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São Luís
2012
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Almeida, Emerson Rubens Mesquita.
– 150 f.
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EMERSON RUBENS MESQUITA ALMEIDA
São Luís
2012
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EMERSON RUBENS MESQUITA ALMEIDA
Aprovada em 24/02/2012
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Profa. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho
Universidade Federal do Maranhão
_______________________________________________
Profa. Dra Katiane Ribeiro da Cruz
Universidade Federal do Maranhão
_______________________________________________
Profa. Dra. Rose-France de Farias Panet
Universidade Estadual do Maranhão
São Luís
2012
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AGRADECIMENTOS
Um trabalho que aparenta ter uma só autoria é feito a muitas mãos, posso até dizer
a muitos cérebros. Neste sentido, é uma produção coletiva que deve ser lembrada como tal.
Daí agradecer é imprescindível para não esquecer que até o mais singular dos
pensamentos, sempre foi plural. Desta maneira agradeço a minha orientadora Elizabeth
Maria Bessera Coelho, que se mostrou mais que uma professora, uma amiga que soube ter
Antropologia, por terem sido cúmplices desta tarefa, inclusive tolerando minha ausência
especial aos amigos Marcelo Carneiro, que me visitou no exílio, e Igor Grill que deu
Agradeço aos colegas de turma, Daisy, Bruno (Feto), Carol, João Gilberto, Carla,
Antônio Poser, Marcos, Douruézia, Joelma, Ingrid, Cris, Jorge... por terem ouvido,
Estes anos que passei no Mestrado foram cheios de mudanças, inclusive de cidade,
de casa e de emprego. Devo, portanto, agradecer aos colegas de trabalho da FUNAI, que
mestrado. Agradeço aos colegas da SEDUC, pelos anos que passei em situações difíceis ao
Agradeço aos meus familiares, que ficaram torcendo, mesmo a distância, para que
as coisas saíssem como planejadas. A minha mãe que chorou minha partida, mas sorrir a
cada retorno que faço. Aos meus irmãos, Eline, Edjane, Elisangela, Edson, Marcio e
Glaucia, que sei que mesmo calados festejam cada nova conquista do seu mano.
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Agradeço aos meus sobrinhos que não citarei por falta de espaço (seriam
necessárias uma duas folhas mais). Ao meu filho Auro Rubens, para quem continuo me
Por fim agradeço a minha esposa Larissa dos Santos Martins, quem mereceria um
capítulo especial se este não fosse este um trabalho sobre os Tentehar. Pela paz que me
6
“Culturas indígenas, culturas inquietas
para recusar um poder que as fascina: a
opulência do chefe é o sonho acordado do
grupo. E cabe expressar, ao mesmo tempo,
a preocupação que tem de si mesma a
cultura e o sonho de se separar, que o
poder, paradoxal em sua natureza, é
venerado em sua impotência: metáfora da
tribo imago de seu mito, eis o chefe
indígena”. (Pierre Clastres)
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RESUMO
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ABSTRACT
This paper analyzes the dramatic situation Tentehar in the context of policy
implementation indigenous health and education, aiming to discuss how these policies fit
into the spaces Tentehar, Maranhão, and are perceived by these people.More specifically, it
aims to capture the dynamics of control exercised by the state ontentehar and strategies
of transgression of this control, driven by these people.Seeks to understand how the
dynamics of the coloniality of power, implemented by the Brazilian state, are facing
the tentehar way of being and doing.
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LISTA DE SIGLAS
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LISTA DE QUADROS
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 13
2. OS TENTEHAR
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1. INTRODUÇÃO
(2006, p. 23) faz a seguinte pergunta: “a que circunstâncias se pode atribuir o fato de na
civilização ocidental, e só nela, terem aparecido fenômenos culturais que, como queremos
(Grifos meus).
pela filosofia, nos dois lados do Atlântico. Esta perspectiva, ainda segundo este autor,
diferentes. Para Aníbal Quijano (2002), no entanto, a forma mais avançada desta
consegue se firmar, pela primeira vez na história, como fenômeno mundial. Para este autor,
a chamada “globalização” mantém estreita relação com as tendências atuais das formas
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institucionais de dominação e em particular do moderno Estado-nação (QUIJANO, 2002,
p.04). Trata-se de uma perspectiva teórica e histórica sobre a questão do poder, sobre o
América, Europa e capitalismo, e junto com essas, passou a ser imposta a todo planeta no
ao afirmar:
Desde então, no padrão atual mundial de poder, (tais noções) impregnam todas e
cada uma das áreas de existência social e constituem a mais profunda e eficaz
forma de dominação social, material e intersubjetiva, e são, por isso mesmo, a
base intersubjetiva mais universal de dominação política dentro do atual padrão
de poder (QUIJANO, 2002, p.04)(Grifos meus)
gerados por essa relação levando em conta um novo padrão mundial de poder, a noção de
forma sistemática a partir do século XVII, a escola tornou-se o espaço no qual se reproduz
o único conhecimento aceitável e legítimo pelos padrões atuais de poder (QUIJANO, 2002,
14
p.04). Isto é, a racionalidade ocidental reproduz a si mesma a despeito de outras formas de
seus críticos mais radicais. Uma vez que para jogar é preciso aceitar as regras do jogo.
(2004, p.58-59), analisando as relações entre cultura e saúde pública no âmbito do Distrito
Sanitário Especial Indígena do Rio Negro, afirma que os indicadores usados para avaliar o
estado de saúde de uma comunidade ou sub-região especifica do Alto Rio Negro, não
levam em conta as percepções dos próprios índios com relação a esses problemas e suas
causas eventuais. A ação dos órgãos de saúde no âmbito do Distrito Sanitário, segundo esta
autora, provoca dissenso entre gerações, pois enquanto o anciãos, xamãs e rezadores
da vida (nascimento, puberdade, morte), os jovens entendem que ouve uma melhora nas
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Em ambos os casos, atendimento à saúde e escolarização, as ações desenvolvidas
quais se questiona suas formas, nunca sua existência. Entendida como pilares na
inexoráveis. Edgardo Lander (2002, p.33), argumenta que se trata de uma visão de mundo
ocidental, sobretudo no que tange aos conhecimentos (ciências) que esta produz com
conceitos de educação e saúde vêm sofrendo nas últimas décadas, no que tange à questão
indígena, uma completa assepsia com relação à origem colonialista e o vínculo profundo
Para Coelho (2008, p.26), tanto as diretrizes para a Política Nacional de Educação
Escolar Indígena, quanto a Política Nacional de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas
podem ser compreendidas como estratégias de subalternidade dos saberes, ou, pensando
junto com Edgardo Lander, novas formas de poder e de controle, mais sutis e refinadas
Coelho (2008) afirma que a educação escolar tem sido um dos veículos
fundamentais que o estado moderno utiliza para homogeneizar a população, tendo em vista
seu papel na reprodução e modificação da cultura. Acrescenta que nos países em que o
1
O Estado-nação aqui pensado está ainda em consonância com Quijano (2006)
16
senso de comunidade. Este não é, no entanto, o caso do Brasil, onde o estado tem
multicultural, esta última amparada nos princípios de respeito à diversidade dos povos
indígenas. Por outro lado, chama atenção para ausência, no texto constitucional, da idéia de
pluralidade, afirmando que não consta “entre os objetivos fundamentais da Carta Maior
[...] o respeito à diversidade étnico cultural. Como já apontei, a diversidade étnica coloca-
trouxe consigo noções que compõem um complexo jogo de poder na relação entre
estado aos movimentos sociais, passando pela academia, ajudaram a construir, na maioria
complexo. A esse respeito, argumenta Fleuri (2003, p.17) que um dos “mais espinhosos
2
Brasil, Constituição Federal 1998.
17
Nas novas políticas de educação e saúde, diferença e integração, que
torno dos novos parâmetros adotados pela política indigenista brasileira, se mostrou
incapaz de superar os velhos modelos, pelo menos até agora. Por outro lado, os argumentos
nos quais se estruturaram tais propostas foram baseados em pressupostos de renovação dos
violência simbólica (BORDIEU & PASSERON, 1992) exercida sobre os povos indígenas.
Coelho (2008, p.17), alerta para os conflitos acendidos por essa nova política:
suas escolas, o Estado pretende obrigar os índios a jogar dentro de suas regras, fazendo da
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No campo da educação autores como Grupionni (2002), Silva (2002), Maher (2002), Matos & Monte (2002)
classificam ou aceitam a nova política indigenista brasileira como constituinte de um paradigma
emancipatório ou inspirada nele. O mesmo ocorre com as políticas de atenção a saúde dos povos indígenas
que prevêem a participação dos povos indígenas no subsistema de saúde ganhando a adesão de profissionais
do ramo da medicina e mesmo de antropólogos.
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escolarização a única ordem possível4 (LANDER, 2005, p.22). As conseqüentes perdas
neste processo são entendidas como inevitáveis, necessárias para galgar sucesso diante dos
novos padrões estabelecidos. Podemos associar esse mecanismo ao sétimo princípio mítico
da Modernidade, interpretado por Dussel (2005, p. 65), segundo o qual “pelo caráter
sacrifícios (os custos) a “modernização” dos outros povos “atrasados” (imaturos), das
relação aos questionamentos sobre sua importância para os povos indígenas. Beneficia-se
desta prerrogativa para repassar a idéia de desprendimento com seu passado colonizador.
contas, emancipa os índios em relação a que e/ou a quem? Sob rubrica da emancipação,
sendo postas, ainda, sob bases homogeneizantes de pensamento. Como os povos indígenas
apresenta um ponto de vista a partir do qual os índios assumem papel protagonista nas
4
A idéia de uma única ordem possível é refletida por Lander (2005) em relação aos processos de imposição
da ordem liberal como estrutura universalizante e inexorável. Em seu artigo A ordem possível: a
continuidade do ensino fundamental em aldeias, Almeida (2008) toma de empréstimo essa noção para
analisar a dinâmica de implementação do ensino de 5ª a 8ª séries em terras indígenas no Maranhão, a escola
assumiria a posição de única ordem possível.
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que fazia dos povos indígenas personagens passivos em sua dramaturgia. Essa
nova abordagem dá-nos acesso a um rico universo de significados, até aqui
omitidos, e demonstra por que estratégias os povos indigenas vêm procurando
conquistar um papel ativo em situações interétnicas, apesar das imensas pressões
que existem para incapacitá-los. Relações de troca não são apenas mecanismos
dos colonizadores para dominar os povos nativos; elas também constituem a
arena onde estes desafiam a dominação e procuram afirmar suas próprias formas
de controle. (grifos meus)
de vista no qual as relações de força estão em constante oscilação, sendo favoráveis ora
diferentes maneiras, de acordo com a história de contato que vivenciam e com seus modos
de vida. Nessa perspectiva, procurei construir minha investigação, tomando como campo
empírico o povo Tentehar, buscando perceber, inspirado nas reflexões de Howard (2002),
a tensão que se forma entre os propósitos das políticas de escolarização, promovidas pelo
Estado, e a forma como os Tentehar se relacionam com tais políticas, tentando “pacificá-
las”.
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da Colonialidade do Poder (QUIJANO: 2002) por outro lado, a reconsideração das
relações interétnicas à luz das teorias da resistência, como proposto por Howard (2006)
restitui as bases necessárias para pensar as complexas relações vividas pelos Tentehar com
saúde e de educação, objetivando discutir como essas políticas inserem-se nos espaços
onde vivem os Tentehar, no Maranhão e são percebidas por esse povo. Isto é, como se dão
as relações sociais entre os Tentehar e tais políticas promovidas por órgãos de governo,
como eles se relacionam com essa instituição, e, cotejar esses elementos com a atuação dos
1.2 Uma estrada sem volta: situando o pesquisador em seu universo de pesquisa
diversas perspectivas sobre a questão indígena. Aos olhos de minha mãe, meu interesse
pela questão indígena estava predestinado. Quando, em 1996, comuniquei-lhe que iria
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trabalhar com índios, na ocasião, afirmou: “eu já sabia”. Então, contou-me a seguinte
história:
quando você nasceu lhe dei o nome Ucijara. Nem precisa dizer que é nome de
índio. Algumas pessoas acharam que o nome não era muito bonito, então mudei
para Ubiratan. Após alguns meses de vida você adoeceu gravemente e passei
vários meses num hospital no qual fui visitada por várias pessoas que se
compadeciam da pequena criatura ali doente. Entre tantas visitas, uma em
especial me aconselhou a procurar um pai-de-santo, pois sua doença não parecia
“natural”.
Assim fez minha mãe e nesta ocasião recebeu a seguinte sentença: troque o nome
do menino se não quiser perdê-lo para os índios. Segundo minha mãe, o dito curador se
referia aos “encantados indígenas” que me solicitavam para ir com eles para sua morada no
além, por ter recebido aquele nome e, portanto pertencer a eles. A partir de então passei a
Conselho Indigenista Missionário - CIMI6 passei a compor uma pequena equipe de saúde
5
Combonianos: congregação de padres seguidores do carisma de Daniel Combonni, missionário italiano que
dedicou sua vida a evangelizar e fazer trabalhos sociais na África.
6
Órgão anexo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que tem como missão a “defesa da vida dos
povos indígenas”.
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de Saúde-FNS, hoje FUNASA. Posteriormente, permaneci no CIMI como funcionário e,
âmbito das políticas indigenistas ofertadas pelo Estado Brasileiro, ainda adaptando-se às
novas exigências da Constituição de 1988. Entre tais políticas, surgiram propostas para
Minha formação técnica, na área da saúde, fez com que me dedicasse mais às
questões de saúde acompanhadas pela instituição. Mais que isso, buscava entender as
políticas indigenistas do estado brasileiro para com os povos indígenas no Maranhão. Nos
primeiros anos no CIMI conheci os Ka’apor e os Tembé da Terra Indígena Alto Turiaçú,
com os quais trabalhei durante pouco tempo, realizando viagens esporádicas. Em 1998 já
acompanhava várias aldeias discutindo políticas indigenistas nas terras indígenas Cana-
residência para Amarante do Maranhão. Ali pude me dedicar mais exclusivamente a uma
região e trabalhar mais intensamente junto aos índios. Meu trabalho, naquele contexto,
consistia em realizar articulação política dos povos indígenas entre si e com outros setores
militantes na causa indígena como, por exemplo, movimentos sociais da região e mesmo a
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O CIMI faz distinção entre funcionário e missionário. Esta segunda categoria é destinada àquelas pessoas
que optam por uma “vida missionária”, a quem é atribuído o direito a voz e voto nas assembléias regionais e
nacionais da instituição, bem como a participação nas diversas instâncias da mesma. Ao funcionário reserva-
se o direito de exercer sua função conforme sua colocação na instituição, como em qualquer empresa,
inclusive com todos os direitos trabalhistas respeitados.
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Aquele ano foi marcado pela morte do Pe. Carlo Ubbiali, membro fundador do CIMI no Maranhão, o que
provocou muitas mudanças no estilo e forma do trabalho indigenista do CIMI nesse estado.
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igreja local9. O objetivo era favorecer ações e reivindicações dos povos indígenas da terra
foram parceiros constantes em diversas ações realizadas em favor dos indígenas durante o
Em agosto de 2005, pedi dispensa do CIMI e passei atuar como Assessor Político
COAPIMA. Ali passei a viver mais próximo do movimento indígena propriamente dito.
Isto é, no CIMI era um articulador, incentivador dos índios em busca de seus direitos. Na
COAPIMA trabalhava como um assessor político, com opinião própria e com maior
autonomia, não era a voz, nem as diretrizes de uma instituição, era a minha própria voz
interagindo diretamente com os índios. Quando mais tarde fui convidado a fazer parte da
Neste lapso de tempo, estive sempre trabalhando junto aos povos indígenas, porém
9
A Igreja local atuava junto aos índios numa perspectiva evangelizadora que não se coadunava com os
objetivos do CIMI.
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O termo mesmo pretende indicar o desafio que se constituía estabelecer uma parceria entre CIMI e FUNAI
naquele momento, órgãos que costumavam disputar o poder de afirmar a melhor forma de ação junto aos
povos indígenas.
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experiências passadas foram, pela primeira vez, organizadas de forma a fazer sentido
Fundação Nacional do Índio - FUNAI, o que acrescentou mais uma experiência aos
Mestrado novamente lançando mão do que aprendi com os índios e com as instituições
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Este período marca o início de pequenos trabalhos acadêmicos e de vinculações a grupos de estudo como o
Grupo de Estudos Antropológicos Saúde e Sociedade Contemporâneas-GEASC, no qual participei do projeto
Saúde e Doença: estudo antropológico sobre concepções e práticas de cura. Foi vinculado ao GEASC que
iniciei minha primeira pesquisa junto aos Tentehar, lançando mão dos instrumentos apreendidos e aprendidos
no curso de Ciências Sociais. Essa primeira experiência produziu frutos como o artigo Experiência de
Alteridade: da assimetria sociocultural às concepções de saúde e doença, publicado por via eletrônica na
Reunião Equatorial de Antropologia, em 2006, bem como o painel apresentado na Reunião Brasileira de
Sociologia, em 2007, intitulado Onde nasce a pessoa Tentehar: a noção de pessoa, gravidez e nascimento.
Foram produzidos, também, trabalhos relacionados aos povos indígenas fora do contexto da pesquisa acima
referida. Na 59ª Reunião da SPBC, em 2007, apresentei o trabalho O Maranhão vai virar Carvão: evolução
do carvão vegetal no Maranhão segundo dados do IBGE, que consistiu em mapear as carvoarias nas
proximidades de terras indígenas. Este trabalho contou com o apoio e financiamento da Associação Carlo
Ubbiali. Em parceria com essa mesma instituição, já havia publicado um pequeno artigo em 2004, no livreto
Índios dos Maranhão, Maranhão dos Índios sob o povo indígena Pukobiê chamado Breves comentários a
cultura Gavião (Pukobiê) e questões de gênero.
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Com auxílio das técnicas do curso de Mestrado em Ciências Sociais organizei, em parceria com Rose-
France de Farias Panet, a Coleção Livros Didáticos Indígenas e Indigenistas, publicadas pela SEDUC/MEC
2009, a qual consiste em 18 livros nos quais os autores são professores indígenas das escolas das aldeias no
Maranhão. Também pelo MEC, produzimos e dirigimos 14 vídeos sobre o tema Educação e Povos Indígenas
no Maranhão. Os vídeos fazem parte da Coleção de Filmes Didáticos: Educação Indígena em Formação.
Ainda nesse período apresentei um trabalho na Reunião Anual de Antropologia do Mercosul (2011),
intitulado “Os Tentehar e a escola: representações sobre processo de escolarização”. Na Reunião Ordinária
da Associação Brasileira de Antropologia em 2010 apresentei o trabalho O Grande Cerco simbólico:
dinâmicas de controle e transgressão.
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estão presentes no escopo deste trabalho. São múltiplos olhares de um único observador
que está imerso, de alguma maneira, no universo social que pretende entender.
Foram vários cadernos de campo rabiscados com observações e conversas realizadas num
intervalo de tempo que somam cerca de onze anos. Nesse período estive envolvido em
diversos movimentos dos Tentehar. Durante os cinco anos em que residi em Amarante,
que dista apenas 20 km da Terra Indígena Araribóia, acompanhei o cotidiano dos índios
mapa das terras Tentehar. Observei conflitos internos para o controle de associações de
saúde e de pais e mestres indígenas. Foram anos complexos que empreenderam muito
está sendo cobrado pelas realizações não ocorridas, ou pelas promessas não realizadas da
Secretaria. Fiquei detido pelo menos duas vezes em aldeias até que as solicitações fossem
atendidas, como ocorreu entre os Ka’apor na terra Alto Turiaçú, e entre os Tentehar em
13
Comissão vinculada ao Conselho Nacional de Saúde com o papel de assessorar ou subsidiar o CNS na
formulação e no acompanhamento de políticas públicas de saúde indígena.
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Amarante do Maranhão. Estas experiências demonstraram-me que os índios identificavam
representativo naquele momento. Isto é, quando CIMI fui tratado como CIMI, quando
2000 até 2010. Focalizo minhas análises na questão das políticas de educação e saúde por
poder, no qual estão em disputa discursos e representações acerca de tais políticas, que me
compõem a maior parte dos dados analisados neste trabalho. Relatórios técnicos, planilhas,
entre outros documentos colecionados nestes anos, uniram-se aos depoimentos, conversas,
Este trabalho, portanto, está organizado em quatro tópicos específicos nos quais
como baliza o jeito de “ser e fazer” dos Tentehar frente às investidas dos órgãos de estado,
como com os elementos bem particulares que compõem a trajetória que me trouxe até o
presente estágio. Ainda na primeira parte, estão descritas algumas de minhas perspectivas
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identidade a partir da sua relação com a alteridade. A terceira parte é dedicada à análise do
Governo. Antes de abordar esse protagonismo, faço uma breve análise das relações dos
partir do quarto capítulo traço uma perspectiva do caminho percorrido pela escola no
interior das terras indígenas, iniciando por aquelas sob a égide das missões religiosas. Em
nesta participação.
