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CADERNOS DE HISTÓRIA

Cad. hist. Belo Horizonte v. 2 n. 3 p. 1-100 out. 1997


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Grão-Chanceler
Dom Serafim Fernandes de Araújo

Reitor
Prof. Pe. Geraldo Magela Teixeira

Pró-reitora de Execução Administrativa


Profª. Ângela Maria Marques Cupertino

Pró-reitor de Extensão
Prof. Bonifácio José Teixeira

Pró-reitor de Graduação
Prof. Djalma Francisco Carvalho

Pró-reitora de Pesquisa e de Pós-graduação


Profª. Léa Guimarães Souki

Chefe do Departamento de História


Profª Maria Mascarenhas de Andrade

Colegiado de Coordenação Didática


Profª Carla Ferretti Santiago
Prof. Carlos Evangelista Veriano
Profª Heloisa Guaracy Machado
Profª Maria Mascarenhas de Andrade (Coordenadora)

Tiragem
1.000 exemplares

EDITORA PUC•MINAS
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Pró-reitoria de Extensão
Av. Dom José Gaspar, 500 • Coração Eucarístico
Caixa postal: 1.686 • Tel: (031) 319.1220 • Fax: (031) 319.1129
30535-610 • Belo Horizonte • Minas Gerais • Brasil
SUMÁRIO

Apresentação
Alysson Parreiras Gomes ........................................................................................................ 5

A população de rua e suas relações de trabalho – os catadores


de papel em Belo Horizonte (1988-1996)
Maria Vany de Oliveira .......................................................................................................... 7

Belo Horizonte: qual pólis


Yonne de Souza Grossi ........................................................................................................... 12

Belo Horizonte: tempo, espaço e memória


Lídia Avelar Estanislau .......................................................................................................... 25

As ruas e as cidades
Anny Jackeline Torres Silveira................................................................................................ 29

A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova


concepção de política urbana
Heloisa Guaracy Machado
Maria de Lourdes Dolabela L. Pereira .................................................................................... 36

A vida nos subúrbios: memórias de uma outra Belo Horizonte


Maria Marta Martins Araújo................................................................................................. 50

A razão moldando o cidadão: estratégias de política higienista


e espaço urbano disciplinar – Belo Horizonte – 1907-1908
Rita de Cássia Chagas Henriques ........................................................................................... 57

Belo Horizonte – Coração das Minas e das Gerais


Lucília de Almeida Neves ....................................................................................................... 64

Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio


Alberto Antoniazzi ................................................................................................................. 69

Imagens de Belo Horizonte de Pedro Nava


Elisabeth Guerra Parreiras Baptista Pereira
Herbe Xavier ........................................................................................................................... 86

Cad. hist. Belo Horizonte v. 2 n. 3 p. 1-100 out. 1997


Conselho Editorial
Prof. Carlos Fico (Deptº de História – UFOP)
Profª Eliana Fonseca Stefani (Deptº de Sociologia – PUC•Minas)
Prof. Dr. Francisco Iglésias (Faculdade de Ciências Econômicas – UFMG)
Profª Liana Maria Reis (Deptº de História – PUC•Minas)
Profª Drª Lucília de Almeida Neves Delgado (PUC•Minas)
Profª Drª Maria do Carmo Lana Figueiredo (Deptº de Letras – PUC•Minas)
Profª Drª Maria Efigênia Lage de Rezende (Deptº de História – UFMG)

Coordenação Editorial
Prof. Alysson Parreiras Gomes

Coordenação Gráfica
Coordenadoria de Comunicação Social da PUC•Minas

Revisão
Profª Virgínia Mata Machado

Monitores
José Otávio Aguiar
Patrícia Correa Pereira

Preparada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade


Católica de Minas Gerais

Cadernos de História. — Número especial,


out. – 1997 — Belo Horizonte: PUC•Minas,

v.

Anual

1. História – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica


de Minas Gerais. Departamento de História.

CDU: 98 (05)
APRESENTAÇÃO

A
s comemorações do Centenário de fundação de Belo Horizonte
têm mobilizado várias instituições públicas e privadas com o obje-
tivo de discutir, analisar e comparar os diferentes aspectos da orga-
nização do espaço urbano no decorrer deste século, na capital mineira. O
Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, no seu esforço, sempre renovado, de criar um ambiente de reflexão
e crítica da realidade, promoveu em abril deste ano o simpósio “Belo Ho-
rizonte: tempo, espaço e memória”, que contou com a participação de pro-
fessores e profissionais oriundos de outras áreas e instituições. Os textos
resultantes de algumas dessas conferências e alguns trabalhos produzidos
pelos professores da casa, encontram-se agora reunidos neste número es-
pecial dos Cadernos de História, destinado a alcançar um público mais
amplo e estimular a continuidade dos debates e pesquisas.
Os artigos, aqui apresentados, procuram revelar alguns dos múltiplos
horizontes que compõem o rico e complexo universo dessa cidade cente-
nária. Procurando resgatar parte de uma memória individual e coletiva
que tende a se tornar opaca com o passar dos anos, os pesquisadores se es-
forçaram em buscar nas reminiscências, signos, documentos e monumen-
tos existentes na cidade, o material necessário à reconstrução desse passa-
do comum. Partindo de premissas diferentes e utilizando das mais diver-
sas fontes e metodologias de análise, os trabalhos ora divulgados são teste-
munhos das incalculáveis possibilidades de investigação e pesquisa que
esse tema ainda oferece.
Acreditando que o conhecimento produzido no meio acadêmico so-
mente ganha seu real significado quando é divulgado, debatido e sociali-
zado, o Departamento de História da PUC•Minas, dentro de suas possibili-
dades, tem procurado contribuir para a melhoria do ensino, a democrati-
zação do saber e a edificação de uma sociedade mais justa, onde a cida-
dania efetiva seja um direito de todos.

Alysson Parreiras Gomes


Coordenador Editorial
A população de rua e suas relações de trabalho – “Os catadores de papel em ...

A POPULAÇÃO DE RUA E SUAS


RELAÇÕES DE TRABALHO
“Os catadores de papel em Belo
Horizonte” (1988-1996)*

Maria Vany de Oliveira**


Aluna do Departamento de História – PUC•Minas

Indigentes, deficientes, mendigos, vagabundos, velhos e doentes sem recursos, cri-


anças sem pais, mães e viúvas sem proteção, camponeses sem terra, cidadãos sem
domicílio, operários sem emprego, abandonados por conta do crescimento e feridos
pela civilização, marginais de toda espécie... É longa a lista dos que suscitaram for-
mas específicas de tomada de consciência e elas próprias extremamente diversas.
(Castel, 1991, p. 21)

A
RESUMO essa litania mencionada na epígrafe,
Este artigo situa os catadores de pode-se acrescentar um contingente
papel no contexto sociopolítico-eco-
nômico da região metropolitana de de mulheres e de homens que hoje
Belo Horizonte na década de oiten-
ta, destacando a ASMARE (Asso- ocupam as praças, os terrenos ociosos, os lo-
ciação dos Catadores de Papel, Pa-
pelão e Material Reaproveitável de
gradouros públicos, as marquises, os centros
Belo Horizonte) como marco impor- urbanos.
tante para a “Capital do século”.
Tal população não pode mais ser identifi-
cada, segundo afirma Luiza Erundina, como “a figura do andarilho ou
do mendigo tradicional que pede esmolas. (...) São trabalhadores desem-
pregados, que se juntam a outros tantos que sem esperança aguardam
respeito e cuidados”. (Souza, 1992, p. 11)

* Tema de um projeto de pesquisa aprovado pelo PROBIC, que está sendo desenvolvido no período de janeiro a dezembro de
1997, tendo como orientadora a professora Liana Maria Reis, do Departamento de História – PUC•Minas.
**
Está cursando o 8º período de História – PUC•Minas e realizando a pesquisa acima mencionada.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 7-11, out. 1997 7


Maria Vany de Oliveira

A cidade de Belo Horizonte cidadãos, exceto como transeuntes, do Estado de Minas Gerais na
(...) o tecido urbano estendeu-se pela
não foge à regra. Também ela década de 80, a Região Metropo-
periferia. Espaços industriais, servi-
convive com inúmeros proble- ços, oficinas, conjuntos habitacio- litana de Belo Horizonte atraiu
mas que afetam tantas outras ci- nais, favelas e loteamentos precári- 440 mil (21%). Intensificou-se a
os, linhas de ônibus e serviços de ele-
dades brasileiras. Dentre esses, criação de bairros dormitórios,
tricidade estenderam a forma urba-
destaca-se a problemática dos no-industrial pelo espaço circundan- freqüentemente implantados
que vivem em situação de rua. te, pouca atenção às antigas munici- em loteamentos clandestinos e
palidades, às antigas cidadanias (...).
Belo Horizonte foi planejada cada vez mais distantes do nú-
(Monte-Mor, 1994, p. 26)
segundo o pensamento positi- cleo urbano, já que as áreas de
O século XX, caracteristica- favelas mais centrais se encon-
vista, dominante no final do sé-
mente frenético, impôs à capital tram saturadas.
culo XIX. É o que informa Ro-
“uma constante construção/des- Ao crescimento desordenado
berto Luís de Melo Monte-Mor:
truição”. A cidade tornou-se es- da Região Metropolitana, se-
Belo Horizonte foi planejada de acor-
do com a ordem positivista e é filha treita para aglomerar o imenso guiu-se o aprofundamento das
dos desdobramentos do Iluminismo contingente populacional que desigualdades sociais. Tal fenô-
em suas manifestações do final do sé- migrou das zonas rurais em bus-
culo passado. A ideologia da ordem meno tornou-se evidente nas ca-
progressista foi expressa na sua con- ca de novas oportunidades. madas populares carentes das
figuração urbana nas linhas e esqui- Embora tendo nascido sob a condições básicas de vida.
nas retas, rigidamente delimitadas, ótica da industrialização, a ma-
mais adaptadas aos cânones barro- Como meio de garantir a so-
cos da tradição ibérica e do modismo turação industrial de Belo Hori- brevivência e de resistir ao mo-
francês do que às condições específi- zonte é retardada. Isso resulta delo sócioeconômico-político
cas da natureza e do terreno onde se das várias crises econômicas de-
implantava. (Monte-Mor, 1994. p.
excludente, grande parte da po-
14) sencadeadas na virada do sécu- pulação belo-horizontina – co-
lo, das lutas políticas, dos anta- nhecida como população de rua
Monte-Mor salienta ainda
gônicos interesses travados em – buscou formas de trabalho al-
que a referida capital foi proje-
vista do controle sobre o capital ternativo e de organização na in-
tada dentro de um modelo eli-
e das debilidades na resolução formalidade. A maioria desses
tista excludente. Ele afirma:
de problemas regionais e urba- habitantes da rua, antes oriun-
A década de 80 encontrou a RMBH nos, como transporte e energia. da de outros Estados, vem hoje
apresentando os mais altos níveis de
atendimento daqueles serviços urba- Simultaneamente ao processo do próprio interior do Estado, do
nos voltados para a produção: ener- migratório, dá-se uma intensifi- campo ou dos garimpos. Aqui
gia elétrica, infra-estrutura de trans- cação das atividades urbanas trabalham como camelôs, lava-
portes e serviços de telefonia. De ou-
tra parte, os mais baixos níveis de provocada pela dinamização do dores de carro, na prostituição,
serviço de saneamento em Minas eram crescimento industrial, aliada à e ainda como catadores de pa-
encontrados na RMBH (...). (Andra- política de gastos públicos. Os pel, objeto deste estudo.
de e Monte-Mor, 1994, p. 25)
anos 80 nos revelam que o muni- Os catadores de papel são, em
E prossegue o autor: cípio de Belo Horizonte cresceu sua maioria, possuidores de cer-
O centro urbano fechado sobre si demasiadamente, sendo a sua to grau de escolaridade.
mesmo exclui ainda mais fortemen- periferia reflexo maior de tal Conforme pesquisa realizada
te do espaço do poder a população tra-
balhadora – o centro histórico implo- crescimento. em setembro e outubro de 1993
diu – e adensou-se e excluiu os não- Dos 2,1 milhões de migrantes com 411 catadores de recicláveis,

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A população de rua e suas relações de trabalho – “Os catadores de papel em ...

constata-se que 22% deles são conceito – tanto por parte da po- ciamento de projetos que viabili-
analfabetos, 33% não completa- pulação, quanto do poder público zam a continuidade e ampliação
ram o primário, 25% têm primá- – caracterizando-os como uma ca- do seu processo organizativo.
rio completo (até 4a série), 14% tegoria marginalizada e sem re- Relativamente à parceria com
de 5a a 7a série, 3% completaram conhecimento social e profissio- a Prefeitura Municipal de Belo
o 1º grau, 2% concluíram o 2º nal, os catadores de papel se ar- Horizonte, pode-se dizer que es-
grau, 1% tem o 2º grau incom- ticularam, se reuniram inúmeras ta reflete visivelmente a inversão
pleto e, entre todos os pesquisa- vezes debaixo dos viadutos ou de prioridades que se deu a par-
dos, apenas uma catadora tem nas casas de alguns nas favelas tir da última administração.
curso superior.1 da cidade e, então, fundaram a
Em dezembro de 1992, foi celebrado
Os catadores de papel eram ASMARE (Associação dos Cata- o convênio entre a Prefeitura, a AS-
estigmatizados pela sociedade dores de Papel, Papelão e Mate- MARE e a Mitra Arquidiocesana,
como vagabundos e marginais. rial Reaproveitável de Belo Ho- caracterizando uma mudança de pos-
tura do poder público e da sociedade
Enquanto elementos estranhos à rizonte). Isto se deu em 1° de em relação a esses trabalhadores. A
civilização, eram perseguidos maio de 1990. partir de 1993, com a assinatura de
pela polícia e expulsos dos espa- Com a fundação da Associa- termos aditivos ao convênio existen-
te, possibilitando inclusive o forne-
ços onde viviam com suas famí- ção, os catadores de papel foram cimento de vales-transportes e uni-
lias, sendo-lhes assim vedado o conquistando credibilidade de formes, o poder municipal dá um sal-
acesso aos materiais que propor- vários grupos e entidades. Nes- to qualitativo ao reconhecer formal-
mente o trabalho do catador no sis-
cionavam sua sobrevivência, is- te sentido, vale destacar a expe- tema de limpeza urbana do municí-
to é, os restos deixados pelas ruas riência inédita de relação de par- pio, elegendo-o agente prioritário da
(papel, papelão, plástico, ferro ceria com o poder público, repre- coleta seletiva e incluindo-o como
parceiro, e não mais inimigo.3
velho, alumínio e outros materi- sentado pela SLU (Superinten-
ais reaproveitáveis). O poder pú- dência de Limpeza Urbana) e No reconhecimento dos cata-
blico administrativo desrespeito- pela SMDS (Secretaria Munici- dores de papel como trabalhado-
samente não os considerava co- pal de Desenvolvimento Social), res e na relação de parceria esta-
mo cidadãos trabalhadores. José além das ONG’s, Pastoral de Rua belecida com eles, percebe-se a
Carlos, catador de papel, dizia: e Cáritas Regional. tentativa de incluí-los, conside-
No que se refere à Pastoral de rando-os como cidadãos e, mais,
... Vivíamos sendo marginalizados,
chamados de vagabundos, ladrões, Rua e à Cáritas Regional, cabe a compreendendo o espaço urba-
ninguém levava em conta nosso tra- elas apoiar os catadores em sua no por eles conquistado enquan-
balho. Éramos perseguidos pela Pre-
organização, prestando serviços to espaço de luta e de exercício
feitura e pela Polícia... trabalhamos
no sol e na chuva, sem férias nem de assessoria e educação social, da cidadania.
descanso. A nossa casa era a rua, o de forma a atingir as dimensões A atividade dos catadores de
nosso teto o carrinho...2
cultural, social, econômica, polí- papel é fundamental para o ecos-
Apesar do descaso e do pre- tica e mística, além do finan- sistema e representa, para o mu-

1
Cf. Relatório Parcial – Pesquisa Catadores de Material Reciclável do Fórum da População de Rua – INAPP – setembro de 1994.
2
José Carlos faleceu há dois anos, aos 38 anos de idade. Participou do processo de fundação da ASMARE, sendo dela tesoureiro.
3
Cf. texto “Coleta Seletiva de Belo Horizonte”, elaborado por Maria de Fátima Abreu, Mara Luisa Alvim Mota e Sônia Maria
Dias – Equipe Técnica da SLU.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 7-11, out. 1997 9


Maria Vany de Oliveira

nicípio, a diminuição de gastos é feito um levantamento de todo de Almeida Neves Delgado, Pe-
exaustivos com a limpeza públi- o capital produzido. Sanadas as ter Burke, Gwyn Prins, entre ou-
ca. Na tentativa de superação da despesas, o restante é distribuí- tros.
visão preconceituosa do trabalho do entre os associados, de acor- Gwyn Prins, no livro organi-
dos catadores de papel em Belo do com o que cada um produ- zado por Peter Burke, afirma
Horizonte, a ASMARE busca, ziu. que:
juntamente com as entidades A experiência de inserção dos É justamente o uso de tal reminis-
parceiras, qualificar os catadores catadores na rua e nos três gal- cência que tem sido até agora a mai-
or contribuição de historiadores co-
para que possam realizar com pões de triagem onde trabalham
mo Paul Thompson. Eles são histo-
eficiência o seu trabalho na cole- levou a inúmeras transforma- riadores sociais e utilizam os dados
ta seletiva. ções em sua vida cotidiana, a orais para darem voz àqueles que não
se expressam no registro documen-
A organização dos catadores partir de sua organização.
tal. (Prins, 1992, p. 192)
representa o rompimento com as Este artigo limitou-se a infor-
barreiras resultantes do desem- mações gerais acerca do proces- O autor prossegue, comen-
prego e do subemprego, que le- so organizativo desses agentes tando o pensamento de Thomp-
vam inúmeras pessoas a ingres- precursores da coleta seletiva. son escrito nas primeiras linhas
sarem no mercado informal de Muito mais, certamente, há de de The voice of the past:
trabalho. Esse rompimento se ser descoberto nos bastidores Toda história depende finalmente de
manifesta na ocupação do espa- dessa organização. Essas mulhe- seu propósito social, e a história oral
é a que melhor reconstrói os particu-
ço que os catadores organizados res e homens que, com ousadia, lares triviais das vidas das pessoas
conquistaram, sendo reconheci- resistem às diversas formas de comuns para aqueles que desejam
dos enquanto categoria profis- exploração, também fazem par- realizar isso. (Prins, 1992, p. 192)

sional. te do processo histórico. É preci- Considerando a inexistência


Em termos econômicos, a As- so dar visibilidade a suas propos- de um trabalho historiográfico
sociação representa benefício pa- tas, por meio da escuta de suas sobre os catadores de papel em
ra o catador associado que entre- falas. Belo Horizonte, somos pelo
ga aí o seu material. Ele tem a ga- Assim, no desenvolvimento aprofundamento do tema, so-
rantia de 20% ao mês acima do desta pesquisa está sendo utili- bretudo para que sua experiên-
valor real do papel, o que não zado o método da história oral, cia de organização possa esten-
ocorre quando vendem para partindo da fundamentação teó- der-se a outros grupos de excluí-
atravessadores. No final do ano rica de Paul Thompson, Lucília dos, na luta pela cidadania.

10 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 7-11, out. 1997


A população de rua e suas relações de trabalho – “Os catadores de papel em ...

Referências bibliográficas
01. ABREU, Maria de Fátima. Coleta seletiva de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Superintendênica de Limpeza
Urbana de B. H., 1993/1994.
02. BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Cenas de um Belo Horizonte. Belo Horizonte, 1994.
03. BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Plano diretor de Belo Horizonte; lei de uso e ocupação do solo –
estudos básicos. Belo Horizonte, 1995.
04 BURKE, Peter (Org.). A escrita da história; novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992.
05. CASTEL, Robert. Da indigência à exclusão, a desfiliação; precariedade do trabalho e vulnerabilidade relacional.
In: LANCETTI, Antônio (Org.) . Saúde e loucura. São Paulo: Hucitec, 1991.
06. MONTE-MÓR, Roberto Luís de Melo (Coord.). Belo Horizonte; espaços e tempos em construção. Belo Hori-
zonte: CEDEPLAR/RBH, 1994. 94p. (Coleção BH 100 anos).
07. ROSA, Cleisa M. População de rua – Brasil e Canadá. São Paulo: Hucitec, 1995.
08. VIEIRA, Maria A. C., BEZERRA, Eneida M. R., ROSA, Clisa, M. M. (Org.). População de rua quem é, como vi-
ve, como é vista. São Paulo: Hucitec, 1992.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 7-11, out. 1997 11


Yonne de Souza Grossi

BELO HORIZONTE: QUAL PÓLIS?

