é um dos escritos
apócrifos considerados mais importantes. Nele, Jesus aparece místico e
revolucionário. Justamente essa visão Dele fez com que a Igreja não aceitasse os
textos de Tomé.

Assim como o Evangelho de Maria Madalena, o de Tomé também foi encontrado em


1945, em Nag Hamadi, no Egito, em 1945. Eles estavam em 50 pergaminhos
escritos em copta, língua falada pelos egípcios, nos primeiros anos do cristianismo.

Quando foram encontrados, os pergaminhos causaram muita polêmica. Havia a


dúvida se esse Tomé era o mesmo que compartilhou do ministério de Jesus. De um
lado, a Igreja Católica negava qualquer semelhança entre Tomé, o apóstolo, e Tomé,
de Nag Hamadi. Para o Vaticano, tratava-se de um texto apócrifo, isto é, falso, uma
vez que ele não reafirmava as verdades das Sagradas Escrituras.

Segundo o frei Jacir de Freitas Faria, o Evangelho de Tomé apresenta apenas


parábolas sobre Jesus e não alegorias (interpretações). “O que o torna mais
próximo da fala original de Jesus”, argumenta. Ele afirma que o filho de Deus
aparece mais místico. Em uma das passagens, Ele diz. “O Reino de Deus está no
interior de cada um de nós e não no céu”. Por esses e outros ditos esotéricos, o
Evangelho de Tomé, já naquela época, foi considerado apócrifo.

Outro ponto destacado pelo frei Jacir é o lado revolucionário de Jesus descrito por
Tomé. “As comunidades são convidadas a resistir contra aqueles que tomavam
suas terras, no caso, o Império Romano”, conta.

O Evangelho de Tomé chegou a ser considerado o Quinto Evangelho, ao lado de


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Mateus, Marcos, Lucas e João. A Índia, por exemplo, foi evangelizada praticamente
toda por sua doutrina. (F.K.)
Textos ajudam a compreender cristianismo
O frei Jacir de Freitas Faria afirma que os textos apócrifos ajudam a entender que,
na origem do cristianismo, existiam vários modos de viver e compreender a vida de
Jesus Cristo. “O que motivou esses escritos? Justamente o desejo de ampliar as
informações sobre a presença do filho de Deus. Fazer valer a diversidade de
pensamento que existia naquela época”, afirma.

Ele observa que os escritos apócrifos são importantes, mas precisam ser analisados
com um “olhar crítico”. “Devem ser absorvidas as informações que complementam.
O que é aberração deve ser deixado de lado”, alerta, reiterando, porém, que a maior
parte das histórias contadas nos apócrifos tem relação com os textos canônicos,
explicando-os em algumas passagens, principalmente no Evangelho de João.

O religioso revela, entretanto, que “nenhuma verdade é absoluta; só Deus é


absoluto”. Frei Jacir ressalta que a Igreja considera apenas 18% do que está escrito
na Bíblia como realmente dito por Jesus. “O restante foram fatos contados a partir
de visões particulares de certas comunidades”, reitera.
Por isso, segundo ele, o objetivo é encontrar um meio-termo entre os apócrifos e a
Bíblia, o que frei Jacir acredita que seja uma tendência da Igreja a partir de agora.
“Aos poucos, está acontecendo está abertura na instituição”, frisa o religioso, que
prepara o lançamento de um livro sobre o assunto.

Ele observa, porém, que é importante não confundir os escritos apócrifos com
aqueles textos encontrados em 1947, no Mar Morto. “É preciso evitar a
comparação. Aqueles se referiam a 813 papiros que não mencionavam em
nenhuma linha Jesus, ao contrário do que se imaginava”, conta, observando que o
material descoberto era de um grupo religioso de Jerusalém, os Essênios. “Não
conheceram Jesus ou não deram importância”, acredita. (F.K.)
Um Jesus diferente

(Entrevista concedida ao Jornal Diário da Manhã (Goiânia))


Frei Jacir de Freitas Faria
Pesquisador diz o que foi escondido dos fiéis em séculos de preconceito e
medo na Igreja

Welliton Carlos
Apesar de existir um imenso debate sobre a interpretação dos evangelhos apócrifos
encontrados, na sua grande maioria, em 1945, em Nag Hammadi (no Egito), poucas
pessoas tiveram tempo de entender o que acontece de fato no meio religioso.

Novas interpretações de uma descoberta de cinco décadas atrás estão questionando


dogmas de fé do catolicismo, como a existência do pecado original, e até
confirmando outros, como o da assunção de Maria aos céus, narrada com detalhes
nos evangelhos apócrifos que tratam sobre a mãe de Deus. Ela aparece nos textos
não como intercessora, mas como apóstola de seu filho e liderança no cristianismo.
A leitura de gênero aplicada nos apócrifos evidencia a disputa de poder entre Pedro
e Madalena. Esta última não é vista como prostituta, mas apóstola e amada de
Jesus. Outra revelação é a de Jesus Cristo como líder político – uma nova imagem
tão forte quanto a propagada pela igreja como homem místico com seus poderes de
9
filho de Deus. Segundo o apócrifo de Tomé, Cristo era revolucionário político.