Por fim, na quinta e última parte, apresento minha análise a respeito do jeito
Tentehar de ser e de fazer as coisas frente às investidas dos órgãos de estado, e nas suas
14
Utilizo a noção de território todas as vezes em que me refiro à totalidade da ocupação dos Tentehar no
Estado do Maranhão, assim todas as terras indígenas demarcadas ou não pelo governo, em meu entendimento
fazem parte do território tentehar, pois estas estariam envolvidas num complexo de relações inter-societárias
mantido por esse povo. Para Galois “Territorialidade, como veremos, é uma abordagem que não só permite
recuperar e valorizar a história da ocupação de uma terra por um grupo indígena, como também propicia
uma melhor compreensão dos elementos culturais em jogo nas experiências de ocupação e gestão territorial
indígenas. A noção de “Terra Indígena” diz respeito ao processo político-jurídico conduzido sob a égide do
Estado, enquanto a de “território” remete à construção e à vivência, culturalmente variável,da relação entre
uma sociedade específica e sua base territorial”. Dominique Galois Terras ocupadas? Territórios?
Territorialidades? TERRAS INDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA 37
http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/dgallois-1.pdf
28
2. OS TENTEHAR
Os Tentehar são descritos como povo falante de uma língua classificada no tronco
lingüístico Tupi (RODRIGUES, 1986). Ocupam extensa área cultural – que não
corresponde necessariamente às terras demarcadas para seu usufruto – que se estende
desde o vale do Pindaré até o Médio Mearim.
Fonte: Mapa adaptado de fontes diversas (FUNAI, PPCD-MA, ASS. CARLO UBBIALI)
29
As áreas pintadas de verde no mapa indicam a presença dos Tentehar na respectiva
Terra Indígena. Observa-se que esse povo está presente em onze das dezessete
apresentadas, sendo que em sete delas possuem usufruto exclusivo e em outras quatro
dividem a terra demarcada com outros povos. Estas terras não correspondem à extensa
ocupação que foi sendo construída gradativamente ao longo de séculos de expansões que
foram motivadas por fatores diversos, entre os quais podemos destacar o contato com o
aldeias formadas pelos Tupinambá. Esta proximidade com os Karaiw está representada no
Maíra e seus filhos saem à procura de um lugar para morar. A essa altura, Maíra,
por ter se casado com uma índia, deixa de ter poderes tanto quanto o seu filho
Maíra-yr. Eles chegam a um lugar onde fazem o desjejum com café, bolo,
tapioca e outras comidas à moda dos karaiw, e é Maíra-yr quem prepara, como
se estivesse tomando conta da situação. Chegam a uma ilha e decidem ‘é aqui
vamos morar’. Constroem uma casa grande, caiada de branco, e convidam os
índios a virem morar com eles fazendo um grande povoado. Lá fabricam de um
tudo: espingarda, roupa, sabão, facão, querosene, fósforo, enfim, bens
manufaturados, ‘mercadorias’ de toda sorte, e fazem uso do dinheiro. Isto é, eles
são os próprios civilizados. Maíra-yr vira São Pedro, Mykura-yr fica sendo
Joãozinho, e o velho Maíra vira o Governo. [...]
O lugar que isso acontece é o Rio de Janeiro. Daí começam a chegar os màzàn
(portugueses) de Portugal, Vêm, tomando conhecimento do lugar e voltam ao
seu país. Depois retornam, pedem licença para fazer morada, mas não são
aceitos. Uma vez mais aparecem, desta vez para brigar. Os Tenetehara lutam e
30
perdem a disputa pelo Rio de Janeiro, abrindo mão de tudo para os portugueses
invasores, inclusive trocando de língua. Isto é, deixam de ser civilizados e
passam a ser índios, enquanto os portugueses, que eram como índios, passam a
ser civilizados, donos agora da espingarda e das demais mercadorias. Os
Tenetehara ficam com os arcos e sua cultura indígena e se retiram do Rio de
Janeiro, da sede do Governo, sob uma condição, que é um acordo solene, uma
concordata, segundo o qual o Governo [...] deve protegê-los para sempre, bem
como lhes dar as coisas (que eles não sabem mais fazer) de que precisam.
Então os Tentehara vêm para o Maranhão. Sua nova morada é também como se
fosse uma ilha, com um rio grande ou um lago grande ao seu redor. Passados
muitos anos, os karaiw começam a chegar de novo, pedem terra para morar e
começam a incomodar. Um índio faz balsa de buriti e atravessa o rio, onde acha
uma terra muito bonita, com muita caça, sem morador. Convida seus parentes
para situar essa nova terra e aos poucos todos mudam. Os karaiw se achegam de
novo, e os Tenetehara vão se afastando deles, sempre procurando um local
tranqüilo para viver, sempre em retirada.
Ao longo dessa trajetória, que já tem localidades geográficas nomeadas, se batem
com os Àwà, isto é, os índios Timbira, que viviam nos Rios Grajaú e Mearim
Situam os lugares onde hoje estão as cidades de Pedreiras e Barra do Corda, no
Rio Mearim, depois a Vila de Grajaú, no Rio Grajaú, onde não conseguem ficar
por causa dos conflitos com os Àwà. Afinal, fazem as pazes com os Àwà, e aí já
estamos em finais do século XIX. Desde então os Tenetehara vivem nos lugares
em que estão, as matas frias e as matas secas, as quais amansaram das onças
brabas, os zawaruhu, e dos capelobos, os àzàng. (grifos meus)
Esta narrativa constrói a trajetória vivida pelo povo Tentehar. Aquilo que foram e
aquilo que gostariam de voltar a ser, como sugere Gomes (2002). Seu lugar de respeito
fora tomado por outros personagens que não são os “verdadeiros seres da terra”. Até a
fabricados, sem precisar buscá-los fora de suas terras: a espingarda, o facão e até o
dinheiro era usado naquele tempo presente na memória cultural Tentehar. A luta com os
essa se relaciona com o outro. O índio, a princípio, não era o Tentehar e sim o outro. O
31
narrador estabelece uma dicotomia entre o que chamou de índio x civilizado. Ao primeiro
sugere aspectos de inferioridade em relação ao segundo que, pela persistência e pela luta,
condição na terra. Eram donos de tudo, não eram índios e não são ainda hoje, são “gente
verdadeira”. Por uma fatalidade perderam esse posto. Gomes (2002, p. 59) sugere que até a
chegada dos portugueses só havia awa e zane, gente humana e nós todos, incluindo os
demais povos indígenas, mesmo os inimigos, e nessas condições o que prevalecia era o
como o “governo”, que surge nesta narrativa como uma representação de Maíra, o pai de
todas as coisas dos Tentehar, assume a função de cuidar de seus “filhos”. Assim,
que a constroem. Destarte, não raro ouvimos relatos de Tentehar que apelidam a FUNAI, o
órgão oficial do Governo Federal para a questão Indígena, de “pai” e “mãe” dos índios.
(1998). As constantes migrações e disputas por espaços e terras, o acordo com o Governo e
15
É uma intervenção da esfera pública que associa, de forma prescritiva e insofismável, um conjunto de
indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados. (OLIVEIRA, 1998, p.56).
32
uma das terras indígenas pode ser percebida como uma “ilha”, envolta em processos de
Tentehar adquiriram ao longo das últimas décadas particularidades em cada uma das terras
próprias, que envolvem desde aspectos rituais até modificações lingüísticas16, tornando-se
nas diversas Terras Indígenas que ocupam. Desta forma é comum ouvirmos expressões do
Mesmo admitindo as diferenças entre si, os Tentehar não se vêem como povos
16
Estas especificidades de adquiridas por cada grupo regional de Tentehar pôde ser observada durante o
Curso de Magistério de Educação Indígena, promovido pela SEDUC-MA. Os professores cursistas não
entravam em acordo quanto a pronuncia e grafia de determinadas palavras e expressões. Frequentemente
Tentehar residentes em uma região criticavam a maneira de outros Tentehar, de região distinta da sua, de não
saber falar a língua, ou de não serem mais índios por não praticar determinados costumes, ou ainda por não
praticar da maneira “correta”. Estes pequenos conflitos levaram a organização do curso a dispor cada grupo
em sala de aulas específicas tentando amenizar as discussões e brigas decorrentes destas diferenças.
33
encontra ou escuta a maioria de seus membros seguidores mas, na memória de
cada um existe a representação da comunhão17 .(tradução minha)
que, em tempos atuais, assume novo status representativo. Isto é, com as noções sobre
para onde fugir, pois os karaiw estão por toda parte. Índio e Civilizado, interdependentes
Castro, 1996). O Tentehar deseja voltar a ser civilizado sem, contudo deixar de ser o que é.
mesmo tempo aciona alteridades, pode ser um importante instrumento para compreender
Abandonando a mulher que estava grávida, Maíra saiu a viajar pelo mundo e
nunca mais voltou. Seu filho Maíra-yra, ainda no ventre da mãe, propôs que
saíssem à procura do pai. A mãe disse que não sabia o caminho, porém Maíra-
yra sossegou-a dizendo que ensinava, e partiram. Um dia quando andavam na
mata, Maíra-yra ainda no ventre da mãe, pediu-lhe que apanhasse uma flor. Ao
fazê-lo, bateu numa casa de maribondos. Querendo livrar-se deles, bateu com
força na barriga e machucou o filho. Maíra-yra, zangado, disse que não ensinaria
mais o caminho. Perdida, a mulher tomou por uma trilha que ia dar na casa de
Mukwura. Este ouviu a sua história e a convidou para pousar em sua casa aquela
noite, pois estava ameaçando chuva. A mulher armou a rede num canto da casa.
Mukwura fez um buraco no teto exatamente no lugar onde ela dormia. Durante a
noite choveu e a mulher ficou toda molhada da água que escorria do buraco no
teto. Mukwura disse-lhe que mudasse a rede para junto da sua, onde não caia
chuva. Depois que ela mudou de lugar, convenceu-a de vir dormir junto a ele, em
vez de ficar na rede molhada. Ela assim fez e Mukwura deixou-a grávida de
outro filho. Maíra-yra ficou zangado. Havia outro filho junto dele no ventre da
mãe - o filho de Mukwura ou Mukwura-yra.
17
It is imagined because the members of even the smallest nation Will never know most of their each lives
the image of their communion.(ANDERSON, 1991, p.6))
34
A mulher continuou a viagem, chegando à maloca das onças. Bateu à porta de
uma casa, onde foi recebida por uma Onça Velha. Essa com medo que o filho
descobrisse e matasse a mulher escondeu-a debaixo de um grande caldeirão.
Quando o filho da Onça chegou, desconfiou da presença de um estranho e deu
uma busca pela casa, descobrindo a mulher debaixo do caldeirão.
Transformando-se em uma corsa ela saiu a correr, mas o filho da Onça e seus
cachorros perseguiram-na até alcançá-la e mataram-na. Abriram-lhe o ventre,
encontrando os gêmeos - Maíra-yra e Mukwurayra. O filho da onça quis comer
os gêmeos, mas, ao levá-los ao fogo para assar, eles pularam para o lado e o
Filho da Onça queimou as mãos nas brasas. Tentou assá-los no espeto, mas, eles
de novo saltaram fora e o Filho da Onça machucou-se na ponta afiada do pau.
Quis cozinhá-los, mas os gêmeos escapuliram, fazendo respingar água fervente
em cima dele.
A velha Onça pediu ao Filho que a deixasse criar os gêmeos. Apanhando um
traste velho, ajeitou-os para passarem a noite. Na manhã seguinte notou que eles
tinham se transformado em filhote de arara; gostou muito e lhes deu de comer.
No outro dia encontrou-os transformados em periquitos e assim, em dias
seguidos, eles tomaram forma de diversos bichos. Afinal, retomaram a forma de
gente e a Velha Onça adotou-os como netos. Com o passar do tempo os gêmeos
se desenvolveram e ficaram homens fortes. Sempre que ia à roça, a velha
recomendava que não se afastasse da casa. Um dia, Mukwura-yra estava
catando piolho da cabeça da avó. Maíra-yra disse que sabia catar melhor. Pediu à
velha que levantasse a cabeça mais alto, e, em vez de catar piolhos, arrancou-lhe
a cabeça, jogando-a para o irmão. Por muito tempo ficaram brincando com a
cabeça da avó, atirando-a de um lado para o outro. Depois Maíra-yra recolocou a
cabeça no corpo da avó e soprou, fazendo-a voltar à vida. A velha ao abrir os
olhos, comentou que tinha tirado um sono. Na manhã seguinte, quando a velha
saiu à roça, os gêmeos, desobedecendo às suas ordens, foram para o mato. Aí
encontraram um enorme jacu, que lhes falou da mãe e contou como ela tinha
sido morta. Choraram muito. Ao voltar para casa a velha perguntou por que
estavam com os olhos inchados; mentiram, dizendo que tinham sido picados por
maribondos. A avó não acreditou, sabia que não havia maribondos pela
redondeza. Maíra-yra juntou umas folhas e um pouco de barro, fazendo uma bola
semelhante a uma casa de maribondos e jogou-a em cima da velha. Maíra-yra fez
sair da bola uma porção de maribondos que picaram a velha.
Os gêmeos decidiram vingar a morte da Mãe, matando todas as onças da maloca.
Construíram uma ponte em cima de um baixão seco. Maíra-yra bateu com o pé
na terra e logo surgiu água que inundou todo o baixão; em seguida mandou o
irmão buscar palha para fazer abanos. Jogaram os abanos n'água e imediatamente
eles se transformaram em piranhas. Maíra-yra jogou um macaco dentro d'água,
mas os peixes levaram tempo para devorá-lo. Ele achou pouco e fez mais abanos
que se transformaram em mais piranhas, até haver tantas que outro macaco
atirado n'água foi devorado num instante.
Apanharam muito peixe que moquearam e levaram para a maloca dizendo às
onças onde tinham pescado. As onças juntaram-se para uma grande pescaria e
levaram Maíra-yra como guia. Ao chegarem ao baixão, agora coberto pela água,
Maíra-yra recomendou a Mukwura-yra que tomasse a dianteira na ponte. Logo
que Mukwura-yra chegou à outra ponta, pulou fora e cada um dos irmãos
agarrou numa extremidade da ponte, derrubando-a e atirando as onças dentro
d'água. Todas foram imediatamente devoradas pelas piranhas. A cabeça da onça
que matara a mãe dos gêmeos apareceu à tona, transformando-se num pequeno
inseto, Maíra-yra voou até a onça arrancou-lhe o espírito e prendeu num gomo de
bambu. Depois de muito caminhar, os gêmeos encontraram Maíra e o
presentearam com o espírito da onça fechado no gomo de bambu.18
18
WAGLEY, Charles e GALVÃO, Eduardo Os Índios Tenetehara - Uma cultura em transição. Rio de
Janeiro, Ministério da Educação e Cultura. 1955.
35
Segundo Gomes (2002, p. 58), os Tentehar se identificam com os dois gêmeos
Maíra-yr e Mykura-yr, tanto pelo que um tem de magia e esperteza, quanto pelo o que o
em sua cultura a impossibilidade de serem deuses e isto, decerto, é o que os faz rir de si
mesmos.
fronteiriça que gera a ambigüidade no jeito de ser Tentehar. A fronteira, no entanto, não é
entendida como um fator excludente e que possui oposição rígida entre o de dentro e o de
O Tentehar conjuga-se por sua atração pela alteridade. Admitindo o ponto de vista
de Hall (2008), considero que a diferença pensada no caso Tentehar não funciona através
de binarismos, mas fronteiras que não separam. O autor descreve da seguinte forma:
expande para as outras relações humanas mantidas, inclusive, com o karaiw. Cabe
esposa de Maíra com o outro, qualificado como fanfarrão e incapaz. Essa relação abre
espaço para o contato com o diferente, atraente e perigoso, conforme o discurso de Maria
Santana:
36
Na cabeça do índio tem duas pessoas, Maíra-yr e Mykura-yr. O índio não tem
um plano certo. Ele não se define só. Dentro de sua cabeça tem duas pessoas
Maira e Mykura-ir. Só aprende quando sofre muito. O eu do índio tá no
pensamento de Morotó; Maira, Mykura-ir, Xiapé. A sombra é a alma, se toma
um susto muito grande, se tem passamento. O espírito sai para se manifestar em
outro ou pra curar ou pra receber cura. Tem uma música que pede para a alma
voltar para seu dono. (Grifos meus)
de ambos só seria possível num mundo ideal, que não é mais este em que vivem os
Tentehar. Maíra-yr e Mykura-yr estão ligados pelo nascimento, filhos da mesma mãe e,
embora sejam filhos de pais (Maíra e Mykura) diferentes, foram os dois reconhecidos por
aquele que tudo criou: Maíra. Antes de Maíra, aliás, não há registro de mais nada no
mundo20.
O Plano do índio é oscilante, na fala de Maria Santana: “não tem plano certo”, pois
os espíritos estão em toda parte e convivem com os Tentehar. Eles ajudam nas escolhas e
nas ações do cotidiano. Este Ihé, irrequieto e inconstante lhes arremessa de forma
avassaladora de encontro ao outro. Isto é, há uma força centrífuga que atrai o Tentehar
para o mundo dos karaiw e dos outros povos indígenas e, ao mesmo tempo, há outra força,
desta vez centrípeta, no dizer de Ubbiali (1997), que os impede de tornar-se o outro por
definitivo. É neste embate que os Tentehar se afirmam como gente verdadeira. No dizer de
Santana a índia que casa com o karaiw (assim como fez sua ancestral esposa de Maíra),
sente-se atraída por este e ao fazê-lo mata um galho da árvore do índio. Põe “água no leite”
19
Carlo Ubbiali (1997) argumenta que o IHE, o “EU” Tentehar, é um elemento psicológico importante para
o entendimento da cultura deste povo. Tem posição destacada na personalidade Tentehar e está presente na
estrutura da língua deste povo de tal forma que nenhum objeto existe sem ser de alguém, do mesmo modo
que nenhuma ação é realizada se não for por alguém. Assim a associação entre objeto, ação e indivíduo é
praticamente indissociável.
20
O mito da criação Tentehar na literatura especializada sobre esse povo descrito por Wagley e Galvão
(1955), Ubbiali (1997 e 2005), e Gomes (2002) não apresenta nenhum registro que antecede Maíra que,
aparentemente, é o ponto de partida de tudo na visão Tentehar.
37
e o enfraquece. Enfim compromete a pureza do ser.
Segundo Zanonni (1999), a vida para os Tentehar é uma passagem, sendo seu
destino ideal a morada de Maíra, o Karuwar, designado por Maria Santana como Karwape.
É a este lugar que todos os Tentehar pertencem e a ele devem voltar, caso obedeçam a
Maíra. Em outra oportunidade, Maria Santana afirmou que os Tentehar são todos Karwar
tehar, que quer dizer “gente do Karwar”21. Zannoni (1999), também, registrou a existência
de duas almas para o Tentehar, sendo uma delas, na visão deste autor, “má”, que vaga pela
floresta após a morte. A outra, supostamente “boa”, vai para o Karwar. Para lá, segundo
este autor, irão todos os Tentehar com exceção daqueles que praticaram incesto, feitiçaria
representado por Mykur-yr – continuam sua jornada no interior de cada ser Tentehar
de se definir sozinho. Não por ser incapaz de tomar decisões, mas pelo número de opções e
possibilidades de ação as quais deve ponderar antes de agir, ofertadas pelas duas pessoas
dentro de si.
mas principalmente de si mesmo. A palavra tem força e pode, por um lado, exaltar o
indivíduo e, por outro, até matá-lo. A consulta a outras opiniões e até mesmo a comparação
entre as tantas possibilidades são discutidas a exaustão antes de empreender uma decisão
É neste contexto conflituoso, no qual ocorre a fuga e atração pela alteridade, que se
faz a construção do território Tentehar. Como ocorreu com outros povos indígenas, as
21
A palavra Karuwar descrita por Zannoni (1999) e Karwar como grafei tem o mesmo sentido. A diferença
na grafia, novamente se apresenta pelo fato de eu adotar a grafia proposta pelos professores indígenas. Isso
não implica em prejuízos ao sentido da palavra.
38
contínuas disputas com o governo português, com segmentos da sociedade brasileira, e por
fim com o novo Estado moderno interferiram intensamente na concepção que esse povo
seu território a partir dos embates que vão estabelecendo com missões, colônias indígenas,
referência mítica como ponto de partida para o início de uma caminhada que parece não
terminar.