Yonne de Souza Grossi


Departamento de Economia – PUC•Minas

C
RESUMO omo tornar possível a história dos
Este ensaio examina o processo mundos que se desmoronam? Como
de fundação da capital mineira,
tendo como eixo temático a ques- contar a gesta do lugar, ocultando o
tão da liberdade. O ponto de parti-
seu ponto de partida? Como frestar a região de
da é a idéia de pólis grega, na con-
figuração de seu espaço público,
las madres, matriz de excelência na interpreta-
rastreando instâncias significati-
vas na evolução do direito à cida-
ção do presente? Dois mitos de origem assina-
de. Belo Horizonte emerge como
lam o início da civilização ocidental, sob o sig-
sujeito histórico, capaz de criar sua
unidade política.
no da liberdade: um de procedência judaica,
outro de raiz romana (Lafer, 1980, p. 31-32). A narrativa bíblica mostra o
êxodo dos judeus quando cativos do Egito e a criação de sua comuni-
dade sob a lei de Moisés, na terra do leite e do mel. Já Virgílio, em seu
poema Eneida, nos conduz à fundação de Roma, fruto do errar de
Enéias, após a destruição de Tróia. Nas duas alegorias, o agir conjunto
da comunidade é motivado pelo amor à liberdade.
Dois movimentos compõem esse itinerário: desvencilhar-se da
opressão e o estabelecimento da liberdade. O desprender-se da antiga
ordem e a criação da nova liberdade. A passagem entre os dois mo-
mentos, ou seja, os anos de cativeiro e as viagens de Enéias, tem um senti-
do alegórico: a liberdade não representa uma forma automática que pode

12 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 12-24, out. 1997


Belo Horizonte: Qual pólis?

se suceder aos desastres sociais; bolo grego da liberdade, a Ágora, guês adotando, no século XIX,
ela passa pela edificação de um passa a ser considerado como um governo imperial mediado
regime de governo. Essa questão “dos antigos” (Coulanges, 1950, pela própria coroa lusitana. En-
se refere ao exercício da liber- p. 342). Os modernos lidam com tre as províncias brasileiras, a de
dade: precisa ser praticada. No sociedades complexas, onde o Minas Gerais foi palco de sedi-
entanto, essa constatação será demos como corpo de cidadãos ções iluminadas pela liberdade,
respondida não pelas institui- não é mais soberano. O ideal da sendo a da Inconfidência gera-
ções mosaicas ou romanas, mas comunidade grega não tem res- dora do mito-herói Tiradentes.
pela experiência da pólis grega. sonância entre nós, a sociedade Sua ressonância atual na forma-
A prática da liberdade nos re- moderna é um espaço coletivo ção do imaginário de diferentes
mete à sua origem, na antigüi- que se opõe, se contradiz e se di- classes sociais atua também co-
dade grega, na lapidar constru- ferencia, relacionando-se através mo válvula-reforço no discurso
ção de sua pólis, inaugurando a de mediações tensas. A marca de políticos e estadistas mineiros.
experiência da democracia. Dos fundamental da sociedade, que Proclamada a República, em
três regimes políticos que os gre- Maquiavel tão bem coloca no sé- 1889, a nova ordem federativa
gos conheciam, apenas a demo- culo XV, é que existe nela uma redesenhará, nos anos 90, uma
cracia revelava a dignidade hu- divisão originária: o desejo dos situação inusitada no novo Esta-
mana: opunha o princípio de grandes de oprimir e comandar, do de Minas Gerais: a constru-
igualdade ao ditame oligárqui- e o desejo do povo de não ser ção planejada da cidade que será
co, mantendo “contra a tirania, oprimido nem comandado. Isso sua capital, Belo Horizonte. Esta
o direito à liberdade” (Glotz, é o que Marx mais tarde qualifi- agenciará, em parte, a nova liber-
1980, p. 118). Tucídides configura cará como luta de classes, numa dade republicana. Recuperar es-
o ideal de Atenas quando evoca: perspectiva histórica e teórica. se momento, explicitá-lo no es-
As nações ocidentais contem- paço contraditório do poder e da
A Constituição que nos rege nada
porâneas, mesmo no final do sé- liberdade, tendo como marco re-
tem que invejar às leis dos povos vi-
zinhos; serve-lhes de modelo e de mo- culo XIX e no século XX, ainda ferencial a pólis grega, tais os li-
do algum as imita. O seu nome é de- guardam a marca opressora e mites e o alcance deste ensaio.
mocracia, porque visa ao interesse,
perversa do colonialismo. A Alguns interrogantes direcionam
não de uma minoria, mas de grande
maioria. (Glotz, 1980, p. 118-119) aventura européia de descobrir nosso objetivo: quais as imagens de
possibilidades históricas que a nova
e explorar outras terras e outros
capital recria? Qual é a natureza de
Quando, a partir do século IV povos, a partir do século XVI, um espaço público representado pela
AC, a rica experiência da liber- aporta espaços de dominação liberdade? Quem constrói a cidade?
dade foi sendo sepultada em so- onde a prática da liberdade tor-
lo grego, sua memória, no entan- na-se apenas uma hipótese de
to, permaneceu imbricada no luta. Hipótese esta que, com o A pólis grega constrói
tempo das coisas, tempo dos passar do tempo, concretiza-se seus interrogantes
fragmentos, tempo lacunar for- em diversas formas de indepen-
jado de rupturas. Sua reinven- dência, cada região com suas sin- Um grupo de escravos passa
ção pontilha séculos, submerge gularidades. Assim é o caso bra- pela praça de Atenas. Lá um ho-
e volta a nascer, na descontinui- sileiro, que vivenciará sua inde- mem fala a ouvintes. — Quem é
dade do próprio tempo. O sím- pendência do domínio portu- este homem? Indaga um jovem

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 12-24, out. 1997 13


Yonne de Souza Grossi

escravo. — É Platão discursan- Como se constrói esse ho- Na Paidéia, há um abismo entre
do sobre a sua democracia, res- mem público? Na tessitura da li- as esferas pública e privada, abis-
ponde outro. — Sigamos, retru- berdade e da necessidade, que mo este que os tempos moder-
ca o jovem... Essa clássica ima- na antiga Grécia qualificam as nos desalojaram, transformando
gem da democracia mostra o di- esferas pública e privada. O sen- a liberdade em direitos individu-
lema da liberdade, mesmo na ci- tido original de privado circuns- ais, direitos civis do homem pri-
dade que forja sua matriz para o creve a esfera da família, relaci- vado. Também a igualdade dos
ocidente. Na antiga Grécia, há onada com a vida do indivíduo antigos não possui a conotação
dois mil e quinhentos anos, de- e a sobrevivência da espécie, te- moderna que a vincula à justiça
fine-se a vida política como a vi- mas por excelência domésticos, social, figurando apenas a liber-
da justa, advinda do agir conjun- definidores das atividades rela- dade política dos membros da
to, no espaço livre da palavra e cionadas ao reino das necessida- pólis.2 A idéia de cidadania era,
da ação. Os pressupostos desse des humanas, das utilidades e portanto, restrita, não abrangen-
agir comunitário repousam nas carecimentos. A casa, para o gre- do a população, apenas o demos,
figurações da liberdade e da go, significa ter um lugar no ou seja, o corpo de cidadãos. O
igualdade. A aspiração funda- mundo e poder participar de demos quando reunido é sobera-
mental da democracia grega é a seus negócios. Na vida em famí- no, “as suas atribuições compre-
igualdade, no sentido político e lia, o chefe impera com poderes endem tudo e os seus poderes
jurídico; esta “tanto pode indi- despóticos e incontestes. Essa são ilimitados”. (Glotz, op. cit., p.
car a independência do indiví- esfera denota estar privado de 150)3
duo, como a de todo o Estado” participação no bem comum e Na cidade-estado, a liberda-
(Jaeger, 1936, p. 510).1 O concei- público, que significa a vida na de é um conceito político, envol-
to grego de liberdade, na época pólis; esse espaço identifica fami- vendo a cidadania. Não signifi-
clássica, representa não ser escra- liares e escravos. Pertencer à ca, entretanto, ausência de nor-
vo de ninguém, significa a pos- pólis, domínio da esfera pública, mas, mas autonomia no sentido
sibilidade de decidir, na praça representa ter ultrapassado o de “obediência à própria lei co-
pública, os negócios da Repúbli- plano da necessidade e do care- letivamente elaborada na praça
ca. Em outras palavras, trata-se cimento, condição para ingressar pública” (Lafer, op. cit., p. 14),4
da liberdade do homem públi- no reino da liberdade. Este é o onde se reunia a Assembléia do
co. Entretanto, uma dívida não reino das relações entre iguais, Povo, soberana em suas decisões.
paga poderia suspender judici- os cidadãos, comunidade de A reunião chamada ágora exigia
almente a cidadania do indiví- iguais em sua liberdade para de- uma praça pública, que tem o
duo, tornando-o escravo até a liberar e governar, participando mesmo nome. Em sua origem,
quitação do débito. democraticamente nas decisões. ela é o lugar das trocas, do ven-

1
A Paidéia considera a escravidão a base sobre a qual repousa a liberdade da população citadina. Assim tem-se que “artes
liberais são aquelas que formam parte da cultura liberal, que é a paidéia do cidadão livre, em oposição à incultura e mesquinhez
do homem não livre e do escravo”. Foi Sócrates que fez da liberdade um problema ético, ao criticar a divisão social da pólis
em livres e escravos. p. 511.
2
Uma discussão sobre as idéias desenvolvidas pode ser encontrada em: Lafer, 1980; Arendt, 1983; Anastasia, 1988; Carvalho,
1989 e Coulanges, 1950.
3
Vale lembrar que cidadão na cidade-estado é aquele que fazia parte do culto da cidade, sendo que desta participação lhe
derivavam direitos civis e políticos. (Coulanges, 1950, p. 293)
4
Na antiga Grécia autonomia significa o “direito de se reger pela própria lei”. Vem de autos, por si próprio, e nomos, lei.

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Belo Horizonte: Qual pólis?

der ou comprar para satisfazer periências políticas que corres- mecânicas repetições, mas uma
as necessidades. Nas antigas ci- pondem ao conceito de liberda- evocação cujas ressonâncias eco-
dades oligárquicas da Tessália, a de têm na Ágora seu ícone sim- am em cidades modernas. Em
ágora chamava-se Praça da Liber- bólico, expressando imagetica- contraste, porém, a liberdade
dade. Em que sentido pode-se mente uma comunidade de iguais. dos modernos estará impregna-
entender tal expressão? Se no A partir do século IV, a Ágora da pela conveniência do interes-
cantão da Tessália eram proibi- começa a desalojar os homens. se individual, o reino da razão
dos de freqüentar a praça públi- Sua imagem povoa a cidade, exi- servindo às paixões.
ca “o artesão, o campônio e to- gindo em seu silêncio que ela se
dos os indivíduos que exerces- interrogue. A experiência sobe-
sem esse gênero de profissão”? rana da Hélade ficara rompida A que veio
Cabia ainda aos magistrados de- desde a batalha de Queronéia. Belo Horizonte
sembaraçá-la “de toda a sorte de Os antigos estados, mesmo se
mercadorias”. Enquanto a Praça unindo para enfrentar “a última A percepção da cidade como
do Mercado, “suja de víveres”, batalha pela liberdade”, foram um lugar de mercado faz parte
era entregue ao tráfego, a Praça derrotados pelo poderio militar da literatura que se reporta ao fe-
da Liberdade era reservada a do reino macedônio (Jaeger, nômeno urbano, na Europa oci-
“exercícios ginásticos de cida- 1936, p. 1329). Há uma ruptura dental. Entre outros, Weber e
dãos privilegiados”. (Glotz, 1980, dramática na história da cidade- Marx coincidem neste ponto.
p. 17-18, 67) estado, como um sujeito coleti- Marx chega a salientar a impor-
De fato, a praça não serve vo capaz de imprimir seu pró- tância da cidade para a existên-
apenas para transações comerci- prio destino, criando e transfor- cia do capitalismo. É a mão-de-
ais, mas é o lugar onde se discu- mando cenários sociais. obra livre e disponível, em rela-
te política e se formam opiniões. A construção helênica, desar- ção com proprietários de meios
Responde, no século V AC, à in- ticulada, paralisada em seu flu- de produção, que efetiva a exis-
terrogação da pólis, construindo xo contém, no entanto, passados tência do mercado, como lugar
um espaço livre para a palavra e cativos que podem ser liberta- de trocas. Todavia, uma das mais
a ação. Responde ao desejo dos dos. Não em sua continuidade, antigas referências ao mercado
cidadãos, agenciando seu locus ensina Benjamim, mas despren- parte de Anaximandro, que usa
de participação democrática. A dendo-os de um tempo homo- a imagem do tribunal para figu-
praça materializa as raízes insti- gêneo, como se despertássemos rar a “luta das coisas”:
tuintes da pólis, forjando sua mortos em suas sepulturas; tra-
identidade com os deuses fun- ta-se de um tempo impregnado Temos diante de nós uma cidade jô-
nica. Lá está o mercado, onde se admi-
dadores da cidade, solenemen- de ágoras, uma teia em cada pre- nistra justiça; sentado em sua cadei-
te reverenciados na Acrópole, sente comunicando-se com dis- ra, o juiz estabelece a pena. O juiz é o
sua parte mais alta. A Ágora reú- tintos passados (Benjamim, tempo. (...) O seu braço é inexorável.
Quando um dos contendentes tirou ao
ne, assim, “todos os requisitos 1986). Nesse sentido, podemos
outro demasiado, é-lhe de novo retira-
para servir às assembléias plená- considerar a liberdade dos anti- do o excesso e dado ao que ficou com
rias” (Glotz, 1980, p. 17). As ex- gos, não como um registro de pouco. (Jaeger, 1936, p. 186)5

5
Para um estudo da evolução do fenômeno urbano, ver Mumford, 1982.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 12-24, out. 1997 15


Yonne de Souza Grossi

Relações sociais, como as des- Carlos Nelson Santos, (San- A ordem social baseada no es-
critas, só ocorrem na cidade. Por tos, p. 39) ao falar das cidades no cravismo insere o negro em uma
outro lado, a cidade é um instru- Brasil, lembra as capitanias, “li- classe social, onde é ao mesmo
mento de dominação, na me- nhas paralelas feitas a esquadro tempo capital investido e traba-
dida em que sedia órgãos locais sobre uma terra” que se deseja lho, circunscreve formas de di-
de poder e controle dos habitan- sob controle e disciplina, “para visão social do trabalho, apropri-
tes. Sérgio Buarque de Holanda, glória e riqueza dos colonizado- ação e dominação exercidas pe-
em seu precioso capítulo sobre res”. E as primeiras cidades, in- los brancos detentores de rique-
“O Semeador e O Ladrilhador”, daga o autor? “São Vicente, Sal- za e poder. No regime escravista,
mostra a fundação da cidade vador, Olinda... pedaços de Lis- eixo do sistema colonial, qualifi-
durante a conquista espanhola, boa nos trópicos, concebidas ca-se “o trabalho produtivo como
tecendo comparações com a co- prontas: (...) casa da Câmara aqui, algo inerente e exclusivo de ne-
lonização portuguesa em terras igreja ali, adiante fortaleza e co- gros ou de pessoas socialmente
brasileiras (Holanda, 1982, p. 61- légio”. Seguiam a tradição de desclassificadas...” (Boschi, 1986,
100). Comenta que a Coroa de “ocupar morros”. Rio e Salvador p. 141, 148). As contradições ge-
Castela imprime ao nascimento são exemplos de “aproveitamen- radas pelo antagonismo de inte-
das povoações rígidos regula- to de um suporte físico compli- resses entre a Metrópole e a co-
mentos inscritos nas Leis das Ín- cado”. lônia vão criar cenários de resis-
dias. A edificação dos núcleos ur- Com o descobrimento do ou- tência e luta de classes contra a
banos parte sempre da “chama- ro das Gerais, no terceiro século opressão do Estado. A organiza-
da praça maior”, sendo sua for- de domínio português, assisti- ção das vilas e povoados passa a
ma um quadrilátero. O povoa- mos à expansão da fronteira li- ter o desígnio claro de se conse-
mento surge nitidamente de um torânea. Agora, no entanto, ca- guir maior controle sobre os ha-
centro, sendo a praça a base para be à iniciativa particular a ocu- bitantes.
o traçado das ruas. Os portugue- pação do território, e não mais a Até os últimos decênios do sé-
ses, pragmáticos, são mais flexí- “uma política dirigida e planeja- culo XIX, as cidades são raras na
veis ao compor a paisagem urba- da pelo Estado; para Minas con- paisagem brasileira. Com a abo-
na colonial, dado talvez o seu ca- verge toda espécie de gente, lição da escravatura e a procla-
ráter de exploração comercial. O compondo nas suas origens uma mação da República, novos
povoamento será contido no li- sociedade anárquica...” (Boschi, construtos agenciam as necessi-
toral, uma das medidas estipu- 1986, p. 142). Faiscadores, garim- dades. Deseja-se promover uma
ladas pelas cartas de doação das peiros, artesãos, comerciantes, nova ordem: para engendrá-la e
capitanias. Na América portu- contratadores, militares, profis- assegurá-la, são imprescindíveis
guesa, o desenho das cidades se sionais liberais, entre outros, for- as cidades. Pereira Passos recons-
entorna no desalinho das ruas jam migrações: trói e embeleza o Rio, tornando-
estreitas que acompanham os A urbanização, que dá tom singular a uma cidade sanitária, bem or-
declives do terreno, mesclando- à sociedade mineira do século XVIII, ganizada, ordenada, estetica-
se com as concepções européias possibilitou uma forma de domina- mente unificada. As classes me-
ção mais ostensiva por parte do Esta-
do casario urbano. A natureza da do sobre esta sociedade inicial que, nos favorecidas são desalojadas
obra realizada pelos portugueses embora original, não possuía identi- para a periferia, permitindo ao
traz a marca da feitorização. dade própria... (Boschi, 1986, p. 143) centro emoldurar a presença da

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Belo Horizonte: Qual pólis?

nascente burguesia. Paralela às anos 90, existe até o presente. A de Minas Gerais representa uma
medidas de saneamento pro- par dessa religiosidade fundan- obra significativa da República,
vocadas pelo surto de varíola de te, também nos anos noventa integrando, em parte, o projeto
1904, procede-se a uma redistri- surge uma corrente política, de de reordenação política do país,
buição espacial de grupos soci- inspiração positivista, liderada bem “como o nível espacial de
ais. Para Sevcenko, essa reurba- por Benjamim Constant, embo- redistribuição do poder”; ilus-
nização da cidade “trouxe consi- ra o eixo do movimento tenha se trativa “a transferência da capi-
go fórmulas particularmente deslocado para o Estado do Rio tal de Minas – consentida logo
drásticas de discriminação, exclu- Grande do Sul. (Paim, 1967 e no 7º decreto da República, no
são e controle social”, atingindo Paim, 1980)7 quinto dia após sua instalação”.
as classes menos favorecidas da A matriz positivista se encai- (Magalhães & Andrade, 1989, p.
sociedade. (Sevcenko, 1984, p. 88) xa em leis que garantem o funci- 185 e Melo, 1990, p. 92)9
Uma das preocupações cen- onamento da sociedade. Os po- O que irrompe da informe
trais do Império é a organização sitivistas tentam justificar e ao República? O desejo de enraizar
do Estado brasileiro. Busca-se ga- mesmo tempo definir o nosso o poder do Estado. Para tanto
rantir a unidade política do país, atraso cultural. Acreditam na es- contribui, “em parte, a longa tra-
constituir um governo capaz de cola como restauradora de nos- dição estatista do país, herança
integrar as províncias, manten- sas forças sociais, e consideram portuguesa reforçada pela elite
do a ordem social. O final do Im- a República como uma perfeita imperial” (Carvalho, 1989, p.
pério é que alojará o debate so- forma de ordem política moder- 273). Entre os pressupostos da
bre a formação da nação, redefi- na, com seus mecanismos de República, temos a superação do
nindo a cidadania (Carvalho, participação.8 O lema positivis- atraso cultural e, para tanto, são
1989, p. 265-266). Entretanto, a ta, “a ordem por base, o progres- criados imagens e símbolos. Di-
questão da identidade nacional so por fim”, sustenta-se na razão zia-se que:
perpassa a literatura romântica que engendra o conhecimento (...) em 6 anos pode o novo regime
dos meados do século.6 A partir científico. Sua influência simbó- fazer mais pelo Brasil que o antigo,
da segunda metade do século lica repousa na bandeira brasilei- em 67 anos. As antigas províncias
que definharam por falta de rendas,
XIX, surge a influência positivis- ra, e seus princípios de neutrali- presas e manietadas pelo governo
ta. A sociedade positivista, fun- dade e racionalidade estarão central, são hoje Estados prósperos,
dada em 1876, cria a Igreja Positi- também presentes no planeja- pujantes de elementos de vida. (...)
A República será mantida pela Fe-
vista do Brasil, no Rio de Janei- mento da cidade de Belo Hori- deração. (...) O Estado será mantido
ro, cujo templo, construído nos zonte. A nova capital do Estado pelas libérrimas instituições decre-

6
Na Europa, por volta de 1820, o romantismo oferece uma conotação de cidade com fundamentos locais, raízes do povo, na-
cionalismo. A cidade surgindo como significado da afirmação como povo. Mas tudo isto ligado à definição dos estados na-
cionais. E o Brasil: O movimento do romantismo local também busca suas raízes. Onde a origem? No índio: assim, O Gua-
rani, de José de Alencar (publicado em 1857), tenta definir laços, dentro das linhas européias, sem identidade com a raiz do
povo. Trata-se da ligação simbólica entre uma jovem loira portuguesa e um chefe indígena.
7
Também sobre a temática ver Costa, 1957.
8
Para perceber a política expressando-se como prática pedagógica, nos primeiros 15 anos da República, consultar o luminoso
trabalho de Melo, 1990, especialmente capítulo 2.
9
O parágrafo 10, do referido decreto 7º, determinava em seu artigo 20 ser da competência dos governadores dos mesmos Es-
tados “estabelecer a divisão civil, judicial e eclesiástica do respectivo Estado e ordenar a mudança de sua capital para o lugar
que mais convier”.