Estes evangelhos, em parte, estão no Vaticano e apenas estudiosos do assunto têm


o direito da consulta completa. Na internet proliferam interpretações dos textos que
tratam dos apócrifos. Se existe polêmica em religião, esta é a maior delas. Frei Jacir
de Freitas Faria, que estudou no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, informa ao
Diário da Manhã que estes textos datam do ano 50 d.C até século VI e VII. “Eles
ficaram escondidos por muito tempo. A igreja mandou para a fogueira esses textos
por considerá-los heréticos, não aptos para a fé cristã”, diz frei Jacir.

Ele prepara para março o lançamento do livro As Origens Apócrifas do


Cristianismo, que será editado pela Edições Paulinas. O estudo consiste num
comentário aos evangelhos de Madalena e Tomé e na apresentação da história de
Maria, a mãe de Jesus, de José e da infância de Jesus nos apócrifos. Jacir é um
dos maiores pesquisadores sobre o tema no país. Para ele, o assunto fascina, pois
inverte muitos aspectos tidos como certos ao longo do cristianismo.

Ele indica que a forma com que a tradição cristã tratou Madalena está toda
equivocada. “A interpretação feita pela Igreja de Lc 7, 36-50, que identificou a
pecadora citada como sendo Maria Madalena, fez dela uma prostituta. Fato que
ninguém mais ousou duvidar”, diz. No evangelho de Madalena e em outros
apócrifos, ela é apresentada como liderança forte e que ameaçava Pedro ao ponto
dele tramar contra ela, pedindo a Jesus que a expulsasse do grupo dos apóstolos.
“Com a divulgação destes evangelhos, é possível perceber também um outro perfil
de Pedro, um homem misógino, machista”, diz o frei.
A pesquisa de frei Jacir retorna aos primórdios do cristianismo. Desvenda uma
época pré-igreja Católica, pois mostra as origens dos seguidores de Cristo e o modo
como entenderam Jesus e sua mensagem. O que temos na Bíblia é a versão que se
tornou oficial, canônica. O teólogo Antônio Maria diz que conhece os evangelhos
narrados pelo frei Jacir, mas prefere acreditar na Bíblia tradicional. “Nada impede
de se discutir estes temas, mas o mais valioso, com certeza, se encontra na Bíblia”,
diz o pesquisador goiano.
Visão integrada
Jacir explica que não existiu um só cristianismo. Ou seja, não existiu apenas uma
versão dos fatos daquele período. A importância de saber que existiam diversos
seguidores de Cristo ajuda a entender como uma única visão integrada surgiu.
Com estas pesquisas pode-se descobrir que a Igreja dos séculos que se seguiram
aos fatos narrados com Jesus acabou escolhendo uma verdade em seu interior, a
que adequava aos seus objetivos. “Podemos falar de vários cristianismos, aquele da
comunidade de Marcos, de Mateus, de Lucas, de João, de Tiago, irmão de Jesus, de
Maria Madalena, de Tomé, de Paulo, dos Atos dos apóstolos”, afirma.

Cada comunidade deu o seu tom ao seu escrito. Mateus enfocou o lado judeu de
Jesus. Marcos, o Jesus missionário; Lucas, o Jesus salvador da humanidade; Atos
dos Apóstolos, o Jesus da apostolicidade; Paulo, o Jesus ressuscitado. Maria
Madalena procurou traçar o perfil de Jesus ressuscitado, humano e revelador de
ensinamentos divinos. Tomé revelou o Jesus judeu revolucionário, anti-romano e
místico. Tiago, o irmão de Jesus, anunciou o Cristo revolucionário, mas foi abafado.

O cristianismo subseqüente, mesmo sendo perseguido por Roma, foi se adequando


ao império. O gnosticismo, outra corrente de pensamento nas origens do
10
cristianismo, considerada herética, resistiu à institucionalização da religião. O
cristianismo, que deu o tom aos ensinamentos vindouros sobre Cristo, foi o da
apostolicidade, liderado por homens que impediram a liderança das mulheres. Isso
não acontecia com grupos gnósticos, onde as mulheres eram mestras, profetisas e
sacerdotisas. Houve disputas teologais entre os primeiros cristãos.

“Apontadas como heresia, as idéias de grupos, como os Gnósticos e Docetas, foram


expulsas do cristianismo. Esses grupos criaram uma literatura alternativa, a
apócrifa. Os gnósticos acreditavam que a salvação estava no conhecimento de Deus
e em si mesmo e que não era necessário uma hierarquia eclesial para chegar a
Deus. Cada um pode percorrer o seu caminho de Salvação. Isso criou problemas.”