Gomes (2002, p.315) afirma ser possível especular que o território Tentehar
original abrangia uma larga faixa de terra ao longo de quase todo o rio Pindaré, desde a
22
Missões jesuíticas e capuchinhas que atuaram na catequese dos Tentehar. As diretorias parciais foram
criadas com base no Decreto 426, de 1845-Regimento das Missões; as colônias indígenas foram criadas pelo
regulamento do Maranhão de 11 de abril de 1854. Frentes de expansão, ocupação do espaço tomando como
referência as populações indígenas ou mestiças (Ribeiro, 1979; Cardoso de Oliveira , 1972 e Velho 1972.)
39
Coelho (2002) pondera que para os Tentehar não há noção de domínio de um
provenientes do contato, como os episódios de Alto Alegre e São Pedro dos Cacetes
O “lugar inicial” para onde Maíra convidou os índios para morar era uma ilha, onde
fabricavam suas mercadorias e possuíam seu próprio dinheiro. Segundo, Gomes (2002)
neste território os Tentehar exerciam sua liberdade. Por ironia, utiliza-se nos meios de
atuais ilhas simbolizam o sentido contrário daquele identificado por Gomes. Impostas pelo
reprodução física e cultural dos povos indígenas. Esse cenário é agravado pelas invasões
coincide com as demarcações efetivadas pelo estado brasileiro para esse povo, que se
configuram como diversas “ilhas” espalhadas pelo estado: pedaços de terra cercados por
demarcadas são fruto das disputas pela conformação das “fronteiras nacionais” (COELHO:
202, p. 312).
23
O debate sobre a demarcação Raposa Serra do Sol em Roraima incluiu inúmeras vezes o vocábulo <ilha>
para identificar o oposto de território contínuo.
40
Com a constituição do Estado Brasileiro, os povos indígenas deixam de ser
designados como nações e passam a ser definidos genericamente de índios. [...]
A partir de então, as concepções de território indígena passaram a ser
fundamentalmente uma questão jurídica. O território tornou-se parte constitutiva
do Estado Brasileiro, que passou a definir, guardar e defender seu território. O
que estava em jogo era o próprio espaço do Estado que se expandia, segundo sua
lógica, por sobre os territórios indígenas. A questão indígena deixa de ser
exclusivamente de mão-de-obra e passa a ser uma questão de terras (idem, p.
312-313)
determinar seu território, e mais importante ainda, o direito a posse24. O que está em jogo:
[...] é o poder de impor a visão do um mundo social através dos princípios da di-
visão que, quando se impõem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e
consenso sobre o sentido e, em particular sobre a identidade e a unidade do
grupo, que fazem a unidade e a identidade do grupo (BOURDIEU: 2007, p. 113)
pensado pelos Tentehar nos dias atuais implica as intervenções do Estado sobre o mesmo,
bem como a relação que mantém com os brasileiros. Para Coelho (2002, p. 321), a
alteridade. Desta forma, a concepção dos Tentehar acerca do que pode ser chamado de
território foi modificada ao longo do tempo pela relação com os colonizadores. A fuga, a
atração pela alteridade, as andanças míticas, o acordo solene são elementos que ajudam a
24
As terras indígenas demarcadas no Brasil são de posse da União Federal, cabe aos indígenas somente o
usufruto exclusivo.
41
3. DOS SOBRENATURAIS À SAÚDE INDIGENISTA
Para compreender a relação dos Tentehar com as políticas de atenção à saúde do índio,
contato com a alteridade. As noções expressas na parte anterior nos remetem a interpretações
quanto ao jeito de ver, de ser e de fazer do Tentehar no que diz respeito ao seu lugar no mundo.
cada um dos agentes envolvidos nas relações interétnicas. Neste aspecto, índios e não índios
negociam tais visões, ao mesmo tempo em que disputam a hegemonia do conhecimento acerca
das causas, das razões e da solução para os fenômenos relacionados ao que denominamos saúde.
(2002), quando discutem a relação dos índios Norte-amazônicos com o colonizador e invertem a
“situação de contato”. Isto é, reconstroem a idéia sobre o colonizador a partir das representações
dos próprios índios. Ainda sob essa perspectiva, os autores afirmam que as “influências” não
assumem uma única mão no processo de contato, índios e não índios interagem assumindo para
“colonizado”.
3.1. “As coisas botada vem do ar, da água da terra...”26: antecedentes para compreensão das
relações de adoecimento e cura entre os Tentehar
para o fenômeno doença, que em língua Tentehar recebe várias denominações, entre as
quais ima’e ahy, (ima’e=coisa e ahy=doer). Assim, Maria Santana sugere que
25
Considero que as formas de representação do mundo, sejam elas indígenas ou não, fazem parte do
complexo chamado cosmovisão. Assim designo tanto as noções de saúde expressas pelos Tentehar, quanto as
noções médicas da tradição científica ocidental.
26
Maria Santana, Tentehar da TI Araribóia.
42
determinadas doenças são coisas botadas, que por sua vez podem ter origens diferentes
como a quebra de um tabu, uma caça proibida, um encontro com um azang (espírito) na
Esse espírito pode ser chamado de Maíra. Até as comidas mudam. Temos as
cantigas de passe pros peixes acordar a mãe d’água. Para ela fortalecer. Quando
a gente se encontra com pessoa que já foi, vemos que ela não toca o chão. A
gente sente frio, mas também sente segurança. Se não desobedecessem, Maíra
estava ainda aqui. O caranguejo, a cigarra e o camarão se renovam. Nós era para
quando morrer ir pra karwape. Maíra tinha milho, feijão, mandioca, cará
conhecimento sobre fenômenos de adoecimento e cura surgem entre os Tentehar e não índios.
Todavia, a partir da intensificação do contato esta relação vai se aprofundando e ganhando cada
vez mais complexidade. Maia (s/d), analisando o regulamento das missões jesuítas formulado
por Antonio Vieira, aponta como se dava a preocupação dos frades com a saúde dos índios:
No regulamento, contudo, acredito que mais que um local para provações de futuros
jesuítas, Vieira estava preocupado com a vigilância sacramental aos enfermos e
moribundos: “a este fim visitarão todos os dias a enfermaria, havendo-a, e a Aldeia ao
menos duas vezes na semana porque é certo que morrem muitos índios por falta de
sangria” (§8) Mais do que a saúde física – destacada pelo autor possivelmente para se
manter um número mínimo para a própria existência da aldeia – o padre Antônio Vieira
estava atento à prática dos sacramentos, pelos missionários; por isso o tema do hospital
está colocado nessa primeira parte de seu Regulamento, como premissa básica da ação
missionária em não deixar morrer qualquer índio sem amparo sob pena de se ter que
dar conta ao superior respectivo: “O maior cuidado de todos os nossos nas aldeias deve
ser, o da morte dos índios, pois é a hora em que se colhe o fruto de nossos trabalhos, em
que se ganha ou perdem as Almas, que viemos buscar, e de que havemos de dar conta”
(§34)
maior com a “cura” da alma, antes da cura do corpo. Ainda no texto do regulamento, Antonio
Vieira refere-se à “sangria”, técnica medicinal utilizada na época por agentes de cura, hoje
considerada rudimentar pela medicina moderna. O relato faz referência à ausência desta técnica e
43
a coloca como instrumento capaz de salvar vidas indígenas valiosas para a missão. Não há
jesuíticas nos aldeamentos, inclusive onde estavam Tentehar,” e tinha, também. como objetivo
regulamentar a condição de liberdade dos índios. (BEOZZO: 1983, p. 129). Esteve em vigor no
período que se estende entre os séculos XVII e XVIII, até ser interrompido pelo “Diretório das
Povoações dos Índios do Pará e Maranhão. As referências sobre a relação dos Tentehar com os
fenômenos de adoecimento e cura são escassas na literatura deste período, talvez pelo fato dos
Ubbiali (2005, p. 34), ao avaliar os efeitos da interferência dos jesuítas durante os 130
anos que permaneceram junto aos Tentehar, destaca sua impermeabilidade com relação aos
[...] mais de um século de contato com os colonizadores quase não deixou rastros na
cultura guajajara. Esse fenômeno, desconcertante sob certos aspectos, pode ter uma
explicação na mesma cultura dos Guajajara focalizada na pessoa que canaliza para si
todos os cuidados e todos os interesses porque é nela e através dela que é possível
realizar o ideal de Ma’ira. [...] Isso faz com que os Guajajara tenham resistido a
qualquer tentativa de relegar a pessoa a patamares inferiores ainda que fosse por uma
doutrina ou uma religião que, embora exaltasse o ser humano, afirmava a superioridade
da alma com relação ao corpo, o qual podia sofrer as penas do inferno contanto que
salvasse a alma. [...] Era uma dicotomia que não cabia nas categorias intelectuais do
pensamento guajajara, incapaz de entender como o sofrimento do corpo pudesse fazer a
felicidade da pessoa. Para os Guajajara o corpo faz a felicidade da alma e vice-versa.
mesmo tempo, essa centralidade pode dar pistas importantes para analisar a postura dos Tentehar
frente aos fenômenos de adoecimento. Os males conhecidos pelos Tentehar estão todos, de
descumprimento das regras estabelecidas pelos antigos, da inadequada relação com os espíritos e
com os seus semelhantes. Para Maria Santana o “sentimento” do individuo pode provocar males
terríveis para si próprio, e para os outros. Explica que “o sentimento (ansiedade) pode levar a
44
pessoa até a morte. Quando a gente se enfeza, não come, não bebe, não dorme.... Desgosto mata
com um mês. Nem pajé, nem doutor tira desgosto”. A inveja também é um “sentimento” temido
e condenado pelos Tentehar, o invejoso pode atrair karowara para o seu desafeto, que somente o
A relação dos Tentehar com os fenômenos de adoecimento foi observada nos anos 40,
por Eduardo Galvão (1996). As informações coletadas levaram esse autor a afirmar que “apesar
de um informante considerar que possa ocorrer morte natural, Guajajara são unânimes em
O autor completa:
As doenças, sob esse ponto de vista, são encaradas como um meio pelo qual o
sobrenatural manifesta seu desagrado a procedimentos do indivíduo, manifestação essa,
que às vezes, ocasiona a morte. Por este motivo, a maioria das doenças é tratada pelos
xamãs, únicos capacitados para controlar o espírito causador, instigá-lo retirar a causa
da morbidez, e desse modo, curar o paciente. (GALVÃO: 1996, p. 115)
Galvão (1996) afirma que para os Guajajara a ocorrência de malefícios como moléstias,
No entanto, o autor chama atenção para a “influência” exercida pelo contato com não
índios, que tem levado alguns membros desse povo a admitir que é possível contrair moléstias
sem causas sobrenaturais. O período em que Galvão coletou suas informações coincide com
aquele no qual já se encontra em ação a Política Indigenista proposta pelo governo republicano.
Em funcionamento há pelo menos 30 anos, o SPILTN mantinha várias inspetorias e postos que
das aldeias, não havia nenhuma política específica de atendimento à saúde dos índios, com
exceção da distribuição de remédio para moléstias leves (gripes, febres, pequenos ferimentos)
atuação do SPILTN nesse aspecto era idêntica a que se dava para os “neobrasileiros”27 que
dores de cabeça podem ser causadas por “mãe d’água”, “pois ela joga um laço na cabeça da
pessoa... o sujeito pode até perder a vista”. Os “sobrenaturais”, portanto permanecem regulando
as relações dos Tentehar em todas as esferas da vida, incluindo a participação nas políticas de
cultura Tentehar tornou essa relação mais complexa, mas não a subjugou. Ao contrário,
A partir dos anos 60 e 70, com a extinção do SPILTN e a substituição deste órgão pela
FUNAI, começam a se organizar ações mais sistematizadas de atendimento à saúde dos índios,
embora ainda de forma tímida. A FUNAI manteve a distribuição de remédios em seus postos, e
implantou o sistema de equipes volantes de saúde, as EVS que ganhariam notoriedade nos anos
80. A instalação de ações com vista ao atendimento à saúde do índios não foi fortuita. Entre as
drasticamente em várias regiões do país. No Maranhão, esse período coincidiu com os processos
demarcatórios da grande maioria das Terras Indígenas no Estado, sobretudo aquelas habitadas
27
Termo que Galvão empregava para designar os não-indios.
46
por Tentehar. Segundo Loebens et alli (1999, p. 16), a intensificação do contato entre índios não
índios, incentivada pela política de assimilação capitaneada pela FUNAI, trouxe para os índios
doenças venéreas transmitidas pelos não índios”. Embora a FUNAI tenha ensaiado, nesse
período, a organização de ações para atendimento de saúde, organizações de apoio aos índios,
como o CIMI entendiam, que o órgão indigenista era incapaz de atender os índios
satisfatoriamente, e ainda que “a falta de condições objetivas da FUNAI para prevenir e curar
Nos anos oitenta, o quadro da saúde entre os índios no Maranhão apresentava sinais
falência da política instituída pela FUNAI. As EVS não conseguiam chegar a todas as aldeias e
quando isso ocorria, não dispunham de equipamentos e recursos para fazer o atendimento à
maneira favoreceu que se formassem entre vários setores do Governo e da sociedade civil
ainda influenciado pela Lei 8.080/90 (Lei do SUS), o governo brasileiro editou o Decreto 23/91
que dispõe sobre as condições para prestação de assistência à saúde dos povos indígenas.
Neste Decreto, algumas reivindicações que jaziam na pauta das Conferências Nacionais
de Saúde, a exemplo da de 1986, foram atendidas. A principal delas era que a saúde dos povos
Decreto n.º 23/91, instituiu o Ministério da Saúde como principal responsável e a Fundação
Nacional de Saúde – FNS (hoje conhecida como FUNASA) como órgão gestor da política
indigenista de assistência à saúde dos povos indígenas. Neste decreto aparece, pela primeira vez,
47
no artigo 4º, § 1º, a noção de Distrito Sanitário: “as ações e serviços serão desenvolvidas
hegemonia do trabalho junto aos índios. Para os Tentehar, esse foi um período difícil, lembra
Osmar Guajajara, da aldeia Guaruhu, “ninguém sabia a quem recorrer, era FUNAI, era
SUCAM, era FNS, FUNASA... era um tanto de gente e não era ninguém, ninguém cuidava dos
índio”.
No âmbito desta proposta fora tratada a participação indígena na discussão e no controle social
revogação do Decreto 23/91, que foi substituído pelo Decreto nº 1.141/94. Este último devolveu
atenção aos povos indígenas em um verdadeiro caos administrativo. Segundo Loebens (1998, p.
22) a edição do Decreto nº 1.141 foi motivada pela disputa em torno da gerência dos recursos
ministério. Mais uma vez o caos administrativo decorrente da sucessão de Decretos e mudanças
repentinas na execução dos serviços, deixou os índios confusos em relação a quem cabia a
O Decreto nº 1.141/94 vigorou até o ano de 1999, quando foi revogado pela Lei 9.836,
48
participação indígena nos processos de construção e elaboração dos programas de saúde, através
da criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas. A FUNASA passava novamente a ser
Tentehar parece ter se deslocado para o campo político fora da aldeia. Os discursos sobre saúde
vigorar, também, no âmbito interno das aldeias. Desta forma, os fenômenos de adoecimento,
deixam de ser exclusividade dos pajés e passam a envolver um grande número de agentes, como
AIS, AISAN, e auxiliares entre outros. É neste contexto que os Tentehar constroem e
reconstroem suas representações em torno do que passou a se chamar de saúde, e refazem sua
participação nas políticas indigenistas voltadas para este segmento. A alteridade aproximou-se
tanto dos Tentehar que em certas circunstâncias é difícil distingui-los. As “coisa botada”
continuam lá, porém com novas nuances que passam por políticas sistemáticas que introduziram
um número de agentes nunca antes visto pelos Tentehar e em condições tão complexas. A forma
como os Tentehar articularam sua participação frente a nova situação é o que abordaremos a
seguir.
Inicio esta discussão analisando a participação dos Tentehar na organização dos serviços
de atenção à saúde, nos moldes propostos pela Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas-
povo, atingiram seu ápice, no estado do Maranhão, antes dos processos desencadeados pelas
novas políticas indigenistas de educação. Embora a participação dos Tentehar nessas políticas se
49
dê de forma simultânea, acredito que há uma diacronia nos acontecimentos que favorece a uma
participação indígena no planejamento das ações, através dos Conselhos Locais e Distrital, da
O que vimos na rede de assistência aos povos indígenas contraria o sugerido por essa
têm funcionado de forma precária, desde a implantação do novo modelo de atenção à saúde, em
1999.
interferir em todas as esferas da organização dos serviços de saúde29 e constroem suas próprias
formas de participação. Parecem ter percebido, antes dos karaiw, essa necessidade de
adequação, sugerida por Buchillet (2004). Compreenderam, por exemplo, que a organização e a
28
Este processo de consolida definitivamente com a Publicação da Lei 9.836 de 1999. Nesta, são
estabelecidas as diretrizes para instalação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas em todo o país. No
Maranhão há apenas um distrito que compreende todas as terras indígenas. O funcionamento obedece às
normativas da Lei 8.080/90, a lei do SUS, sendo os Distritos parte de um Subsistema Diferenciado e
Específico para os Povos Indígenas.
29
A tentativa de participação ocorre nas esferas locais, no âmbito das CASAI/Pólo-Base, na Distrital e
nacional. Na local, geralmente ocorre com a participação dos Tentehar atendidos nesta esfera. Em relação às
outras instâncias ocorre sempre em conjunto com os demais Tentehar e outros povos indígenas atendidos no
DSEI-MA.
50
Outrossim, os Tentehar sentem-se impelidos a participar no subsistema de atenção a
saúde, muito mais pela atração pelo embate político e pelos benefícios materiais que possam
auferir e menos pelos benefícios sanitários. Entendem que as questões de saúde podem ser
resolvidas com base em outras relações, que envolvem fatores espirituais e metafísicos, dos quais
são os pajés os seus mestres, que também são incorporadas ao jogo político, sempre que lhes
convém. A arena da saúde indigenista lhes permite exercer várias virtudes do jeito de ser
índio requer a reconstrução de vários momentos dramáticos, nos quais sua identidade aflora e
O “drama”, tal qual é entendido por Turner (2008), pode ser um aliado no entendimento
dessas relações e de como elas ajudam na construção do protagonismo dos Tentehar no exercício
das políticas de saúde. Para este autor, o drama social se constitui em uma unidade de processo
Admitindo o ponto de vista de Turner, Barata (1981, p. 25) afiança que é justamente na
manifestação do conflito que todas as contradições implícitas tendem a emergir, tanto nas
relações interétnicas, nas quais incluo as ações indigenistas de saúde, quanto nas relações
Turner (2008, p.37) ressalta que através do drama social é possível perceber, sob as
regularidades sociais, os conflitos e contradições ocultas no sistema social. Acredita, ainda que é
possível observar o drama em fases específicas interligadas, que podem ser analisadas
considerando o ordenamento das relações políticas que precederam a disputa pelo poder que
51
Essa perspectiva pode ser cotejada àquela pensada por Max Gluckmam (1987, p. 294),
de que “numa sociedade em que existir um conflito ‘maior’, se esse não for solucionado, gera
outros menores que o aumentam ainda mais”. Esse autor completa afirmando que:
Este [o conflito] pode assumir formas até violentas, quando as desavenças são maiores
do que a cooperação desejada pela sociedade. Neste ponto, os mecanismos de
equilíbrio não conseguem mais responder adequadamente à situação conflitiva e,
quanto mais diminui a capacidade de controle, mais aumenta a separação que o
distancia, até se manifestar sob formas violentas.
cooperação entre diferentes grupos que constituem uma “comunidade” com formas
entre zulus e europeus na África, o conflito assume uma extensão central, assim como a
contraditórias com o discurso dos atores, nem sempre se realizem num nível consciente.
É sob o conjunto desses pontos de vista que procuro observar a participação dos
histórico participativo deste povo, por entender que configuram dramas sociais e conflitos.
Muito embora o conflito seja a marca mais presente na atuação Tentehar, Ribeiro (2009)
aponta formas de participação construídas pelos Tentehar que fazem uso das estruturas oficiais, e
30
O que Gluckmam chama de comunidade não é de um grupo de convivência harmoniosa, mas sim de
diferentes grupos em disputa e cooperação.
52
3) Acionamento do Ministério Público e Procuradoria da República;
que constituem ações mobilizadas pelos índios, em situação de confronto com as instituições
por ações que rompem com o que está definido no modelo ou previsto nos documentos oficiais e
1) Retenção de não-índios nas aldeias (com ou sem vinculação direta com a saúde
indigenista);
2) Retenção de carros a serviço da saúde indigenista;
3) Ocupação dos prédios da FUNASA;
4) Bloqueio de estradas (BR e MA);
5) Bloqueio de ferrovia;
6) Denúncias nos meios de comunicação;
7) Paralisação do Pólo-Base
movimento tinha como objetivo fazer com que a FUNASA, em Brasília, discutisse os
atendidas.