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Yonne de Souza Grossi

tadas. (Fortes, 1896, apud Melo, fecundação da liberdade, repre- blemas de mão-de-obra, dada a
1990, p. 69)
sentada pelas sedições de 1720 e ruptura do país com o trabalho
Embora nos subterrâneos do 1798. Belo Horizonte poderia ser escravo. O desenho da cidade
poder circuitos de forças políti- definida como a cidade capaz de apresentará uma forma ortogê-
cas lutassem para se tornar fac- resgatar o sangue e ideais de nica, com suas largas ruas e am-
ções hegemônicas no seio das seus heróis mineiros, estampan- plas avenidas bordejando suas
classes dominantes, a palavra do, em plano nacional, a figura praças e áreas centrais. Anos
oficial traduzia as novas imagens de seus inconfidentes, proto-re- mais tarde, dirá o poeta Carlos
da construção republicana. De publicanos. (Melo, 1990, p. 100- Drummond de Andrade:
herança positivista, outro pres- 101) Por que ruas tão largas? / Por que
suposto do regime é o trabalho, Na nova capital, a alegoria da ruas tão retas? / Meu passo torto /
escondendo seu caráter explo- foi regulado pelos becos tortos / de
liberdade fará parte da batalha
onde venho. / Não sei andar na vas-
ratório, para explicitar sua sede de símbolos, mitos e rituais, inte- tidão simétrica / Implacável. / Cida-
material, que configura o pro- grando as batalhas ideológica e de grande é isso? (...) / Aqui tudo é
gresso. Impossível com escravos exposto / evidente / Cintilante. Aqui
política, “em torno da imagem
/ obrigam-me a nascer de novo, de-
atender a essa meta. Assim a Re- do novo regime, cuja finalidade sarmado. (Andrade, 1985, v. 2, p.
pública significa, entre outras era atingir o imaginário popular 781)
coisas, trabalho livre, poder, Es- para recriá-lo dentro dos valores A sensibilidade do poeta
tado, este identificado à nação, republicanos” (Carvalho, 1990, apreende elementos de projeção
à pátria. Havia, no plano econô- p. 10). A construção de um ima- de interesses e aspirações dos di-
mico, uma crise do café, gestada ginário é considerada rigentes. Esses elementos devem
no final do século, e que se es- ... parte integrante da legitimação de menos transparecer aos gover-
tenderia até o primeiro decênio qualquer regime político. É por meio nados do que modelar visões de
do século XX. Ora, o café repre- do imaginário que se podem atingir
não só a cabeça, mas, de modo espe- mundo e orientar condutas, ma-
sentava 75% da produção brasi- cial, o coração, isto é, as aspirações, nipulando sentimentos coletivos
leira. Por que a cidade, o desen- os medos e as esperanças de um povo. no ocultamento de forças sociais
volvimento urbano não poderi- É nele que as sociedades definem
suas identidades e seus objetivos, de- atuantes na construção da cidade.
am dar uma resposta à crise? Mi- finem seus inimigos, organizam seu
nas Gerais surge com sua pro- passado, presente e futuro. O imagi-
posta de mudança de capital, já nário social é constituído e se expres-
sa por ideologias e utopias, sem dú- A cidade de Minas
acalentada. Além do impacto so- vida, mas, também, por símbolos,
cial pela construção planejada da alegorias, rituais, mitos. (Baczko,
registra sua memória
nova capital, das oportunidades mimeo)

econômico-financeiras, havia Para acionar o vetor cogniti- A moderna Belo Horizonte,


um requisito de natureza políti- vo do imaginário, a nova capital nos primeiros anos Cidade de
ca: a nova capital, obra maior da administrativa de Minas repou- Minas, simboliza a República na
República nascente, expressaria sará na matriz ordem e progres- utopia de uma nova ordem, ne-
a ruptura com o passado coloni- so, projetada que foi segundo os gando porém , em parte, sua
al, com a opressão externa sobre cânones da ciência positiva, re- promessa de liberdade e igual-
nós. Ouro Preto, entretanto, evo- ferendada pelo emergente in- dade, instituintes da cidadania.
caria um solo sagrado, mítico na dustrialismo, que enfrenta pro- Isto porque conformará um es-

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Belo Horizonte: Qual pólis?

paço social de desigualdade e (Magalhães & Andrade, 1989, p. na da suburbana. Essa divisão foi
exclusão, territorializado no pró- 58). Também se refere “aos da- justificada pela conveniente fa-
prio agenciamento topográfico dos positivos” coletados, que di- cilidade na distribuição dos im-
de sua construção. Por outro la- recionam as indicações. A intro- postos locais,10 servindo também
do, a nova capital, “filha primo- dução de um médico sanitarista para a circulação de pessoas e
gênita da República”, configura na equipe aponta para a nature- mercadorias. Na zona urbana,
uma força social capaz de evo- za higienizadora do empreendi- temos as atividades econômicas
car em sua história a escuta vigi- mento, exigência das modernas e administrativas, ponto de par-
lante dos ecos de poder do novo cidades européias, no seu dese- tida para o povoamento. O cír-
regime. A cidade, como sujeito jo de buscar ar e luz, “limpar” o culo é forma de identificação
histórico, cunha o sentido de que há de escuro e sujo (Santos, perfeita, com equilíbrio e harmo-
transformação, de mudança, de p. 33). Neste sentido, também nia das partes. Concentra sua
implantação e, paradoxamente, haverá um exorcismo sanitário força a partir de um ponto cen-
corporifica a liberdade como das classes menos favorecidas tral, comandando seus direcio-
compromisso da atuação políti- para fora dos espaços considera- namentos legíveis de imediato;
ca do Estado de Minas Gerais. dos nobres, dentro dos padrões como referencial da cidade,
Como comprovação empírica, da cultura ocidental indus- identifica-se com a ordem do Es-
assinalamos o processo que en- trialista. O que torna menos vi- tado e as ressonâncias do poder.
volve a construção inicial da ci- sível o espetáculo da desigualda- A cidade pode se definir, entre
dade. de, num novo mundo em que outras, pela ordem simbólica que
Inovações urbanísticas, mo- todos são considerados “livres e a institui. Nessa ótica, nas socie-
dernas e avançadas da época se- iguais”. dades presididas pela lógica do
rão aplicadas pela equipe do en- A planta da cidade, quando capital, cabe ao planejador defi-
genheiro chefe da Comissão da decisão do local pelo antigo nir lugares onde estarão os mo-
Construtora da Nova Capital, vilarejo Curral d’El Rey, é o re- numentos, os equipamentos, as
Aarão Reis, cuja passagem por sultado de uma rígida trama or- cores, as luzes; enfim, a gênese
Paris é um ponto de inflexão, ao togonal, baseada num círculo, de da ordem, capaz de orientar e co-
se identificar tendências positi- onde nascem avenidas que se mandar gestos, ações, sentimen-
vistas na elaboração do projeto. desdobram em acessos centrais tos. O conteúdo classista de do-
Mesmo no relatório de estudo para outras áreas. Essa via, em minação se ocultará na criação
prévio das localidades indicadas anel, fecha a cidade “nos moldes de representações e apelos cole-
para a nova capital, o técnico fa- da composição circular da cida- tivos. Porém, esse conteúdo
la de sua neutralidade, “sem pre- de utópica platônica” (Maga- emerge na periferia, através de
dileções prévias (...) nem paixões lhães & Andrade, 1989, p. 121). uma linearidade sombria que se
adquiridas”, agradecendo ao Trata-se de uma avenida de con- expressa na pobreza dos sinais,
Presidente do Estado, Afonso torno, denominada 17 de De- não raro sinais do trabalho ou
Penna, a confiança depositada zembro, que separa a zona urba- lazer do trabalho, cuja natureza

10
Ofício n. 26 de 23 de março de 1895, Estado de Minas Gerais, Comissão Construtora da Nova Capital, Revista Geral dos Tra-
balhos, Rio de Janeiro: H. Lombaerts, Rua dos Ourives, n. 7, 1895. O nome avenida 17 de Dezembro refere-se ao dia e ao ano
de 1893, quando foi promulgada a lei n. 3, adicional à Constituição, designando o lugar para a construção da capital mineira.
Ver: Octávio Penna, Notas Cronológicas de Belo Horizonte, Belo Horizonte: 1950.

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Yonne de Souza Grossi

impositiva prefigura o poder e a se à frente do Palácio da Liber- lítica e econômica, através da-
opressão.11 dade, projetado para residência quela topografia imaginária, cuja
A planta da cidade foi apro- do Presidente do Estado. As pe- proposta parece extrapolar o vi-
vada em 23 de abril de 1893, tra- dras fundamentais desse palácio sível e imediato da proposta ur-
çando na zona urbana, dentro e de três secretarias são lançadas banística. Passadas duas déca-
do círculo de contorno, 65 ruas, em 07/09/1896. Na Praça da Li- das, o testemunho de Pedro Na-
12 avenidas e 24 praças, e uma berdade, voltadas para o nascen- va lavra sua memória:
área aproximada de 9 mil metros te, estão as secretarias de Finan- Àquela época, naquele início dos
quadrados em duas seções do ças (hoje, Fazenda) e do Interior anos vinte, o governo de Minas dava
a impressão de solidez babilônica.
terreno, para alojar 30 mil habi- (hoje, Educação). Em frente à de
Seu símbolo era o palácio da Liber-
tantes. Consideram-se a Praça da Finanças, acompanhando o po- dade todo de pedra e parecendo uma
Liberdade, a Praça da Estação e ente, situa-se a de Agricultura esfinge agachada no fundo da praça.
Dali saíam o prêmio e o castigo. (...)
a Praça Raul Soares de singular (atual Viação e Obras Públicas).
O palácio, no fundo do duplo renque
importância no ordenamento A inauguração do Palácio se as- de palmeiras (...) Diminuí o passo,
simbólico da estrutura urbana da socia à da cidade em 12/12/1897. fui chegando perto, olhando a pedra
cinzenta que o pó de Minas ia to-
cidade. A Praça da Estação, nas Um trabalho “de terraplanagem
mando. Olhando para cima, vi um
primeiras décadas de vida da ci- deu origem à esplanada artifici- busto de mulher, soberbos seios de
dade, será palco privilegiado dos al onde se localizam a Praça da granito. Um capricho da luz moven-
te do sol deu-me a impressão que ela
trabalhadores na sua resistência Liberdade e o centro administra-
me olhava com olhos serenos e vazi-
às imposições do capital e para tivo do governo”.12 Era o lugar os. Era evidente que baixara para
interpelar o poder público (Fa- mais elevado da cidade, a acró- mim a pupila. Pareceu também que
mexia os lábios. Falava. Ouvi distin-
ria & Grossi, 1982). A Praça Raul pole, ícone visível e ostentório
tamente: sou a República ou a Liber-
Soares, situada em área residen- do poder. dade, ou o símbolo que quiserem
cial nobre, conservará ainda essa O conjunto arquitetônico da mas, como vês, estou cá de fora. Aí
dentro falam e agem os que dizem
posição nos anos de 1950, sendo Praça da Liberdade, à moda de
fazê-lo em meu nome. (Nava, 1976,
escolhida para receber, em sua um cordão umbilical, se prendia p. 300, 341-342)
proximidade, a construção do à Praça da República (hoje, Afon-
Para completar a alegoria, no-
Conjunto Habitacional JK, um so Arinos) pela Avenida da Liber-
vamente o memorialista vem em
“ícone simbólico” da moderni- dade (atual João Pinheiro). A na-
nosso auxílio:
dade e das perspectivas desen- tureza unitária e geométrica des-
volvimentistas do futuro presi- se espaço, tramado pela moder- Continuei, vi que o terceiro andar
(da Secretaria do Interior, hoje Edu-
dente Juscelino Kubitschek. (Pi- na racionalidade positivista da cação) recuava e que, sobre ele, bem
mentel, 1993) época, explicita o regime, legiti- ao centro, havia uma meia cúpula
A Praça da Liberdade, consi- mando o Estado de Minas que, (...) oca e pintada de azul, por den-
tro. Servia de nicho para um busto
derada o espaço mais importan- por sua vez, se corporifica na Li- da República. Ora essa! Então ha-
te de uso público, era cunhada berdade. A ordem simbólica efe- via dois desses ícones na praça? Obli-
de Jardim do Palácio, por situar- tivará a síntese das instâncias po- quei e fui verificar bem a do Palácio

11
A discussão dessas idéias pode ser encontrada em Corrêa, mimeo, p. 11. A respeito da tendência a que o povoamento se
desenvolva do centro para a periferia e o tratamento diferençado das zonas, consultar o Plano Geral da Nova Capital em
Barreto, 1936, v. 2, p. 241-245.
12
Essas informações podem ser encontradas em Lana & Frota, mimeo, p. 3-5. Consultar também Albano, 1985.

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Belo Horizonte: Qual pólis?

da Liberdade: coroada de raios como não evoca a Acrópode grega, lu- quando se é observado, produ-
a do porto de Nova York, aquela era
a liberdade. Eu a ouvira (...) e, ma-
gar dos deuses fundadores da ci- zindo um efeito perverso: uns
ravilhado com suas palavras, não dade. Aqui, na Acrópole moder- passam a vigiar os outros, na in-
atentara na sua coroa radiária e sim- na, estão os homens, tramando certeza de estarem sendo vistos.
bólica. (Nava, 1978, p. 29)
no campo da dominação nem Porém, a advertência de Fou-
Marco referencial da Repúbli- sempre visível, alojados na or- cault para impedir os efeitos da
ca emergente, qual o lugar da li- dem simbólica que criam e recri- engrenagem panóptica será o
berdade? Sua origem na antigüi- am, configurando uma topogra- exercício da liberdade. Indago:
dade clássica pagã (Magalhães & fia imaginária com ressonâncias haverá possibilidade de habitar
Andrade, 1989, p. 159), reporta a iconográficas. Convidada pelo o espaço público da liberdade,
antigos mitos ligados à terra poder, a Liberdade fica “cá de fo- fugindo ao panoptismo do po-
(gea, rea), representada por um ra do Palácio”. Na Praça? Que der, que paradoxamente nos do-
busto de mulher emergindo do Ágora é esta que exclui o livre de- mestica com seus ícones de co-
solo, divinizando-o. A figura da bate dos cidadãos, que na anti- res e de luzes? Como ser o cida-
liberdade é feminina, maternal, güidade discutiam no espaço pú- dão da Praça, se a cidadania na
vestindo uma túnica branca, blico e decidiam pelos interesses nova República se restringe ao
símbolo da paz. Aparecem ain- da coletividade? A quem caberá voto? (Melo, 1990) Como insti-
da, em sua iconografia, cornos recolher, na Ágora da nova capi- tuir seus direitos manietados há
de abundância (fertilidade do tal, espaços livres de palavra e de séculos?
solo), guirlandas, coroa de lou- ação? Como tecer a história da Muitas vezes, consideramos o
ros, ramos (imortalidade e gló- Liberdade se, em sua ruptura na plano do visível como uma pai-
ria), palmas (vitória), águia, pi- pólis grega, não encontramos sagem neutra. No entanto, mo-
ras, raios de sol, tochas de fogo, ainda fragmentos lacunares? Co- vimentos acontecem: “Nele ecoa,
etc... Foi corporificada pela pri- mo criar novos laços com o pas- se filtra, se reproduz, se duplica,
meira vez pela imagem de Cibe- sado, se os fragmentos têm-se se absorve a luz” (Magalhães &
le, que protege a terra (fertilida- mostrado invisíveis em seus des- Andrade, 1989, p. 159), facilitan-
de) e a cidade, na Frígia. Lem- locamentos? Onde estão os in- do a visão ou não, que se seja
bramos com Nava que no fron- terlocutores evolucionistas para olhado ou não, independente-
tão do Palácio Presidencial há discutir a questão de reparos nos mente de controle da vontade.
um busto da liberdade, da mes- tempos de ruptura? Segundo Foucault, através des-
ma forma, um busto da Repúbli- Vimos que propostas arquite- se fenômeno geram-se possibili-
ca, na cúpula de ferro da Secre- tônicas e urbanísticas podem ser- dades de se domesticar corpos e
taria do Interior, atual Educação. vir a fins políticos, na medida em adestrar palavras, formando e
Nesse último busto, juntou-se que são signos e, portanto, com conformando aspirações coleti-
uma bandeira do Estado de Mi- significado sempre controlado vas. Assim, o jogo sensorial da
nas Gerais, usada pelos inconfi- ideologicamente. O conceito de luz reforça uma ordem simbóli-
dentes, portando um verso de ordem passa pela vigilância e ca, podendo ser negada às vezes:
Virgílio: libertas quae sera tamem. freqüenta o controle. Sabemos na própria Praça da Liberdade,
O conjunto arquitetônico da que o panóptico de Bentham a circulação para lazer se fazia se-
Praça da Liberdade, centro do (Foucault, 1983, p. 173-199) tor- gundo critérios classistas, embo-
poder hegemônico do Estado, na o poder invisível mesmo ra não inscritos nas leis da jovem

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 12-24, out. 1997 21


Yonne de Souza Grossi

República. A liberdade republi- culo 20 – tendo como marco de pública e a vida privada, que
cana pode contradizer seu dis- referência o ano de 1922, quan- mantinha a sociedade. (Sennett,
curso emancipatório, à medida do se reconstrói o prédio da esta- 1988)
que não haja efetiva expressão ção ferroviária – a organização A insustentável utopia da or-
de autonomia. Outra evidência do espaço segue as regras do ur- dem que sagrou o planejamen-
faz voltar a discussão: nos rela- banismo, que explicita a moder- to de Belo Horizonte pode ser
tórios dos prefeitos há queixas nização e o progresso. Lembra- considerada uma tentativa de in-
sobre a necessidade de localizar mos aqui a preocupação de Cas- terdição do conflito social, inscri-
a população operária que edifica tells (Castells, 1982, p. 3), quan- ta na topografia e arquitetura da
a cidade. O Prefeito Bernardo do mostra a necessidade de cidade. O renque de palmeiras
Pinto Monteiro, em 1902 “consi- “uma teoria capaz de integrar a da Praça da Liberdade, desem-
derava ter ‘limpado’ o centro ur- análise do espaço com a das lu- bocando no palácio do mesmo
bano quando afirmava ter remo- tas sociais e dos processos políti- nome, lembra o antigo caminho
vido deste centro mais de 2.000 cos”. Pensamos também que o de procissão egípcio, sacralizan-
pessoas que habitavam ‘cafuas’”. estudo da representação simbó- do o poder panóptico do Esta-
Uma nota de desafio surge em lica, aliado a questões instigadas do. Entretanto, esse pretenso
um jornal da liga operária: pela prática social e política de equilíbrio entre harmonia das
indivíduos, grupos ou classes, formas e divisão física do espa-
Louvaríamos o ato do Sr. Prefeito se
as cafuas fossem condenadas defini- talvez permita perceber a forma- ço não apaga as diferenças, an-
tivamente, mas como (...) está se edi- ção de sujeitos individuais ou co- tagonismos e contradições na
ficando nova cidade de cafuas não
letivos, instituintes de sua pró- tessitura de interesses sociais.
compreendemos o motivo porque
manda-se desalojar os pobres operá- pria história, nos cenários da ci- Mas Riccardo Campa registra
rios com grandes danos de seus in- dade que habitam, ou mesmo que “a cidade é uma utopia vi-
teresses. Cafuas por cafuas podia dei-
para além da realidade local. va”. Assinala que “ela constitui
xar as que já estavam.13
Nesse sentido, volta a imagem muito mais uma categoria men-
Em 1912, o confronto da clas- da Ágora, cuja natureza pública tal que uma realidade”; donde a
se trabalhadora com o poder pú- definia o lugar das mais diver- utopia “tem direito de cidada-
blico se dará através da paralisa- sas formas de interação, mes- nia”. Quem sabe a antiga comu-
ção do trabalho, gerando impas- clando pessoas e diversificando nidade de iguais, inaugurada
ses que suscitam a mediação de atividades, traduzindo agora es- pela pólis grega, será capaz de
outras classes da sociedade para paços mortos na geografia das fecundar novas possibilidades
efetivar negociações. (Faria & cidades; o que pode ser um in- utópicas? Possibilidades estas
Grossi, 1982, p. 192, 195) dicador da erosão que foi sola- centradas no respeito à diferença?
Nas primeiras décadas do sé- pando o equilíbrio entre a vida

13
A interpelação ao Poder Público se fez via órgão de representação classista, o jornal O Operário, Belo Horizonte: 29 jul. 1900,
n. 1, p. 1.

22 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 12-24, out. 1997


Belo Horizonte: Qual pólis?