Assim, as narrativas que falam de Jesus e do nascimento dos cristianismos são


relatos sobre como os cristãos, judeus e não-judeus entendiam Jesus. Os relatos
bíblicos são narrativas primeiro repassadas de forma oral. Pelos estudos de frei
Jacir e outros estudiosos da religião, é possível identificar como chega até nós uma
Bíblia que muito bem poderia ter outro conteúdo. Jacir afirma que o estudo desses
evangelhos suscita opiniões divergentes entre os estudiosos.

Existe uma corrente que defende a falsidade destes textos, os quais foram escritos
por pessoas não confiáveis – e que por isso exageraram nas narrativas ou
escreveram ‘verdades’ não-inspiradas. Outros, no qual ele se inclui, defendem que
esses textos devem ser estudos de modo crítico e ecumênico. Respeitar a
diversidade de pensamento na origem do cristianismo é um caminho salutar. Isso
não significa, explica Jacir, proclamar a inspiração desses textos, mas dialogar com
eles e descobrir, por exemplo, que a mulher tinha papel importante no início do
cristianismo, que Deus era visto com Pai e Mãe, mas vingou a idéia de Deus-Pai.

Além disso, nascemos em estado de graça, sem pecado ‘original’. “Não há pecado!
Somos nós que criamos o pecado, quando agimos conforme os hábitos de nossa
natureza adultera”, diz, segundo o evangelho de Maria Madalena. “É bem certo que
os exageros nos apócrifos devem ser compreendidos no contexto da piedade
popular que queria enaltecer Jesus e seus seguidores”, afirma Frei Jacir.

Idéias adormecidas
O que os apócrifos elucidam

A partir do séc. III, Maria Madalena foi interpretada como prostituta, impura e
pecadora. O que fez dela modelo para o cristianismo: a pecadora redimida, em
contraposição a Maria, mãe de Jesus, virgem santa. Os apócrifos revelam que
Maria Madalena era a mulher amada por Jesus e liderança apostólica. No texto
apócrifo Pistis Sofia, ela conversa com Jesus e mostra ser sábia em seus
apontamentos. No evangelho de Maria Madalena, após ter ouvido dela os
ensinamentos de Jesus, Pedro questiona: ‘Será que nós devemos dar ouvidos ao
que essa mulher diz? Devemos mudar nossos hábitos? Será que o Mestre a preferiu
a nós?’ “Maria Madalena ameaçava a liderança dos homens. Fazer dela uma
prostituta significou minimizar o seu papel de liderança no início do cristianismo,
assim como tantas outras mulheres que caíram no ostracismo. Estudar os
apócrifos é resgatar também o papel da mulher na primeira hora do cristianismo”,
afirma Frei Jacir.
Jesus beijava Maria Madalena

11
Segundo o apócrifo de Felipe, Jesus beijava Madalena na boca. Jacir afirma que os
documentos pesquisados apontam para grande ciúme dos discípulos em relação a
esse amor. E ainda explica que o beijo, na visão semita, tem sentido de comunicar
o espírito, o saber. Por outro lado, concorda que Jesus poderia ter beijado Maria
Madalena em outro sentido. “Onde está o problema?”, questiona Frei Jacir. Este
seria, assim, um Jesus mais humano e, por isso, divino, afirma.

Pedro e as mulheres

O líder maior nos textos canônicos é Pedro. Mas nos apócrifos, é visto como um
homem que tem aversão às mulheres. “Não chega a ser uma questão de
homossexualismo, mas de raiva, de ser intolerante com as mulheres”, afirma frei
Jacir. No evangelho Pistis Sofia, Pedro fala com Cristo, pedindo a expulsão de
Madalena. Para ele, Madalena conversava demais, impedindo que outros também
falassem. Ela, por sua vez, diz a Cristo que também não mais suporta Pedro e que
ele detesta o sexo oposto. O ódio de Pedro às mulheres é um dos pontos mais
polêmicos dos novos estudos. No evangelho de Tomé, Jesus chega a dizer
ironicamente a Pedro que faria Madalena transformar-se homem para que ela
pudesse entrar no reino.
Não existe pecado
O dogma de que os seres humanos já nascem com pecado original foi formado pela
Igreja ao longo da história. O estudo desses textos indica que o homem nasce, de
fato, puro. “Depois, com o tempo, conforme nossas práticas, é que chegamos a uma
situação pecaminosa”, conta frei Jacir. Em uma conversa entre Madalena e Pedro,
no Evangelho de Maria Madalena, que não está na Bíblia, ela diz que o Mestre
revelou: “Não há pecado.” Além de não adotar o que diz Madalena, a Bíblia e a
própria igreja insistiu muito no pecado moral, se esquecendo dos pecados sociais.
“Somos nós que fazemos existir o pecado, quando agimos conforme a nossa
natureza adúltera”, diz o evangelho de Maria Madalena. Entre os cristãos havia a
discussão sobre o pecado. Mais tarde, a idéia do pecado original ganhou força de
dogma de fé: quando uma pessoa nasce já estará concebida em pecado. “Os antigos
até ensinavam que quando uma criança morria sem ser batizada, ela vomitaria o
leite do pecado que a sua mãe lhe havia oferecido. Que absurdo! Uma criança não
pode nascer em pecado. Ela é totalmente graça. Pecado original entendido desse
jeito só pode ser original na cabeça de quem o inventou.
Tomé apresenta um Jesus revolucionário
Nos evangelhos canônicos, Tomé é aquele que não acreditou, por não ter uma fé
suficiente. Nos apócrifos, Tomé recebe ensinamentos secretos de Jesus e não os
revela aos discípulos. Seu evangelho alternativo apócrifo traz duas novidades: a
dimensão mística do cristão, influenciada pelo gnosticismo, e a visão revolucionária
do projeto de Jesus. Por exemplo, a parábola do semeador também está em Tomé,
mas não a sua interpretação, isto é, a alegoria