A ocupação reuniu, alem dos Tentehar, os demais povos indígenas que vivem no
53
A declaração de Lourenço fazia referencia aos fatos que antecederam a ocupação
promovido pela COAPIMA, entre nos dias 20, 21 e 22 de outubro, na cidade de Imperatriz,
a 635 km de São Luís. Naquele encontro, no qual participei como apoiador e articulador
junto a COAPIMA, o que estava em jogo era revisão dos serviços de atenção à saúde do
FUNASA, que era identificada pela COAPIMA e seus apoiadores, o CIMI, por exemplo,
como a mobilizadora dos conflitos intra e inter povos, no contexto da saúde no Maranhão.
naquela ocasião, pelo Sr. Zenildo Oliveira. A notícia de sua possível presença mobilizou
A participação efetiva dos Tentehar naquela reunião tinha duas vertentes: aqueles
que apoiavam o fim da política de convênios e aqueles que apoiavam sua manutenção e,
ainda, a criação de mais ONG’s32 indígenas de saúde para contemplar os que ainda não as
possuíam.
31
A Fundaçao Nacional de Saúde – FUNASA, após a publicação da Lei 8.636/99, implantou uma política
que consistia na terceirização dos serviços de atenção à saúde dos povos indígenas. Os recursos eram
repassados para prefeituras nas proximidades das terras indígenas. Esse modelo não obteve êxito devido a
incapacidade das prefeituras de administrar os serviços de saúde e, em certos casos, não havia interesse das
mesmas em executar serviços em favor dos índios, os quais eram considerados entraves ao desenvolvimento
de certos municípios. Desse modo, a FUNASA, pressionada pelos índios, alterou a modalidade de repasse de
recursos para administração das ações de saúde. Esses eram repassados, através de convênios, para
Associações Indígenas. Conhecidas como “ONG dos índios” essas associações multiplicaram-se entre os
Tentehar no período de 2000 ate 2006.
32
As ONG’s indígenas eram Associações Comunitárias criadas exclusivamente para a captação dos recursos
da saúde do índio.
54
Naquele período os Tentehar administravam cinco convênios33 em todo estado do
Maranhão e disputavam a atenção da FUNASA para a criação de mais três convênios que
Daí por diante, o quadro era de insatisfação com o Modelo de Assistência a Saúde
dos Povos Indígenas no Maranhão. O DSEI nunca havia desempenhado o papel que lhe
pública, que ocorreu na data prevista (03/11/03), com a presença dos índios, FUNASA,
assinado pela FUNASA, MPF, FUNAI e lideranças indígenas. O TAC consta de dez
33
Convênios estabelecidos entre a FUNASA e associações indígenas para execução das ações de saúde.
Serão explorados mais adiante.
34
Os “dissidentes” foram assim denominados pelos próprios índios para classificar aqueles que romperam
com as Associações de Saúde Indígenas, pelas quais eram atendidos, para criar as suas próprias. Todavia, a
criação de novas Associações não garantia o repasse automático de recursos e o atendimento, ficando esses
índios sob a responsabilidade direta da FUNASA até encontrarem uma solução que os acomodasse.
55
superiores em número, o que lhes proporcionava grande força política no decorrer da ação.
Todavia, enfrentavam batalhas internas. Pelo menos duas das suas lideranças mais
destacadas negaram-se a fazer parte do movimento, assim como tentaram convencer os que
ali estavam a retornar para suas aldeias. Ao mesmo tempo, tentavam negociar diretamente
Este fator criou grande mal estar entre os Tentehar e os demais povos indígenas
durante a ocupação, que resultou numa reunião interna de lideranças indígenas, que então
foi confirmado nos dias seguintes com permanência dos presentes na sede FUNASA e a
pretendia desarticulá-lo, mudou seu posicionamento, vindo a São Luís e trazendo consigo
mais 80 índios, os quais fizeram número com os demais Tentehar já presentes. A referida
FUNASA, sendo determinante para o acordo realizado entre os índios e aquele órgão.
internas e acaba por definir o rumo dos acontecimentos. A presença numérica já seria um
fator de extrema pressão para com os órgãos com os quais negociavam, no entanto, o
exemplo daquele que se nega a participar, a princípio, para depois despontar como um dos
56
“heróis” da negociação pode ser lido como uma manobra política eficiente. Longe de
reconhecida por sua capacidade de falar por muitos, em nome de muitos. Daí os custos
diferenças mais inconciliáveis podem ser revertidas em prol do seu protagonismo diante
dos acontecimentos.
entre famílias, o que constitui uma dinâmica relação de forças entre chefes dessas famílias.
Maranhão, mais precisamente o ano 2000, a FUNASA optou por uma política de
recursos do Governo Federal direto para as mãos dos índios, através das associações que
sistema cultural pré-existente. Não cabe avaliar se as conseqüências desta adequação foram
57
positivas ou negativas, contudo a descrição da sucessão de acontecimentos pode ajudar a
Após dois meses de convênio assinado pela Associação de Saúde dos Tentehar em
Amarante, e pouco mais de vinte dias após ter sido depositada a primeira remessa de
subsidiar as ações da ONG indígena. O veículo não estava sob administração direta da
FUNASA, mas da ONG indígena. A apreensão ocorreu por parte de um dos grupos
todavia, não era mais a executora dos serviços de saúde, destinando tal função a
no cadastro do antigo pólo base35 administrado pela FUNASA. A liderança sobre as aldeias
desta região foi disputada por duas famílias das aldeias Juçaral e Araribóia. A cisão entre
demonstrando um relativo equilíbrio de forças. Neste jogo, havia famílias que ora estavam
de um lado, ora estavam do outro, e ora em nenhum dos dois, mas tentando construir sua
35
Pólo Base eram pequenas unidades administrativas de saúde que se localizavam no município mais
próximo das terras indígenas, que também eram responsáveis pelo encaminhamento dos pacientes indígenas
aos centro de referência da rede do SUS.
36
Uso o termo rede para explicitar a ampliação do raio de influência da família extensa no âmbito das
políticas públicas. Nos capítulos seguintes explicarei como a disputa por posições, prestígios e bens
constituíram um mercado de bens simbólicos que transforma as relações familiares dos Tentehar em redes de
bens e serviços que são incorporados ao cotidiano das aldeias, mas também podem ganhar dimensões
externas, envolvendo um grande número de agentes não índios.
58
A participação nas redes gera dividendos para todos, que se tornam consignatários
uns dos outros. As alianças, portanto estreitam-se à medida que as trocas são vantajosas e
atendimento à saúde do índio passa pela incorporação de bens e serviços disponíveis neste
pelos Tentehar que o desviam das finalidades para as quais fora pensado originalmente.
sua lógica .A geração de prestígios e de outras formas de poder simbólico, que eram
negociáveis através das trocas matrimoniais, passou a ser potencializada, sobretudo, pelo
Cada ONG criada estava inserida no complexo de redes familiares e era entendida
como propriedade de seus administradores. Seus serviços eram destinados, sobretudo, aos
As disputas pelos cargos e colocações dentro das ONG indígenas eram intensas e
interfamiliares.
59
Tentehar com maior poder de articulação e pressão passaram a exigir um Pólo-Base para
recursos da saúde, foram apropriadas pelo sistema cultural Tentehar e se tornaram parte da
dos povos atendidos pelo DSEI-MA, dentre os quais os Tentehar, pode nos ajudar a refletir
desempenhando o papel de interventor e assim passou a ser referido pelos índios e por
afirmaram que Antonio Costa tomava decisões que não eram apoiadas pelo coordenador da
Ao mesmo tempo em que Antônio Costa buscava se fortalecer para permanecer à frente da
60
Em 28/10/04, os Tentehar e os Canela, ocuparam o prédio da FUNASA-MA, em
São Luís. Nesta ocupação estiveram presentes mais de 150 índios exigindo o afastamento
de três funcionários, dentre os quais, Antônio Costa. Os demais eram seus subordinados.
Como justificativa para o afastamento, os índios alegavam que não havia sido cumprido o
Ele está enganando nossa consciência, como se fossemos crianças. Isso é uma coisa
que não é justo acontecer (JORNAL PEQUENO, 2004).
E acrescentou:
O Antonio [Costa] beneficia uma parte dos índios e esquece dos outros, o que acaba
fazendo com que nossos irmãos entrem em choque, e não é isso que queremos
(JORNAL PEQUENO, 2004).
Tudo é difícil. Uma consulta tem que ser autorizada em São Luís, até o caixão para
enterrar os mortos é preciso ir daqui, porque não tem recursos para comprar lá no
município. Nós vamos ficar aqui até que nossos problemas sejam resolvidos
(JORNAL PEQUENO, 2004).
apresentando o relatório dos cinco meses em que esteve trabalhando no Estado. Ao ser
61
Após horas de discussão no auditório do INCRA, no Bairro Anil, sem nenhuma
Companhia Vale do Rio Doce – CVRD, atualmente denominada apenas como Vale, foi
saber:
Piauí;
indígena no Maranhão
Saúde do Maranhão em São Luís com tempo restrito e com pauta inadequada para
liberação da ferrovia:
62
b) Rescisão imediata do contrato com a Missão Caiová;
indígenas no Maranhão.
O número de participantes nesta ação foi tão significativo quanto por ocasião da
ocupação da FUNASA, em 2003, 500 índios foram contabilizados. Aquele evento tem
período, entre uma ação e outra, foram determinantes e, em certos casos, podem ser
Pólo Distrital para a cidade de Teresina, por exemplo, era uma ofensiva do órgão para
vizinho, a FUNASA estaria longe dos centros de pressão criados pelos índios e por órgãos
órgão. A idéia era alijar as associações do controle dos convênios e dos recursos. A
contratação, no entanto fora negociada em sigilo até que o contrato estivesse consolidado.
Essa manobra foi entendida pelos índios com um aceno negativo da FUNASA. Os índios
não foram sequer consultados sobre a nova forma de organização dos serviços. Além do
63
que, essa contratação era interpretada por várias lideranças como o fim das Associações
A “gota d’água” foi a reunião convocada pela FUNASA para o dia 25 de janeiro,
daquele ano, em Grajaú, à 580 km de São Luís. Nenhum representante do órgão se fez
presente na referida reunião. No local aprazado esperavam 250 índios de várias regiões do
A FUNASA alegou que não poderia se fazer presente, pois realizaria naquela data a
III Conferencia Distrital de Saúde Indígena. O órgão, entretanto, esqueceu-se de avisar aos
contrariando, mis um vez a solicitação dos índios relativa a convocação com a devida
antecedência.
entre os povoados Poeira e Três Bocas, próximos a Terra Indígena Caru. Eram nove horas
povoados. Toras de madeira, pedaços de ferro e até mesmo maçaricos foram utilizados
para retirar os trilhos de suas bases. Cinco funcionários da companhia ferroviária forma
feitos reféns.
150 soldados para efetuar o mandato. Estes, no entanto, aguardaram as negociações que já
estavam em andamento.
64
Tendo como base para articulação e negociações a aldeia Tentehar denominada
Saúde do Maranhão.
A demissão do Sr. Zenildo Oliveira foi um elemento novo acrescido à pauta, após a
reativada, uma vez que essa demissão havia sido o único ponto que a FUNASA não
aceitara inserir no TAC, naquela ocasião. Dessa forma, o movimento foi retomado no dia
como foco a questão da saúde. A participação Tentehar desta vez se mostrou ainda mais
65
A reunião do dia 25 de janeiro, na qual os índios tomaram a decisão de interditar a
ferrovia, aconteceu em Grajaú. Pode-se dizer que esta cidade é “território” Tentehar. Duas
terras indígenas habitadas por Tentehar estão situadas nos arredores desta cidade. Da
mesma forma, a aldeia Maçaranduba, também dos Tentehar, fica localizada a menos de
Essas escolhas não foram fortuitas. Os Tentehar37 da Terra Indígena Caru já haviam
necessária para liderar as ações. Sabiam exatamente como desestruturar a estrada de ferro.
Em 1996 tinham ateado fogo aos dormentes38 até que esses se desfizessem em brasas.
trens.
inclusive, do local da “arena”. Assim fizeram com que a luta fosse deslocada para – dentro
– perto de seus territórios. Nestes ambientes as articulações ganham mais recursos e força.
A feitura de reféns, por exemplo, seria impossível de ser realizada em São Luís. Da mesma
maneira, o tempo de mobilização na capital não podia ser extenso, pois implicava na
manutenção dos que ali estavam. A fome poderia contar a favor do adversário. Em
Durante o bloqueio da ferrovia não foram até o “inimigo”, trouxeram-no para seu
território.
lo, pois o referido convênio entre essas instituições significou a derrocada das ONG
indígenas.
A ruína das ONG indígenas provocou uma nova relação de acomodação entre os
índios e a FUNASA. Entre ambos colocou-se a ONG Caiová, que passou a administrar
políticas de saúde. A mais comum era inviabilizar a ação dos técnicos de saúde, criticando
atender a grupos rivais. Técnicos de saúde contratados pela Caiová viram-se obrigados a
participar das redes montadas pelos Tentehar para manter seus empregos. Essa dinâmica
Uma segunda estratégia foi a pressão pela ocupação dos cargos oferecidos pela
ONG Caiová. Não se tratava de uma nova estratégia, pois já era empregada durante o
período em que as ONG indígenas operavam o sistema. Essa ação, no entanto, detinha um
sentido diferente nessa nova conjuntura, já que o controle administrativo e financeiro não
era mais dos índios, mas da Caiová. Ocorre que, para operar nas terras indígenas, essa
ONG precisava da anuência dos índios, fato que teve que ser costurado politicamente com
67
consequentemente, findar o convênio com a FUNASA. A “permissão” foi concedida pelos
partícipes das redes de apoio formadas pela política de saúde. Dessa maneira, somaram-se
Indígenas, a saída.
68
4. “E ELES SAÍRAM PARA SEMEAR”: EXPERIÊNCIAS DE
CATEQUIZAÇÃO/CIVILIZAÇÃO ENTRE OS TENTEHAR
educacionais do Estado, para os Tentehar, pode ser melhor efetivada com apoio de um
breve histórico dos sucessivos contatos desse povo com instituições religiosas no
Maranhão. Entendo que estas representaram a gênese dos processos de escolarização, pelos
que datam de 1653. O objetivo da incursão, comandada pelo jesuíta Padre Veloso às matas
do Pindaré, era a de arregimentar índios para um local chamado Itaquy, distante 360 km de
São Luís, notadamente para iniciá-los nas “benesses” da civilização. Embora, não haja
práticas catequéticas que exigiam dos Tentehar disciplina pedagógica. Isto é, as ações dos
jesuítica. Em 1683, segundo este mesmo autor, os Tentehar já somavam mais de 200
diretório de Pombal, eram mais de 800 na missão de Maracu. Depreende-se que a relação
estreitas. Nestes aldeamentos, os índios eram treinados para realizar ofícios e praticar ritos
Segundo Amoroso (2001, p 135), o indigenismo brasileiro viveu uma fase de total
identificação com a missão católica. A autora enfatiza que o Estado estava amparado por
No primeiro caso, a Colônia Dous Braços fora instalada com o objetivo de reunir os
Tentehar e chamá-los “ao trabalho comum e aos hábitos sociais” (Coelho, 2002). A
estratagemas utilizados pelos frades não obtiveram a eficácia simbólica que desejavam. Os
Tentehar não reconheceram o poder dos capuchinhos que passaram a usar de violência
acordo com Coelho (2002, p.80), representaram a “guerra simbólica” deflagrada pelos
força39, como foi mencionado, no intuito de criar uma suposta disciplina aos índios que
instalou em Barra do Corda. Desta vez, segundo Coelho (2002), não operavam mais como
funcionários das Colônias criadas pelo Estado, como ocorreu com a Colônia Dous Braços,
mas queriam construir seu próprio empreendimento. Naquele mesmo ano começou uma
colégio para ensinar aos índios afazeres diversos como carpintaria, corte e costura entre
outros ofícios.
39
O uso da força era desaconselhado pelas ordens religiosas na época, todavia a recomendação de utilizar-se
da “brandura” no trato dos índios para diferenciar-se das práticas violentas de outras iniciativas colonizadoras
foram constantemente negligenciadas como supõe Amoroso (2001, p 136).
70
Dois anos depois em 1897, os capuchinhos expandiram sua obra até o lugar
chamado Alto Alegre, distante 72 quilômetros de Barra do Corda, onde instalaram uma
nova missão, que prosperou rapidamente, obtendo em pouco tempo o aspecto de uma
colônia agrícola, no dizer dos próprios capuchinhos uma “colônia religiosa e civilizadora”.
1993, 285).
encerraram com a dura intervenção dos Tentehar contra os capuchinhos, que resultou no
episódio que entre os não índios ficou conhecido como “O massacre de Alto Alegre” e
40
Em 13 de março de 1901 um grupo de Tentehar matou religiosos e leigos que se encontravam na missa
matinal na Colônia Alto Alegre, o que desencadeou um severo combate entre brancos e índios na região. Para
saber mais ver Zannoni (1999), Coelho (2002), Gomes (2002) e Almeida (2009)
71
As práticas de catequização/civilização dos capuchinhos exigiam rigor disciplinar
aos Tentehar nos moldes dos não índios, contradizendo os ideais de liberdade e mobilidade
implantadas pelos Capuchinhos, a relação dos Tentehar com a alteridade foi povoada de
pensando as ações jesuíticas do século XVII, a escola nas terras indígenas atendia a
demandas definidas:
missões religiosas no Brasil podem, de forma comparativa, ser tomadas para reflexão com
relação aos Tentehar. Nos primeiros 250 anos de contatos com missões religiosas fossem
podem ser chamadas de escolares no sentido estrito da palavra, podem ser entendidas como
elementar.
Os anos que seguiram ao encerramento das missões católicas nas terras dos índios
no Maranhão foram marcados por diversas situações de conflito e violência gerados pela
nova ordem republicana de valores progressistas. Segundo Macena (2008) os índios eram
72
eram as vozes em favor do extermínio indiscriminado de índios em nome do progresso.
Processo, aliás, que repercutiu negativamente para o Estado brasileiro, que se viu obrigado
a criar um órgão que permitisse o avanço do progresso sem com que os índios
Nacionais-SPILTN foi criado em 1910, sob a batuta positivista, e teve como principal
defensor o Marechal Cândido Rondon. Embora tivesse como lema “matar nunca, morrer
se preciso for” foi no período do SPILN que os índios tiveram a maior baixa populacional
daquele século. As investidas do SPILTN na temática educativa foram tímidas. Sua maior
da nação brasileira, o que incluía várias iniciativas laborais como, por exemplo, frentes de
trabalhos agrícolas.
A relação do SPI com os Tentehar foi marcada por posições dúbias. Se por um lado
iniciou diversos processos de demarcação de terras, por outro incentivava criação de gado
nas terras indígenas e casamentos com não índios visando a integração dos Tentehar à
comunhão nacional.
mesmo ano foi criada a Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Esta tinha a difícil tarefa de
Com este órgão, novos processos de dissimulação foram incorporados e ganharam ênfase e
legitimidade relativas.
contratação de monitores bilíngües para lecionar em língua indígena nas escolas criadas
73
pela FUNAI. O objetivo era“promover a educação de base apropriada do índio visando à
empreendido pela FUNAI. Com isso, esta instituição esperava aumentar a eficiência desse
plano na medida em que a barreira lingüística, freqüente entre professores não índios, era
escola nas terras indígenas usando, na maioria das vezes, os próprios índios como arautos
dos projetos integracionistas do estado brasileiro. No caso dos Tentehar não foi diferente,
da Carta Maior, em 1988, era de que o processo de integração dos povos indígenas estava
consolidado, embora tenham sido “[...] reconhecidos aos índios sua organização social,
74
costumes, línguas, crenças e tradições [...]” (BRASIL: 1988). É necessário esclarecer que
a consolidação era entendida pelo fato dos índios serem considerados cidadão brasileiros
Ministério da Educação – MEC, que por sua vez repassou a execução das ações aos
Este período, que se estende até os dias atuais, foram os mais eficazes no processo
ganharam força e volume de recursos apoiadas por políticas indigenistas mais bem
estruturadas do ponto de vista legislativo. Fechou-se uma espécie de cerco simbólico aos
índios através dos processos de escolarização nas terras indígenas. Isto é, com as políticas
pelos índios como instrumento de luta na conquista de direitos, esta instituição passou a ser
construção da cidadania, quanto para os índios que cada vez mais abraçam a escola
Dessa maneira, a escola assume o papel de uma das bases de estruturação de uma
espécie de cerco simbólico. Por esta categoria, entendo o conjunto de regras instituídas por
41
Para um aprofundar sobre cidadania e povos indígenas ver Souza Filho (1983), e Souza (1983), ambos
encontrados no livro “O índio e a cidadania”. Comissão Pró-índio de São Paulo, publicado pela editora
Brasiliense naquele mesmo ano.
42
Mais sobre esse assunto ver: Silva (2001), Bergamaschi (2008), entre outros.