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09. CAMPA, Riccardo. A reta e a curva; reflexões sobre nosso tempo com Oscar Niemeyer, Mário Schemberg e
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12. CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
13. CORRÊA, José de Anchieta. A ordem simbólica na RMBH; apontamentos preliminares. (mimeo)
14. COSTA, João Cruz. Contribuição para a história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
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15. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Lisboa: Clássica, 1950.
16. FARIA, Maria Auxiliadora, GROSSI, Yonne de Souza. A classe operária em Belo Horizonte; 1897-1920. In: SE-
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sim...; educação, política e trabalho em Minas Gerais – 1889-1907. Belo Horizonte: Faculdade de Educação
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18. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1983.
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21. JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo: Herder, 1936.
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23. LANA, Ricardo Samuel de, FROTA, Maria Guiomar da Cunha. Conjunto arquitetônico e paisagístico da Pra-
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Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 12-24, out. 1997 23


Yonne de Souza Grossi

28. NAVA, Pedro. Chão de ferro. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
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30. PAIM, Antônio. Plataforma política do positivismo ilustrado. Brasília: UnB, 1980.
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24 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 12-24, out. 1997


Belo Horizonte: tempo, espaço e memória

BELO HORIZONTE: TEMPO,


ESPAÇO E MEMÓRIA*

Lídia Avelar Estanislau


Diretora de Memória e Patrimônio Cultural da SMC/PBH

A
RESUMO délia Prado, no poema Para o Zé, seu
A memória social e o patrimô- marido, assegurou: “O que a memó-
nio cultural tornaram-se, a partir
da Constituição Federal de 1988, ria ama fica eterno”. Milton Nasci-
um serviço público municipal que
em Belo Horizonte adquiriu visi- mento e Fernando Brant, na voz inesquecível
bilidade através da ação do Conse-
lho Deliberativo do Patrimônio de Elis Regina, revelaram: “Descobri que a mi-
Cultural do Município. Do ponto
de vista institucional, os critérios nha arma é o que a memória guarda dos tem-
foram constitucionalmente ampli-
ados para recolher as marcas que pos da Panair”. Aloísio Magalhães, criador da
os diferentes grupos imprimem no
território que ocupam. Não se tra- Fundação Nacional Pró-Memória, extinta pelo
ta mais de cuidar apenas deste ou
daquele monumento, nem deste ou desgoverno Collor, reconheceu: “A comunida-
daquele bem cultural excepcional.
Trata-se de uma ação voltada para de é a melhor guardiã de seu patrimônio”. Ecléa
a qualidade da vida urbana em seu
cotidiano. Tempo, espaço e memó- Bosi defendeu a tese da memória-trabalho, con-
ria tecidos em relações que se ma-
terializam na família, no trabalho, siderando as lembranças dos velhos como subs-
na devoção e na diversão. O patri-
mônio cultural enquanto memória tância social da memória. Ao demonstrar a in-
vai do mais simples ao mais com-
plexo artefato humano, da paisa- teração entre a memória pessoal, familiar e gru-
gem natural à paisagem cons-
truída: geografia tornada história. pal, constituintes da memória social “naquela
fronteira em que se cruzam os modos de ser do indivíduo e da sua
cultura”, Ecléa Bosi, em seu belíssimo livro Memória e sociedade: lem-
branças de velhos, enfatiza as muitas possibilidades de releitura, os vá-

*
Seminário promovido pela Pró-reitoria de Extensão da PUC•Minas, 23 a 25 de abril de 1997, nas comemorações do centenário
de Belo Horizonte.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 25-28, out. 1997 25


Lídia Avelar Estanislau

rios pontos de vista, as versões moderna a possibilidade de in- coletiva e a experiência individu-
do acontecido, com seus erros e tercambiar experiências. “Quem al vão se fundir na imagem da
lapsos. viaja tem muito que contar” diz cidade e exigir um procedimen-
Na maior parte das vezes, lembrar o povo, e com isso imagina o nar- to auto-reflexivo no qual estão
não é reviver, mas refazer, recons- rador como alguém que vem de presentes emoção e risco. (Ben-
truir, repensar, com idéias e imagens longe. Mas também escutamos jamin, 1987)
de hoje, as experiências do passado.
A memória não é sonho, é trabalho.
com prazer o homem que ga-
A memória é a mais épica de todas
A lembrança é uma imagem cons- nhou honestamente sua vida as faculdades, pois a narração, em
truída pelos materiais que estão ago- sem sair de seu país e que conhe- seu aspecto sensível, não é de modo
ra à nossa disposição, no conjunto algum o produto exclusivo da voz.
de representações que povoam nossa
ce suas histórias e tradições. Na
A alma, o olho e a mão estão inscri-
consciência atual. (...) O simples fato obra de Walter Benjamin a riva- tos no mesmo campo. (...) Contar his-
de lembrar o passado no presente, lidade histórica entre as diversas tórias sempre foi a arte de contá-las
exclui a identidade entre as imagens de novo, e ela se perde quando as his-
formas de comunicação é pro-
de um e de outro, e propõe a sua di- tórias não são conservadas. Ela se
ferença em termos de pontos de vis- blematizada na interação entre perde porque ninguém mais fia ou
ta. (...) Os livros de História que re- narrativa, imaginação e experi- tece enquanto ouve a história. Não
gistram esses fatos são também um se percebeu devidamente até agora
ência, que atrofiam no reinado
ponto de vista, uma versão do acon- que a relação entre o ouvinte e o
tecido, não raro desmentidos por ou- da informação. Refletindo sobre narrador é dominada pelo interesse
tros livros com outros pontos de vis- experiência e pobreza, Walter em conservar o que foi narrado. (...)
ta. (Bosi, 1987) O saber que vinha de longe – do lon-
Benjamin pergunta: “Qual o va-
ge espacial de terras estranhas, ou
A pesquisa da memória apóia- lor de todo nosso patrimônio do longe temporal contido na tradi-
se na narração, que é uma for- cultural, se a experiência não ção – dispunha de uma autoridade
ma artesanal de comunicação. mais o vincula a nós?” E acres- que era válida mesmo que não fosse
controlável pela experiência. Mas a
Não se trata apenas da coleta de centa que a vivência da guerra, informação aspira a uma verificação
dados e informações, mesmo da inflação, da fome e da cor- imediata. (...) É indispensável que a
porque a informação é consu- rupção – as mais terríveis expe- informação seja plausível. (...) A nar-
rativa, que durante tanto tempo flo-
mível, seu valor esgota-se no ins- riências humanas – empobrece resceu num meio artesão – no cam-
tante seguinte de sua formula- toda a humanidade. Essa pobre- po, no mar, na cidade – é ela pró-
ção. O excesso de informações za de experiências fez com que, pria, num certo sentido, uma forma
artesanal de comunicação. Ela não
hoje disponíveis satura a fome segundo Benjamin, uma depois está interessada em transmitir o pu-
de conhecer, mas sem a nutrir, da outra fossem abandonadas as ro em si da coisa narrada como uma
porque não há o tempo neces- peças do patrimônio humano, informação ou um relatório. (Ben-
jamin, 1987, v. 1)
sário de assimilação. A narração, “empenhadas muitas vezes a um
ao contrário, liga-se aos tempos centésimo de seu valor para re- Benjamin retoma a mesma
em que o tempo não contava, em cebermos em troca a moeda miú- questão em outro texto com a
que o artesão entalhava e escul- da do atual”. A teoria benjami- afirmação de que as modernas
pia sem pressa. niana da cultura, elaborada em técnicas de reprodução disponi-
Walter Benjamin relacionou a pleno nazi-fascismo, assinala o bilizam a lembrança, ampliam a
extinção da arte de narrar com o desaparecimento das condições memória – qualquer aconteci-
surgimento da informação, essa para a transmissão da experiên- mento pode ser fixado a qual-
nova forma de comunicação, cia na sociedade capitalista. As- quer momento em som, imagem
que parece ter banido da vida sim, para Benjamin, a história e movimento – mas ao mesmo

26 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 25-28, out. 1997


Belo Horizonte: tempo, espaço e memória

tempo reduzem o âmbito da nicípio em 1991, ao Conjunto Ur- lugar da memória. O espaço tor-
imaginação, atrofiam a experiên- bano Bairro Floresta, tombado na-se lugar porque nele deixa-
cia. pelo mesmo Conselho em 1996, mos nossas marcas.
passando pelo tombamento da
Na substituição da antiga forma nar- A memória topográfica não visa a
rativa pela informação, e da infor- Irmandade de Nossa Senhora do reconstrução dos espaços pelos espa-
mação pela sensação, reflete-se a Rosário do Jatobá e do Ilê Wopo ços, mas estes são pontos de referên-
atrofia da experiência. Todas essas cia para captar experiências espiri-
Olojukan (o mais antigo terreiro
formas, por sua vez, se distinguem tuais e sociais. (...) Lugares e objetos
da narração, que é uma das mais an- de candomblé da cidade), pelo enquanto sinais topográficos tor-
tigas formas de comunicação. A nar- Conjunto Arquitetônico do Cor- nam-se vasos recipientes de uma his-
ração não tem a pretensão de trans- tória da percepção, da sensibilidade,
po de Bombeiros, pelo caminho
mitir um acontecimento pura e sim- da formação das emoções. (...) Os ob-
plesmente (como a informação o faz), de árvores em frente ao Horto jetos são de algum modo os guardiões
mas integra-o à vida do narrador, pa- Florestal (além de outras espéci- da memória. Mas não apenas os ob-
ra passá-lo aos ouvintes como expe- es na malha urbana, como o pau- jetos. A caixa de lembranças por ex-
riência. (...) Os princípios da infor- celência é o próprio corpo, a expres-
mação jornalística (novidade, conci- brasil, a copaíba, o jequitibá e a são mais intensa de memória topo-
são, inteligibilidade e, sobretudo, fal- paineira, todas mais que cente- gráfica. (...) Num tempo de destrui-
ta de conexão entre uma notícia e ou- nárias). No caso do Bairro Flo- ção, o sujeito consegue, pelo traba-
tra), do mesmo modo que a pagina- lho da memória, encontrar nas ca-
ção e o estilo lingüístico constituem resta, boa parte dos proprietári- madas mais profundas uma imagem
um dos muitos indícios da exclusão os de bens culturais recusaram a de sua identidade. Indestrutível. Isso
da informação do âmbito da experi- proteção através de tombamen- não é pouco em termos de perspecti-
ência. (Benjamin, 1987, v. 2) va de futuro. (Bolle, 1994)
to. Mas alguns outros sentiram-
Na Capital do Século, já em se honrados com o fato de suas A teoria benjaminiana da me-
contagem regressiva para o pri- propriedades passarem a figurar mória fundamenta o registro co-
meiro centenário, a memória so- na relação dos bens culturais que mo comunicação entre as suces-
cial vem sendo identificada e do- constituem o patrimônio da ci- sivas gerações. O registro de
cumentada com a intenção de dade. Com o tombamento do sons e imagens permite identifi-
comunicar experiências. E isso Conjunto Urbano Bairro Flores- car, documentar, proteger e pro-
pode parecer um trabalho ana- ta, o Conselho Deliberativo do mover referências culturais do
crônico nesses tempos de bites, Patrimônio Cultural do Municí- povo belo-horizontino. A me-
sites e nets, quando tudo é infor- pio, a PBH, a AMAFLOR (Asso- mória social, em sua diferença e
mação e as experiências parecem ciação de Amigos e Moradores pluralidade, necessita de marcos
ter deixado de ser comunicáveis. da Floresta) e os demais mora- físicos que lhe respaldem o tes-
Desde 1990, Belo Horizonte con- dores assumiram o compromis- temunho: os bens culturais, mó-
ta com um patrimônio cultural so de se empenharem na reabili- veis, imóveis e integrados pro-
protegido por tombamento mu- tação urbana do lugar. Como os tegidos por tombamento. As for-
nicipal. Da Serra do Curral, tom- demais conjuntos urbanos tom- mas de ocupação do território
bada pelo Conselho Deliberativo bados em 1994,1 a Floresta tem não apenas como monumentos,
do Patrimônio Cultural do Mu- diretrizes de proteção enquanto mas os espaços enquanto docu-

1
Praça da Liberdade, Avenida João Pinheiro e adjacências; Praça da Boa Viagem e adjacências, Praça Rui Barbosa e adjacências,
Praça Hugo Werneck e adjacências, Praça Floriano Peixoto e adjacências, Rua da Bahia e adjacências, Rua Caetés e adjacências,
Avenida Afonso Pena e adjacências, Avenida Álvares Cabral e adjacências, Avenidas Carandaí, Alfredo Balena e adjacências.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 25-28, out. 1997 27


Lídia Avelar Estanislau

mentos de processos econômi- vivem. A palavra falada e escri- sem terra, dos sem teto, dos índios,
dos homossexuais, dos trabalhadores,
cos, sociais, políticos e culturais ta, textos e contextos da memó- dos aposentados ... uma listagem que
registrados no parcelamento do ria ao mesmo tempo afetiva e crí- se amplia em correlação direta com
solo, no traçado dos caminhos, tica, cuja síntese material e sim- a democracia, cuja característica é a
produção incessante de novos sujei-
na ilustração de ruas, praças e bólica constitui o patrimônio cul- tos políticos em luta pela cidadania.
avenidas, nos muros, jardins e tural de Belo Horizonte. (Estanislau, 1993)
quintais, nas edificações – seja de
que idade ou estilo forem – em Lidar com a cultura em tempos de- Para concluir cito, uma vez
mocráticos demanda flexibilidade no
síntese, na teia de relações tecida pensamento e na ação porque a polí-
mais, Walter Benjamin que, em
no dia-a-dia de moradores e vi- tica institucional tem que estar em suas teses sobre o conceito da
sitantes. Relações que se materia- sintonia com os movimentos sociais. história, ressaltou:
A cultura, como a memória, consti-
lizam na família, no trabalho, na tui-se na criação de direitos sempre Nunca houve um monumento da
devoção e na diversão. Relações renovados que emergem do processo cultura que não fosse também um
entre o indivíduo e a sociedade, democrático: o direito das mulheres, monumento da barbárie.
dos negros, dos meninos de rua, dos
laços entre a cidade e os que nela

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28 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 25-28, out. 1997


As ruas e as cidades

AS RUAS E AS CIDADES

Anny Jackeline Torres Silveira


PUC•Minas

Por que ruas tão largas?


Por que ruas tão retas?
Meu passo torto
foi regulado pelos becos tortos
de onde venho.
Não sei andar na vastidão simétrica
implacável.
Cidade grande é isso?
Cidades são passagens sinuosas
de esconde-esconde
em que as casas aparecem-desaparecem
quando bem entendem
e todo mundo acha normal.
Aqui tudo é exposto
evidente
cintilante. Aqui
obrigam-me a nascer de novo, desarmado.
(“Ruas”. Carlos Drummond de Andrade, 1979)

O
RESUMO sentimento do poeta, desarmado
O texto propõe uma análise da diante da vastidão da cidade, inscre-
cidade de Belo Horizonte com base
em poema de Carlos Drummond de ve-se entre as muitas imagens cons-
Andrade, problematizando as no-
ções de modernidade e poder ela- truídas de Belo Horizonte. E não apenas dela,
boradas por Walter Benjamin e
Michel Foucault. Busca discutir o mas também de boa parte daqueles que vivem
discurso de ordenação social que
perpassa o planejamento do espaço e/ou escrevem a respeito das cidades moder-
urbano e a resistência a ele contra-
posta pela população. nas e, em especial, das cidades planejadas. Ima-
gens que remetem a um espaço ordenado e insípido – onde, parece,
nada pode se fixar, a não ser o discurso daqueles que a conceberam.
A construção da capital mineira obedeceu a um pensamento que,
em fins do século XIX, buscava estabelecer a melhor forma de se traçar
uma cidade. Fundado em preceitos técnicos, esse pensamento se justi-
ficava pelas questões de salubridade, funcionalidade, eficiência,

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 29-35, out. 1997 29


Anny Jackeline Torres Silveira

disciplinarização e racionalidade neira, apresentada por Drum- sam os projetos de constituição


no uso, constituição e expansão mond, aponta para uma forma ou de reformulação dos espaços
do espaço urbano. Um pensa- de abordagem e caracterização das cidades. Essas conotações
mento que pode ser tomado en- bastante freqüentes da história podem ser percebidas através da
quanto expressão da imposição de Belo Horizonte. O planeja- maneira como as propostas dos
do discurso da ciência também mento da cidade é visto como planejadores interferem nos há-
ao campo do estudo e do plane- elemento que parece retirar aos bitos e nas relações estabelecidas
jamento das cidades.1 seus habitantes toda e qualquer pelos indivíduos; da forma como
Ruas largas e retas que se dis- possibilidade de escolha e de au- essas propostas disciplinam e
punham, como assinala o poeta, todeterminação. A racionalidade policiam seus comportamentos;
numa “vastidão simétrica”. Vas- imposta ao traçado e ao uso do ou ainda, do modo como esses
tidão que devia se tornar ainda espaço urbano como que confor- projetos podem – através de
mais incomensurável em vista ma a vida dos homens que nele uma “pré-escrita” do desenho
do pequeno número de constru- se instalam, dando, assim, lugar que conforma a cidade, do tipo
ções e pessoas que ocupavam o a uma cidade dominadora e au- de ordenação e de ocupação que
espaço da cidade, nas duas dé- toritária. devem ser estabelecidas na área
cadas iniciais deste século. Retas Essa é uma abordagem que se urbana – “prescrever” e “pros-
que miravam o infinito, numa repete em boa parte das pesqui- crever”2 as mais diversas cama-
Belo Horizonte ainda de dois an- sas dedicadas ao exame da cons- das da população, a ocupação e
dares. Vastidão que oprime, pela trução ou das intervenções que o uso desses espaços.
imponência e pela insignificân- se processaram em outras várias A elaboração dessas análises
cia que se lhe contrapõem. cidades, no país e no exterior. Os acabou concorrendo para a recu-
Uma simetria “implacável”, estudos que envolvem a histó- peração e aprofundamento de
que ordenava e dirigia os passos ria e o planejamento do espaço todo um debate que, desde me-
dos transeuntes, que dava visibi- urbano estão voltados, muitas ados do século XIX, marcou o
lidade a tudo e a todos, furtan- vezes, para a questão de como discurso dos reformadores soci-
do ao homem, e à própria cida- essa construção ou, em outros ais e dos pensadores dedicados
de, a possibilidade de dissimu- casos, de como as intervenções ao estudo da cidade. Debate que
lação, de manter segredos, de operadas em áreas específicas do daria origem a dois discursos e,
subtrair-se aos olhos dos outros. tecido urbano podem ser pensa- por conseguinte, dois modelos
Simetria que não oferece dúvi- das como veículos e instrumen- fundadores do urbanismo.3
das, onde tudo se compreende tos de um discurso de poder. Esses estudos, além de con-
de pronto, de modo claro, mani- Nesse sentido, tais estudos tribuírem para repensar e ques-
festo. buscam analisar as conotações tionar o sentido daquelas inter-
Essa imagem da capital mi- político-ideológicas que perpas- venções na vida dos homens,

1
Isto significa perceber a instituição desse “pensar racional” a respeito da cidade no movimento mais amplo e no êxito que um
discurso científico positivo alcançou na segunda metade do século XIX.
2
A relação entre a “pré-escrita”, a “prescrição” e a “proscrição” que perpassam o espaço planejado da capital mineira foi
proposta pelo professor Michel Le Ven, em mesa-redonda sobre Belo Horizonte realizada pelo Departamento de História da
PUC•Minas em abril de 1997. Para outros detalhes sobre a abordagem e as análises por ele realizadas da cidade, consultar LE
VEN, 1977 e LE VEN e NEVES, 1996.
3
Ver Françoise CHOAY, “História e o método em urbanismo”. In: BRESCIANI, 1993. E também CHOAY, 1979.

30 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 29-35, out. 1997


As ruas e as cidades

também ajudam a recuperar e moderna é o lugar da massa, da de o caráter homogêneo da mul-


sugerir formas de adaptação e multidão indiferenciada. E é ela tidão é uma ameaça à identida-
reação da população a essas que determina e dirige o seu des- de do sujeito, a padronização do
transformações – poderíamos di- locamento. Os espaços pelos espaço urbano adquire o mesmo
zer, “leituras” e “releituras” (ou quais essa massa transita pare- sentido. A geometria uniformi-
mesmo, “correções”) que a po- cem destituídos de qualquer per- za, torna tudo igual, equivalen-
pulação efetuou na “pré-escrita” sonalidade, de qualquer signifi- te, intercambiável, ela esvazia o
urbana. cado. Incapazes de deixar ante- espaço de referências, de conteú-
Outro tipo de abordagem que ver, de revelar, e, também, de fi- do.
oferece elementos importantes xar uma experiência vivida – e, Exemplo desse “esvaziamen-
para análises sobre a cidade é especialmente, diferenciada – es- to” promovido através de inter-
aquela que diz respeito ao tema ses espaços acabam por se trans- venções no espaço urbano é da-
da modernidade. Nesse campo, formar em lugares nos quais o do por Walter Benjamin, nas pas-
a leitura da obra do filósofo Wal- homem, em grande medida, aca- sagens em que analisa a Paris do
ter Benjamin se tornou funda- ba não conseguindo se reconhe- poeta Baudelaire – desfigurada
mental.4 Seu trabalho está vol- cer. pela urbanização haussmaniana:
tado para a discussão da expe- O espaço da cidade pode, a cidade dos “boulevards”, das
riência humana na época moder- muitas vezes, ser pensado como avenidas largas, retilíneas, bur-
na, no espaço da cidade. Na vi- espaço privilegiado para o auto- guesas, cartesianas. Linha reta
são do autor, a cidade moderna reconhecimento sociocultural, que têm, segundo Benjamin, o
se torna um lugar que revela, ou no qual diferentes sujeitos vivem sentido de:
no qual é possível acompanhar experiências partilhadas e, a par-
as mesmas transformações que tir dela, edificam sua(s) memó- criar um espaço uniforme, homogê-
neo, controlável, para prevenir os mo-
a época moderna introduziu no ria(s). É a partir dessa experiên- vimentos sociais, o levantamento das
campo do trabalho: o domínio cia, e da memória sobre ela cons- barricadas que já haviam ameaçado o
da racionalidade, da calculabili- truída, que se torna possível atri- poder do capital nas revoluções operá-
rias de 1830 e 1848. (MATOS, 1995,
dade, da repetição; um reino de buir identidade(s) ao espaço. Es- p. 75)
ordem, de uniformidade. sa identidade é criada a partir de
Assim como no âmbito do tra- um investimento sentimental, is- A racionalidade que informa
balho o homem perde o conhe- to é, da atribuição de determina- a reforma parisiense busca ex-
cimento das várias fases do pro- dos significados ao espaço – ele- purgar do cenário da cidade o
cesso de produção,5 a experiên- mentos capazes de lhe conferir rosto da desordem, da revolta,
cia urbana também parece fugir personalidade, de o individuali- do incontrolável. Ela apaga do
a qualquer possibilidade de do- zar. espaço os signos capazes de in-
mínio do indivíduo. A cidade Se no discurso da modernida- corporar e de manter viva na

4
Existem diversos autores que analisam a obra de W. Benjamin nessa perspectiva. Citamos aqui MATOS (1995) e BOLLE
(1994).
5
Conforme aponta Olgária MATOS (1995), a nova ordem instaurada pela produção capitalista no mundo moderno inaugura
a noção “do trabalho abstrato que liberta o trabalhador não do trabalho propriamente dito, mas do seu conteúdo. De onde a
perda da experiência como perda da memória.” (p. 74). Uma idéia fundamental contida nessa passagem, e que será explora-
da adiante, é a da experiência como instrumento de poder, o conhecimento como elemento capaz de dar ao homem compe-
tência para julgar, escolher e agir criticamente, de fazer do homem um sujeito da história.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 29-35, out. 1997 31


Anny Jackeline Torres Silveira

memória a experiência dos indi- pela simetria que impera nessas da em lugar privilegiado ou ex-
víduos, sua identidade enquan- ruas. Eles desconhecem os cami- clusivo, mas se dissemina por to-
to sujeitos sociais. Isto é, supri- nhos dessa cidade. Estão acostu- da a estrutura social”.7 O poder
me a capacidade de esse espaço mados, pela experiência, a andar não é, assim, um objeto, mas
urbano incorporar “referências “de través”, obliquamente. uma relação, ou feixe de rela-
individuais e coletivas”. As ruas da cidade são inexorá- ções. Algo que só se estabelece
É uma racionalidade que aca- veis com seus habitantes, surdas no interior das relações entre os
ba por liquidar tudo o que é qua- aos rogos do poeta que afirma homens.
litativo e heterogêneo. Por isso, não saber andar por sua vasti- Seguindo essas proposições
a integração do indivíduo na dão. Sua geometria como que elaboradas por Foucault, diver-
vida da grande metrópole é pen- determina o itinerário – neces- sos trabalhos têm sido dedicados
sada como “amnésia social”, es- sário –, impõe as possibilidades ao exame do poder que perpas-
quecimento do passado, quer de exploração do espaço. Elas di- sa, além das relações estabeleci-
dizer: perda do seu reconheci- rigem a multidão, ordenam o das pelos habitantes das cidades,
mento como ator em meio ao seu sentido, assim como na me- a própria geografia do seu espa-
cenário urbano, ou, como apon- trópole benjaminiana. Ruas que ço. É nesse sentido que o espaço
ta Matos (1995, p. 74): “perda e a tudo expõem, elas como que surge enquanto lugar de exercí-
impossibilidade da experiência, vigiam as experiências e vivên- cio e visibilidade das relações de
isto é, da individualidade”. cias que a cidade pode oferecer poder.
Essas imagens e análises de aos homens que ocupam e tran- Quando se pensa esse espa-
W. Benjamin a respeito da cida- sitam por seu espaço. Nada “pa- ço enquanto elemento funda-
de moderna – lugar do anonima- rece” ser capaz de se lhe furtar mental em qualquer forma de vi-
to, do padronizado, da “amné- às vistas. da comunitária, ou lugar por ex-
sia”, do vazio – são como que tra- Essa imagem adquirida pela celência no qual se estabelece
duzidas no sentimento expresso metrópole moderna põe em foco boa parte das relações entre os
por Drummond diante das ruas uma outra questão bastante ex- indivíduos, determinar como as
belo-horizontinas, nas primeiras plorada no estudo das cidades: pessoas irão ou deverão usá-lo,
décadas deste século. Ele se diz a questão do poder – comumen- vigiar esse uso e comportamen-
desarmado diante da cidade. te analisada sob a ótica desenvol- tos, e, mais que isso, interiorizar
Não vê nenhum lugar conheci- vida pelo filósofo Michel Fou- em cada uma delas o domínio,
do, ou que possa ser lido através cault.6 Segundo Roberto Macha- no sentido de se fazer vigiar,8 são
de sua experiência anterior de ci- do (1995), o poder em Foucault exemplos de como o poder atra-
dade – Itabira, terra natal. Ele é considerado uma propriedade, vessa e se inscreve no espaço da
não reconhece nenhum referen- “que funciona como ... uma má- cidade.
cial que possa guiar seus passos quina social que não está situa- Conforme aponta Machado

6
Em especial, é possível citar as análises elaboradas por Foucault em : Vigiar e punir: história da violência nas prisões (1991)
e Microfísica do poder (1995) .
7
Citado em “Introdução” (XVI), In: Foucault, 1995.
8
É importante considerar também o papel que os próprios indivíduos (em especial as chamadas minorias, ou dominados)
desempenham no exercício do poder, a forma como participam e contribuem para a reafirmação do poder, através de ações,
comportamentos, valores, etc. Nessa perspectiva, Machado (1995) faz uma referência ao “olhar invisível ... que deve impreg-
nar quem é vigiado de tal modo que este adquira de si mesmo a visão de quem olha” (XVIII).