A outra "Bíblia" que a Tradição cunhou de Apócrifa

Introdução

Como o próprio título sugere, gostaríamos tecer alguns comentários sobre a


vastíssima literatura de escritos antigos que, a seu modo, narram a fé do povo de
Deus. Esses escritos foram motivos de muita discussão no ambientes judaicos e
12
cristãos da antiguidade. Eles se referem tanto ao Primeiro, como ao Segundo
Testamentos. E estão em forma de Evangelhos, Epístolas, Apocalipses,
Testamentos, etc. O termo apócrifo não era usado entre os primeiros cristãos. Eles
chamavam os livros que não faziam parte da Bíblia de “não canônicos”,
“contestados”, “livros que não podem ser lidos na Igreja”. Na tradição cristã, os
protestantes/evangélicos passaram a chamar os apócrifos de pseudepígrafos, isto
é, “o que tem título falso”. Vejamos, portanto, a múltipla definição do termo
apócrifo, bem como os livros apócrifos, o conteúdo de alguns deles e a sua
importância para nós, hoje.

1 – O significado de Apócrifo

Apócrifo é um substantivo grego (apókpryphon) que, ao longo da história, recebeu


muitas definições, a saber:

- algo precioso e, por isso, mantido em segredo;


- texto não usado oficialmente na liturgia das primeiras comunidades cristãs;
- texto conservado escondido por ter conteúdo não aceito;
- texto de origem desconhecida;
- texto falso ou falsificado no conteúdo ou título.
- livros de uso restrito por leitores de uma determinada corrente de pensamento;
- textos não inspirados e, por isso, não canônicos;
- livros parecidos com os considerados canônicos, mas de estilos literários diversos;
- textos que complementam o conteúdo, o sentido dos escritos canônicos, isto é, os
escritos considerados inspirados e que, por isso, fazem parte da Bíblia. Esses textos
podem, até mesmo, oferecer dados esquecidos ou pontos de vistas diferenciados
dos que permaneceram como oficiais.

A múltipla definição do que seja o substantivo apócrifo já nos mostra que estamos
em um campo merece a nossa atenção especial. Os estudiosos se dividem em
relação aos escritos apócrifos do Segundo Testamento. Uns afirmam que eles são
simplesmente a expressão da piedade popular sobre Jesus, produzidas no segundo
século do cristianismo. Para eles, essas informações não acrescentam nada às
conservadas nos textos canônicos. Ao contrário, elas deturpam o sentido exato dos
dados. Outros defendem que os textos apócrifos, alguns deles, como parte do
Evangelho de Tomé, datado no ano 50 da Era Comum, poderiam nos aproximar
mais da mensagem de Jesus, isto é, sem interpretação da comunidade. E mesmo
que não fossem datados do primeiro século, esses textos conservam dados
importantes da memória popular sobre Jesus e de seus seguidores (as). Nós
preferimos considerar os apócrifos como preciosidades mantidas em segredo que
nos revelam dados importantes, os quais complementam a história dos
cristianismos de origem. Estudar os apócrifos, sobretudo os do Segundo
Testamento, nos propicia compreender o esforço dos primeiros cristãos em
seguirem Jesus, o que, certamente, não deixou de ocasionar dificuldades no
relacionamento entre as lideranças.

2 - Os livros apócrifos

O número dos livros apócrifos é maior que o da Bíblia canônica. Podemos


contabilizar 112 deles, 52 em relação ao Primeiro Testamento e 60 em relação ao
Segundo. A tradição conservou outras listas dos livros apócrifos, nas quais

13
constam um número maior ou menor de livros. Destacamos, a seguir, alguns
desses escritos segundo suas categorias:

1) Evangelhos: de Maria Madalena, de Tomé, Filipe, Árabe da Infância de Jesus, do


Pseudo-Tomé, de Tiago, Morte e Assunção de Maria;
2) Atos: de Pedro, Tecla e Paulo, Dos doze apóstolos, de Pilatos;
3) Epístolas: de Pilatos a Herodes, de Pilatos a Tibério, dos apóstolos, de Pedro a
Filipe, Paulo aos Laodicenses, Terceira epístola aos Coríntios, de Aristeu;
4) Apocalipses: de Tiago; de João, de Estevão, de Pedro, de Elias, de Esdras, de
Baruc; de Sofonias;
5) Testamentos: de Abraão, de Isaac, de Jacó, dos 12 Patriarcas, de Moisés, de
Salomão, de Jó;
6) Outros: A filha de Pedro, Descida de Cristo aos Infernos, Declaração de José de
Arimatéia, Vida de Adão e Eva, Jubileus, 1,2 e 3 Henoque, Salmos de Salomão;
Oráculos Sibilinos.