75
minoritários da população. Configura-se como um “cerco” por tentar limitar os espaços de
negociação nos quais o jogo pode ser jogado. E simbólico por se fundar em características
pessoas, um Estado ou uma Secretaria de Estado da Educação. Isso pode ser observado,
principalmente, no discurso dos próprios índios, que estaria coadunado com essa lógica,
Portanto, a violência simbólica nem é percebida enquanto tal, mas sim como uma
A escola, então se assume como espaço privilegiado para o exercício deste tipo de
poder e se constitui como já destaquei, numa das bases estruturantes do cerco simbólico
Considero, portanto que o cerco simbólico nas terras indígenas é tanto maior quanto
mais eficaz for a escola. Quer dizer, quanto mais sofisticadas são as técnicas pedagógicas
76
procedimentos educativos são modernizados, diminui a violência física, na mesma
A escola em terra indígena concretizou-se como uma das bases mais avançadas do
estado na relação com os povos indígenas. Através da mesma, o Estado se faz presente,
parecem não ter nenhuma relação uns com os outros. Os projetos políticos empreendidos
FUNAI, outros pensaram que era possível, a exemplo do próprio movimento indígena e
instituições de apoio aos índios, uma “escola a favor” dos índios. Maher (2006), Mattos
(2006) e Leal Ferreira (2001) classificaram o tipo de educação pensada pelo SPILTN e
pela FUNAI, como integracionista, enquanto a escola dita “a favor” dos índios tem sido
projetos, entendo que estes elementos ajudam a construir sentidos sobre os quais a escola é
representada pelos Tentehar. Dessa forma, como exercício reflexivo, posso afirmar que a
violência física imposta pelos capuchinhos nas primeiras escolas entre os Tentehar, não foi
77
tão eficaz e atraente quanto as escolas atuais. Todavia, a violência simbólica das escolas
“colonização”. Foi buscando apreender essa reação, que a investigação que subsidiou essa
ora sutis, ora mais ousadas à ordem que aos poucos foi instituída pelo conjunto de relações
sociais que prevaleceram no contato com os sistemas educativos, desde os tempos dos
jesuítas aos dias atuais, no interior do território tentehar. Cabe destaque para os sistemas de
educação implantados pelo estado brasileiro, o qual sofisticou seus métodos para uma
Desse modo, as relações dos Tentehar com esses sistemas tornaram-se, na mesma medida,
tem vários significados que produzem representações diversas entre os Tentehar de acordo
com as experiências vividas nas regiões pelas quais se estende o território Tentehar. Que
pequena parte do povo Tentehar. Nela há duas aldeias mais antigas onde se encontram
78
Na aldeia Januária, a escola foi introduzida, provavelmente, da década de 20 do
século passado. Wagley e Galvão (1945, p.29) apontam como a escola era imposta e
reforçava preconceitos em relação aos índios. Destacam que o papel da escola era:
[...] contribuir para enraizar a crença local de que os ‘índios são preguiçosos e
não prestam’. Diariamente a professora, que levava seus deveres muito a sério, ia
buscar na aldeia as crianças e adultos para a ‘classe’. Apesar da escola fundada já
há vinte anos, nenhum dos índios nessa redondeza sabia ler ou escrever. Fomos
informados de que no rio Mearim, posto de Colônia, vários índios sabem ler e
escrever. O professor aí é um Tenetehara e talvez isso explique o seu sucesso
De acordo com Coelho (2009), na aldeia Januária a escola foi introduzida pelo
Serviço de Proteção ao Índio-SPI e na aldeia Piçarra Preta isso ocorreu quase meio século
depois, em 1975, sob a responsabilidade da FUNAI. Em 1987, cada uma dessas escolas,
tinha uma professora, que residia na própria escola e lecionava apenas em português.
Furtado (1995), quando se refere a esse período de reinício das atividades educacionais na
Furtado menciona reinício das atividades educacionais pelo fato de ter havido uma
tentativa de instalação de escola pelo SPILN pelo menos uma década antes do projeto
instituído por Benvindo Castro. Passado alguns anos após a implantação do programa de
79
da terra indígena com as cidades de Bom Jardim e Santa Inês. Na visão daquele servidor da
p. 87) explica que a educação escolar, na forma entendida por Castro, possibilitaria um
enfrentamento desse grupo face à ação “perversa” da população envolvente, a qual causava
A autora enfatiza que o currículo adotado pela escola da aldeia Januária foi
sexo masculino) foram inclusas para que, na visão de Castro, atendessem ao grau de
complexo na sua condução, sobretudo, no que tange a freqüência dos índios nas salas de
aula. Castro entendia que havia resistência por parte dos Tentehar em absolver a escola
80
Constantemente aparecem nos discurso de Castro referências quanto a freqüência
dos alunos índios à escola da aldeia Januária. Comumente, ocorria que, no início
do ano letivo era grande o número de alunos matriculados, principalmente, na
série de alfabetização. Com o passar dos meses a freqüência ia diminuindo
significativamente, sendo que os meses de maior índice de evasão ocorriam no
início das atividades agrícolas.
Estratégias eram utilizadas para atrair os alunos para a escola, entre as quais a
distribuição de merenda escolar. Essa merenda deveria ser fornecida pela FUNAI que, para
tanto, realizou convênio com a PNAE43. A FUNAI não conseguiu manter a distribuição de
educação, e continua sendo um foco de conflitos e insatisfação por parte dos Tentehar.
utilizada por Castro, segundo Furtado (1995, p. 92), era a realização de reuniões com os
pais dos alunos e com lideranças Tentehar. Tanto Castro quanto a auxiliar de ensino, Maria
do Rosário Araújo, acreditavam que a ausência dos alunos às atividades escolares era
refletia o desinteresse dos pais e dos líderes pela educação escolar das crianças da aldeia.
Furtado (1995, p. 94) afirma que através dos discursos de Benvindo pode-se
apreender que aos indígenas bastavam os conhecimentos básicos que lhes facilitassem o
os índios à comunidade nacional. Havia claras discordâncias entre o que índios gostariam
de aprender e o que a FUNAI colocava como meta para a escola na aldeia. A esse respeito
43
A distribuição de merenda escolar tornou-se um programa do Governo Federal desde 1955, atualmente está
pautado sob os princípios da Lei nº 10.880 de 09 de junho de 2004.
81
Apesar de todos os esforços esta atividade ainda não se encontra no lugar em que
gostaríamos de vê-la no meio desta comunidade. Nota-se claramente que ao
índio o interessa apenas assinar o nome e pequenos cálculos aritméticos.
(CASTRO, apud FURTADO, 1995: 94)
funcionado como reprodutora da ideologia deste Estado. Furtado (1995, p.111) afirma
ainda que no Brasil colônia, atuava como dilapidadora das culturas indígenas. Após a
Essa escola tem construído um determinado habitus, nos indígenas das aldeias.
Sua prática de implementar o discurso ideológico da sociedade dominante, gera,
nos indígenas um discurso de supervalorização dessa instituição. (FURTADO,
1995: 112).
atuavam nessas escolas, em sua maioria, haviam cursado o magistério indígena44 e alguns
(2009), partiu de uma solicitação dos professores e pais Tentehar à Secretaria de Estado da
44
A SEDUC encaminhou ao MEC/FNDE uma proposta de convênio para garantir a execução de etapas de
capacitação dos docentes que já trabalhavam nas escolas indígenas, com fins a qualificá-los para um trabalho
específico e diferenciado em suas próprias aldeias. Obtidos os recursos, realizou-se, em 1995, um curso
destinado a técnicos e professores da SEDUC, FUNAI e MEC, para que pudessem ministrar aulas para os
professores indígenas nas áreas de língua portuguesa, artes e expressões corporais e ciências. Após vários
contratempos o Curso teve fim no ano 2001 formando 141 professores indígenas. Contudo o número de
alunos indígenas já somava 7.321 (sete mil trezentos e vinte um). O aumento da demanda exigiu do Estado a
regulamentação da situação dos professores indígenas e não-indígenas que atuavam nas escolas da rede de
Educação Indígena. Por outro lado, não há uma política clara de contratação desses professores, no que a
SEDUC adotou, a partir de 2004, a realização de Seletivo Simplificado para Contratação de Professores para
as Escolas Indígenas. Outro curso teve início no ano de 2007, porém não tem previsão para encerramento.
45
Recentemente foi implantado, também, o ensino médio na terra indígena Pindaré.
82
Educação-SEDUC, sob o argumento de querer evitar a saída de alunos para continuar seus
estudos na cidade de Santa Inês. No entanto, em meados dos anos 1990, o CIMI havia
ensino de 5ª a 8ª series nas aldeias. Através de gestões do Pe. Carlo Ubbiali, membro do
CIMI que há mais de 20 anos já realizava trabalhos na terra Pindaré, foi desencadeado esse
deixou em suspenso essa iniciativa, que foi retomada em 2003, sob a coordenação da
Dessa forma, a demanda colocada pelos professores e pais Tentehar foi atendida
através de uma parceria entre a SEDUC e a ONG Associação Carlo Ubbiali. Esta
implantação desse nível de ensino foram ocorrendo ao mesmo tempo em que a experiência
ia sendo efetivada.
46
Organização não-governamental que trabalha com povos indígenas. Maiores informações no site:
http://asscarloubbiali.com.br/site/
47
Esta escola atende aos alunos de todas as aldeias da terra indígena Pindaré.
83
Esta iniciativa buscou a participação dos professores indígenas como construtores
do processo de implementação da escola. Todas as suas ações buscaram ter como agente
principal o professor indígena. Isso foi facilitado pelo fato de todos os professores da
base no questionamento: por que de uma escola indígena de 5ª a 8ª séries na aldeia e como
da aldeia para ensinar a língua através de histórias, cânticos durante encontros semanais da
para que todos participassem; promover mais festas indígenas e reuniões onde só se falasse
a língua indígena. Para atrair os jovens, tendo em vista que é essa a faixa etária que menos
fala a língua, alguns professores sugeriram que fosse servido um lanche durante as
implementação do ensino fundamental. Foi observado que os conteúdos que estavam sendo
utilizados na sala de aula da 5ª série eram pautados no currículo exigido pelo MEC, sendo
feita uma tentativa de adequá-los à vida na aldeia, mas somente nas disciplinas Historia,
entrevistadas apenas cinco reproduziam a língua Tentehar, isto é, falavam a língua em casa
com seus filhos e familiares. Conforme os dados, a perda da língua por faixa etária, de 1 a
10 anos era de 80%; de 21 a 40 anos de 50% e acima de 50 anos não havia perda.
argumentou que muitos haviam tentado aprender a língua no passado, mas o incentivo era
85
outros povos indígenas) que diz que na Januária não tem índio”, pelo fato de muitos não
Parece haver por parte de todos da aldeia a consciência de que a língua corria sério risco de
implantação das séries seguintes ao ensino fundamental foi comandado pela SEDUC,
através de sua Unidade Regional em Santa Inês. A escola na TI Rio Pindaré fortaleceu-se
parece se chocar com os objetivos da experiência da FUNAI nos anos 70. Enquanto a
ponto de apoio para ambas é instalação da escola como espaço privilegiado de repasse de
conhecimento. A escola tornou-se componente indispensável nos dois processos, seja para
pela Carlo Ubbiali. Serve assim tanto ao moderno Estado-nação quanto aos seus críticos
86
considerando que o interesse pela revitalização da língua ocorre no contexto de construção
educação.
“[...] antigamente os Tentehar da Terra Indígena Piçarra Preta falavam mais sua
língua, pois o único meio de comunicação era oral. A educação era transmitida
através da família, do cacique ou por pessoas mais velhas da comunidade. Sendo
a mão (sic) a responsável pela educação da filha e o pai responsável pela
educação do filho. A mãe ensinava à filha boas maneiras, como ser uma boa
dona de casa, ensinava-lhe a plantar, colher e a preparar a farinha de mandioca.
O pai ensinava o filho a fazer casa, pescar, caçar e a fazer roça. O cacique tinha
grande poder de dar ordens na comunidade, quando o indivíduo não o obedecia
este sofria severas punições como: passar o dia/noite amarrado numa árvore sem
comer e beber, só após o seu arrependimento era solto. Essa forma se dava para
os homens e mulheres. E todos esses conhecimentos eram transmitidos somente
na língua Tentehar nos momentos de passeio, trabalho, em casa e até mesmo nos
momentos de festa. Muitos não tinham contato com o homem branco por isso os
diálogos, reuniões eram somente na língua. [...]” (grifos meus) (ALMEIDA &
PANET et alli: 2010, p.26)
materna e a forma de repasse dos conhecimentos entendida por Alzenira como educação.
específico para ensinar ou ser ensinado, da mesma forma em que todo momento é
primeiros anos de vida, até a vida adulta. Este momento antecede, no pensar da autora, a
intensificação das relações sociais com segmentos externos à aldeia. O processo ensino
aprendizagem, pelo menos até este momento, não está associado diretamente à escola, mas,
escolarização. Sua descrição coincide com as “coisas do índio”, isto é, o pai ensina o filho
50
Este depoimento pode ser visto na íntegra no livro Línguas Indígenas, SEDUC. 2011
87
a pescar e fazer casas, a mãe repassa os afazeres domésticos às filhas, assim como plantar e
manusear as coisas da roça. Este tempo, pensado pela autora, é anterior aos acontecimentos
instituídos pela intervenção de não índios. O contato era esporádico com os fatores
externos. O uso da língua indígena, nestas condições prevalecia. A ação parece realizar-se
num tempo mítico, num “tempo bom”, no qual o karaiw é mantido a uma distância segura.
A autora continua:
[...] A partir do momento em que as pessoas, passam a ter o contato com o não-
índio, começaram a se comunicar mais na língua portuguesa. Esses falavam na
língua Tentehar só com aqueles que não sabiam falar a língua portuguesa. Nessa
época, não existia prédio escolar, mas já havia escrita, pois moravam duas
famílias de missionários ingleses durante muito tempo na aldeia, esses
pesquisaram a língua Tentehar e escreveram Bíblias e cartilhas. Eles dialogavam
perfeitamente na língua com os Tentehar. A escola funcionava na casa de um
deles e alguns Tentehar aprenderam a ler e escrever a língua. Além disso, eles
ensinaram aos Tentehar algumas noções de saúde, como: aplicar injeções e fazer
curativos. Depois de realizada a pesquisa eles saíram da aldeia dando em troca
conhecimentos, a leitura e a escrita da língua Tentehar. Isso ocorreu nos anos 66
à 67. Esse trabalho fortaleceu mais o uso da língua Tentehar, mas o contato com
o diferente era freqüente, porque a nossa aldeia está localizada entre os dois
municípios de Santa Inês e Bom Jardim. Com o decorrer do tempo a comunidade
sentiu a necessidade da construção de uma escola na aldeia. Essa escola foi
construída nos anos 78, com o recurso do convênio da CVRD - Companhia Vale
do Rio Doce, sendo a primeira professora a senhora Maria do Rosário Cruz de
Araújo, a segunda Antonia Apoliano Coutinho, todas contratadas pela FUNAI,
elas ensinaram os alunos a ler e escrever na língua portuguesa. A educação era
voltada para a realidade dos não-índios, os conteúdos não continham nada da
realidade local, por exemplo: quem fundou Brasília? Quem foi o primeiro
Governador Geral do Brasil? [...] (Grifos meus) (ALMEIDA & PANET et alli:
2010, p.27)
tempo, traduzem bíblias cristãs para a língua materna dos índios. A utilização da língua
afirmar que o trabalho realizado pelos missionários ajudou a valorizar a língua materna
neste período. Todavia, é neste período que se intensificam as relações com o meio
Bom Jardim Santa Inês e o crescente uso da língua portuguesa nas relações cotidianas
88
incita os Tentehar à necessidade de construir uma escola, o que é consolidado através de
recursos da VALE (naquele tempo conhecida como Companhia Vale do Rio Doce –
oferecida pelos missionários estava ligado à motivação religiosa. A escola construída pela
índios passaram a fazer parte do currículo apresentado na nova escola. Para Furtado (1995)
[...] Isso fez (a implantação da escola) com que as crianças, jovens e adultos
deixassem de usar mais a língua Tentehar e usar mais o português, mas era
poucos Tentehar que sabia falar o português. Esses que falavam melhor a língua
portuguesa criticavam as pessoas que falavam somente a língua Tentehar, porque
apesar do contato direto com os não-índios havia pessoa que não usava a língua
portuguesa. A escola dos não-índios, no início trouxe grave conseqüência porque
alguns Tentehar já não queriam valorizar sua língua, mas o português. Os pais
ensinavam os filhos a falarem a língua, mas estes já não davam a importância.
Hoje, esses filhos cresceram e são pais que não sabem ensinar aos seus filhos a
própria língua. O contato freqüente com o não índio, os Tentehar começaram a
ouvir falar que a língua Tentehar era feia e não era língua e sim gíria. E isso se
ouvia muito nas escolas dos não-índios nas cidades. Isso contribuiu muito ao
Tentehar a desvalorizar sua própria língua. Mesmo assim muitas famílias
seguiram a sua cultura [...] (grifos meus) (ALMEIDA & PANET et alli: 2010,
p.27)
nos princípios ocidentais, coibiu o uso da língua materna, através da inibição dos falantes
língua Tentehar era associada pejorativamente à gíria. A autora destaca que o descaso com
89
“desinteressados e desdenhosos” da própria língua no passado, tornaram-se pais incapazes
e repassá-la aos seus filhos. Este conjunto de acontecimentos suscitou uma reação que
A intensificação das relações sociais com o diferente, como sugere Alves, provocou
no povo Tentehar reações às críticas lançadas contra eles. Uma das estratégias Tentehar foi
incentivar o uso da língua nos círculos familiares, os espaços onde o uso da própria língua
vinha sendo prejudicado pelo preconceito. A escola também teve papel importante à
medida que teve seus projetos didáticos assumidos por professores indígenas, respaldados
pelo próprio povo. A “recuperação” da língua tentehar congregou valores que restituíram a
importância da escola na aldeia, todavia com projetos construídos pela comunidade e não
mais por fatores externos, embora sofram interferência dos órgãos de educação do estado.
e incentivo ao uso da língua, o que vem sendo feito por todos os membros da aldeia. Assim
90
Depreende-se que nesta narrativa a autora assume papel central da ação, não é
apenas observadora, mas participa ativamente dos processos como agente de mudança. Seu
ação que restitui aos Tentehar e a ela própria o protagonismo dos fatos ocorridos na
mesmo quando visto negativamente pela autora, é conduzido por ela própria. Os não índios
surgem nesta perspectiva como “inimigos”, seres que devem ser negados, ao mesmo tempo
em que exercem grande fascínio ao Tentehar. Talvez por isso devam ser negados.
como sendo, antes de tudo, um inimigo em potencial e assim insere-se em uma construção
O inimigo, contudo não deve ser desprezado, ao contrário deve ser conhecido e
Para Cipriano Viana, em depoimento colhido por Carlo Ubbiali (1997, p. 78), essa
deve ser uma condição necessária ao Tentehar, conhecer os brancos e suas organizações,
Sempre caprichei em entender mais um pouco o lado do branco porque pra mim
serviria como se fosse um preparo pra chegar hoje no ponto que hoje estou. É
que eu via muito meus parentes que não se preocupavam de nada, não se ligavam
pra nada, e só pensavam na vaidade, pensavam só de passear... Eu pensava na
vaidade mas também sempre ligado no meu trabalho, porque eu gostaria de ser
como um branco, mas sendo um índio, tendo tudo que o branco deveria ter, mas
eu também deveria ter como índio... Quando eu cheguei a me formar, já era
situado de branco por tudo que é lugar [...]
Ser como o branco, não é ser o branco. Dominar sua linguagem, suas invenções e
conhecimento e o reconhecimento dos karaiw para uso próprio e do seu povo. Essa
91
representação diz respeito ao acionamento das habilidades extraordinárias de Maíra-yr e
Mykura-yr51, de viver entre as “onças” e nem por isso tornar-se definitivamente uma delas.
experimentarem o mundo dos brancos, pois a atitude de “vir a ser outro” faz parte da visão
de mundo Tentehar. A escola descrita por Alzenira tem essa relação de conhecimento e
vivência num mundo que deve ser dominado/entendido para melhor viver. As criticas
lançadas sobre aqueles que não sabiam falar a própria língua funcionaram como um
aferidor das conseqüências de não saber a medida exata entre viver entre os brancos e ser
adquiridos pelos Tentehar e não uma ponte para deixar de sê-lo. Recuperar a língua,
portanto, naquele contexto significa restituir o papel central de seu povo. A experiência
relatada por Alves demonstra a tensão existente entre os projetos de escola e a disputa de
pode servir ao segundo, contudo deve ser “domesticado” para que possa servir aos
4.3. “... Ele não sabia que tinha que estudar”: a escolarização na aldeia Zutiwa.