32 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 29-35, out. 1997


As ruas e as cidades

(1995), interessa ao poder “gerir o reto pode significar melhor, mogêneo, à universalidade da
a vida dos homens, controlá-los porque racionalmente estabele- época moderna. O mesmo se de-
em suas ações” (XVI). É nesse cido (e, por isso mesmo, verdadei- ve ter em mente no estudo da
sentido que os debates em tor- ramente o melhor), ele também cidade, especialmente daquelas
no das cidades projetadas incor- pode significar, e em grande me- onde parte ou todo o espaço foi
poram a análise e reafirmam a dida significa, ordem, isto é, con- objeto de um planejamento.
imagem do espaço planejado co- trole. As ruas sinuosas, tortas, Suas “pré-escrições” não são algo
mo locus do poder. Os discursos podem ser pensadas, ao contrá- que se impõe e persiste sem con-
técnicos que informam e justifi- rio, como significando engano, tradições, sem resistências.
cam esse planejamento – a higie- algo errado – uma vez que não Em seus escritos, Walter Ben-
ne, a circulação, o desenvolvi- seriam fruto de tal “pensamen- jamin opõe a imagem raciona-
mento – são também discursos to racional”. lista e abstrata da metrópole dos
de poder. É diante desse espaço – des- tempos modernos à cidade da
A idéia do gerenciamento e conhecido9 – que a tudo domina infância:
controle das experiências dos que Drummond se sente desar-
À cidade do absolutamente visível ...
homens guarda relação estreita mado, quase como impotente. se contrapõe a cidade infantil e ale-
com a possibilidade de abarcá- Espaço onde tudo é exposto, tu- górica, a cidade labiríntica com a
qual a criança estabelece pactos se-
las através do olhar. Esse é um do é evidente. Essa visibilidade cretos. É a cidade com suas múlti-
aspecto importante na aborda- é, em Foucault, um dos elemen- plas possibilidades: intersecções, pas-
gem do poder elaborada por tos fundamentais para a garan- sagens, desvios, becos-sem-saída,
ruas-de-mão-única que constituem
Foucault. Em sua análise sobre tia do exercício do poder. Ela ofe- os espaços de autonomia. Há uma lin-
o Panoptico de Benthan – prisão, rece condições para a prática de guagem secreta habitando esses luga-
res fugidios ... (Matos, 1995, p. 80)
sanatório, hospital –, ele aponta uma vigilância que penetra to-
o fato de que a idéia que estru- dos os lugares. Na cidade das Em Benjamin, a cidade da in-
tura esse “edifício emblemático” ruas largas parece não haver lu- fância representa a possibilida-
pressupõe e faz funcionar gar para a indiscrição. de de fugir ao padrão que impe-
o projeto de uma visibilidade intei- Mas a abordagem foucaul- ra no mundo moderno. Essa fu-
ramente organizada em torno de um tiana também aponta que o po- ga decorre da possibilidade de se
olhar dominador e vigilante, ... um
poder que se exerce por transparên-
der “é luta, afrontamento, rela- recobrar a memória, recobrar a
cias e não tolera zonas de obscurida- ção de força, situação estratégi- experiência vivida. A criança
de. (Morais, 1995, p. 24) ca” (Machado, 1995, XV). Isto sig- aqui é o símbolo do desejo, ca-
É esse mesmo projeto que nifica que o poder não é uma for- paz de burlar a norma. É tam-
perpassa as ruas haussmanianas ça unilateral, existe sempre algo bém símbolo do sujeito que ins-
de Benjamin, assim como a vas- que lhe é contraposto, algo que creve identidade aos lugares da
tidão simétrica de Drummond. resiste. Benjamin também apon- cidade, que individualiza seus
Se no discurso do planejamento ta a possibilidade de fugir ao ho- espaços e, assim, é capaz de re-

9
O poema faz referência aos primeiros anos da cidade, quando Drummond se transfere para um colégio em Belo Horizonte.
Esse aspecto aponta para o fato de a cidade ser a esse tempo ainda “desconhecida” pelo poeta. Se saber e poder são noções
que se inter-relacionam, esse “desconhecimento” é peça fundamental na explicação do sentimento que o invade diante da
cidade. Também é possível identificar e explicar essa passagem a partir da noção de amnésia social, proposta por Walter Ben-
jamin.

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Anny Jackeline Torres Silveira

cuperar a sua autonomia. Nessa ver” espaços, comportamentos e ma de poder, ou elemento cons-
cidade infantil é possível criar grupos sociais, ele não institui, tituinte do poder:
topografias particulares, que se por si só, uma cidade. O plano a partir do momento em que há uma
esquivam de toda tentativa de pode ser pensado como uma relação de poder, há uma possibilida-
domínio, de ordenação segundo “mensagem inaugural”, uma es- de de resistência. Jamais somos apri-
sionados pelo poder: podemos sem-
um modelo único. crita antecipada que busca defi- pre modificar sua dominação em con-
A cidade que Drummond nir usos e sentidos, mas não é “a” dições determinadas e segundo uma
contrapõe à nova capital de Mi- cidade. Esta é feita pelas experi- estratégia precisa. (Foucault, 1995,
p. 241)
nas não difere muito da cidade ências, pelas relações e vivências
da infância apresentada por de seus habitantes. Isso significa Ao mesmo tempo em que os
Benjamin. É uma cidade feita de dizer que a cidade só existe como homens se submetem, incorpo-
ruas e becos tortos, que seus pas- espaço ocupado. ram e reproduzem alguns dos
sos, no decorrer dos anos e des- A ocupação de uma cidade discursos que constituem essas
de a sua infância, aprenderam a representa uma possibilidade de cidades “modernas”, eles tam-
conhecer e, por isso, conseguiam promover reordenações no es- bém se apropriam de determina-
guiar-se sozinhos.10 Ruas e becos paço e nos significados que lhe dos lugares, imprimindo-lhes
que nunca deixavam tudo à foram impressos. Através dela os significados e identidades parti-
mostra, ao exame do olhar inqui- moradores criam novos lugares, culares. Ocupar pode significar
ridor. Uma cidade capaz de guar- novas identidades que fogem às aceitar e reproduzir, mas tam-
dar segredos. determinações do modelo. Se o bém insurgir, rebelar, recalcitrar.
As cidades do poeta são “pas- planejamento urbano pode ser Enquanto sujeitos, os homens
sagens sinuosas” que permitem tomado como um discurso de ultrapassam “o limiar da pura
a existência dos “malasartes”. poder sobre o espaço, é preciso repetição”.11
Passagens pelas quais a vida pensar que os homens que ocu- Mesmo que se mostre apa-
transcorre sem dar satisfações. pam esse espaço também cons- rentemente desarmado, o poeta
Um espaço sinuoso que guarda troem seus próprios planos (que conseguirá acostumar seus pas-
lugares individualizados. Nele não deixam de ser discursos que sos àquelas ruas largas, traçan-
se pode brincar de “esconde-es- buscam se apoderar desse mes- do uma outra geografia por cima
conde”, tanto as crianças como mo espaço). daquela inscrita pelo discurso do
os adultos. Essas cidades são, as- Os habitantes de uma cidade planejamento. Poucos anos mais
sim, o oposto daquilo que pres- planejada não são apenas paci- tarde, com os amigos da chama-
creve o discurso do moderno. entes de um discurso de poder. da “geração modernista”, ele se
Essas possibilidades de burla Afinal, como se depreende da divertia atravessando os arcos do
também se fazem presentes por análise elaborada por Foucault, viaduto de Santa Tereza, mostran-
mais moderna e racionalmente o poder não pertence a ninguém do que os homens também fazem
projetada possa ser uma cidade. enquanto multiplicidade de re- seus caminhos, a despeito dos que
Ainda que um planejamento lações de forças. A própria resis- parecem inexoravelmente dados,
possa “prescrever ” e “proscre- tência é também, em si, uma for- definidos de antemão.

10
Saber significa conhecer, dominar, ter controle da experiência. Como bem nos mostra Foucault, saber também é poder.
11
Marca característica do mundo moderno, amnésia. Ver Matos, 1995, p. 85.

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As ruas e as cidades

Referências bibliográficas
01. ANDRADE, Carlos Drummond de. Esquecer para lembrar: boitempo III. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
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03. BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo: Editora USP, 1994.
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05. CHOAY, Françoise. O urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 1979.
06. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995.
07. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
08. LE VEN, Michel. Classes sociais e poder político na formação espacial de Belo Horizonte; 1893-1914. Belo
Horizonte: UFMG, 1977. (Dissertação, Mestrado em Ciência Política).
09. LE VEM, Michel, NEVES, Magda de Almeida. Belo Horizonte: trabalho e sindicato, cidade e cidadania. In:
DULCI, Otávio Soares. Belo Horizonte: poder, política e movimentos sociais. Belo Horizonte: C Arte, 1996.
10. MATOS, Olgária C. F. Os arcanos do inteiramente outro: a Escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução. 2.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
11. RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.. Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. ½, p. 67-82,
out. 1995.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 29-35, out. 1997 35


Heloisa Guaracy Machado; Maria de Lourdes Dolabela L. Pereira

A RECUPERAÇÃO DA LAGOINHA
DENTRO DE UMA NOVA
CONCEPÇÃO DE POLÍTICA URBANA
Heloisa Guaracy Machado
Departamento de História – PUC•Minas
Maria de Lourdes Dolabela L. Pereira
Departamento de Sociologia – UFMG

E
RESUMO ste texto constitui a versão sintetizada
O texto trata de um estudo de de um estudo sobre o bairro da Lagoi-
caso – o bairro da Lagoinha, em
Belo Horizonte – a partir de uma nha, concebido como a primeira etapa
perspectiva interdisciplinar, envol-
vendo a história, a sociologia e a de uma pesquisa de maior amplitude, denomi-
arquitetura, e de uma análise micro
e macroestrutural da região. Atra- nada Projeto Belo Horizonte: bairros antigos,
vés do estudo sobre a recuperação
do espaço físico, social e histórico-
cultural da Lagoinha, pretendemos
uma nova realidade,1 que incluía, na sua fase
promover a rediscussão teórica so- inicial, Santa Tereza, Floresta, Calafate, Prado,
bre as práticas de intervenção ur-
bana. Isto inclui novas posturas e Carlos Prates e Barro Preto.
novas formas de preservação do
patrimônio edificado, associadas a O interesse por tal projeto se deve a uma
uma significação dada pela própria
coletividade, isto é, levando em con- série de razões, a começar pela sua referência
ta a identidade cultural e a quali-
dade de vida da população, o que, aos bairros tradicionais da cidade, que datam
em suma, incide diretamente sobre
a questão da cidadania, e expressa, de sua criação e ocupam um papel específico
de forma mais coerente, a experi-
ência coletiva. dentro do traçado urbano de seu planejado as-
sentamento populacional. Por outro lado, eles representaram e repre-
sentam ainda um importante papel na história de Belo Horizonte: cada

1
MACHADO, Heloisa G., PEREIRA, Maria de Lourdes Dolabela L. Projeto Belo Horizonte: bairros antigos, uma nova realida-
de – Módulo I: A Lagoinha no contexto urbano da cidade. (monografia). Financiado pelo Fundo de Incentivo à Pesquisa (FIP)
da PUC•Minas. Belo Horizonte: PUC•Minas, 1991.

36 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 36-49, out. 1997


A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova concepção de política urbana

um deles constitui, na relação de Clube, o Parque Municipal. Pau- ta: de um lado, a apreensão do
seus habitantes, uma cultura pe- latinamente surgiram publica- aspecto intrínseco ao bairro, de
culiar, uma tradição, um folclo- ções cunho acadêmico, princi- suas características e formas de
re, um modus vivendi, presente palmente, sobre os bairros mais interação; de outro, a inserção do
no imaginário coletivo. Assim, a populares e sobre o centro, par- bairro no contexto da cidade co-
população identifica, por exem- te em resposta à iniciativa da mo um todo. As mediações en-
plo, a arte (a música e a poesia) prefeitura local de estimular e tre eles se fazem ao longo da di-
com os moradores de Santa Te- premiar obras efetuadas nesse nâmica urbana de Belo Hori-
reza ou Floresta, e a boemia ou sentido. zonte. Alguns autores já introdu-
o comércio de móveis antigos Assim, a execução de um pro- ziram iniciativas nesse sentido,
com a Lagoinha. Além disso, es- jeto desse tipo teve como um dos com destaque para os adeptos da
ses bairros foram palco de uma seus objetivos colaborar com chamada “Nova História”, que
série de transformações, sobre- uma tendência muito produtiva, refutaram o imperialismo de
tudo as introduzidas pelas inter- e hoje já bastante difundida: a uma visão economicista das re-
venções viárias que, ali executa- de se imprimir um novo texto so- lações sociais, afirmando que a
das sem o devido planejamen- bre a cidade através da incorpo- história dos homens reivindica
to, terminaram por desfigurar, ração de algumas áreas antes ne- outras formas de problematiza-
em grande medida, o seu patri- gligenciadas ou mesmo ignora- ção da realidade, novos objetos
mônio físico e cultural. das pela documentação oficial, de investigação e novas formas
A nossa pesquisa nasceu, por procurando abrir o leque dos de- de abordagem – como a interdis-
conseguinte, da motivação em se bates sobre a importância da re- ciplinaridade.
estudar os bairros antigos de Be- cuperação de vários monumen- Assim, a aproximação entre a
lo Horizonte, num momento em tos representativos para o con- história, a sociologia e a arquite-
que eram ainda incipientes os es- junto da população. Isto signifi- tura é, a nosso ver, fundamental
tudos a esse respeito. Efetiva- ca, em outras palavras, a tentati- para a apreensão do nosso obje-
mente, as edições encontradas va do resgate de uma memória to de trabalho – a Lagoinha – em
sobre o trajeto histórico da cida- não linear e não elitista do muni- toda a sua complexidade. À so-
de se referiam, comumente, às cípio, em direção a uma memó- ciologia cabem a delimitação e a
questões de ordem mais geral. ria mais abrangente e condizen- análise das relações contempo-
Quando elas envolviam áreas te com as contradições que en- râneas, tanto no âmbito do bair-
mais específicas, o seu enfoque volvem o avanço desordenado ro per si ( a infra-estrutura, as re-
recaía, quase sempre, nas regiões das metrópoles ocidentais nos lações sociais e comerciais, as al-
privilegiadas, ocupadas pelas países do chamado “Terceiro terações físicas, nos hábitos e nos
camadas de maior poder aquisi- Mundo”. costumes), quanto nas relações
tivo, como os bairros chamados Basicamente, procuramos bairro/cidade. À pesquisa histó-
classe A – por exemplo, Lourdes apresentar uma nova perspecti- rica cabem traçar a trajetória e as
e Funcionários. E, ainda, nos es- va teórica de análise das situa- transformações daquela forma-
paços e prédios estética ou co- ções urbanas, utilizando uma ção social, nos vários aspectos do
mercialmente mais valorizados, abordagem simultaneamente vivido e da memória local, auxi-
como a Savassi, a Praça e o Palá- micro e macroestrutural, o que liando o entendimento das situa-
cio da Liberdade, o Automóvel envolve um duplo ponto de vis- ções experimentadas pelo bair-

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 36-49, out. 1997 37


Heloisa Guaracy Machado; Maria de Lourdes Dolabela L. Pereira

ro no dia-a-dia. À arquitetura inclusive, de que a Lagoinha, co- Lagoinha, Deusa da Cachaça


Rainha do meu carnaval,
cabem o levantamento das edifi- mo uma entidade espacial dife-
Lagoinha, Deusa da Arruaça
cações de maior significação his- renciada, remonta ainda ao an- De meu carnaval.
tórica, arquitetônica e artística, tigo Curral D’El Rey, que data do (Carneiro, 1974, p. 10).
bem como o estudo da evolução início da ocupação territorial da
urbana do bairro. Tendo a histó- região de Minas Gerais. No tra- Na década de 80, com as
ria e a participação dos morado- çado original da cidade, a região obras de construção do comple-
res como referência, é possível da Lagoinha foi classificada co- xo viário da Lagoinha, a região
fazer do urbanismo um meio de mo zona suburbana, isto é, fora viria a sofrer uma certa descarac-
construção e de manutenção da dos limites da Avenida 17 de ou- terização, representada pelo de-
identidade cultural da área, ga- tubro – hoje Avenida do Contor- saparecimento da Praça Vaz de
rantindo, dessa maneira, a qua- no – que demarcavam o cinturão Mello, o principal núcleo da boe-
lidade de vida da população. urbano. No processo de edifica- mia, que se retraiu desde então.
O cotidiano na contempora- ção da nova capital, a região da Alguns setores da imprensa se
neidade constitui, por conse- Lagoinha foi habitada pelos tra- encarregaram de alardear aqui-
guinte, e ao mesmo tempo, o balhadores encarregados da lo que eles chamavam “a deca-
nosso ponto de interseção e o construção da cidade, modifi- dência da Lagoinha”, estampan-
nosso ponto de partida. cando-se, paulatinamente, a fi- do nos jornais manchetes do tipo
sionomia daquele espaço de raí- “a Lagoinha está morrendo”, a
zes rurais. A sua proximidade Lagoinha é “um bairro fantas-
A Lagoinha e sua com o centro e com a linha de ma”, ou “vamos salvar a Lagoi-
importância trem, trazendo um número ex- nha”. Este foi o fator de maior
histórica pressivo de pessoas que se ins- peso que motivou a nossa pes-
talavam nas pensões das redon- quisa: a investigação do real im-
A opção em priorizar a Lagoi- dezas, fez com que, à medida do pacto sofrido pelo bairro após a
nha encontra justificativa quer crescimento da cidade, a Lagoi- edificação do viaduto e as trans-
nos fatores históricos, quer na- nha formasse uma área boêmia, formações advindas da sua ins-
queles atuais, que incidem sobre dotada de muitos bares e de uma talação, mescladas ao avanço da
o cotidiano da cidade. Seguimos vida noturna bastante agitada. especulação imobiliária, inserida
um caminho, pode-se dizer, na- Além disso, um comércio diver- no desenvolvimento do proces-
tural, dada a importância do sificado foi se consolidando para so de urbanização brasileiro.
bairro, sua originalidade e anti- atender ao crescente número de Com esse intuito buscamos fazer
güidade, bem como as interven- famílias ali instaladas e que pro- a investigação do bairro, através
ções recentes nele realizadas, no moveram a configuração do ca- de uma análise mais aprofun-
processo de urbanização de Belo ráter também residencial do bair- dada de sua configuração recen-
Horizonte. As fontes consultadas ro. No entanto, foi a boemia o as- te, que servisse de suporte para
mostram que o bairro nasceu pecto que mais o marcou, pas- futuras intervenções. O bairro
junto à planejada cidade de Belo sando a distingui-lo, sobrema- foi uma área durante muito tem-
Horizonte, no final do século neira, no imaginário de toda a po abandonada pelo poder pú-
XIX, percorrendo com ela um ca- população belo-horizontina: blico, convivendo com a prolon-
minho comum. Há indicações, gada improvisação provocada

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A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova concepção de política urbana

pela paralisação das obras na a intervenção predatória e o pre- Nietzsche e seguido por Fou-
Avenida Antônio Carlos que, servacionismo irrestrito. Nesse cault – percebida na pluralidade
executadas sem o devido cuida- caso, a política de preservação de seus elementos e de suas con-
do, terminaram por desfigurar o deve levar em conta o equilíbrio tradições, que clarifica, ao invés
seu patrimônio físico e cultural. cultural e, a partir da participa- de ocultar, os sistemas heterogê-
A recuperação da Lagoinha ção da própria população, ser neos que interferem na sua cons-
como tradição, como história, co- capaz de construir uma identi- tituição:
mo memória, como biografia e dade social na transição entre o
como patrimônio comum com- velho e o novo, permitindo aos Quando estudamos a história nos
sentimos “felizes, ao contrário dos
partilhado pela população de- cidadãos experimentar um sen-
metafísicos, de abrigar em si não uma
mandava uma proposta de inter- timento de segurança em face alma imortal mas muitas almas mor-
venção consciente e conhecedo- das mudanças brutais da socie- tais”. E, em cada uma destas almas,
a história não descobrirá uma identi-
ra das suas atividades mais re- dade.
dade esquecida, sempre pronta a re-
presentativas, em benefício da Não nos referimos a uma no- nascer, mas um sistema complexo de
sua comunidade, e da socieda- ção de identidade transparente elementos múltiplos, distintos, e que
nenhum poder de síntese domina
de em geral. Evidentemente, tal e unívoca, que se quer assegu-
(...). (Nietzsche, In: Foucault,
questão se insere no âmbito da rar a todo custo, mascarada por 1979, p. 34).
discussão dos conceitos de patri- uma homogeneidade bastante
mônio histórico, memória soci- simplista. Essa noção está vincu- Ainda segundo Foucault (1979,
al, preservação histórica e ambi- lada a uma abordagem histórica p.157), “território é sem dúvida uma
ental ou, ainda, da qualidade de linear, construída a partir das di- noção geográfica, mas é antes de tudo
vida dos seus habitantes. E pres- retrizes dos setores dominantes, uma noção jurídico-política: aquilo
supõe uma concepção de urba- que insistem em ignorar os des- que é controlado por um certo tipo
nismo como um meio de cons- níveis, os fragmentos e as facetas de poder.” Assim, a história dos es-
trução e de manutenção da mais opacas de um dado contex- paços corresponde à história dos
“identidade cultural” de uma da- to social. O pensamento ilumi- poderes, devendo ser estudada
da região para o resgate da cida- nista trouxe, no seu bojo, a aspi- como um problema histórico-
dania, dentro da política de pre- ração por um espaço bem arti- econômico-político. Para Fou-
servação. No rastro das conside- culado, por uma sociedade visí- cault, o poder não está localiza-
rações tecidas por Marilena vel e legível em cada uma de do num ponto específico, mas
Chauí (1992), podemos dizer que suas partes. A essa sociedade não disseminado, manifestando-se
a recuperação urbana deve con- era dado comportar zonas obs- na “relação” entre os segmentos
siderar a política cultural como curas ou desordenadas: uma so- sociais numa comunidade, na
um direito de cidadania, conce- ciedade previsível e harmônica qual todos o exercem e sofrem a
bendo a cidade como parte de era o objetivo subjacente à nova sua incidência, concomitante-
um movimento histórico com- organização do espaço urbano e mente. A rede de poder possui
plexo e diferenciado, que não da memória. Contrapondo-nos uma forma piramidal cujo ápice
pode ser compreendido à parte a essa concepção adotamos, nes- é ocupado pelo aparelho de Es-
da esfera política e da materia- te trabalho, uma visão abrangen- tado. Mas ele é garantido pela
lidade espacial das lutas pela te e dialética do conceito de iden- relação de apoio dada pelos ele-
apropriação, nos conflitos entre tidade – no sentido utilizado por mentos inferiores da hierarquia.

