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O AMOR DO PALHAÇO

Ameli Gabrieli Batista Fernandes


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ); Professora da Faculdade Machado Sobrinho e da FACSUM.
Endereço: Rua Halfeld, 1137/306B, Centro. CEP 36016-000
Tel: 32 88750241
E.mail: ameligabriele@yahho.com.br

RESUMO:
Definido pelos estudiosos da palhaçaria como ridículo, o palhaço almeja ser amado enquanto tal.
O palhaço Jango, afirma que “quando [...] olha para a platéia está dizendo: olhem como sou,
vocês me amam mesmo assim? O riso é a aceitação”. Esta atitude não se refere à benevolência
cristã ou compaixão, pois o clown não se sente melhor ou pior por ser ridículo e não o é para
causar piedade. Ele já se apresenta ridículo logo, ao pedir para ser amado, aferindo de saída que o
amor não cabe na idealização. O amor que visa tamponar a falta acaba por fazê-la eclodir. Ao
contrário, um amor que não nega o real, é capaz de lhe fazer borda. Fazendo uso do humor e do
chiste, o palhaço contorna a falta em seu impossível de ser dito e consegue assim transmiti-la. No
campo do amor, isso se manifesta permitindo que este seja desfrutado como ele é, desobrigado de
trazer felicidade plena através do encontro com o “parceiro ideal”. Este trabalho pretende
exemplificar e compreender com a palhaçaria uma forma de amor capaz de dar lugar à falta.
O AMOR DO PALHAÇO1

Ameli Gabrieli Batista Fernandes

Este trabalho pretende exemplificar e compreender com a palhaçaria, uma forma de amor
capaz de dar lugar à falta e desta forma significantizá-la.

O que é o palhaço?
Muito além de uma figura grotescamente maquiada que usa um nariz vermelho, o palhaço
é uma das expressões sociais e artísticas mais antigas da humanidade, representante de seus
defeitos, do seu ridículo e de tudo aquilo que ela rejeita e descarta. O artista que pretende
desempenhar um palhaço deve criá-lo através de um processo no qual ele precisa descobrir as
máscaras que usa e despojar-se delas para que possa emergir aquilo que elas tentam encobrir. Por
isso o nariz vermelho é considerado a menor máscara do mundo, que ao invés de encobrir, se
presta a desvelar. O ator deverá então acolher seu ridículo e produzir a partir dele a arte e o riso.
Um palhaço se constrói explorando a hiância risível que há entre o ideal e o real. Ele é
sempre criado a partir das imperfeições (físicas ou não) do ator que o personifica. Esta não é uma
postura de defesa, tal como caçoar de si antes que os outros o façam. Trata-se menos ainda de
dizer ao público “meus defeitos são esses, acaso vocês são perfeitos?”.
A primeira coisa que esta personagem sugere a muitas pessoas é a clássica figura de
maquiagem carregada, trajes coloridos, sapato grande e nariz vermelho. Supor que o palhaço se
defina pelo uso de tal indumentária é um sério engano que precisa ser desfeito a bem da
divulgação da palhaçaria como arte e, sobretudo, para que a presente proposta possa ser
compreendida.
Dizem os autores da área (Libar, 2008, Lecoq, 1987 e outros) que ser palhaço, é
encontrá-lo em si, e isso equivale a encontrar a “sua verdade” a sua “essência”, o que é possível
a todos, pois esta “verdade” diz sempre do ridículo. Descobrir seu palhaço, sua verdade é
descobrir e localizar o seu ridículo e todos o são. Ser ridículo é ser imperfeito, tolo, distante do
ideal; é cair, tropeçar, valorizar mais as bobagens que as coisas consideradas úteis e até se achar
mais esperto ou bonito que os demais.
À luz da psicanálise pode-se compreender que o ridículo que corresponde ao sujeito é a
falta. Por isso todos podem ser palhaços contanto que consigam admiti-la e a partir dela recriar-
se. Essa operação não é nada simples, mas pode se tornar possível, a partir do humor, do riso e do
chiste.
O palhaço Jango afirma que “quando (...) olha para a platéia está dizendo: olhem como
sou, vocês me amam mesmo assim? O riso é a aceitação” (apud Libar, 2008, p. 189). Esta atitude
não se refere à benevolência cristã ou compaixão, pois o clown não se sente melhor ou pior por
ser ridículo e não o é para causar piedade. Ele já se apresenta ridículo logo ao pedir para ser
amado, aferindo de saída que o amor não cabe na idealização. Ele quer ser amado enquanto
ridículo e não como a metade perfeita, capaz de completar o amante.
De acordo com Libar (2008), a dimensão da inexorabilidade da morte está muito presente
no palhaço. Ele não nega a finitude, antes a assume plenamente. Diante dessa realidade, a solidão
primordial se avulta, destituindo o valor de tudo que parece ter sentido, exceto o amor. O amor se
torna o único valor que se mantém erigido, não para suplantar a citada solidão ou o limite da
vida, pois é a partir disso que ele se liberta para brincar com a vida em lugar de vivê-la.