Zutiwa por causa do rio homônimo que atravessa aquelas terras. É também conhecida
51
Os gêmeos míticos comuns na mitologia tupi. Os filhos de Ma’ira passam por diversas provas para mostrar
seu valor diante de seu pai. Na jornada para encontrá-lo tem sua mãe devoradas pelas onças e passam a viver
junto dessas até que descobrem a verdade e as matam no rio, dando-as como comida para as piranhas
fabricadas à partir de folhas secas. Mais sobre o assunto ver Almeida 2009, Gomes 2002, Ubbiali 1997, e,
Wangler & Galvão, 1955.
92
pelos regionais como Presídio, numa referência aos tempos em que chegar ou sair daquela
acesso e, também, aos longos períodos que os funcionários deviam permanecer na aldeia
central. A escola na região atende a crianças de pelo menos mais cinco aldeias menores
escolar indígena na região. O professor indígena Artur Gomes Neto Guajajara53 relata
como se instalou a escola no interior de sua aldeia e a relação que mantém, na atualidade,
Anteriormente, a aldeia Zutíua tinha o nome de presídio. Quando ainda não era
Presídio, foi construída uma escola nessa aldeia em 1958, pelo SPI (Serviço de
Proteção ao Índio). Essa escola era coberta de palha de piaçava amarrada com
embira de jatobá. As paredes eram de barro, a cancela era feita de cedro, os
livros eram guardados na Topy (sic), os acentos eram feitos de tábua de cedro.
Na construção da escola a mão-de-obra utilizada foi das próprias índias da
aldeia, mandadas pelo diretor do SPI chamado Major Alipe, de São Luís. Nessa
escola o material didático utilizado em sala de aula era Cartilha do ABC e
Tabuada. O professor que ensinava nessa escola era Ubirajara Carvalho
Guajajara, que lecionava pra uma turma de 25 alunos, os quais aprendiam a ler e
escrever o Português. O professor Ubirajara deixou de lecionar na Aldeia porque
era de outras regiões e saiu daqui para morar com os seus familiares. Ele
ensinava também na língua indígena. A comunidade gostava dele por ser ótimo
professor e por saber respeitar as famílias indígenas desta Aldeia e de outras
comunidades. Quem escolheu esse professor para ensinar na aldeia foi Deise54,
que na época coordenava a educação no Serviço de Proteção ao índio (SPI). A
idéia de construir uma escola na aldeia no presídio hoje não foi da comunidade
indígena, e sim da referida coordenadora. A idéia não surgiu do próprio índio
porque ele não sabia que tinha que estudar. Essa escola construída na aldeia seria
melhor para o desenvolvimento dos índios, segundo o seu Alcide Guajajara. Ele
diz ainda que a necessidade de ter uma escola era para aprender e evoluir cada
vez mais. Também a escola tinha que ser na Aldeia, porque o lugar onde tinha
escola mais próxima era Grajaú. Nessa época não tinha estrada, só existiam
caminhos estreitos, e o meio de transporte era jumento ou cavalo, e a pé. Essa
escola deixou de funcionar quando foi construída uma nova escola pela FUNAI
52
O artigo definido masculino utilizado antes de Zutiwa é amplamente difundido entre os índios, regionais e
funcionários das instituições que atuam na aldeia. Talvez essa referência ainda esteja ligada ao rio e foi
tomada por empréstimo para designar a aldeia Zutiwa. Daí utilizamos também a nomenclatura difundida na
região. Assim onde se vê “o Zutiwa” leia-se a “aldeia” Zutiwa.
53
Ver o livro Origem das Coisas organizado por Almeida & Panet, SEDUC/MEC, 2010.
54
Daisy Lobão funcionária da FUNAI que coordenou, por muitos anos, o setor de educação na Delegacia
Regional de São Luís
93
em 1983. Nessa época a Aldeia Zutíua foi crescendo e surgiu a necessidade de
construir uma escola maior pelo grande número de crianças indígenas na Aldeia.
(Grifos meus)(ALMEIDA & PANET et alli: 2010, p.11)
na lógica temporal histórica. Entre a escola construída com mão de obra das mulheres da
aldeia e o Major Alípio Levay há a diferença de vinte anos. O referido Major foi designado
para a Delegacia Regional da FUNAI nos anos 70, enquanto a escolinha fora erguida nos
anos 50. Esta aparente distorção no tempo, no entanto, não afeta a representação de sentido
que a escola possui para os Tentehar. O autor enfatiza que a escola na aldeia Zutiwa fora
implantada pelo SPI sob o argumento de “fazer os índios evoluir”. “A idéia não partiu do
índio, ele não sabia que tinha que estudar”, afirma o autor. O intento do SPILTN era a
Esta iniciativa, que nos anos seguintes, após a extinção daquele órgão foi continuada pela
mesmo num período em que o Zutiwa gozava de certo isolamento, frente às dificuldades
branco, em outras palavras o projeto de civilizar os índios deveria continuar à todo custo.
Nesta perspectiva pode ser visto o elogio ao professor Ubirajara Carvalho, que,
tentehar, pois sendo ele próprio um Tentehar sabia a diferença entre lecionar as coisas do
alunos deviam adaptar-se as exigências dos professores não índios enviados pela FUNAI, o
conteúdo das aulas, como no exemplo dado por Furtado (1995), era relativo à temática
brasileira, seguindo o currículo regular do sistema de ensino de então. Este processo foi aos
poucos dando espaço para um cenário no qual os índios são os protagonistas. Isto é, entre a
94
escola pensada por Dayse Lobão nos anos oitenta e a tomada de direção promovida pelos
professores indígenas, passaram-se mais de 20 anos. O autor não ignora o tempo passado,
mas seleciona elementos da memória que são de seu interesse. Neto Guajajara coloca-se
como agente da ação que relata, a exemplo de Alves. Os Tentehar, mesmo não havendo
demandado a escola, mesmo não sabendo que tinham que estudar, não passaram incólumes
pela escola e tentam, a todo momento, tomar para si a condução dos processos. O elogio ao
professor Tentehar Ubirajara Carvalho, ao mesmo tempo em que os professores não índios
só são lembrados como executores comandados pelos Tentehar, como expõe o trecho a
prevalecia a presença de professores brancos, com algumas exceções como no caso dos
monitores bilíngües, que exigiam do aluno grande esforço para se adaptar as técnicas e ao
idioma no qual a aula era proferida. O aumento de professores indígenas e a tomada dos
cargos de direção na escola criaram pressão sobre os professores não indígenas, gerando
exigências para que estes se adaptassem aos moldes culturais das aldeias. Neto Guajajara
55
Ver o subtítulo 4.5 Poder, aliança e conflitos: elementos para compreender o mercado de bens simbólicos
Tentehar.
95
momento este trabalho está um pouco dificultoso para os professores não-índios,
porque ainda não se adaptaram com a cultura dos índios. Os professores não-
índios têm o prazo de três anos para se adaptar, falar a língua Tupi Guarani e
planejar as aulas de acordo com a comunidade e os seus próprios alunos
indígenas. Se após este prazo os professores não aprenderem, a comunidade
indígena terá que substituí-los por outros professores não-índios. (ALMEIDA &
PANET et alli: 2010, p.11) (grifos meus)
indígenas. Enquanto os primeiros são caracterizados pelo compromisso que têm com a
ocidental, os não indígenas são considerados inadaptados à cultura Tentehar e, por este
motivo, passam por dificuldades para lecionar na aldeia tendo, inclusive, prazos para
superar essa deficiência sob pena de serem substituídos. Falar a língua é uma das
exigências impostas aos não índios. Planejar as aulas em acordo com a comunidade, é
outra. Ambas demonstram que o controle sobre a condução da escola é dos Tentehar, ou
reforma de uma escola e a construção de outra para atender a todos os alunos. Exigiram,
ainda, que mais professores indígenas fossem contratados para atuar nas escolas, além de
condução dos processos subjaz a maneira de pensar dos Tentehar, que admitem a escola,
mas não admitem serem conduzidos pelas regras do não índio. A escola passa, portanto
pela SEDUC e tenham que estar de acordo com as normas dos sistemas estadual e nacional
de educação.
96
4.4. “Meu sonho é contribuir maior”.
Tentehar com a escola e verificar como se processa essa idéia de domesticação da escola.
quais a protagonista é a Professora Cíntia Santana Guajajara. Tento refletir sobre sua
trajetória, com base em suas próprias palavras, em , observações que fiz durante os cursos
representações acerca do sentido atribuído a escola por uma Tentehar, que contém em si
56
Depoimento cedido a equipe de filmagem do vídeo Líderes Indígenas do Maranhão: Cíntia Guajajara “Eu
quero contribuir maior”. Dirigido por Almeida e Panet. SEDUC/MEC, São Luís - 2010
57
Abrão é uma das mais antigas lideranças Tentehar que residem na aldeia Juçaral, que dista 3 quilômetros
de Lagoa Quieta. É reconhecido como cantor e por possuir capacidades xamanísticas.
97
A trajetória de Cíntia é marcada por intensa experiência com o mundo externo.
pelo mundo dos brancos demonstra suas habilidades de incorporar os poderes de Ma’ira.
Isto é, mesmo vivendo muito tempo entre os brancos, a chave de leitura (Almeida, 2009)
utilizada por Cíntia para decifrar os eventos está calcada na cosmologia de seu povo.
A escolha do ofício, indicado pelo cantor Abrão, enfatiza que não foi uma simples
escolha de vida, mas uma indicação dos espíritos. Cíntia não teria escolhido o ofício, mas
escolhida pelo mesmo, acreditando que sua e-“vocação” está depositada na habilidade de
projeto Saúde e Doença na aldeia Lagoa Quieta, local onde Cíntia habita. Na oportunidade
não estudava as relações dos Tentehar com a educação, todavia pude anotar várias
Lagoa Quieta é uma pequena aldeia que continha doze famílias que se dividiam
58
Mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada em
perspectivas múltiplas e complementares....o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que
teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos...o mito conta graças aos feitos dos seres
sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, quer seja uma realidade tetal, o Cosmos, quer apenas um
fragmento, uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, é sempre portanto uma narração de
uma criação, descreve-se como uma coisa foi produzida, como começou a existir...” MIRCEA. ELIADE. M.
Aspectos do Mito. Lisboa: Edições 70, 1989.
98
uma única rua que segue uniforme até o quarto par de casas, daí por diante seguem
disformes até a última que fica mais para dentro do mato, próxima ao caminho das roças.
Todas têm energia elétrica. Há uma escola bem no meio da aldeia. Em 2006 a construção
da escola não havia sido concluída. Na atualidade, já pronta a escola recebeu o nome de
Hamy’ete, uma referência a matriarca que fundou a localidade em 1983, avó de Cíntia.
figuras ilustres da política brasileira, ou mesmo ligados ao indigenismo estatal como, por
língua materna como disciplina na escola Zyhatyw (Juçaral)59. Adultos e crianças pareciam
muito animados com o ensino da língua e com o fato de poder ver sua língua escrita e
perceber que ela tem coisas como “substantivos”. A professora Cíntia afirmava se sentir
favorecida, também, pela vinda de um casal de tentehar que morava na Lagoa Comprida60,
para viver na sua aldeia. “Na mata, eles só falam na língua”, completa empolgada.
Tentehar. Esta ação motivou a expressão de cantorias tradicionais, desta vez com forte
adesão de jovens. “Todos têm treinado, quase toda noite”, diz a professora”. Cintia explica
que tem um Maira que inspira e que controla quando cantam e dançam. Seus humores
influenciam os humores de quem é conduzido por eles. Acrescenta Cíntia, que a presença
materna, incentiva e valoriza os costumes dos índios de sua aldeia. Estes aderiram com
59
Juçaral é uma aldeia maior que Lagoa Quieta, considerada centro de concentração dos Tentehar na região.
Lá ficam as escolas que contemplam todo o ensino básico desde a 5ª série até o segundo grau.
60
Lagoa Comprida dista 80 quilômetros de Lagoa Quieta, no centro da mata.
99
maior fervor as danças e cantorias tradicionais. Curiosamente esta retomada das rtadições
Lagoa Quieta com o povoado de Campo Formoso provoca um fluxo constante de jovens e
Para Cíntia a escola deve ser o lugar privilegiado para partilhar as experiências da
vida Tentehar. “É na escola que a gente tem esse espaço para conhecer a nossa língua.
Mesmo conhecendo o português, que a gente reconheça a nossa língua. [...] somos índios
falantes. É preciso valorizar essa ferramenta. Somos índios com a nossa língua.”
Nos diálogos que mantivemos, estávamos sempre acompanhados por suas irmãs,
processos de aprendizado e metodologia utilizados para ensinar seus alunos, obtive uma
descrição de como os cantores aprenderam seu ofício. Cíntia explicou que a história de
seus antepassados, contada pelos mais velhos, ajuda na escola. Davi e Silvinho, dois jovens
Antigamente não havia cantoria como há hoje em dia. Somente um pajé cantava.
Sua tocaia era armada no alto de uma Faveira, onde ele pegava arara para fazer
cocar. Seus bonitos cocares despertavam ciúme no seu irmão que queria pegar
das mesmas araras. Mas o pajé o alertou que naquele lugar – onde ia pegar
aquelas penas – viviam onças que andavam no vento e que de nenhuma maneira
devia mexer com elas. O irmão do pajé o seguiu e descobriu onde ficava a
Faveira, quando o pajé foi embora subiu até a tocaia do pajé e esperou para pegar
as araras. Teve sucesso em sua caçada, mas quando avistou as onças que
andavam no vento e tiravam mel das flores para depositar em pequenas cabaças
que levavam amarradas à cintura, não se conteve e atirou flecha na maior das
onças. Ela por sua vez pareceu não se importar com aquela flechada e continuou
a tirar mel sem parecer ter sentido a seta. Então o irmão do pajé atirou mais outra
flecha e onça reagiu da mesma forma: indiferente. Na terceira flechada, todavia,
as onças se voltaram todas contra o irmão do pajé e com grande raiva destruíram
a tocaia e flecharam muitas vezes aquele infeliz. O pajé quando chegou debaixo
da faveira avistou a tocaia destruída e viu sangue no assoalho improvisado. Logo
desconfiou que seu irmão havia sido pego pelas onças. Acendeu um cigarro
rapidamente e a chama lhe indicou o caminho para onde tinham ido com seu
irmão. Seguiu a direção da chama e logo encontrou marcas de sangue que iam
seguindo grande e depois foram ficando pequenas até que em um ponto da
floresta ficaram tão pequenas quanto rastro de formiga. Continuou seguindo
aquelas marcas pequenas até chegar na boca de um grande formigueiro. O pajé
100
cavou para alargar a boca do formigueiro e entrou num túnel muito grande pelo
qual seguiu até uma grande e bonita aldeia. Tudo lá era muito bonito. Ficou
maravilhado o pajé, mas logo viu seu irmão cheio de flechas. Não podia fazer
mais nada por ele, ficou muito triste. Foi ter com o chefe do lugar e ele lhe falou
que seu irmão cometeu um erro e atacou primeiro seu povo, por isso foi trazido
para aquele lugar. O pajé foi convidado a permanecer ali. Durante sua estadia
aprendeu cânticos e remédios, também aprendeu a fazer enfeites. Um dia o chefe
da aldeia disse para ele que não poderia ficar mais ali e mandou que os outros
fosse deixá-lo no mesmo local por onde entrou. O pajé voltou para sua aldeia e
ensinou aos outros a cantar e fazer enfeites. (Coletado em 08/11/2006, Aldeia
Lagoa Quieta)
extraordinários ou não. Aprender é fazer, é experimentar para saber. A relação do pajé com
o estrangeiro lhe impõe a convivência em terras estranhas com aqueles que, a princípio,
desconhece e que, potencialmente, poderiam ser seus inimigos, já que mataram seu irmão.
merecer o ensinamento. O ciúme e a inveja do sucesso alheio são condenados, pois podem
trazer conseqüências graves ao ofensor. O pajé não atribui a culpa da morte às onças, mas
aos sentimentos ruins de seu irmão, que ousou violar as frágeis barreiras que os separavam
das onças com mão de gente. Esta perspectiva supõe que os Tentehar têm disposição para
aprender com quaisquer que sejam seus interlocutores. Indica que os processos de
aprendizado estão abertos para elementos externos e que podem ser reaproveitados na
externamente são, portanto, domesticadas aos costumes internos e repassadas aos demais.
A escola pode ser inserida nesta perspectiva, o lugar de saberes extraordinários e externos,
Em recente vídeo produzido pela SEDUC/MEC, organizado por Almeida & Panet
(2010) Cintia enfatiza que a escola deve ter o jeito Tentehar de ser, conhecer e reconhecer
Eu espero que a educação indígena no futuro venha ser boa e de qualidade, que
venha contribuir mais ainda para que nós reafirmemos mais ainda nossa
101
identidade, fortalecendo a nossa cultura indígena, para a educação do nosso filho
um dia venha ser de qualidade... A escola ideal é a escola do prazer, que tenha a
nossa cara o nosso jeito, que os mais velhos tenham participação com a sua
memória... a gente têm os anciãos, têm as parteiras e os caciques, as pessoas que
tem os conhecimentos que venham contribuir, que a gente venha trabalhar a
educação do nosso povo, a educação que nós queremos. A educação que as
crianças venham e não tenham vontade de sair, que venha tratar da terra, das
caças, venha tratar tudo... trabalhar nossa realidade considerando o conhecimento
ocidental e o nosso conhecimento considerando e valorizando esses dois
conhecimentos
condena a obrigação e o desconforto causado pelas técnicas da escola promovida pelos não
índios. Os agentes da comunidade são os mestres da escola pensada por Cíntia. Parteiras,
cantores, anciãos e outros são conclamados para ensinar o jeito Tentehar, na escola. O
impedem de manter o nível de exigências dos pais dos alunos. A falta de material didático,
lápis para escrever, entre outras coisas, segundo Cíntia, não colaboram para o exercício da
educação na aldeia.
Mestres da Aldeia Juçaral. Seu mandato foi interrompido sob acusações de que ela
dedicava-se muito às viagens para fora do território, deixando assim as crianças sem aula.
encontrei Cíntia muito desanimada com o ofício para o qual havia sido escolhida. Alegava
que seus colegas de ofício não estavam pensando da mesma forma que ela. Haviam se
102
rendido ao atrativo negócio do transporte escolar. A educação estava de lado e os
interesses voltados para outros campos. Cíntia referia-se ao fato de estar havendo uma
espécie de corrida por contratos de transporte escolar61 na terra Araribóia. Cada cacique
eminentemente para o fato dos seus colegas estarem relegando a educação e priorizando a
escola como foco de disputas: quanto maior o número de alunos que cada aldeia consegue
em que expõem os processos particulares pelos quais a escola foi se sedimentando em cada
uma dessas situações. Cada processo aponta estratégias diferenciadas para atuação da/na
escola na/com a comunidade. Em comum, há fato de que a escola, cedo ou tarde consolida-
Este processo foi impulsionado tanto pelo estado e suas instituições, quanto pelas
instituições indígenas e de apoio aos índios. Lopes da Silva (2001, p. 31), analisando
[...] no seio da mobilização popular dos anos finais da ditadura militar, nas então
nascentes organizações indígenas e de apoio aos índios [...] firmava-se a idéia de
que a escola poderia ser algo “a favor” dos índios: instrumento de acesso a
informações e conhecimentos vitais para sua sobrevivência e para sua
autodeterminação. O desafio aqui era de ordem pragmática e política: como fazer
essa transformação da escola indígena?
índios”, ganhando força entre as atuais instituições indígenas e de apoio aos índios. Estas
61
A questão do transporte escolar será explorada no capítulo seguinte.
103
perspectivas se misturam numa complexa relação de forças que permeia a relação dos
Tentehar com a escolarização. Neste sentido, as idéias de “escola para integrar” mantida
um portal de comunicação entre o mundo tentehar e o mundo externo? Mais que isso, a
escola tornou-se ferramenta para domesticação das relações com os não índios?
ser analisadas num campo maior, isto é: apensadas às outras experiências de escola em
das que serão descritas no capítulo seguinte. Tentarei com isso montar um quadro
explicativo para a relação deste povo com esse fenômeno numa perspectiva mais global do
território Tentehar.
104
4.5. Poder, aliança e conflitos: elementos para compreender o mercado de bens
simbólicos Tentehar
Não há como definir desde quando este novo modelo de relações vem sendo
gestado entre os Tentehar. Todavia, acredito que é possível compreender como ele
políticas públicas de educação. Tomo como campo empírico privilegiado as relações dos
tentehar com a escola e com todos os aparelhos que a ela estão associados, como os
educacional da FUNAI e repassa ao Ministério da Educação (MEC) e este, por sua vez,
pedagógica das escolas indígenas nas aldeias de todo Maranhão. Várias excursões foram
105
atendimento, ao mesmo tempo em que buscava oferecer um mínimo de acompanhamento
às iniciativas já existentes.
capacitação dos docentes que já trabalhavam nas escolas indígenas, com fins a qualificá-
los para o trabalho nas escolas indígenas. Obtidos os recursos, realizou-se, em 1995, um
curso destinado a técnicos e professores da SEDUC, FUNAI e MEC, para que pudessem
ministrar aulas para os professores indígenas nas áreas de língua portuguesa, artes e
expressões corporais e ciências. Como resultado desta ação, foi construído o Curso de
Magistério para Professores Indígenas, que teve início em 1996. Entre os anos de 1998 a
2001, o CIMI também realizou uma formação para professores indígenas. Como o CIMI
não era autorizado pelo MEC como instituição formadora, os dois cursos tiveram que ser
Nessa primeira turma, 141 professores foram formados, sendo a maioria tentehar.