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Heloisa Guaracy Machado; Maria de Lourdes Dolabela L. Pereira

Por conseguinte, esse poder não dições do bairro, sua infra-estru- goinha não corresponde aos li-
pode ser concebido como uma tura (saneamento, transportes, mites oficiais do bairro2 – deter-
superestrutura, uma vez que ele serviços, lazer), e sobre a situa- minados pelo mapeamento ofi-
é consubstancial ao desenvolvi- ção dos entrevistados (tempo de cial, de autoria dos órgãos mu-
mento das forças produtivas e se residência no local, faixa etária, nicipais – abrangendo também
transforma continuamente com salarial e escolaridade, grau de outras áreas contíguas. Os de-
elas. Dessa forma, o autor defen- adaptação e ligação afetiva com poimentos de alguns de seus fre-
de uma metodologia que busque a região, tipo de relações estabe- qüentadores são elucidativos,
“analisar como esses micro-po- lecidas com a vizinhança). Quan- nesse sentido, apontando a La-
deres que possuem tecnologia e to ao segundo, recorremos aos goinha como uma “cidade” den-
história específicas se relacionam instrumentos da história oral, tro de Belo Horizonte:
com o nível mais geral do poder através de entrevistas abertas
(...) ela começava na praça ... e ia se
constituído pelo aparelho de Es- com os moradores e comercian- alastrando. Passava pela Guaicurus,
tado.” (Foucault, 1979, p. XIII). O tes ali radicados, ou histórias de incluía o Montanhês, o Elite. A Rá-
papel do pesquisador, nesse ca- vida de alguns dos seus mem- dio Inconfidência, a Feira de Amos-
tras ... Era o velho brechol que por
so, deve ser, justamente, o de bros mais antigos e respeitados. algum dinheiro emprestava ternos
buscar esclarecer as questões do Além disso, estabelecemos um ou smoking, ou, ainda, vendia qual-
intrincado jogo de poderes pre- estreito contato com uma de suas quer roupa usada. Era o time do ter-
restre, o grupo Silviano Brandão.
sentes no desenvolvimento his- famílias mais tradicionais – os (Serra e Inácio, 1974, p. 5).
tórico, organizando uma nova Araújo Brandão – que nos abriu,
memória das sociedades e dos gentilmente, a sua residência na Optamos, então, por investi-
elementos que a compõem. rua Adalberto Ferraz, um exem- gar o universo correspondente à
Os pressupostos da teoria plo vivo da história da Lagoinha, percepção popular, preservan-
foucaultiana de espaço/territó- a começar da própria casa, cons- do, assim, em sua integridade de
rio/poder orientaram o nosso tra- truída nas primeiras décadas do fato, a sua realidade simbólica,
balho na análise das relações nosso século. Ali tivemos acesso relativa a uma paisagem que foi
bairro/cidade. No que se refere ao acervo fotográfico contendo se consolidando paulatinamen-
à metodologia empregada, in- a memória familiar, que se con- te, no ritmo do cotidiano e da di-
cluímos, na fase do levantamen- funde com a memória do bair- nâmica social.3
to de dados, os métodos tanto ro, e ouvimos os relatos dos mui-
quantitativos quanto qualitati- tos casos envolvendo episódios
vos, para posterior codificação, elucidativos da história local. A Lagoinha: uma
sistematização e análise. No pri- Uma questão que se nos co- realidade múltipla
meiro caso, foram utilizados sur- locou imediatamente foi a res- e atuante
veys aplicados a diferentes seg- peito do universo a se estudar,
mentos da população, que con- pois percebemos que a região co- Constatamos, dessa forma, a
tinham perguntas sobre as con- mumente reconhecida como La- existência de uma Lagoinha

2
Tais limites têm como extremos, ao sul, o Complexo Viário, abrangendo toda a região do Bonfim até a Rua Jaguari, incluindo
a Vila Senhor dos Passos e o Conjunto IAPI, e, a leste, a Rua Pitangui e grande parte do bairro Floresta.
3
A equipe circunscreveu inicialmente como a área a ser investigada a região delimitada pelo Complexo Viário, Rua Mariana,
Vila Senhor dos Passos e Rua Pitangui, excluindo o Conjunto IAPI.

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A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova concepção de política urbana

múltipla, heterogênea que, apre- o seu universo. A sua complexi- refere à sua estrutura física,
endida nas suas contradições, dade e diversidade podem ser quanto nas inter-relações que se
vai conformando a sua trajetó- percebidas principalmente nas estabelecem entre os seus com-
ria histórica. Tais contradições se cinco situações socioeconômicas ponentes. Verificamos uma cer-
configuram interna e externa- que conseguimos identificar ali, ta fluidez no trânsito dos dife-
mente ao bairro, ou seja, nas re- a saber: uma primeira, relativa às rentes grupos pelos três núcleos
lações bairro/cidade. E podem famílias tradicionais, que habi- diferenciados que, grosso modo,
ser percebidas até mesmo na tam os casarões antigos nas pro- caracterizam o bairro, ou seja,
avaliação da Lagoinha por parte ximidades da matriz Nossa Se- um setor familiar, tipicamente re-
de seus moradores, dos habitan- nhora da Conceição; uma segun- sidencial (incluindo o aspecto
tes da cidade como um todo, de da, mais pulverizada, relativa às tradicional e também religioso),
estudiosos e jornalistas. Deles famílias – mais jovens – de clas- um núcleo boêmio, que abran-
partem as opiniões divergentes se média, que têm hábitos de ge os redutos da prostituição, e
de rejeição ou defesa ardorosa moradia simples, apresentando um núcleo comercial e de servi-
do bairro. relações de camaradagem entre ços, tendo como centro a rua Ita-
As características que busca- seus integrantes e ocupando a pecerica (esta funcionando tam-
mos identificar e explicitar sobre ala direita da Av. Antônio Carlos bém como via de passagem e de
a região se relacionam tanto à in- na direção centro/bairro; uma circulação dos ônibus que vêm
serção original do bairro, por terceira, correspondente a uma pela Avenida Antônio Carlos, na
ocasião do planejamento e inau- camada de baixo poder aquisiti- direção bairro/centro). Observa-
guração da cidade, quanto às vo, como se pode notar pelas mos que a “topografia” humana
modificações por ele sofridas no suas moradias bastante modes- acompanha a tendência eclética
decorrer de seu processo de ur- tas – conjuntos habitacionais po- da sua topografia física. Confor-
banização. Acreditamos que a pulares e cortiços – perfiladas na me apuramos nas entrevistas, as
sua situação atual, de acordo rua Peçanha, entre a linha do prostitutas, por exemplo, fre-
com as premissas teóricas ante- trem e a Avenida Pedro II; uma qüentam o comércio ou a igreja
riormente mencionadas, é decor- quarta, caracterizada por uma normalmente, numa certa pro-
rente dos tipos de articulações realidade de vida absolutamen- ximidade com os grupos familia-
políticas (de poder e de domina- te precária, vivenciada na Vila res, sem provocar maiores pro-
ção/submissão) travadas entre Senhor dos Passos, mais conhe- blemas ou hostilidade acentua-
aquele “território” e a cidade, o cida por “Buraco Quente”; e, por da por parte dos moradores. São
município, o estado e até mes- fim, o espaço compreendido en- essas relações que procuramos
mo o país. Estes representam o tre as ruas Bonfim e Caparaó, apreender, pois são efetivamen-
sistema capitalista em vigência e nos limites com o bairro Bonfim, te capazes de construir a memó-
desenvolvimento, de modo que onde se concentra a maior parte ria social concebida como parte
as suas leis foram amplamente das casas de encontro e o trottoir do processo histórico. Como afir-
observadas na nossa análise. das prostitutas e dos homosse- ma Cássia Magaldi (1992, p. 21),
Uma constatação inicial a que xuais. “a cidade deve ser pensada como
chegamos sobre a Lagoinha, na Essas situações socioeconômi- uma estrutura onde se realizam,
sua configuração presente, é a de cas se aproximam e, por vezes, em constante interação, as rela-
que não se pode homogeneizar se sobrepõem, tanto no que se ções sociais: todas as espécies de

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atividades e ações humanas con- laboraram na sua formação etno- cerica encontramos também
centradas”. Sua configuração é o social. Contribuíram, também, bancos, padarias, papelarias, far-
resultado das formas assumidas para tornar a Lagoinha um pro- mácias, bares e, lado a lado, uma
pela sociedade, pela apropriação longamento da região central- igreja evangélica e uma casa de
histórica do espaço e pelas inter- norte, apresentando um perfil umbanda, ou, até mesmo, um
relações dos elementos que com- espacial muito semelhante àque- motel, o Butterfly.
põem a sua estrutura. Faz-se ne- la região. Contudo, as entrevistas reve-
cessário salientar, ainda, que essa Explicando melhor, as antigas laram que a atividade comercial
realidade diversificada e com- chácaras de propriedade de ita- é considerada insuficiente por
plexa está em permanente mu- lianos foram cedendo lugar à muitos moradores, que deman-
tação, marcada por transforma- construção de casas residenciais daram um maior acesso a super-
ções físicas, sociais, culturais e e comerciais. Os italianos foram, mercados, lojas de utensílios do-
políticas, no processo da dinâmi- em grande medida, responsá- mésticos, de roupas e melhores
ca e do crescimento urbano. veis pela intensa atividade de serviços de panificação. Em re-
A marcha das transformações negócios que sempre distinguiu lação aos serviços de infra-estru-
do bairro acelerou-se na década o bairro, fundando armazéns de tura, observamos que o bairro se
de 80, impulsionada pelas obras secos e molhados, alfaiatarias, mostrou bem servido de água,
públicas do Complexo da Lagoi- padarias, bares, como também a luz, telefone, correios, escolas e
nha (onde ocupam papel princi- primeira fábrica de doce de leite hospitais. Mas detectamos pro-
pal o viaduto e a passarela) e pela na capital. Muitos desses estabe- blemas no transporte coletivo,
especulação imobiliária. Esta lecimentos atravessaram as fron- traduzidos na deficiência de
atingiu o bairro quando a pres- teiras do bairro, em direção às pontos de embarque e desem-
são do crescimento urbano dei- áreas contíguas, mas situadas no barque no interior do bairro e
xou de ocorrer apenas na zona perímetro central. As famílias nos constantes engarrafamentos
sul, chegando também à zona mais abastadas formaram seus fi- na Avenida Antônio Carlos (que
norte. Do nosso ponto de vista, lhos em profissões liberais (mé- devem ser solucionados, em par-
dois fatores muito influenciaram dicos, advogados) e, com o pas- te, com a finalização das obras do
esse processo, seja em relação ao sar do tempo, mudaram-se da complexo viário). Foram tam-
tipo de modificações ocorridas, Lagoinha. Alguns dos casarões bém considerados precários os
seja em relação à cronologia des- que eles habitavam persistem serviços de limpeza urbana e de
sas mudanças. O primeiro deles ainda, embora mal conservados, policiamento. A população se
diz respeito à posição geográfi- ao contrário de outros derruba- mostrou ressentida com a falta
ca do bairro – nos limites da zona dos na marcha da especulação de opções de lazer, como cine-
urbana e da zona suburbana – imobiliária que atinge, principal- mas e clubes – registramos ape-
dentro do traçado original da ci- mente, as ruas Itapecerica e nas a existência do Clube dos Te-
dade, além da sua proximidade transversais ou a Avenida Antô- celões – e, principalmente, de
com a região central e comercial nio Carlos. Com o tempo, o tipo áreas verdes e praças. Na oca-
metropolitana, com a estação fer- de comércio foi se modificando sião, a antiga Praça Vaz de Mello
roviária e com a rodoviária. O se- até se especializar em antigüida- havia sido destruída e ainda não
gundo fator se refere à presença des, móveis usados, serviços e fora substituída por qualquer
dos imigrantes italianos, que co- consertos em geral. Na rua Itape- outra, sendo a sua falta bastante

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A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova concepção de política urbana

lamentada. Principal centro de e patrimoniais; ela conseguiu seus ensaios (embora funcionem
referência do bairro, a praça foi preservar certas relações sociais num ritmo mais moderado), as-
celebrada numa canção compos- do tipo tradicional, observáveis sim como a Associação São Vi-
ta por um dos seus freqüentado- nos laços de vizinhança e religio- cente de Paula, fundada em
res habituais: sidade. 1908, ainda em plena atividade
Não há entre nós um paralelo A tradição religiosa constitui de assistência social junto às fa-
eu na Praça Vaz de Mello um aspecto pouco reconhecido velas do bairro. As festividades
e ela tão longe de mim. pela opinião pública, embora es- comemorativas da Matriz, como
E assim de cachaça em cachaça
vou vivendo ali na praça tivesse sempre presente, de mo- as procissões e as barraquinhas,
de botequim em botequim. do marcante, no seu cotidiano. ou as novenas envolvendo a co-
(Garcia, 1990, p. 6) A Igreja Matriz de Nossa Senho- letividade, tornaram-se mais ra-
A situação descrita evidencia ra da Conceição traz consigo to- ras. Mas o velho espírito de ami-
um descaso do poder público da uma história de cultura reli- zade e solidariedade foi manti-
para com o bairro, durante mui- giosa, social e musical. Ali foram do, mesclando-se às novas for-
to tempo. Considerado uma sim- criados uma banda de música, mas atomizadas de convivência
ples “via de passagem”, as obras uma orquestra e um coral, que social. O bairro, de modo geral,
de grande porte eram construí- reuniram as tendências artísticas foi considerado pouco violento,
das para resolver problemas de e a fé espiritual das famílias lo- haja vista o pequeno número de
outros pontos da cidade. A falta cais, desde os primórdios do brigas, atritos e assaltos registra-
de preocupação em se preservar bairro: dos, comparados com outros
o meio ambiente interno ou a pontos da cidade.
Tendo-se celebrado em casa do Sr.
qualidade de vida dos morado- Francisco Caetano de Carvalho (à É patente a coexistência de
res refletia-se na aparência física Rua Itapecerica n. 334) os festejos uma face conservadora, religio-
do bairro, com suas casas anti- de mês de Maria, no ano de 1914, sa, familiar e solidária, com uma
surgiu d’ahi a idea da edificação de
gas e mal cuidadas, com as facha- uma Capela em honra da Imaculada face laica, transgressora, caracte-
das pobres das lojas, com as ruas Conceição e com essa grandiosa idea rizada pela presença da prosti-
esburacadas e esgotos entupi- veio a de se fundar uma Banda de tuição e da boemia, que também
Música que com a denominação de
dos. Mas, a despeito disso, gran- “Corporação Musical N. Sra. da compõem a identidade do bair-
de parte dos entrevistados con- Conceição”, auxiliasse nas solenida- ro. A fama dos boêmios e das
siderava o local bom para mora- des realizadas na supradita Capela prostitutas conseguiu transpor
(...).4
dia devido, principalmente, à as fronteiras locais, de modo que
proximidade do centro e ao Os tempos mudaram e tam- o aspecto da transgressão à “mo-
grande número de linhas de ôni- bém as práticas da tradição cató- ral e aos bons costumes” foi in-
bus que por ali circulam. A po- lica. Mas se, de um lado, pratica- justamente identificado como a
pulação da Lagoinha resistiu fir- mente terminaram as missas so- própria razão de ser da Lagoinha
memente ao modelo de urbani- lenes celebradas em latim, por e, desse fato, derivam muitos dos
zação perverso que deixou ao outro conservaram-se a banda equívocos a seu respeito.
largo valores estéticos, históricos de música e o auditório para os Mesmo o poder oficial pare-

4
Cf. o Livro de atas da Corporação Musical Nossa Senhora da Conceição.

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ce ter compartilhado de tal visão tível declínio de sua vida boê- construções muito simples ao la-
sobre o bairro, configurando mia. do de algumas que apresentam
uma ótica reducionista que não um certo grau de sofisticação. Is-
se deu conta das práticas sociais so denota, sem dúvida, um des-
diferenciadas que fazem parte A Lagoinha e suas vio espontâneo do traçado regular,
da sua rotina. peculiaridades padronizado, da cidade, bem co-
No planejado assentamento mo de sua bem demarcada distri-
da cidade de Belo Horizonte, cu- Tendo como base a concepção buição sócioespacial. E isso, como
ja distribuição obedeceu a uma foucaultiana de espaço/territó- uma característica marcante do
racionalidade tipicamente posi- rio/poder e o exame dos dados bairro, deveria ser preservado.
tivista, a Lagoinha ocupou e ain- coletados, constatamos um mo- Em segundo, fica bastante
da ocupa uma posição de margi- do peculiar das relações sociopo- evidente que a Lagoinha consti-
nalidade5 num duplo sentido: o líticas da Lagoinha com o muni- tuiu o berço de muitos cidadãos
de uma área situada fora do cin- cípio e com o establishment que, tradicionais e ilustres do muni-
turão urbano ou dos centros de até aquele momento, não havi- cípio. Ela é, ainda, responsável
decisão, e também o de uma re- am sido detectadas, quer pelo por algumas tradições religiosas
gião “suburbana”, nos termos do Estado, quer pelos estudos urba- e musicais, como a missa solene,
comportamento social, em virtu- nísticos. Não encontramos qual- até hoje comemorada na Matriz
de da presença de certas atitu- quer referência a esse respeito de Nossa Senhora da Conceição,
des e atividades discriminadas, nas matérias especializadas, mas por ocasião do aniversário de sua
consideradas transgressoras ou essa peculiaridade pode ser per- padroeira. Esse fato demonstra
“subalternas” pela moral vigen- cebida por um olhar mais aten- que o bairro não se ateve à segre-
te. Desse modo, coube ao bairro to, através de três aspectos bási- gação social e moral que comu-
um papel secundário que, sob o cos, que sintetizamos a seguir. mente o caracteriza, conseguin-
nosso ponto de vista, foi respon- Em primeiro lugar, a Lagoi- do ultrapassá-la na sua trajetó-
sável por dois aspectos relevan- nha, devido à sua posição mar- ria rica e plena de contradições,
tes que marcaram de forma de- ginal no que se refere à raciona- que permanece bem viva na his-
cisiva a sua posição no contexto lidade tipicamente positivista tória da cidade. A nosso ver, esse
da organização espacial da cida- que orientou o planejado assen- aspecto deveria ser salientado por
de. São eles: a importância que tamento da cidade, pôde seguir uma proposta mais ampla de pre-
as atividades da boemia e da o seu próprio traçado, estabele- servação, que considere a impor-
prostituição assumiram em sua cendo um padrão estético espe- tância do legado das significações
história, mascarando as outras cífico e um modo de crescimen- históricas coletivas e suas interse-
tantas características locais; e o to diferenciado. Essa conforma- ções com o momento presente.
antigo descaso do poder públi- ção original é visível nas suas Finalmente, observamos ocor-
co, apoiado na falácia da obsoles- ruas tortuosas e na sua arquite- rer um processo de extrema im-
cência e da decadência do bair- tura livre de restrições, em que portância, tendo como palco o
ro, confundidas com o indiscu- convivem diferentes estilos, bairro, no que se refere à ques-