3 - O conteúdo dos livros apócrifos e sua atualidade

Encontramos nos livros apócrifos valores que a piedade popular conservou como
“dogma de fé”. Se não fossem os apócrifos do Segundo Testamento não saberíamos
os nomes dos avós de Jesus, dos três reis magos, dos dois ladrões crucificados com
Jesus, do soldado que abriu o lado direito de Jesus com a lança, bem como as
histórias de Verônica, da infância de Maria, consagração e assunção ao céu, das
travessuras de Jesus menino, da descida de Cristo aos infernos, etc. E poderíamos
enumerar muitos outros dados.

Também vale ressaltar a presença das mulheres como lideranças marcantes entre
os primeiros cristãos. Dos apócrifos não nos resultam a afirmação que Maria
Madalena era prostituta. Aliás, muitos menos dos escritos canônicos. Assim como
Maria Madalena, Maria, a mãe de Jesus, aparece nos apócrifos como discípula e
apóstola.

Pedro é o líder dos apóstolos que recebe o encargo de conduzir a Igreja, mas
também uma personagem controvertida. Ele tinha uma filha que se chamava
Petronília. Ele rezou para que ele ficasse doente e, assim, ninguém poderia se casar
com ela. E desse modo sucedeu. Com Maria Madalena, Pedro terá tido muitas
controvérsias. É o que nos relatam o Evangelho de Maria Madalena e o tratado
gnóstico chamado de Pistis Sofia.

O estudo dos apocalipses apócrifos do Primeiro Testamento nos ajuda a


compreender o Apocalipse canônico. O Jesus que emerge dos apócrifos seria um
outro Jesus? Essa é uma boa questão.

4 - Conclusão

Essas poucas informações sobre os apócrifos nos levam a compreender a


importância de retomar o estudo o estudo dos apócrifos. Neles encontramos
ensinamentos que permanecem atuais. Os tempos mudaram. Não podemos mais
considerar os apócrifos como mera fantasia das primeiras comunidades de fé. Se
eles foram escritos e, apesar das proibições, chegaram até nós, é porque eles têm
muito a nos ensinar, a nos fortalecer na fé em Deus que se revelou a nós através de
seu filho Jesus, que nos deixou o Espírito Santo para animar, com ternura e vigor,
14
a nossa caminhada. Portanto, vale a pena estudar os apócrifos. “Tudo vale a pena”,
já dizia o poeta, “quando a alma não é pequena!”

Abaixo o nome da fera que escreveu tudo isso. Pelo menos sua formação dá
credibilidade aos escritos que ele faz.

Meu nome é Frei Jacir de Freitas Faria.

Sou frade franciscano, sacerdote e professor de Exegese bíblica e Hermenêutica de


Textos Antigos nos cursos de Teologia e pós-graduação em Ciências da Religião, no
Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

Estudei no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, onde obtive o título de Mestre em


Ciências Bíblicas, diploma reconhecido no Brasil, pela PUC do Rio Grande do Sul.
Complementei os meus estudos no México e Israel, onde fiz cursos de Leitura
Popular da Bíblia, Arqueologia, Geografia e Topografia de Israel e Jordânia.

Assessoro cursos de leitura popular da Bíblia no Centro de Estudos Bíblicos (CEBI),


na Comissão Pastoral da Terra (CPT), no Serviço de Animação Bíblica (SAB) e no
Centro Loyola de Espiritualidade, fé e cultura. Nessa mesma perspectiva, oriento e
dou aulas nos Cursos de Iniciação Teológica do Centro da Paróquia Maria Serva do
Senhor, em Belo Horizonte, e do CEFESP, em Divinópolis, bem como dou aulas no
Curso de Teologia para leigos da Diocese de Divinópolis (MG). Juntamente com
outros especialistas da área, administro a cada semestre um Retiro bíblico corporal
de purificação.

Sou membro, pela Igreja Católica Romana (CNBB), da Comissão Teológica do


Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC). Sou membro da Comissão
Internacional de Diálogo inter-religioso, da Ordem dos Frades Menores.