Seis anos se passaram entre o início e o fim do Curso de Formação para Professores
(SEDUC: 2009). Neste período, o número de alunos indígenas já somava 7.321 (sete mil,
situação dos professores indígenas e não-indígenas que atuavam nas escolas da rede de
Educação Indígena. Este contingente de professores não foi capaz de atender a demanda de
alunos, que continuou a crescer ano após ano, como podemos ver no quadro a seguir:
106
Quadro I – Número de alunos nas escolas indígenas
Alunos Atendidos
*13079
12432
11161 11338 11372
10429 10556
8730
7495 7321
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Estado. A primeira foi gerar expectativa para a contratação dos professores formados neste
curso. A formação de uma “elite assalariada” nas terras tentehar atraiu novo contingente de
Mesmo com o início da formação de mais professores, a demanda gerada pelo crescimento
do número de alunos não foi totalmente atendida. Isso levou a SEDUC a contratar
professores não indígenas para as escolas em aldeias. Com um número maior de alunos
formados nas primeiras séries do ensino fundamental, o ensino expandiu-se para as séries
maiores desta modalidade e muitas das escolas indígenas passaram a ter o ensino de 5ª a 8ª
séries.
A escolha do professor indígena, nesse período, era feita pela comunidade. No caso
dos Tentehar, essa escolha deu oportunidade para que os líderes incorporassem este bem ao
circular como signos fundamentais na construção de alianças importantes para cada grupo
de aldeias.
Observei que, das 98 novas escolas criadas no período estudado, apenas 07 sete não
rapidamente pressionou a oferta de vagas, que teve que incluir a oferta de ensino médio em
algumas localidades.
pela SEDUC-MA observamos como estes se impuseram diante dos demais e do próprio
órgão de Estado:
108
QUADRO III – Número de escolas indígenas por povo.
Povo Nº DE ESCOLAS Percentagem (%) Reconhecidas pelo CEE
REGISTRADAS NO
CENSO
Tentehar 260 91 03
Krikati 03 1,25 01
Ka’apor 12 4,25 -
Kreynjê 01 0,35 -
Timbira 02 0,70 -
Gavião 04 1,40 01
Apaniekra 01 0,35 -
Ramkokamekra 01 0,35 01
Awá 01 0,35 -
enquanto povo, se comparados aos demais. Contudo, o número elevado de escolas ocorre
mais pelo fato deste povo ocupar uma ampla área geográfica na qual se estende o seu
território. Este território corresponde a doze terras indígenas62, incluindo aquelas que são
provocou uma corrida para o suprimento do número de vagas nas escolas indígenas.
62
Ver mapa na página 29.
109
processo simplificado para selecionar professores não indígenas para trabalhar nas escolas
indígenas.
regras do seletivo instituído pela SEDUC-MA, o ingresso dos candidatos indígenas e não
classificação gerou protestos e conflitos entre os líderes Tentehar, que entediam possuir a
prerrogativa da escolha. Dessa maneira, vários professores não indígenas não puderam
apresentavam nomes de sua escolha para ocupar o cargo. Os conflitos estenderam-se até
que a SEDUC-MA optou por incluir na seleção para professores não indígenas
a punho, e assinadas pelo cacique e três membros da aldeia para a qual o candidato
A pressão gerada pelos Tentehar para que retomassem o poder de opinar sobre
quem iria adentrar em suas escolas, demonstra que não estavam interessados em ficar
relegados ao segundo plano, sobretudo no que tange ao controle das escolas em suas
aldeias. Reagiram para que o sistema de trocas, por eles utilizado, não fosse prejudicado
escolha.
Atualmente o Processo Seletivo encontra-se na sua quarta edição, o que fere a Lei
Estadual Nº 6.915, de 11 de abril de 1997, artigo 2°, inciso VII, que dispõe sobre a
110
de 1999 do CNE, no seu artigo 9°, inciso II, alínea (d) que trata da Competência do Estado
ampliação de alianças para fora dos grupos inter familiares. Mais que isso, impulsionou um
empregos gerados e controlados pelos líderes indígenas. Os cargos e outros benefícios que
a escola gera nas aldeias são administrados pelos chefes de família que os redistribuem
inseridas pelo seletivo para professores não indígenas, tanto para ensino fundamental,
63
A sigla URE significa Unidade Regional de Educação, instância da Secretaria de Estado da Educação, que
fica localizada em cidades estratégicas, com grande influência em regiões especificas, a exemplo de
Imperatriz e Santa Inês.
As siglas NI e NII, significam respectivamente nível 1 e nível 2 e assim por diante, indicando o grau de
escolaridade dos professores. O nível 1 corresponde àqueles professores que ainda não concluíram o ensino
médio, enquanto o nível 2 aos professores que já concluíram essa etapa, inclusive aqueles que possuem o
diploma do Curso de Magistério Indígena. A classificação realizada pela SEDUC-MA significa, também,
diferenças salariais. A medida que o nível aumenta, o salário dos professores tem um pequeno acréscimo de
valor. Para os professores de nível superior, também existe uma tabela de classificação.
111
Quadro IV – Professores da educação básica nas terras indígenas
1ª a 4ª séries 5ª a 8ª e ensino médio
URE TOTAL
NI NII NIII NIV
Açailândia 08 33 16 08 65
Zé Doca 06 18 - 01 25
Santa Inês 06 16 05 08 35
posições políticas de cada líder indígena. Embora o número de professores indígenas seja
funcionamento das escolas são ocupadas por líderes tentehar, não necessariamente
A liderança ocupa no imaginário atual dos Tentehar uma posição de destaque. Para
sê-lo, é necessário possuir habilidades no discurso, fluência entre os não índios e grande
capacidade de articulação entre diversos segmentos que compõem a rede de relações que
deve comandar. Uma liderança só se legitima quando é reconhecida pelos pares e é tratada
como tal. Muitos se proclamam lideranças, mas não conseguem galgar espaços entre os
seja possível que um cacique exerça a função de liderança para além de sua aldeia, nem
112
toda liderança é exercida necessariamente por um cacique e vice-versa. O quadro a seguir
demonstra como relação numérica entre professores indígenas e não indígenas ficou
estabelecida:
Licenciaturas de Nível
Licenciaturas de Nível
5ª A 8ª 19 147 Superior a partir do 5º
Superior a partir do 5º período
período
O quadro acima demonstra que 56,74% dos postos docentes nas escolas indígenas
estão ocupados por professores não indígenas. Em alguns casos, essa porcentagem chega a
patamares bem altos como, por exemplo, no caso do ensino médio, com o equivalente a
92,30% dos postos docentes. Nas séries finais do ensino fundamental, a equivalência chega
a 88,55%. Somente nas séries iniciais os índios superam, em número, os não-índios. Nesta
etapa de ensino, 55,66% dos docentes são indígenas. Por outro lado, a presença de não-
índios ainda é muito significativa, pois corresponde a 44,34% dos postos existentes. Essa
presença maciça não significa, no entanto, que os professores não indígenas detenham a
hegemonia política das escolas indígenas. Como destaquei, necessitam da anuência das
lideranças para realizar seu trabalho. Ao fazê-lo, adentram no mercado simbólico de bens,
passando eles próprios a ser negociados ou a participar do sistema, tendo que oferecer
vantagens para continuar nos empregos. Em diversas oportunidades, pude ouvir tentehar,
principalmente na região de Barra do Corda, alegar que muitos brancos para continuar
113
como professores nas escolas indígenas destinam porcentagens de seus salários para as
membros do grupo que estão insatisfeitos com a sua liderança atual. A estratégia de
simbólicos, como já mencionei. A abrangência das redes criadas por cada liderança
comandante e comandados. Em 2009, uma das aldeias da T.I. Cana Brava foi incendiada
após o cacique ter se negado a seguir as ordens dadas por uma liderança de Barra do
Corda. As ordens consistiam em não registrar seus alunos no Censo Escolar daquele ano.
a ser apresentada a SEDUC para obter roteiros de Transporte Escolar. O fato foi
aceitaram que o fato fosse registrado em ATA, temendo represálias do grupo rival.
sua condição de líder e mentor do grupo. Não raro, são realizados abaixo assinados
várias listagens de lideranças diferentes, o que se torna razão suficiente para conflito e
acusações mútuas entre os vários grupos. Uma boa liderança, segundo os grupos
observados, mantém à sua volta uma comitiva com vários séquitos, dispostos a expressar
114
seu apoio, sempre que seja questionada a posição de seu líder. Também, é de praxe que
carreguem uma ou mais pastas, sempre recheadas de documentos, prontos para ser
A ação das lideranças Tentehar fica mais explícita quando analisamos o caso
115
A legislação brasileira procurou regulamentar a situação do transporte escolar nas
zonas rurais e, embora não haja referência aos índios no texto da lei, as escolas indígenas
alunos indígenas, surgiu a solicitação por serviços de transporte escolar que objetivavam
levar os alunos às escolas de ensino médio fora da aldeia ou àquelas aldeias que
Desta forma, a Lei nº 286 de 01 setembro de 2006 criou os Centros de Ensino na Estrutura
Fica o Poder Executivo autorizado a criar até trezentos e sessenta e dois Centros
de Ensino na Estrutura da Secretaria de Estado da Educação para atender,
prioritariamente, ao ensino médio, podendo, caso haja demanda, atender,
também, ao ensino fundamental. (DO- MA 01/09/2006. pg. 27)
escolas indígenas que passaram a ser consideradas Centros de Ensino. Na mesma lei foram
criadas funções gratificadas referentes aos Cargos de Gestor e Secretário das escolas em
questão. A referida Lei levou em consideração apenas as escolas da rede regular de ensino,
impedir que diretores indígenas assumam suas próprias escolas. Isto é, em seu Artigo 2º,
Graus” (DO- MA 01/09/2006. pg. 27). Esclareço que nenhum professor indígena se
enquadra nas condições específicas da lei. Este fato tem provocado diversos conflitos entre
116
os Tentehar e a SEDUC, pois identificaram nesta ação do Estado uma nova tentativa de
Além desse impasse gerado pela Lei 286/09/06, circunscrever toda educação
destes Centros de Ensino. A idéia, pensada pela SEDUC, era que as 18 escolas escolhidas
Indígena, ou seja, com acesso facilitado às aldeias e à cidade. Esta organização provocou a
hierarquização de umas aldeias sobre outras e deu início a uma corrida de lideranças pelo
controle de números cada vez maiores de aliados em áreas geográficas cada vez mais
extensas. Há exemplo de lideranças que tentam obter aliados em outras terras indígenas
caso da T.I. Cana-Brava, situada em Barra do Corda, e da T.I. Araribóia, nas imediações de
Amarante e Bom Jesus das Selvas. Esta distância não impede que lideranças se aventurem
na tentativa de aumentar seu número de aliados. Esta incursão em terras alheias pode tanto
favorecer a liderança que se aventura, quanto causar conflitos, caso as lideranças locais
117
caso mais recente que registrei ocorreu na Aldeia Iporangatu, T.I. Araribóia, em Bom Jesus
oferecendo empregos e vantagens para os pais que dessem os documentos dos filhos para
estratégia usada, por essa liderança, foi doar uma veículo velho como prova de suas boas
intenções. Este veículo deveria ser utilizado para o transporte dos alunos às escolas do
município de Bom Jesus das Selvas, ou das aldeias menores nas proximidades para a
destituição do cacique que fora contra a liderança externa, mas que não teve bens o
com a nova aliança formada. Caso semelhante ocorreu no município de Grajaú, na terra
indígena Bacurizinho, quando lideranças locais reclamaram que líderes da TI Cana Brava
estavam arregimentando alunos se suas aldeias para serem registrados em Jenipapo dos
Vieiras. Tais alunos, para chegar a escola indicada pelos líderes de Barra do Corda,
percorreriam 170 quilômetros, passando por três outras escolas, aptas a recebê-los, até
mercado de bens simbólicos dos Tentehar. Desta forma, pressionaram a SEDUC para
intensificar o programa de transporte escolar para as aldeias, sobretudo para aquelas que
programa já existisse, até 2006 os números eram pouco relevantes com relação à demanda
118
existente na educação indígena, não ultrapassando o montante de R$ 600.000,00
Portanto, é possível fazer uma relação entre a publicação da Lei Estadual 286/09/06
9.000.000,00
8.000.000,00 8.129.400
7.000.000,00
6.000.000,00
5.000.000,00
4.388.700
4.000.000,00
3.000.000,00 3.119.700
2.000.000,00 2.007.900
1.000.000,00
0,00
2006 2007 2008 2009
volumes consideráveis de dinheiro, que passaram a circular nas redes formadas pelos
R$ 2.007.900,00 (dois milhões, sete mil e novecentos reais), no ano 2006, para R$
8.129.400,00 (oito milhões, cento e vinte nove mil e quatrocentos reais), em 2009.
119
Significa que as contas do Estado com Transporte Escolar Indígena cresceram mais 300%
levarmos em conta a população total dos Tentehar no Maranhão, isto é, cerca de 21.000
regularmente a cada ano, desde 2006, apenas 06 por ano não foram estabelecidos entre
exercido por lideranças deste povo, que em 2009 concentrava mais 87% dos recursos em
apenas 18 ASPMI. Para cada ASPMI é possível relacionar uma rede de relações que
Quadro VII – Convênios celebrados Transporte Escola Indígena entre 2006 a 2009
Fonte: SEDUC-MA/2009
120
Nacional de Apoio ao Transporte Escolar – PNATE64, que varia entre R$ 88,13 e R$
dados desta mesma fonte, a per capita/média é de R$ 106,92. Contudo, essa média não se
aplica a escola indígena, já que estas operam sob o critério de quilômetro rodado. Caso
obteríamos, a partir desse número, a relação de 7.600 alunos indígenas como usuários deste
serviço. Este dado é controverso, pois o número de escolas indígenas existentes nas aldeias
não poderia absorver essa demanda, já que a maioria dos estudantes indígenas está nas
séries iniciais da educação básica e não são os principais usuários do transporte. Isso
jamais visto na história deste povo, pelo menos na literatura etnológica. Embora a drástica
diferença de forças entre lideranças não se tenha iniciado com os programas educativos da
SEDUC, foi através dos mesmos que a definição das forças chegou a seu ápice nos últimos
cinco anos.
mercado de bens simbólicos no qual são disputadas colocações de poder. Essas relações
com a inserção de grandes volumes de dinheiro e outros bens, estas relações foram
capitalizadas por grupos cada vez mais específicos e eletivos, que passaram a capitanear
redes mais extensas de relações, porém com comandos cada vez mais hierarquizados.
64
Programa instituído pela Lei nº 10.880, de 09 de junho de 2004,
65
Ver Almeida 2009. Ser e Não ser Civilizado: os Tentehar e suas relações com a Alteridade, Monografia de
conclusão de Curso de Ciências Sociais, UFMA.
121
Estas forças convivem com outras como o poder dos chefes de família e dos caciques.
Separadas, estas forças tem poder menor com relação às grandes lideranças, contudo
podem caciques e chefes de família formar alianças para fazer frente aos lideres que,
segundo sua leitura, enveredaram pelo despotismo. Estes conflitos formam um dinâmico e
tenso jogo de poder. Não raro, uma nova liderança, insurgida da aliança formada contra o
estão recheadas de declarações que demonstram as querelas existentes entre esses agentes.
Censo Escolar não havia sido feito em todas as aldeias porque uma liderança ameaçou a
equipe da SEDUC-MA para não fazê-lo. Segundo o mesmo conselheiro, o objetivo da ação
era não deixar que os técnicos descobrissem o real contingente de alunos e com isso
comum que professores indígenas recebam salários sem trabalhar, sendo protegidos por
suas lideranças. Citou o caso de um professor que ganha o salário do Estado e mora na
ASPMI aufere junto a várias aldeias, são temporariamente ignoradas quando o sistema de
grandes alianças que envolvem a maioria das lideranças e suas respectivas ASPMI. Desta
forma, fazem frente às ameaças externas até que não representem mais nenhum perigo. As
quantias suntuosas operadas nos convênios com as ASPMI levaram o Ministério Público
122
serviços de transporte escolar indígena. Esse fato provocou a reação imediata dos
os serviços através de processos licitatórios. Novamente não obteve êxito e teve que se
curvar à pressão das lideranças indígenas que, novamente, vieram em carreatas para ocupar
sistema em vigor.
convênios com as ASPMI é o de “quilômetro rodado” e não o per capita, como sugere o
4.816,00 (quatro mil oitocentos e dezesseis reais) por ano, enquanto o PNATE prevê até
R$ 125,72 (Cento e vinte cinco reais e setenta e dois centavos) por aluno. O PNATE
Estado Brasileiro. A SEDUC, por outro lado, adotou como parâmetro os quilômetros
rodados que, dependendo do convênio celebrado67, podem oscilar entre R$ 1,68 (menor
valor identificado) e R$ 11,51 (maior valor). Desta forma, quanto maior o número de
utilizada para a celebração de contratos de transporte provocou uma corrida por novos
roteiros, muitos fictícios, assim como a elaboração de listas de alunos que jamais
66
Esta média é obtida somando o menor e o maior valor operado no sistema e dividindo por dois.
67
Os convênios de transporte escolar operados entre a SEDUC e as ASPMI obedecem a critérios instituídos
pelo setor de Transporte da SEDUC, que levam em consideração, acesso as aldeias, proximidade das cidades,
condições da estrada, se há asfalto ou não. Desta forma, os valores contratados podem variar conforme as
condições descritas no contrato, assim como pelo número e extensão de roteiros contratados.
123
O Ministério Público Federal requereu da Secretaria de Educação Continuada,
informações acerca das medidas adotadas pela União para prestação dos serviços de
a transferência dos recursos do PNATE para as associações indígenas não está prevista
sistema.
que assumem o protagonismo das ações. A SEDUC se vê diante do dilema que é levar
educação para todos, indistintamente, mas não ceder às pressões exercidas pelas lideranças
por convênios milionários que sobrecarreguem o sistema. Coelho (2008) afirma que os
embate.
A ação das lideranças tentehar não está restrita apenas ao transporte escolar. É
merenda escolar nas aldeias. Até 2007, a distribuição de alimentação escolar para as
124
PNAEI68 – Programa Nacional de Alimentação Escolar Indígena, que eram repassados pela
Mesmo com esse volume de recursos, as denúncias de falta de merenda escolar nas
escolas repetiram-se durante todo o ano de 2006. Isso ocorreu em virtude da merenda
escolar, que deveria ser comprada com recursos dos convênios celebrados com as ASPMI,
não chegar até as escolas. Entre as denúncias mais graves estão as de que presidentes de
Associações usavam o dinheiro para comprar veículos como moto, carros, em benefício
próprio. As denúncias não foram suficientes para que essa situação se modificasse em
68
O PNAEI não um programa específico, mas uma ramificação do PNAE que se identifica pela letra I no
final da sigla para identificar seu uso para as escolas indígenas. A partir de 2009, o PNAEI ganhou um
acréscimo de 0,42 por cada aluno da rede escolar indígena, passando a operar com valores mais altos que a
rede regular de ensino.
125
pela Superintendência de Controle da Execução de Convênios e de Prestação de Contas –
e oito reais e quarenta centavos), respectivamente em 2006 e 2007, para as contas das
atraso na entrega e utilização dos recursos para outros fins, o que culminou em
oitocentos e sessenta e sete mil, novecentos e vinte e três reais e ciquenta centavos) através
do tesouro estadual.
sistema de trocas praticado pelas lideranças tentehar. Embora a merenda escolar tenha
passado a ser entregue, sistematicamente e diretamente na maioria das escolas, este modelo
foi duramente combatido pelas lideranças e suas ASPMI. A forma estabelecida pela
contratada nas terras indígenas e, mesmo, interceptar a entrega da merenda através de suas
capitaneado pelas lideranças. Mesmo assim, a SEDUC renovou o contrato com a empresa
sua burocracia interna. Com isso, problemas com a merenda escolar começaram a surgir
desde sua aquisição, junto aos fornecedores, até a entrega nas aldeias. Não havendo
indígenas, as criticas das lideranças tentehar a esse modelo ganharam cada vez mais
apoiadores dentro e fora das aldeias. Em 2009, por exemplo, as escolas indígenas só
qualidade e a validade dos produtos entregues nas aldeias. A SEDUC, diante de tantas
127
pressões, modificou mais uma vez a modalidade de entrega da merenda escolar, passando a
matrizes para administrar os recursos da merenda escolar, através de suas caixas escolares.