5
Empregamos o conceito de marginalidade no sentido de “afastada dos centros decisórios de poder e dos setores economica-
mente dominantes”. (Foucault, 1979)

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A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova concepção de política urbana

tão da moradia e da habitação. ve ser objeto de atenção por par- das, nos encontros sociais e reli-
Esta é sinônimo não apenas de te do poder público, tendo em giosos de seus moradores.
status social, mas também de se- vista que o mecanismo da espe- A revalorização da Lagoinha
gurança material nas sociedades culação ronda os limites do bair- implica a preservação de sua me-
capitalistas, particularmente no ro. A preservação aqui também mória e de sua história, no âm-
Brasil, marcado por uma profun- se faz necessária pois, de acordo bito de uma concepção de “patri-
da instabilidade econômica. com a concepção que adotamos, mônio histórico” que englobe as
Aqui, o acesso à moradia está ca- ela deve ser também indutora da dimensões múltiplas da cultura.
da vez mais comprometido, en- manutenção da qualidade de vi- É fundamental, nesse caso, esta-
tre outras razões, pelas deficiên- da, evitando sobretudo o enorme belecer a dissociação das noções
cias da política habitacional bra- ônus social da destruição sistemá- de “tombamento” e de “preser-
sileira e pelo processo de espe- tica de manchas urbanas inteiras. vação”. Prevalecia, grosso modo,
culação imobiliária. A Lagoinha, uma política de tombamento de
com suas casas antigas e em es- bens imóveis que conduzia à
tado precário de conservação, Uma proposta desvalorização financeira dos
sugere um panorama de carên- para a Lagoinha mesmos, acentuada pelo fato de
cia e, mais ainda, de abandono. o poder público efetuar o tom-
Isso favorece o processo de espe- Os resultados do nosso traba- bamento mas não promover a
culação que ronda o bairro, mes- lho revelaram a necessidade im- preservação propriamente dita,
mo porque o empobrecimento e perativa de uma revalorização fazendo com que o imóvel per-
a deterioração das edificações ur- da Lagoinha, isto é, um redire- desse também o seu valor sim-
banas são apresentados à popu- cionamento planejado pelas au- bólico. Como exemplo, citamos
lação como um processo orgâni- toridades competentes, levando a “Casa da Loba”, um belo exem-
co de envelhecimento natural. A em consideração os aspectos físi- plar do art nouveau no Brasil do
desvalorização dos imóveis em cos, estéticos, culturais, político- início do século, localizada na
relação à sua idade encobre, na sociais da região e o seu papel rua Itapecerica, que, logo após o
realidade, a sua causa mais pro- privilegiado no cenário históri- tombamento, foi completamen-
funda, ou seja, a especulação co da cidade. Nesse sentido, bus- te descaracterizada pelos própri-
imobiliária, em conexão com a camos promover um novo olhar os moradores.
política econômica vigente. Tal sobre o bairro, amplo o suficien- Nesse sentido, concluímos
distorção é facilmente manipu- te para visualizá-lo na sua multi- que a melhor forma de se atin-
lada pelo interesse pessoal dos plicidade. Pois a Lagoinha jamais gir os objetivos estipulados seria
agentes imobiliários. Nossas ob- se constituiu como um “bairro- através da criação de um “Movi-
servações nos levaram a concluir fantasma” ou esteve agonizante, mento Comunitário para a Pre-
que o bairro tem conseguido dri- como fizeram crer certos comen- servação Histórica”, promoven-
blar, em certa medida, esse pro- tários sobre ela. Ao contrário, do as intervenções arquitetôni-
cesso, uma vez que 90% dos mo- constatamos que ela permanece cas em conjunto com os mora-
radores entrevistados se revela- muito viva, e o seu coração con- dores, e colocando à sua disposi-
ram proprietários de seus imó- tinua forte no interior de cada ca- ção os materiais com preços mais
veis. Esse é um fato que, por sua sa, de cada loja, nos trottoirs, nas acessíveis. Isto está de acordo
relevância econômico-social, de- ruas tranqüilas ou movimenta- com os estudos mais recentes so-

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 36-49, out. 1997 45


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bre espaço urbano e preserva- mais representativas do bairro, na Avenida Antônio Carlos.
ção, os quais salientam que a ou aquelas que a própria popu- Concordamos com a opinião de
transformação provocada na lação mantém vivas, nas suas alguns arquitetos e urbanistas
mentalidade dos moradores relações cotidianas. Dessa forma, entrevistados de que, termina-
quando eles próprios reconstro- apontamos como núcleos inici- das as obras do Viaduto, a rua
em seu bairro vale muito mais ais para uma intervenção: a reli- pode ser beneficiada, deixando
que a transformação da sua con- giosidade, a boemia e a prosti- de ser corredor de trânsito de
dição material. Assim, a intenção tuição, o comércio e a assistên- veículos e adquirindo um perfil
de preservação deve partir dos cia social. próprio. Isso conta com o apoio
próprios habitantes, não se redu- A delimitação das áreas a se- dos comerciantes, dispostos a in-
zindo o problema, tão somente, rem priorizadas também foi fei- vestir no lazer e na cultura, tor-
à espera da iniciativa do poder ta através do reconhecimento de nados atrativos para o incremen-
público. Este último deve ser vis- seu valor simbólico, inscrito na to de seus negócios.
to como co-partícipe e interme- leitura que os habitantes fazem Uma terceira sugestão foi a re-
diário nas transações, estabele- delas, mesmo que correspon- vitalização do antigo Mercado
cendo as condições técnicas e dam a locais reduzidos ou de cu- Municipal, na época desativado
materiais para que as medidas nho familiar. Essas áreas coinci- e em fase de deterioração. A nos-
sejam viabilizadas. O “Movi- dem com os espaços ocupados sa proposta, nesse caso, foi a im-
mento para a Preservação His- pelas atividades acima mencio- plantação de um centro cultural,
tórica” se tornou viável porque nadas e mais representativas nas para exposições relativas à me-
contou com a participação da co- relações dos seus habitantes, de mória local, apresentações do co-
letividade – como pudemos per- modo que selecionamos, para ral da Igreja ou até mesmo reu-
ceber nas entrevistas com vários dar início à intervenções, a rua niões comunitárias. O incentivo
segmentos representativos do Adalberto Ferraz e a rua Itapece- ao lazer, ao comércio e à cultura
local, como o pároco da Igreja rica. A primeira conta com um poderá atrair os moradores de
Nossa Senhora da Conceição, os fator de estímulo à sua revitali- outras regiões da cidade, além
comerciantes e as famílias tradi- zação: a presença das famílias dos seus próprios habitantes.
cionais ali radicados. tradicionais, que se interessam
Contudo, faz-se necessária a pela preservação da história do
Conclusão: em
ampliação do debate, a fim de bairro e estão ligadas às ativida-
evitar os privilégios de alguns des religiosas. Assim, propuse- direção às novas
grupos em detrimento de ou- mos a reativação cultural da rua, práticas de
tros, garantindo a participação através das festividades religio- intervenção –
da população no seu conjunto. sas e musicais, concomitante- O Projeto de
Por outro lado, esse tipo de in- mente à recuperação da Igreja
tervenção não pode buscar, no Matriz. No que se refere à rua
Reabilitação
seu momento inicial, abranger o Itapecerica, um dos maiores pre- Integrada do Bairro
bairro como um todo. Por isso juízos observados foi a sua trans- Lagoinha
destacamos, através de nossa formação em via de passagem
pesquisa, aquelas atividades para a zona norte, sofrendo com Em 1994, as autoras foram
múltiplas, e ao mesmo tempo os constantes engarrafamentos convidadas a participar do pro-

46 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 36-49, out. 1997


A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova concepção de política urbana

grama de elaboração dos inven- no planejamento da cidade de cipação dos usuários – os mora-
tários do Patrimônio Urbano e Belo Horizonte. Foi então firma- dores do bairro – em todas as
Cultural de Belo Horizonte (IPU- do o compromisso plural com a suas etapas, desde a sua concep-
CBH), coordenado pela então preservação, a recuperação e a ção e elaboração até a execução
Diretoria de Patrimônio da Se- manutenção dos espaços urba- das obras e o seu acompanha-
cretaria Municipal de Cultura. nos públicos e privados, tendo mento.
Os nossos pontos de vista e pre- como princípio fundamental a O Plano de Reabilitação Inte-
ocupações teóricas naquele mo- introdução da co-responsabili- grada da Lagoinha6 entrou em
mento se aliavam a uma propos- dade e da participação efetiva da execução no mês de maio de
ta de política de preservação ino- comunidade local, bem como 1996. No final de dezembro do
vadora do patrimônio urbano da dos órgãos públicos e privados mesmo ano, o prefeito Patrus
cidade que, de acordo com as na administração da cidade. Ananias entregou à população
suas premissas, De acordo com os seus idea- um conjunto de obras: a Praça
lizadores, o Projeto Lagoinha Vaz de Melo, o Mercadinho da
deve superar a abordagem histórico-
estilística e ser trabalhada dentro de constitui uma proposta de “rea- Lagoinha, a recuperação dos
uma concepção que integre as ques- bilitação integrada”, que procu- passeios e arborização da rua Ita-
tões socioeconômicas, técnicas, esté-
ra tratar os diferentes problemas pecerica, a reforma do Hospital
ticas e ambientais e leve a conside-
rar qualquer intervenção sobre o pa- da região de forma articulada e Odilon Behrens, a reurbanização
trimônio como uma ação sobre o pre- simultânea. Como tal, entrelaça da favela Senhor dos Passos. Es-
sente e uma proposta para o futuro.
ações de tipos variados, que vão tão em andamento os programas
(Castriota, 1993, p. 13-14)
de intervenções físicas a proje- de incentivo às principais linhas
Inicialmente, foi elaborado o tos culturais, levando em consi- de comércio do bairro – contan-
IPUCBH – LAGOINHA, docu- deração a sua “estrutura de sen- do com a parceria do SEBRAE/
mento oficial exigido para a apli- timentos” e passando por proje- MG –, tendo sido realizado tam-
cação das leis de preservação do tos afins de desenvolvimento ur- bém o 1º Leilão de Móveis Anti-
patrimônio, que pretendia ir bano e social. Seu objetivo final gos da Lagoinha (em novembro
além e subsidiar uma série de é trazer para o bairro melhores de 1996). Outra frente de traba-
ações governamentais, sobretu- condições de vida, compatibili- lho foi iniciada: trata-se da recu-
do nas áreas de cultura e do pla- zando a preservação com o de- peração e conservação dos imó-
nejamento público. Num mo- senvolvimento econômico. Mais veis do bairro, feita em conjun-
mento subseqüente, o trabalho precisamente, ele se propõe a in- to com os comerciantes e mora-
foi ampliado e, como parte dos verter a lógica que tem norteado dores locais e contando com a
Programas Preparativos para o as grandes intervenções urba- parceria da iniciativa privada.7
Centenário da Cidade, foi elabo- nas, pois considera que o ponto A revitalização cultural do
rado o Projeto de Reabilitação In- de partida deve ser a realidade bairro encontra-se em andamen-
tegrada do Bairro da Lagoinha, do bairro tal como é vivida hoje to, com a execução do projeto
a nosso ver o primeiro a intro- pelos seus habitantes. Desse mo- “Sopro da Lagoinha”, de preser-
duzir a gestão urbana integrada do, o Projeto pressupõe a parti- vação e incentivo da banda Nos-

6
V. PBH/Projeto Lagoinha – relatório de atividades, 1996.
7
A empresa R Fonseca Produtos Químicos participou da primeira fase desse programa, com a doação, à Associação de Mora-
dores da Lagoinha, das tintas utilizadas na recuperação e pintura das fachadas dos imóveis cadastrados pelo projeto.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 36-49, out. 1997 47


Heloisa Guaracy Machado; Maria de Lourdes Dolabela L. Pereira

sa Senhora da Conceição (que, Do ponto de vista conceitual nos fazem amplamente recom-
segundo os dados apurados em e teórico, o Projeto foi muito pensadas no nosso esforço: de
nossa pesquisa, foi uma das pri- bem-sucedido, recebendo, inclu- um lado, constatamos uma nova
meiras a se constituir na cidade, sive, um prêmio internacional. postura dos órgãos da adminis-
junto com o primeiro coral de Os seus elaboradores realizaram tração municipal em relação à
igreja de Belo Horizonte e se conferências em seminários so- Lagoinha, corrigindo-se, assim,
mantinha ainda em funciona- bre urbanismo em muitas cida- uma antiga distorção das políti-
mento, mas sem nenhum apoio des do Brasil e até mesmo do cas públicas anteriores; de outro,
oficial). Uma linha editorial tam- exterior, como Quito, Barcelona pudemos ver realizar-se o verda-
bém está sendo implementada e e Berkeley. Do ponto de vista deiro sentido do trabalho acadê-
espera-se para breve o lança- prático, observamos a concreti- mico, ou seja, a transposição da
mento do “Manual Técnico de zação de muitas das medidas ini- reflexão teórica e sua viabilização
Conservação e Recuperação da cialmente elencadas na pesqui- através da prática efetiva de
Arquitetura da Lagoinha” e do sa sobre a Lagoinha. Os desdo- ações concretas e consciente-
livro Projeto Lagoinha. bramentos do nosso trabalho mente sociabilizadas.

Fontes primárias
01. CARNEIRO, Plínio. Conheça a Lagoinha de 35 ou 45 anos atrás e saiba como o progresso estragou com ela. Estado
de Minas. 1º Caderno. Belo Horizonte, 1º de setembro de 1974.
02. GARCIA, Celso. A Lagoinha não dá mais samba. Jornal de Casa. Belo Horizonte, 12 a 18 de agosto de 1990.
03. SERRA, Alberto e INÁCIO, José. Conheça a alma boêmia da Lagoinha, que o progresso vai matando devagar.
Estado de Minas. 1º Caderno. Belo Horizonte, 23 de junho de 1974.

Obras de referência
01. CASTRIOTA, Leonardo Barci. Alternativas contemporâneas para políticas de preservação. Belo Horizonte:
[mimeo], 1993.
02. MACHADO, Heloisa G., PEREIRA, Maria de Lourdes Dolabela L. Projeto Belo Horizonte: bairros antigos,
uma nova realidade – Módulo I: A Lagoinha no contexto urbano da cidade. (monografia) Belo Horizonte:
FIP/PUC•Minas, 1991.
03. MORAES, Fernanda Borges de, PEREIRA, Maria de Lourdes Dolabela L. Inventário do Patrimônio Urbano e
Cultural de Belo Horizonte: Bairro Lagoinha. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
04. PBH/Projeto Lagoinha – Relatório de Atividades. Belo Horizonte: Secretaria de Desenvolvimento Econômi-
co, jan./dez. de 1996.

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A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova concepção de política urbana

Referências bibliográficas
01. ALMEIDA MAGALHÃES, Beatriz, ANDRADE, Rodrigo F. Belo Horizonte – um espaço para a República. Belo
Horizonte: UFMG, 1989.
02. CHAUÍ, Marilena. Política, cultura política e patrimônio histórico. In: CUNHA, Maria Clementina P. (org.). O di-
reito à memória – patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1992.
03. DUBY, Georges et al. História e Nova História. Lisboa: Editorial Teorema, 1986.
04. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
05. MACHADO, Roberto. Ciência e saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
06. MAGALDI, Cássia. O público e o privado: propriedade e interesse cultural. In: CUNHA, Maria Clementina P.
(org.). O direito à memória – patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Departamento do Patrimônio
Histórico, 1992.
07. PEREIRA, Maria de Lourdes Dolabela L., MACHADO, Heloisa G. A Lagoinha no contexto urbano de Belo Hori-
zonte. Revista de Urbanismo. n. 3. Belo Horizonte: FAU/UFMG, 1993.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 36-49, out. 1997 49


Maria Marta Martins de Araújo

A VIDA NOS SUBÚRBIOS: MEMÓRIAS


DE UMA OUTRA BELO HORIZONTE*

Maria Marta Martins de Araújo


Fundação João Pinheiro

E
RESUMO m 1896, Francisco Bicalho, engenheiro
Em 1993, coordenei os trabalhos que substituiu Aarão Reis na chefia da
de pesquisa histórica do Inventá-
rio do Patrimônio Cultural reali- Comissão Construtora, em relatório ao
zado pelo Departamento de Patri-
mônio Histórico de Belo Horizon- governador de Minas, justificava a quantia gas-
te. Iniciamos o trabalho através da
rua da Bahia e depois partimos para ta, até aquele momento, com a construção da
atuar em três frentes: Lagoinha,
Floresta e no bairro Primeiro de nova capital, como o mais inteligente sacrifício
Maio. As reflexões que apresento
neste artigo são frutos dessa expe- do Estado para o desenvolvimento material e
riência no campo mais propriamen-
te dito da preservação e da memó- elevação intelectual de seus filhos que, segun-
ria. O texto defende duas posições:
as possibilidades oferecidas por do ele, ainda não conheciam bem, pelo menos
uma história de Belo Horizonte a
partir da trajetória de seus espaços, no interior, as exigências da civilização moderna:
particularmente de seus bairros po-
pulares, e uma política mais am- A ignorância do que a vida pode ter de confortável,
pla de preservação que trabalhe com
esses mesmos universos identitários.
o hábito de contentar-se com pouco, a modéstia de
costumes, a resignação e frugalidade de árabe, en-
fim, são contrários ao desenvolvimento da riqueza. A Nova Capital vai forçosa-
mente irradiar benéfica luz por todo o Estado, mostrando que os gozos sociais
não se coadunam com a simplicidade patriarcal da vida mineira e, ao despertar
louváveis ambições, instigará o trabalho, as indústrias, a lavoura, o comércio, a
necessidade de relações de toda a sorte e, em última análise, o desenvolvimento da
produção e da riqueza geral. (Minas Gerais-CCNC, 1896, s/p.)

*
Esse artigo é uma versão revisada do texto apresentado no simpósio “Belo Horizonte: tempo, espaço e memória”, promovido
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Belo Horizonte, 23 a 25 de abril de 1997).

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A vida nos subúrbios: memórias de uma outra Belo Horizonte

Esse trecho de Francisco Bica- ções de adquirir propriedade, pação dos espaços da cidade. As
lho é bastante revelador das fun- outros apenas com o saber de primeiras décadas de Belo Hori-
ções concretas e simbólicas do um ofício. zonte são bastante ricas no que
empreendimento da Nova Capi- “Os ares da cidade libertam!” se refere às tentativas de orde-
tal. Ela deveria ser, principal- Esse velho aforismo, criado pe- namento. Os interditos torna-
mente, um incremento para as los camponeses da Alemanha ram-se cada vez mais explícitos
atividades industriais e comerci- pré-moderna, poderia ser reto- nas normas e nas leis, expressas
ais – para o desenvolvimento da mado para falar dos anseios des- em seu código de posturas, e as-
riqueza – e um instrumento pe- ses migrantes do início do sécu- sumiram muitas vezes um cará-
dagógico no sentido de incutir lo que aportaram na Nova Ca- ter bastante repressivo, sobretu-
novos hábitos urbanos. Essa per- pital. Assim como naqueles tem- do através da atuação policial.
cepção dos idealizadores de Belo pos, a cidade, a capital moder- A cidade aberta à livre afirma-
Horizonte, políticos e técnicos, já na, pretendia materializar uma ção dos indivíduos não tinha es-
vem sendo trabalhada pelos his- nova era em oposição aos víncu- paço para os “aventureiros”, pa-
toriadores há bastante tempo. los fechados e rígidos, nesse ca- ra os que nada possuíam e que,
Todavia, gostaria de desenvolver so, de um passado escravista e portanto, nada tinham a perder.
um ponto que emerge da fala de colonial. Do mesmo modo que Através da leitura dos documen-
Francisco Bicalho: a visão de que para aqueles mesmos campone- tos da Comissão Construtora e
a cidade era, sobretudo, uma pro- ses alemães: da análise do plano original de
messa, algo capaz de “despertar Quebrar tais vínculos e alcançar a Belo Horizonte, fica evidente
louváveis ambições” e sonhos de cidade, entendida como espaço liber- que estavam excluídos desse
riqueza nos que aqui chegassem. tador e promessa de salvação, era projeto os pobres em geral. “Os
uma aspiração radical. Nela estari-
Todo esse preâmbulo foi para am contidas uma ambicionada au- operários estrangeiros que traba-
introduzir um tema, que não é tonomia individual e a livre afirma- lharam na construção da cidade,
novo, mas que merece ser me- ção pessoal. Por ela se garantia e dava terminadas as obras, recebiam
forma ao desejo de se tornar outro.
lhor investigado pelos pesquisa- Antecipava-se o tempo, mudava-se
das autoridades policiais passes
dores de Belo Horizonte: uma de lugar, enfim, construía-se uma para saírem da cidade”. (Araújo,
história da cidade a partir da óti- nova identidade. (Fortuna, 1997, p. 1988)
127)
ca daqueles que não vieram para Diversos estudos demons-
cá transferidos, como os funcio- Segundo o Padre Martins, Aa- tram que a evolução histórica e
nários públicos de Ouro Preto, rão Reis, o primeiro engenheiro o processo de ocupação de Belo
mas com sonhos de ascensão chefe da Comissão Construtora, Horizonte contrariaram em di-
social, seduzidos pela utopia da não queria na Nova Capital ne- versos aspectos o plano original
cidade moderna, tão bem descri- nhum dos habitantes do antigo concebido pela Comissão Cons-
ta pelo nosso engenheiro chefe. povoado de Belo Horizonte. Era trutora da Nova Capital (Ver: Le
Entretanto, é preciso delimi- preciso construir uma outra ci- Ven, 1977; Guimarães, 1991 e Ju-
tar ainda mais esses sujeitos. Na dade, sem os males e vícios de lião, 1992). Seu traçado geomé-
verdade, o interesse recai sobre uma cultura formada por hábi- trico, de tamanho prefixado, or-
os que vieram para a cidade e se tos simples e pouco civilizados. denado e funcional, não previu,
instalaram nos subúrbios da No- Pode-se dizer que começou aí to- dentre outras coisas, espaços e
va Capital. Alguns com condi- da uma série de restrições à ocu- moradias para operários. Em de-