O amor do palhaço
O amor que visa tamponar a falta mais a faz eclodir, pois instaura um ciclo infinito de
insistência na busca por algo que não existe. Na procura do objeto perfeito, cada objeto
imperfeito encontrado faz resplandecer sua parcialidade, pela distância na qual ele se encontra em
relação ao ideal. Por outro lado, um amor que não nega esse real é capaz de lhe fazer borda.
Fazendo uso do humor e do chiste, o palhaço contorna a falta em seu impossível de ser dito e
consegue assim transmiti-la. No campo do amor isso se manifesta permitindo que este seja
desfrutado como ele é, desobrigado de trazer felicidade plena através do encontro com o
“parceiro ideal”.
A relação do palhaço com a vida exemplifica que é possível ir ao encontro dos objetos
sabendo que nenhum deles corresponderá ao ideal, pois ele conhece na própria carne a
inexistência deste. O palhaço não busca o ideal, mas sim o possível o que não diminui o valor dos
objetos parciais que pode encontrar. Por isso nos diz o palhaço Cuti-Cuti em suas apresentações e
oficinas; “Não leve a vida tão a sério, pois ela é uma brincadeira, e você ainda morre no final”.
O chiste transmite a falta ao desvelar, através da linguagem, a sua própria estrutura
(Lacan, 1957/58), ou seja; o fato de os significantes não estarem colados nos significados, de não
haver perfeita correspondência entre eles. O chiste faz um uso outro do código, e como o Outro
sanciona este uso, ocorre transmissão de uma mensagem sem que ela precise ser dita
explicitamente. O não dito é dito entre os significantes (Lacan, 1957/58).
Assim como a tirada espirituosa, o clown também se constitui a partir do Outro, do feixe
de empregos possíveis para as palavras e coisas do código para, posteriormente, desconstruir e
questionar esse sentido. Ao não tomá-lo como óbvio, segue rumo à construção de um sentido
Outro.
Enquanto os homens se arrogam a ser mais isso ou mais aquilo, o palhaço se retira desta
competição e desse campo da afirmação de si. Sem ressentimento ou autopiedade, ele parte para
uma lógica contrária a essa. Sai do código rumo à mensagem; deixa o mundo dos valores, da
busca do sentido da vida, para um modo de existir no qual o prazer e a bobagem têm sentido em
si mesmos, justamente por subverterem a busca de um significado maior. Bom, belo, feio, ou tolo
são significantes pelos quais ele passa, subvertendo-os, construindo-se assim ridículo. Trata-se,
no entanto, de um ridículo Outro que pertence ao status de mensagem. Os significantes, nesse
caso, associam-se a outros significados para convocar a inexistência DO significado único e
verdadeiro. “O palhaço é o sacerdote da besteira, das inutilidades, da bobeira.” (Castro, 2005, p.
12) Tudo o que é considerado insignificante tem valor para ele, mas esta valoração é outra, não é
pragmática.
Assim como no chiste, o aval do Outro também é fundamental na palhaçaria, pois é ele
que, encarnado na platéia, acolhe sua apresentação e lhe dá um lugar. Ele ratifica uma mensagem
que tropeça, e nesse mesmo tropeço reconhece a dimensão de um para além que remete ao
inconsciente. A dimensão do Outro se amplia, presentifica-se como sujeito (neste caso encarnado
como espectador) e não só como sede do código. O Outro sanciona uma mensagem no código e a
torna complexa, por estar no lugar daquele que institui a lei. Ele é capaz de autorizar uma nova
mensagem, significando algo além do que, na própria mensagem remete ao código (Lacan,
1956/57). O Outro se torna presente como aquele que instaura a legitimidade de uma mensagem
ao rirmos dela aferindo que, embora não estivesse prescrita, pode fazer sentido.
É preciso que o Outro alinhe esta mensagem ao código para que o nonsense presente nela
passe a ter um sentido que remeta àquilo que só é visto quando se olha para outro lugar (Lacan,
1956/57). O palhaço coloca em cena a verdade que só pode ser vista de lado, o vazio, a falta,
presente em todos e por ele acolhida. Em última instância, é disso que se trata na construção de
um clown, mas como isso não pode ser designado senão de lado e quando se olha para outro
lugar, ele faz, assim como a tirada espirituosa, mil manobras com o significante para apresentar
entre eles aquilo que não é significantizável.
O humor transforma ocasiões traumáticas em oportunidades para a obtenção de prazer,
pois nele o ego se recusa a sofrer, rejeitando as reivindicações da realidade (Freud, 1929). Em
última instância, o que está em questão no humor, na palhaçaria e no chiste, são as possíveis
formas de se lidar com o real. O humor, o chiste e a palhaçaria não negam o real, tampouco a
impossibilidade de controlá-lo e de representá-lo. Entretanto, não permitem que sujeito se aflija
tanto e ainda produzem deleite. Eles permitem não só a queda da idealização, como a aceitação
da falta e o acolhimento do real. Esta operação parece capaz de permitir que as relações amorosas
sejam vivenciadas mais na dimensão do que é possível do que na cansativa e repetitiva busca
pelo que não existe.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREUD, S. [1927] “O Humor”. Obras psicológicas completas, vol. XXIII. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
LACAN, J. [1956/57]. O seminário, livro 5: As Formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2009.
LIBAR, M. “A Nobre arte do palhaço”, Rio de Janeiro, s.n. 2008.
CASTRO, A. V. de. O Elogio da Bobagem. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005.
1
Extraído da pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ sob orientação da Profª Drª
Heloisa Caldas.

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