A questão é que não há nenhuma escola indígena que se adéqüe a essas matrizes escolhidas
pela SEDUC. A manobra do Estado visava driblar a força das lideranças indígenas,
recorrem aos presidentes das ASPMI para indicar ou orientar a entrega da alimentação na
Estado.
128
5. O JEITO TENTEHAR DE SER E DE FAZER
numeroso quanto os Tentehar. Doze, entre as dezessete69 terras indígenas são ocupadas por
eles. O número de aldeias tentehar em todo o estado supera a soma das aldeias de todos os
outros oito povos no Maranhão. Esta grandeza numérica tem reflexo em diversos aspectos
da relação entre os Tentehar e as políticas públicas de estado para este segmento. Este não
organização social deste povo que estrutura-se politicamente com base na família extensa,
numa dinâmica de poder, segundo a qual, cada chefe de família é autônomo (ALMEIDA,
2009, p.63). Wagley e Galvão (1955, p. 39) definiram a família extensa como um conjunto
Zanonni (1999, p. 98) sugere que a família extensa Tentehar é uma “unidade social” na
Numa aldeia Tentehar pode haver uma ou várias famílias extensas e, no segundo
caso, esse convívio proporciona constante estado de conflito, segundo Ubbiali (1997,
p.34). Este autor atribui ao chefe papel fundamental na manutenção política e econômica
da família extensa:
69
Ver o mapa da página 24.
129
Cada chefe de família exerce uma função política e representativa frente às
outras famílias extensas, ao órgão representativo governamental (FUNAI), e à
sociedade envolvente. Assim, os genros são representados por ele. Tornam-se,
com o “casamento”, aliados do chefe da família extensa na qual se inseriram, e
intermediários das relações de aliança entre a sua família extensa de origem e
família do sogro. (Grifo meus)
articular todas as dimensões da vida social Tentehar. Embora Zanonni (1997) afirme ser o
chefe de família que propicia a construção de redes entre famílias extensas (ALMEIDA,
2009, p.64). O grande objetivo seria determinar o rumo das coisas e as alianças, assim
como os conflitos são importantes para atingir esse fim. A construção do máximo de
alianças possíveis, menos que a destruição dos adversários, que em outros contextos são
potenciais aliados, tem sido a estratégia por excelência dos Tentehar. Por outro lado, as
alianças não podem anular os poderes políticos de um chefe de família. Dessa maneira,
cada vez que uma aliança se mostra desvantajosa é substituída ou rompida até que novos
Eduardo Galvão (1996) chamava a atenção para o fato de a família tentehar ser um
cultura tentehar. Era possível encontrar numa única família extensa um chefe, grupo de
mulheres, um cantor e quase sempre um pajé. Esta constituição familiar possibilitava aos
culturais rapidamente, após ataques de inimigos, ou mudar seus territórios cada vez que
fosse necessário. Associado a essa dinâmica, os chefes de família são hábeis diplomatas
que o papel do chefe está calcado no sistema de signos que envolve mulheres, bens e a
130
palavra. Argumenta que a constituição da esfera política pode ser entendida como um
Esse modo de constituição da esfera política pode pois ser compreendido como
um verdadeiro mecanismo de defesa das sociedades indígenas.A cultura afirma a
prevalência daquilo que a funda – a troca – precisamente vendo no poder a
negação desse fundamento. Mas é preciso além disso assinalar que as culturas,
ao privarem os “signos” do seu valor de troca na região do poder, retiram das
mulheres, dos bens e das palavras justamente a sua função de signos a serem
trocados; e é então como puros valores que esses elementos são apreendidos,
pois a comunicação deixa de ser seu horizonte.
América da Latina, ajudam a pensar a constituição dos sistemas formulados pelos tentehar
políticas de saúde geram nas aldeias. Estes mecanismos são disputados e/ou administrados
pelos chefes de família, que são lideranças estabelecidas e reconhecidas pelos seus pares,
bens70: serviços, casamentos, bens materiais e empregos que movimentam as relações inter
e intra familiares, entre os Tentehar e, por que não dizer, brancos agregados a essas
famílias. Howard (2002, p. 25), quando toma como exemplo as relações de trocas
O intercâmbio desses bens (terçados, facas e miçangas), longe de ser apenas uma
troca de objetos utilitários, gerou a circulação de novos significados e poderes
cristalizados em forma material. Portanto, a manipulação desses emblemas
semânticos passou a construir uma forma de discurso performático apropriado às
transações de poderes complementares e à negociação de novas relações sociais.
(grifos meus)
70
Sem querer fazer trocadilho com o Mercado de Bens Simbólicos de Bourdieu.
131
Entre os Tentehar ocorre algo semelhante, que se amplia para todo o sistema de
alianças possíveis, assim como as rupturas desses laços, gera-se uma dinâmica de constante
agregar forças é constantemente colocada à prova, sob pena de ser destituído de sua
posição de líder. Para cada nova aldeia formada, uma estrutura mínima deve ser montada.
O chefe de família deve ser provedor desses benefícios, que tenta auferir juntos aos órgãos
públicos responsáveis pelas políticas públicas, como saúde, educação, saneamento e toda
questão de saúde e educação nas terras indígenas, remontariam aos “tempos da CVRD”.
conflitos:
No começo não havia esse tanto de aldeia, nem esse tanto de cacique. O cacique
mais respeitado era o Cacique Supriano, era chamado de cacique geral da
Araribóia. Depois veio o Felipe e Marciliano, mas eram só esses. A divisão
começou com a VALE, que naquele tempo a gente chamava de CVRD. No
tempo do projeto da VALE é que começou a divisão porque o dinheiro chegava
no saco pros índios. Era entregue na mão do cacique. Aí todo mundo quis virar
cacique, fazer sua própria aldeia pra ganhar a ajuda do governo. Só que o
dinheiro acabou rápido e o índio já estava acostumado com o dinheiro, então foi
vender madeira. Depois chegou o projeto da FUNASA que também deu muita
briga e divisão, as associações indígenas queriam o dinheiro só pra elas e a saúde
do índio ficou muito pior que era. Aí quando acabou o dinheiro da FUNASA os
índios tudo mudaram pra educação. Pode ver que os parentes... as lideranças...
que lutam pela educação são as mesmas que lutavam no tempo da saúde [...]72.
Hoje a gente não consegue falar de educação no conselho, só de transporte
escolar. Ninguém fala da educação... só de transporte. (Itamar de Sousa
Guajajara, entrevista coletada em Maio de 2011, sede da FUNAI, Imperatriz-
MA)
71
Presidente em exercício do Conselho de Educação Indígenista do Estado do Maranhão.
72
Neste ponto o presidente do CEEIMA elenca as lideranças que considera que “lutam” pelas políticas
públicas. Omitimos os nomes, pois não obtivemos autorização para utilizá-los.
132
Itamar percebe uma conexão entre a seqüência de acontecimentos históricos,
iniciados com o Projeto Grande Carajás, no início dos anos 80’, que tiveram continuidade
escolar no Maranhão.
Esta perspectiva obtém coro entre alguns servidores mais experientes da FUNAI e
São freqüentes as menções aos “sacos de dinheiro” que eram distribuídos no tempo
política de convênios das ONG indígenas. Muitos índios, servidores da FUNAI e mesmo
indigenistas mais antigos vêem neste período um marco das divisões internas das aldeias
em larga escala.
refletem sobre relações até onde suas memórias alcançam. Nesse recorte temporal, o
Galvão (1996, p.62) nos anos quarenta já observava a dinâmica empreendida por
Há nesta aldeia três chefes de famílias extensas, entre eles Camirang, que apesar
de não constituir o maior grupo, soube por sua própria iniciativa colocar-se à
frente da aldeia. Porém, sua autoridade não é, como pode parecer em princípio,
73
O servidor Zé Pedro, esta aposentado atualmente.
133
absoluta ou de grande força, pelo contrário, para merecê-la, necessita de grande
diplomacia e somente a conseguiu através de dois chefes, tendo deste modo,
incidência direta sobre as pessoas fora de um grupo. [...] Recebe de cada grupo e
de cada indivíduo de seu grupo uma certa cota de farinha, tapioca e peles e,
algumas vezes, óleo de copaíba. Vende estes produtos, fazendo, para aqueles que
lhe deram a cota, em equivalentes a roupa, faca e quinquilharias. Mas, não se
pode deixar de reconhecer que realizou uma melhoria de condições, que até
agora nenhum capitão conseguiu.
chefes que não tem a mesma habilidade política. Este registro de Galvão demonstra que o
tempo da CVRD ficou marcado na memória de servidores e dos índios pela banalização do
posto de cacique74 nas aldeias. O tempo dos grandes caciques, como Supriano e
Marciliano, ambos citados por Itamar, havia chegado ao fim, dando espaço para novas
configurações sociais.
Desta forma, não bastava ter várias mulheres agregadas ao grupo familiar. Do
mesmo modo os bens colocados em jogo modificaram-se, novos desejos surgiram com a
intensificação do contato e, por fim, a palavra deve ser colocada a serviço das novas
configurações sociais emergentes desta relação com forte fomento de dinheiro e políticas
públicas. O campo semântico sofre uma ingestão de novos signos que são mobilizados e
disputados pelos agentes envolvidos. Na escola e na saúde as condições para essas disputas
líder da aldeia, naquele tempo representado pela figura do cacique. Deste modo, várias
74
Chamo de posto de cacique, por se tratar de uma posição inventada pelas instituições estatais como
SPITLN e FUNAI que identificavam em determinados chefes de família a capacidade de lideranças sobre
outros membros do grupo. Não raro as instituições apontavam como caciques aqueles que detinham certa
habilidade em se comunicar com em português com os funcionários das estatais. O posto de cacique entre os
Tentehar é efêmero e constantemente trocado todas as vezes que o ocupante da função não consegue alcançar
as exigências da comunidade. Os grandes caciques estão presentes na memória coletiva dos Tentehar como
figuras emblemáticas da liderança entre os membros do povo. Os grandes, também, foram os primeiros.
Talvez por isso sirvam como exemplo a ser seguido.
134
novas aldeias foram fundadas, separadas das anteriores, com o intuito de também receber o
de ferro se encerraram num prazo de quatro anos. A cessão brusca dos benefícios
financeiros destinados aos índios pela CVRD provocou a gradual migração dos agentes
indígenas para outras formas de captação financeira, visando à manutenção de suas redes.
Sendo assim, a organização social dos Tentehar, que já ocupava ampla disposição
espacial movida pelos conflitos intrafamiliares e que era equacionada por um mercado de
bens simbólicos, do qual faziam parte casamentos, roças, posições políticas nas aldeias e
trocas de dádivas diversas, ganhou poderoso fomento: o dinheiro oferecido pela CVRD.
Dessa forma, as relações internas ganharam novas dimensões que passaram a incluir a
relação direta com os elementos advindos de fora. Neste caso, as políticas públicas, fossem
quais fossem, foram incorporadas aos sistemas de trocas dos Tentehar. As relações
primeiras visam resolver situações através de ações genéricas, enquanto que a organização
grandes áreas. Como havia destacado, as famílias são núcleos autônomos que possuem em
Uma família pode, facilmente, constituir uma nova aldeia, ou articular-se com outras e
ampliar seus laços de troca e circulação de bens. Estas aldeias formam as redes de troca e
135
de circulação de bens que favorecem a criação do mercado de bens simbólicos no qual os
chefes que mais se destacam vão aos poucos assumindo o status liderança75.
As políticas de estado para a educação, por exemplo, tem como objetivo levar
escola à toda criança, indiscriminadamente. Mais que uma meta, trata-se de direito
constitucional que deve ser cumprido. Para tanto, a SEDUC realiza cruzadas educativas
para levar escola à todos os índios, numa nova onda civilizatória. Por outro lado, ao tentar
“civilizar” os Tentehar o sistema esbarrou nas redes inter-familiares formadas a partir das
sobrecarga das ações do Estado. Tais redes são expansivas e suscetíveis a constantes
discurso do Estado e impuseram, eles próprios, a criação de estruturas básicas como escola,
posto de saúde para cada aldeia existente. Essa atitude resultou em que as escolas tentehar
somam 91,87% do total das escolas da rede estadual indigenista. São 260 escolas Tentehar
Tentehar atendidas pelo subsistema de saúde. Nos quadros da FUNASA constam ainda
entre AIS e AISAN, cerca de 540 índios contratados, dos quais 70 são Tentehar. Assim,
75
A grande liderança consegue aglutinar em sua volta um número de aliados significativo, que em
determinadas circunstâncias comportam-se como séquitos capazes de empreender verdadeiras batalhas em
favor de seu “senhor”. Esta postura, no entanto, pode ser rompida se os aliados entenderem que não há mais
vantagens na relação, ou ainda, se a liderança der sinais de fraqueza como, por exemplo, não conseguir
cumprir promessas realizadas, ou na pior das hipóteses deixar de distribuir bens auferidos no mercado
simbólico: um cargo, um carro, uma posição, etc.
76
Dados baseados no CENSO ESCOLAR 2009/ o qual serve de referência para o ano 2010.
136
Nenhuma sociedade, desde que consiga sobreviver, pode deixar de capturar e
transfigurar em seus próprios termos culturais tudo que lhe é proposto ou
imposto, até nas mais extremas condições de violência e sujeição,
independentemente de qualquer confronto político (guerra, rebelião ou protesto).
Essa transfiguração parece ter ocorrido entre os Tentehar, que passaram a jogar
simbólico de bens, no qual são travadas as lutas internas do povo e que, suponho,
prerrogativa de “comando” sobre o seu povo, essas fracassam frente a habilidade política
das lideranças junto aos seus pares, e a capacidade de readaptação do povo Tentehar aos
Observo que as redes formadas pelas lideranças tentehar cobrem grandes áreas
destinadas ao seu povo. Deste modo, programas destinados a educação e saúde, por
exemplo, são canibalizados e passam incorporar as relações do próprio povo como signos a
trocas mantidas entre os Waiwai e os não índios, pode ser considerado em relação aos
tentehar:
137
sociedade envolvente devem ser reconhecidas como legítima resistência às
formas de sujeição que lhes são impostas.
os Tentehar e, que são movimentados por vários agentes ativos no sistema em constante
ebulição. Acredito que os Tentehar empreendem ações semelhantes aquelas descritas por
Howard (2002) acerca dos Waiwai, porém, numa escala ainda maior, qualquer coisa – ou
sistema. Desta forma, observo que a idéia de “escola e saúde” necessárias, inculcadas pelo
Os sistemas escolar e de saúde, por suas vezes, entendidos como “coisa de branco”,
poder internos à cultura. A relação dos Tentehar com cada sistema é peculiar, pois ao invés
Entendo que a relação dos Tentehar com as políticas analisadas neste trabalho são
parte de uma conexão que liga os mecanismos internos de exercício de poder no mundo
Tentehar com as formas como esses se expressam frente a alteridade, que neste caso
138
ao mesmo tempo em que reformula concepções de educação, saúde, políticas indigenistas
mesmo tempo em que o pensamento mítico tentehar influencia as visões acerca das
políticas e determina a participação dos tentehar nas mesmas, tais políticas, são
Neste sentido, entendo que este trabalho aproxima-se das constatações de Luiza
por essas políticas, cada uma ao seu jeito, desembocou em novas formas de controle e
pretendem ser as bases mais avançadas de dominação, impulsionada por uma imensa onda
civilizatória que se apresenta nos moldes de sistemas educativos e/ou sistemas de saúde,
ambos pensados numa perspectiva unificadora. Tais sistemas formam o que chamei de
cerco simbólico. Os povos indígenas são, ainda, a última fronteira a ser conquistada. No
caso específico dos Tentehar, retomando as idéias de Santos (2003) observo que há clara
139
confusão entre os campos semânticos em que operam os órgãos de Estado e povo
Tentehar. Enquanto o primeiro tenta inserir o segundo nos sistemas educativo e de saúde,
segundo incorpora as estruturas oferecidas pelo primeiro como elementos próprios de sua
cultura, tornando-os signos ativos de uma sistema de conhecimento bem diferente dos
sua forma de pensar. Julgam-nos ignorantes e despreparados para este fim específico.
Neste sentido, as relações impostas pelo Estado são contra-atacadas pelos tentehar com
saúde, mas que deixam subjacentes significados outros, nem sempre percebidos pelos não-
índios.
com o pensamento Marshall Sahlins (2003, p. 53) quando afirma que os povos indígenas
As ações das famílias extensas reproduzem-se em escalas cada vez maiores, de forma
140
As lideranças tornam-se peças fundamentais nestes esquemas. A análise da figura a
O quadro acima foi construído tomando como referência uma família de destaque
Estas posições são ajustadas no seio da família e fazem parte das negociações no
escolarização o acesso a estes cargos passa pela anuência da liderança indígena, mais que
isso, são controlados por ela. No entanto, não podem monopolizá-los ao ponto de
inviabilizar a entrada de novos ocupantes, sob pena de perder poder de barganha e diminuir
a influência sobre outras famílias. Mesmo nos cargos em que supostamente existe um
141
final sobre a permanência do candidato. O exemplo mais expressivo desta situação foi
referido quando tratei do seletivo especial indígena realizado pela SEDUC para escolha de
regionais apoiadas pelo grupo de aliados que formam a rede de famílias e agregados
externos. Dessa forma, alguns membros da família extensa também ocupam lugar de
“elegendo” as suas próprias lideranças. Nem sempre essas gozam do prestígio e da força
necessária para serem consideradas como tal nos círculos internos tentehar. Os
77
Os mecanismos aos quais me refiro passam pelas tecnologias como internet, redes de apoio, computadores
e, na grande maioria das vezes, o financiamento de ações pautadas pelos índios.
142
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
com a alteridade que a própria diferença faz sentido. Desde a narrativa de Cipriano
(GOMES: 2002), na qual o tentehar foi o próprio “civilizado” e senhor das coisas,
passando por Camirang (GALVÃO: 1996) chefe de família astuto que reverteu a seu favor
índios, um lugar ao sol, os tentehar tentam viver neste mundo, o seu próprio mundo.
Maíra era dono de todas as coisas, os tentehar nasceram para ser gente verdadeira, não faz
sentido para esse povo viver sob o jugo de quem quer que seja.
elementos do mundo do branco, absorvidos por eles, enriquecem a leitura que fazem de si
mesmos e dos outros. O pensamento mítico resiste à racionalidade ocidental, mais que isso,
essa última é relida sob os olhos tentehar que a incorporam em seu universo, atualizando
estetoscópio do médico. O giz e a lousa tentam reproduzir as conversas dos anciãos à beira
da fogueira.
não índios que tem se mostrado incapazes compreender os motivos da razão tentehar, que
parece não resistir às tentações de torna-se o outro, porém não sucumbi as tentativas de
143
controle exercido pelos órgãos de estado. Como podem viver tão próximos e tão distantes
“Ser como o branco não é ser o branco”, nos ensinou Cipriano. Vestir a roupa do
outro, comer a comida do outro, usar e fazer a política do outro, não os torna o outro. A
arte de viver com onças, foi há muito tempo dominada por Maíra-yr e seu irmão Mukwr-
yr, habilidade deixada por seu pai Maíra que os colocou à prova para distingui-los entre
possíveis impostores.
Neste momento histórico em que faço minha interpretação acerca relação dos
Tentehar com a alteridade, o cenário parece finalmente pender em favor desses índios. Isto
físicas e biológicas, passada a instituição forçosa da tutela, os tentehar tentam exercer seu
As diversas realidades vividas nas diferentes terras indígenas em que estão situados
não os impedem de formar redes capazes de construir arcabouços político e material que
agregam diversas lideranças e suas respectivas famílias e/ou grupos aliados. Em alguns
casos essas estruturas tornam-se tão fascinantes, pelas supostas vantagens oferecidas pela
rede de relações, que atraem elementos externos ao grupo que se submetem as regras
profissionais de saúde que aderem à causa de seus padrinhos, defendendo-os à todo custo
entre as famílias extensas e suas redes de apoio, entendo que os mesmos não devem ser
interpretados como causa, tampouco efeito, mas como instrumentos utilizados consciente
diplomática dos tentehar de seduzir indivíduos para seu grupo. A diplomacia causa o
das “cartas diplomáticas” que se chocam ao tentar seduzir. Nesta disputa, o indivíduo tem
sua importância exaltada, pois não há liderança, família ou rede que não se efetive pelo
reconhecimento dos indivíduos. Por isso, cada um é disputado como se fosse o último e
sua lealdade durará enquanto a redistribuição dos bens não for superada. O poder da
liderança pode ser um fardo, a fonte de sua riqueza pode significar seu próprio fracasso
frente a pesada tarefa de redistribuir os bens materiais e simbólicos, sob pena de ser
Por fim, a epígrafe que abre este trabalho pode também encerrá-lo:
145
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