Publico regularmente nas Revistas RIBLA, Estudos Bíblicos, ambas da Editora


Vozes, A Palavra na Vida, do CEBI, COVERGÊNCIA, da CRB, e em jornais. Sou
organizador do livro História de Israel e as pesquisas mais recentes, Petrópolis:
Vozes, 2003. Sou autor do livro As origens apócrifas do Cristianismo, São Paulo:
Paulinas, 2003. Está no prelo o meu mais novo livro: O outro Pedro e a outra
Madalena segundo os apócrifos. Uma leitura de Gênero, Petrópolis: Vozes, 2004.

Ultimamente, tenho me dedicado ao estudo das literaturas apócrifa e judaica. Já


trabalhei em Paróquias, mas, no momento, ocupo a maior parte do tempo com
pesquisas e assessorias. Também presto serviço à Província Franciscana da Santa
Cruz, entidade a qual pertenço como religioso franciscano.

Meus telefones para contato são: (0xx31) 3469-5500 ou (0xx31) 9942-2920.


Meu e-mail é: bibliaeapocrifos@uaivip.com.br

Segredos de História e Fé
15
Introdução

A literatura apócrifa, sobretudo a de origem cristã, tem sido objeto de estudo para
muitas pessoas e comunidades. Cursos e conferências sobre a temática têm se
multiplicado. Os evangelhos apócrifos de Maria Madalena e Tomé são os que têm
despertado maior interesse. O motivo disso é que nos apócrifos encontramos
ensinamentos que permanecem atuais, como, por exemplo, a da leitura de gênero,
isto é, a relação homem/mulher no início do cristianismo. Ademais, a
espiritualidade integradora que emerge do Evangelho de Maria Madalena fascina a
todos que dele se aproximam. Também outras descobertas surgem, tais como: os
nomes dos avós de Jesus, Joaquim e Ana; a vida consagrada de Maria; a assunção
de Nossa Senhora; a história de Verônica; a história de José; a defesa da virgindade
de Maria; as travessuras de Jesus menino; a idéia que o pecado não existe; o amor
preferencial de Jesus por Maria Madalena; que Maria Madalena não era prostituta,
a história da filha de Pedro; as divergências entre as lideranças das primeiras
comunidades cristãs; a descida de Cristo aos infernos... E poderíamos continuar
enumerando informações advindas dessa fascinante literatura. Analisemos
algumas delas. Antes, porém, redefinamos o sentido do termo apócrifo.

1 - As várias definições de Apócrifo e seu valor para a nossa fé

Apócrifo deriva do grego apókpryphos. A definição mais conhecida para apócrifo é


texto falso no conteúdo ou no título e que, por isso, não entrou na lista dos livros
inspirados, na Bíblia. Os apócrifos seriam meras fantasias de piedosos cristãos. Na
verdade, entre os primeiros cristãos circulavam muitos textos sobre a vida de Jesus
e seus seguidores. Fala-se em uma lista de 60 apócrifos do Novo Testamento
(Segundo Testamento) e outros 52 do Antigo Testamento (Primeiro Testamento).
Muitos deles foram parar na fogueira. O decreto Gelasiano (referente ao Papa
Gelásio – falecido em 496) proibia a utilização desses livros pelos cristãos.

Hoje, tantos séculos depois, me proponho, como estudioso da Bíblia, retomar o


estudo dos apócrifos com o intuito de encontrar neles o precioso que foi mantido
em segredo. Assim, compreendo os textos apócrifos. Com estilo literário diferente
dos evangelhos canônicos, os evangelhos apócrifos complementam o conteúdo
desses e, sobretudo, apresentam pontos de vistas diferenciados dos que
permaneceram como oficiais. Não por menos, na coletânea dos livros apócrifos do
Segundo Testamento encontramos, por exemplo: Evangelhos (de Maria Madalena,
de Tomé, de Filipe, Árabe da Infância de Jesus, do Pseudo-Tomé, de Tiago, do
Nascimento de Maria); Atos (de Pedro, de Tecla e Paulo, dos doze apóstolos, de
Pilatos); Epístolas (de Pilatos a Herodes, de Pilatos a Tibério, dos apóstolos, de
Pedro a Filipe, Paulo aos Laodicenses, Terceira epístola aos Coríntios); Apocalipses
(de Tiago; de João, de Estevão, de Pedro); Outros (A filha de Pedro, Descida de
Cristo aos Infernos, Declaração de José de Arimatéia). Os originais desses textos
estão em grego, latim, siríaco, copto, etíope, etc. Muitos deles são apenas
fragmentos. Os evangelhos de Maria Madalena e Tomé, em copto, foram
descobertos no alto Egito, em Nag Hamadi, em 1945.

Tantos escritos assim não invalidam, por outro lado, o valor incontestável dos
evangelhos canônicos produzidos pelas comunidades de Mateus, Marcos, Lucas e
João. Esses permanecerão sempre como critério verossímil de análise da pessoa e
vida de Jesus, mas serão mais bem compreendidos em relação aos outros modos de
pensar daquele então. Nesse sentido, gostaria de propor algumas reflexões
16
advindas do estudo dos apócrifos, sobretudo dos evangelhos de Maria Madalena e
Tomé.

2 - Maria Madalena não era prostituta

Quem é Maria Madalena? A ligação errônea das passagens evangélicas que falam
dela levou à identificá-la com a pecadora (prostituta?) que ungiu os pés de Jesus
(Lc 7,36-50). E esse erro virou verdade de fé. O inconsciente coletivo guardou na
memória a figura de Maria Madalena como mito de pecadora redimida. Fato
considerado normal nas sociedades patriarcais antigas. A mulher era identificada
com o sexo e ocasião de pecado por excelência. Daí não ser nenhuma novidade a
pecadora de Lucas ser prostituta e a prostituta ser Maria Madalena. Lc 8,2 cita
nominalmente Maria Madalena e diz que dela “haviam saído sete demônios”. Ter
demônios é o mesmo que ser acometido de uma doença grave, segundo o
pensamento judaico. No cristianismo, o demônio foi associado ao pecado. No caso
da mulher, o pecado era sempre o sexual. Nesse sentido, a confusão parece lógica.
Mas não o é, se levarmos em consideração o valor da liderança exercida por Maria
Madalena entre os primeiros cristãos, bem como a predileção de Jesus por ela.
Entre os discípulos judeus considerar Maria Madalena como prostituta significava
também subestimar o valor da mulher enquanto liderança. Os padres da Igreja
seguiram essa linha de pensamento.

3 - A liderança de Maria Madalena incomodava os apóstolos

Entre os primeiros cristãos havia disputas pela liderança. Havia o grupo de Pedro,
o de Paulo, o de Tiago, e também o de Maria Madalena. O evangelho de Maria
Madalena diz que ela recebe os ensinamentos do Mestre e os transmite, causando a
irritação de Pedro, que diz: “Será possível que o Mestre tenha conversado assim
com uma mulher? Devemos mudar nossos hábitos e escutarmos todos essa
mulher? Mas Levi repreende a Pedro dizendo: “Se o Mestre tornou-a digna, quem és
tu para rejeitá-la? Arrependamo-nos!”, o que significa, unamos o masculino e o
feminino dentro de nós e saiamos a anunciar o Evangelho segundo Maria
Madalena. E assim termina o Evangelho de Maria Madalena.

Há também um tratado gnóstico chamado Pistis Sophia que nos mostra o quanto a
liderança de Maria incomodava aos discípulos. Assim diz o texto: “Pedro precipitou-
se adiante e disse a Jesus: “Meu Senhor, nós não podemos mais suportar esta
mulher, pois nos tira a oportunidade; ela não deixou falar ninguém de nós, mas
sempre ela a falar. Meu Senhor que as mulheres cessem afinal de perguntar, de
modo que nós possamos também perguntar”. E Maria Madalena também disse a
Jesus: “Por isso, eu tenho medo de Pedro: ele costuma ameaçar-me e odeia o nosso
sexo”. A opinião de Pedro em relação a Maria Madalena revela o quanto lhe
incomodava o protagonismo de Maria Madalena, mulher, discípula e apóstola de
Cristo.

4 - Maria Madalena era a amada de Jesus e o beijava freqüentemente

O evangelho de Filipe nos traz uma informação não muito conhecida entre nós. Ele
diz: “A companheira de Cristo é Maria Madalena. O Senhor amava Maria mais do
que todos os discípulos e a beijava freqüentemente na boca. Os discípulos viram-no
amando Maria e lhe disseram: Por que a amas mais que a todos nós? O Salvador
respondeu dizendo: ‘Como é possível que eu não vos ame tanto quanto a ela?”
17
(Filipe 63, 34-64,5). E noutra parte diz: “Eram três que acompanhavam o Senhor:
sua mãe Maria, a irmã dela, e Madalena, que é chamada de sua companheira. Com
efeito, era “Maria” sua irmã, sua mãe e a sua esposa” (Filipe 32).

Com entender o beijo entre Jesus e Maria Madalena? É fácil! Basta remontarmos à
cultura daquela época. O beijo em hebraico significa comunicar o espírito. Por isso
é que dizemos que o beijo é, por excelência, o sacramento do amor. Maria Madalena
recebia os ensinamentos do mestre. Eles eram espíritos unidos pelo amor ao Reino
de Deus. Podemos também compreender isso olhando a vida dos grandes místicos.
Francisco e Clara de Assis viveram essa mesma experiência sublime de amor, na
consagração de suas vidas.

Chamar Maria Madalena de mãe, amada e irmã significa dizer a mesma coisa em
três modos diferentes. Eles representam a mulher (feminino) nos seus três estágios
de vida: infância, procriação e menopausa. E todas essas dimensões, na relação
com o homem (Jesus), revelam a união profunda entre os seres humanos. União
sem divisão, sem dualidade. Por isso, Maria Madalena só poderia ter sido de Jesus
mãe, irmã e esposa. No evangelho de João encontramos a expressão “discípulo
amado”. Esse evangelho tem parentesco próximo em sua teologia com o evangelho
de Maria Madalena. João quase não entrou na lista dos canônicos. Não seria o
evangelho de João fruto da comunidade de Maria Madalena? O discípulo amado do
evangelho de João não seria Maria Madalena? Ela, sim, recebe esse título nos
apócrifos. E para que o seu evangelho fosse considerado canônico, o evangelho de
Maria Madalena virou de João e, João, por conseguinte, o discípulo amado. Bom,
há de se considerar também que o discípulo amado nem seja João.

5 - Para Maria Madalena, o “pecado não existe”

O evangelho de Madalena afirma: “não há pecado, somos nós que fazemos existir o
pecado quando agimos conforme os hábitos de nossa natureza adúltera” (pagina 7,
14-19). O ser humano nasce em estado de graça, sem pecado. São os
condicionamentos da vida que criam situações de pecado. O pecado então passa a
existir. E vale lembrar que o pecado não é só moral, mas social e comunitário.
Infelizmente a Igreja católica, no decorrer da sua história, enfocou muito o pecado
moral, chegando a criar até listas de pecados, e muita gente viveu atrelada a essa
idéia, sem conseguir se libertar. A confissão dos pecados fez e faz um bem para
todos nós, mas a idéia que tudo é pecado, não. A liberdade é já um estado de graça.
Nem tudo é pecado, sobretudo no campo da moral. O evangelho de Maria Madalena
nos ensina a buscar a harmonia interior e sem absolutismos.

6 - Para Tomé, Jesus é um crítico do império romano

Segundo os estudiosos, parte do Evangelho de Tomé data do ano 50, sobretudo as


parábolas. Nos evangelhos canônicos nós temos parábolas e alegorias. A parábola é
o fato e a alegoria é a interpretação que se faz dele. No Evangelho de Tomé não
existem alegorias, apenas parábolas. Isso nos leva a entender que esse evangelho
está mais próximo da fala original de Jesus. Comparando os textos, percebemos
isso claramente. Na parábola do semeador, por exemplo, o que Jesus estaria
dizendo? Ele convoca o pessoal do norte da Galiléia, os quais estavam assistindo o
roubo de suas terras pelo Império Romano e repassados aos “apadrinhados
políticos” do Império, a lutar pelos seus direitos. Ou seja, Jesus ensina os
trabalhadores a resistirem. Outro texto interessantíssimo é a Parábola dos
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vinhateiros, que algumas Bíblias intitulam erroneamente como “Parábola dos
vinhateiros homicidas/assassinos”. Quando se faz uma comparação entre os textos
de Tomé, Mateus, Marcos e Lucas, percebemos nitidamente a intenção de cada um
deles. Os três evangelistas canônicos relêem essa parábola de forma cristológica:
Jesus é o que foi morto fora da vinha; o dono da vinha é o Pai (Deus); os
trabalhadores representam o povo de Israel que rejeitou Jesus. O texto de Tomé
não diz isso. Ele coloca os vinhateiros de uma forma positiva, pessoas que não têm
nada de homicidas. Os vinhateiros, em Tomé, são os trabalhadores que se
organizam e que brigam contra o patrão para reivindicar o direito à terra, herança
dada por Deus que estava sendo tomada pelos romanos. Por mais paradoxal que
seja, o Evangelho de Tomé convida a comunidade a resistir contra aqueles que
tomavam as suas terras. Evidentemente, as comunidades de Marcos, Mateus e
Lucas, cada um a seu modo e a partir da problemática interna e externa vividas por
elas: perseguição judaica, ambição pelas riquezas do mundo, alegorizam a fala de
Jesus. E isso também não está errado. Nós fazemos o mesmo ainda hoje.

7 - Para não concluir

O precioso dos apócrifos mantido em segredo, trazido à tona, desinstala a opinião


teológica sedimentada. Esses escritos são, de fato, já desde as origens do
cristianismo, textos questionadores. Temos que reconhecer que, evidentemente,
que alguns apócrifos têm histórias aberrantes, que não poderiam corresponder à
verdade. Mas também a “história” sobre Jesus nos evangelhos canônicos não é toda
a história. Nem tudo sobre Jesus foi escrito. Muita coisa não foi considerada. E
muitos textos sobre Jesus são já releituras feitas pelas comunidades daquela
época. Alguns estudiosos chegam a afirmar que somente 18% das palavras
atribuídas a Jesus nos evangelhos são dele. Além disso, o que era dado de fé
passou a ser dado histórico e o que era dado histórico tornou-se dado de fé. É difícil
distinguir, mesmo como o auxílio da exegese moderna, o Jesus da fé do Jesus
histórico. As coisas estão misturadas. Estudar os apócrifos é colocar-se no caminho
do diálogo com as origens do cristianismo. É perceber o valor deles para a nossa fé
ecumênica e aberta ao “novo”, ainda que esse não seja “tão novo” assim.

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