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 50-56, out. 1997 51


Maria Marta Martins de Araújo

corrência disso, a cidade passou oníricos nos quais a técnica e a Em suas reivindicações, os mo-
a conviver, desde os seus primei- arte se harmonizam, mas não radores não queriam nada mais
ros anos, com favelas, loteamen- sobrevivem ao despertar amar- do que lhes era prometido pela
tos clandestinos e habitações im- go da realidade. Com um ritmo Nova Capital: “O conforto e de-
provisadas. Com uma popula- bastante acelerado de crescimen- mais exigências da civilização
ção bem superior à da zona ur- to, a cidade surpreendeu a todos, moderna”. Organizados através
bana, a periferia foi crescendo e principalmente a seus planeja- de associações, os moradores che-
acumulando problemas de infra- dores e administradores. A cada gavam a condicionar o pagamen-
estrutura. dez anos, era quase uma nova to do imposto predial ao forne-
Dada a exiguidade do prazo cidade que surgia, acumulando cimento desses serviços, princi-
para a sua construção, quatro ainda mais o déficit de serviços palmente à ligação de água. Dian-
anos, parte deles gastos em es- básicos. te de um poder público injusto
tudos e levantamentos, Belo Na imprensa, as reclamações e ineficiente, pois taxava a popu-
Horizonte foi inaugurada, em dos moradores de bairros que lação de forma indiscriminada,
começavam a se tornar populo-
1897, de forma precária, com sem distinguir os bairros servi-
sos, como Floresta, Lagoinha e
obras inacabadas e serviços a se- dos pelos equipamentos coleti-
Calafate, eram constantes e co-
rem contratados. Destacavam-se vos daqueles completamente des-
locavam a nu um quadro amplo
na paisagem algumas constru- providos de infra-estrutura, fo-
de carências: falta de água, de es-
ções de maior porte, edifícios ram-se criando grupos e fortale-
gotos, de energia elétrica, de
públicos e residências, e o traça- cendo-se identidades. A vivên-
transporte coletivo e de pavi-
do das ruas ainda sem pavimen- cia comum dos problemas leva-
mentação das ruas.
tação. As largas ruas e avenidas, va os moradores a serem mais so-
A falta de saneamento básico
nos moldes dos cânones euro- lidários, tornando mais fortes os
nos subúrbios era apontada pe-
peus, vistas em perspectiva, im- laços de vizinhança e de amizade.
los jornalistas da época como a
pressionaram os primeiros visi- Historiadores como George
pior ameaça à cidade higiênica e
tantes da Nova Capital. salubre. Não são poucas as refe- Rudé, Edward Thompsom e ou-
Segundo Walter Benjamin: rências às águas estagnadas e aos tros, que se dedicaram ao estu-
odores que exalavam das ruas. do do protesto popular, detecta-
O ideal urbanístico de Haussmann
eram as visões em perspectiva atra- O Barro Preto, bairro de per- ram a presença, em diversos mo-
vés de longas séries de ruas. Isso cor- fil operário desde o início da ocu- vimentos, de uma espécie de “no-
responde à tendência que sempre de ção legitimadora do direito”, ou
pação da cidade, era um dos
novo se pode observar no século XIX,
no sentido de enobrecer necessida- mais deficientes em termos de seja, de um arsenal simbólico ca-
des técnicas fazendo delas objetivos infra-estrutura urbana. Para se paz de levar à revolta e à indig-
artísticos. As instituições da domi- ter uma idéia da precariedade nação quando direitos básicos e
nação laica deveriam encontrar a sua
das condições sanitárias do bair- tradicionalmente aceitos não são
apoteose no traçado das avenidas: an-
tes de serem inauguradas eram reco- ro, até 1909 ele foi responsável respeitados (ver Pamplona, 1996).
bertas por uma lona e depois desco- pela maior taxa de mortalidade No caso de Belo Horizonte, a uto-
bertas como monumentos. (Benja-
infantil da cidade, em decorrên- pia da cidade moderna funcio-
min, 1985, p. 41)
cia da gastroenterite, causada pe- nava também como um recurso
A Belo Horizonte de seus idea- lo uso de águas infectadas do ri- ideológico à disposição dos que
lizadores é plena de elementos beirão Arrudas. se sentiam excluídos.

52 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 50-56, out. 1997


A vida nos subúrbios: memórias de uma outra Belo Horizonte

Sob a ótica do embate entre vivência entre operários e pes- pontearam as primeiras décadas
população e poder público, po- soas de maior posse, reproduzin- da cidade exibiam, orgulhosas,
demos ir contando a história des- do em seu microcosmo a vida de “flagrantes” e “instantâneos” dos
ses e de outros bairros que foram uma pequena cidade do inte- transeuntes, a passo acelerado,
surgindo em Belo Horizonte. rior. nas ruas do centro. Em muitas
Entretanto, o que aparece como Na verdade, não se pode es- dessas imagens visualiza-se uma
o mesmo desdobra-se em mil quecer que Belo Horizonte foi gente aflita, principalmente na
possibilidades. As trajetórias são construída por imigrantes, mui- rua da Bahia com avenida Afon-
diferentes e cada lugar tem a sua tos deles vindos do interior das so Pena, correndo para não per-
própria história. A Lagoinha e a Minas Gerais, de lugares não der o bonde ou para não ser atro-
Floresta estavam ali uma do lado muito diferentes do velho arrai- pelada pelos poucos automóveis
da outra; e como eram diferen- al do Belo Horizonte. Assim, a de Belo Horizonte (Dentre ou-
tes e como ainda são diferentes! Nova Capital foi se transforman- tras: A Vida Mineira, Revista de
Elas são o resultado de um uni- do, estranhamente, numa cida- Minas, Vita, Vida de Minas e
verso de práticas partilhadas e de moderna, de gente moderna, Tank). Nos subúrbios a vida era
da intervenção de uma série de mas de costumes provincianos. outra, o tempo corria a passos
elementos: profissionais, cultu- Nas suas viagens à cidade, mais lentos. O nosso contato
rais, religiosos, originários dos ainda nos anos 40, a escritora Ra- com essas outras imagens só é
diversos grupos que as com- quel Jardim intrigava-se: como possível, na maioria das vezes,
põem. uma cidade de “mentalidade to- através das recordações de seus
As pesquisas sobre a história talmente provinciana” dava ao antigos moradores, dos álbuns
do bairro da Lagoinha mostram mundo tantos escritores moder- de família, de reminiscências nas
a convivência de diversas face- nistas? quais se confundem diferentes
tas, a Lagoinha da vida boêmia, cidades.
Andando pelas ruas, pela Praça da
das famílias católicas e freqüen- Liberdade, Avenida Afonso Pena, eu Pouco sabemos sobre os bair-
tadoras da Igreja Nossa Senho- entendia porquê. Havia uma coisa no ros de Belo Horizonte, mesmo
ra da Conceição, dos ambulan- ar (...) uma civilização interior, vin- aqueles que são tradicionais e
da não sei de onde, de ancestrais re-
tes e prestadores de serviços, das motos. Porque, se a cidade era nova, que surgiram ainda nos primei-
lojas de móveis antigos. o povo tinha vindo de longe, de ou- ros anos da cidade, o próprio
Nos primeiros anos da Capi- tras cidades, de muitas gerações. Barro Preto, o Calafate e outros.
(Jardim, 1985, p. 62-63)
tal, uma parte da Floresta, ocu- Às vezes, parece-me que vemos
pada por belas chácaras, fazia Em 1960, mais da metade dos a história de Belo Horizonte, sen-
com que o bairro fosse conside- moradores da cidade não era tados em algum café ou confei-
rado o mais pitoresco e salubre nascida em Belo Horizonte; des- taria da rua da Bahia, numa es-
de Belo Horizonte, passeio obri- sas pessoas, 67% vinham das pécie de saudosismo literário do
gatório para os visitantes e na- áreas rurais do estado (Plambel, que a cidade já foi e que já não é
morados, pois permitia uma vi- 1974). A mescla resultante de to- mais. Eu talvez seja a pessoa me-
são panorâmica das largas ave- do esse movimento deu à cida- nos indicada para fazer uma crí-
nidas e dos edifícios mais impor- de e aos seus bairros contornos tica como essa, pois afinal desen-
tantes. Uma outra, mais densa- diferentes e inusitados. volvi todo um trabalho de inven-
mente ocupada, permitia a con- As revistas ilustradas que tário da história da rua da Bahia.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 50-56, out. 1997 53


Maria Marta Martins de Araújo

Contudo, e não digo isso de for- ra distante e o nosso receio, uma fuga ra. Uma exclusão que também se
ao confronto com o outro. Esta, por
ma contraditória, a história de faz presente nas discussões em
sua vez, uma fuga ao encontro conos-
Belo Horizonte é também, e em co próprios. (Fortuna, 1997, p. 139) torno do que é a memória dessa
muitos aspectos, a história des- cidade.
sa rua que exerceu no passado A memória é, portanto, a ma- A partir do que foi exposto, é
uma função clara de centralida- téria-prima das identidades, da preciso desenvolver uma políti-
de, sobretudo simbólica, atrain- construção dos sujeitos. Media- ca de valorização dos espaços da
do para si as fantasias e anseios doras entre a estrutura social e a cidade, procurando flexibilizar
de diferentes gerações. ação dos sujeitos, as identidades os critérios utilizados para deter-
De uma certa forma, a redu- são construídas e reconstruídas minar o que é esteticamente va-
ção de nossa escala de observa- em um processo dinâmico no lioso e historicamente significa-
ção é sempre uma experiência qual se inter-relacionam espaço tivo, sobretudo levando em con-
reveladora de novos ângulos, de e tempo. ta os interesses de grupos que
elementos que antes não pareci- O espaço, da mesma forma são social, política e culturalmen-
que agrega e une as pessoas, é te diversos.
am importar. Entretanto, conti-
fator de distinção, impondo di- Quando em 1993 discutía-
nuamos trabalhando sem desvi-
ferenças e qualificando os sujei- mos, na Prefeitura de Belo Hori-
ar totalmente o nosso foco, falan-
zonte, uma proposta de inven-
do talvez dos mesmos lugares de tos. Entretanto, de forma relacio-
tário para a cidade, acreditáva-
sempre. Pergunto-me: será que nal e interativa, os sujeitos, no
mos que as iniciativas de preser-
não estamos reproduzindo uma seu cotidiano, alteram e manipu-
vação deveriam contemplar a
mesma história em função dos lam os sentidos e significados
própria dinâmica de uma cida-
registros que temos em mão? dos lugares, criando estruturas
de planejada e de passado ain-
O modo como os indivíduos afetivas, cognitivas e individuais.
da recente. O inventário foi de-
se relacionam com os lugares his- Cada espaço da cidade, uma edi-
finido enquanto um trabalho sis-
tóricos e monumentos da cida- ficação, uma rua ou um bairro é,
temático de identificação, docu-
de nos diz muito sobre o senti- sobretudo, um mundo especial
mentação, proteção e divulgação
do que esses mesmos indivídu- e pleno de sensações, cuja iden-
de informações referentes ao
os dão ao seu próprio lugar no tidade, assim como a identida-
patrimônio cultural de Belo Ho-
mundo contemporâneo. de dos sujeitos, é uma constru-
rizonte. Tendo como recorte os
ção histórica realizada a partir da bairros da cidade e partindo de
Oposta às categorias de “real” ou de
“racional”, a percepção imaginativa experiência cotidiana. uma noção ampliada de patri-
ou fantasiosa do passado não alcan- Privilegiar certos lugares, en- mônio, pretendia-se inventariar
çou nunca o estatuto ontologicamen- quanto “lugares de uma memó-
te mais autêntico que atribuímos ao não apenas os bens culturais que
“presente”, no qual somos convida- ria autorizada”, significa tam- se restringissem ao patrimônio
dos a viver ou do “futuro”, no qual bém distinguir experiências, edificado, mas também as fontes
somos aconselhados a ter fé. Margi- marcar diferenças sociais, definir
nalizados, o passado e a memória tor-
e informações que possibilitas-
naram-se um risco. Por isso, pensar o que importa e o que é residu- sem a compreensão dos modos
o passado é um risco. Recordar trans- al. Apesar de termos ampliado de organização do espaço urba-
porta-nos para outro tempo e, desse os limites da história da cidade no, as diversidades de sua forma-
modo, para outro lugar. É nisto que
reside o perigo da memória. Se o tem- para fora da avenida do Contor- ção e evolução e as expressões
po é um lugar, o passado é uma ter- no, muita coisa ainda está de fo- culturais que lhe são constitutivas.

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A vida nos subúrbios: memórias de uma outra Belo Horizonte

A idéia era criar um núcleo de ro de urbanização precária e de Nos últimos anos, uma histó-
pesquisa e de documentação. baixo padrão construtivo, as ria dos bairros de Belo Horizon-
Além da pesquisa em arquivos e marcas materiais de seu passa- te tem sido escrita de forma dis-
instituições, seria realizado um do e de sua cultura? persa e improvisada. O interes-
trabalho nos próprios bairros à Esse era um aspecto impor- se nesse tipo de história, ou nes-
procura de arquivos que, apesar tante, pois as coisas materiais de- sa busca de identidade, tem le-
de não estarem organizados, se- sempenham um papel de enor- vado as associações de bairro,
riam essenciais, como arquivos me relevância. Através dos ele- escolas e demais entidades a pro-
de igrejas, associações, sedes de mentos físicos, os indivíduos e duzirem um material bastante
jornais de bairros e outros. grupos sociais identificam os fe- rico em termos de fotos, textos e
O inventário também tinha nômenos, suas relações e suas entrevistas. Sob a coordenação
por objetivo a produção de fon- instituições. Com um olhar mais do poder público, principalmen-
tes para a história dos bairros, atento e através dos depoimen- te a partir das escolas, poderia
principalmente através de regis- tos dos moradores, foi possível ser realizado um trabalho mais
tros fotográficos e da coleta de identificar esses elementos, que sistemático de produção de re-
testemunhos orais. tinham por função estreitar os gistros.
A proposta era trabalhar não laços sociais e eram referências Paralelamente ao centenário
só com bairros antigos, mas tam- para a comunidade: passagens, da cidade, vivemos um momen-
bém com bairros de ocupação re- pontos de encontro, etc. to de maior interesse na memó-
cente, como o Primeiro de Maio. A principal conclusão à qual ria e produção de histórias locais.
Tratava-se realmente de um de- chego é a de que esse é um tra- Todo esse processo tem uma co-
safio. Um levantamento inicial balho importante e possível de notação política clara: trata-se da
demonstrou que tínhamos pou- ser realizado, todavia necessita busca permanente e criadora das
cas informações sobre o bairro de um envolvimento maior dos identidades e, nesse campo, nada
Primeiro de Maio e que as fon- diversos órgãos da administra- é desprezível se está em conso-
tes orais seriam fundamentais. ção pública e dos setores sociais nância com os anseios sociais.
Uma outra questão: como traba- em torno de uma metodologia e
lhar a noção de patrimônio de de objetivos comuns.
forma a identificar, em um bair-

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 50-56, out. 1997 55


Maria Marta Martins de Araújo

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56 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 50-56, out. 1997


A razão moldando o cidadão: estratégias de política higienista e espaço urbano ...

A RAZÃO MOLDANDO O CIDADÃO: ES-


TRATÉGIAS DE POLÍTICA HIGIENISTA E
ESPAÇO URBANO DISCIPLINAR – BELO
HORIZONTE – 1907-1908

Rita de Cássia Chagas Henriques


Especialista em História Moderna e do Brasil

A
RESUMO construção da república em Minas
Este artigo pretende desvendar constou, como sabemos, da estrutu-
o discurso higienista veiculado por
um jornal na recém-fundada Belo ração de um arcabouço político-eco-
Horizonte do início do século, si-
tuando dialeticamente discurso e nômico e da modelação de um tipo de cidada-
palco como fundamento e reflexo da
ordem republicana em Minas. nia que se adequasse tanto às exigências da
nova ordem econômica quanto às premissas do Estado. A estrutura
político-econômica se firmou no pacto que congregou chefes locais em
torno do sólido Partido Republicano Mineiro – o PRM – cuja adesão à
política dos governadores assegurava a continuidade da atenção aos
interesses políticos e econômicos a partir do fortalecimento da bancada
mineira na câmara federal. Num modelo inovador que se mostrava
avesso às mazelas monárquicas, as bases eleitorais eram cooptadas para
o projeto com tal peso de continuidade através de dois mecanismos:
uma rede clientelística, fundada nos laços de família, que acabou por
constituir o estamento burocrático mineiro e um discurso oficial, fun-
dado no positivismo, consoante com a nova ordem, que mostrava como
naturais as diferenças entre os homens de 1ª e 2ª classe, e a dominação dos

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Rita de Cássia Chagas Henriques

primeiros sobre os demais. Nes- nha oficina e redação à Avenida ecoar as pregações de ordena-
se contexto, o ideário liberal-bur- Liberdade n. 205, telefone 148. A mento social, prosperidade, esta-
guês foi sendo difundido e in- última publicação do Diário bilidade política através de um
fundido nas classes subalternas compilada no Arquivo Público Estado eficiente, capaz até de
mineiras: com uma fachada uni- Mineiro é a de n. 489, de 31/10/ construir uma cidade daquele
versal, modernizadora, que ve- 1908, o que impõe o recorte cro- porte. Uma modernidade im-
lava as estruturas de dominação nológico deste trabalho entre as pregnada de conservadorismo –
nele implícitas. datas citadas. A política higienis- construções neoclássicas e cur-
Na passagem do século, a ta em Belo Horizonte certamen- rais eleitorais.
política higienista, matriz ideo- te extrapola esse período. Cre- Muitos foram os mecanismos
lógica dessas práticas e discursos, mos, entretanto, que a amostra- utilizados pelas classes domi-
adequava-se ao projeto político- gem desses dois anos pode ser nantes para divulgação de seus
econômico-social subjacente à significativa e elucidativa para o projetos de dominação expres-
consolidação da república em tema que nos propomos desen- sos como o saneamento necessá-
seus desdobramentos regionais volver. rio às mudanças que não se fazi-
e municipais. Em Minas, a re- Voltemos então ao palco e à am esperar. O jornal, um dos
cém-instalada capital exibia um cena principal. mais eficazes. Implicitamente
planejamento urbanístico e ar- Migrantes e imigrantes que veículo de informação, algo que
quitetônico digno de novos tem- afluíram à capital mineira, como deve circular, ser divulgado e
pos, eficiente no sepultamento mão-de-obra para sua constru- discutido. Na época em questão
de um insalubre arraial e, por isso, ção e posteriormente suas indús- o único elo de ligação entre o go-
merecedor de uma população trias e colônias agrícolas, encon- verno e os cidadãos (assim en-
sintonizada com sua realidade. traram um espírito arraigado aos tendidos porque o jornal se des-
É a consonância do discipli- ideais positivistas e cristãos, de tina em primeira instância àque-
nador higienismo com as de- forte apelo moralizante. No iní- le que lê – e quem lê vota). O Diá-
mandas da modernidade belo- cio do século, moralizar signifi- rio de Notícias cumpria diaria-
horizontina que vamos aqui des- cava sanear, redefinir valores e mente o seu papel de informa-
vendar, em três de suas nuances modelos de comportamento; dor-modelador. Subjacente a ca-
que nos parecem mais revelado- sintonizar-se com a vida do sé- da matéria, podemos vislumbrar
ras: o combate à vadiagem, a de- culo XX. um toque moralizante, às vezes
fesa firme da moral familiar e o Adequar-se era trabalhar pela explícito, outras vezes sutil, mas
gosto pelo cientificismo. mudança da pátria. “... Educação sempre dentro da perspectiva
Os subsídios que nos permi- e razões do Estado ( = da nação) higienista de sanear o social.
tiram apreender o estrito elo en- vão, pois, se complementar.” De acordo com o ideal higie-
tre a necessária moralização da (Melo, 1990, p. 145). A elite polí- nista, a mendicância foi alvo
população belo-horizontina do tica soube dosar os princípios da constante do discurso do Diário.
início do século e o discurso hi- razão com o pragmatismo cien- Indignava-se com a inércia da
gienista foram fornecidos pelos tífico e as demandas específicas prefeitura para limpar a cidade da
artigos do jornal Diário de No- mineiras. Herança da economia infestação de mendigos que des-
tícias, que circulou em Belo Ho- mineradora: a efervescência cul- caracterizavam o provincianis-
rizonte a partir de 21/02/1907; ti- tural, sabiamente moldada para mo e os ares de modernidade be-

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A razão moldando o cidadão: estratégias de política higienista e espaço urbano ...

lo-horizontinos. Insistia-se para lorosas aos olhos de todos (mui- dientes pouco confessáveis.”
que um asilo (certamente na tas vezes repelentes), acusam a Igualmente temidos, os vadios e
mais longínqua periferia) fosse ineficiência dos condutores da boêmios, mais que “desajusta-
construído para abrigar os coita- sociedade. São, portanto, seu al- dos” da república do trabalho,
dos, vítimas da má sorte. Esse vo principal, de vigilância e de são exemplos de vida desregra-
apelo fortemente cristão abalava avaliação. da e impulsiva, merecedores
os brios da prefeitura citando o portanto de coerção.
exemplo de outras cidades, cujos “... A cidade se constituirá no obser-
(...) Bom concurso trariam a acção
vatório privilegiado da diversidade:
Executivos já tinham resolvido restauradora das nossas forças pro-
ponto estratégico para apreender o
tais problemas. São Paulo é cita- ductoras em boa hora emprehendida
sentido das transformações, num
pelos poderes públicos, os senhores
da com freqüência, e a alternati- primeiro passo, e logo em seguida, à
da polícia si conseguissem a comple-
semelhança de um laboratório, para
va apontada é sempre o asilo, o ta extincção da vadiagem em a nos-
definir estratégias de controle e in-
confinamento das vistas dos ci- sa terra. Mesmo na Capital é contris-
tervenção.” (Bresciani, 1985, p. 36).
tador o espetáculo que presenciamos:
tadinos. as tavernas vivem locupletadas de
BH não pode continuar a exibir suas As medidas apontadas como parasitas que tantos serviços podi-
pompas, ao lado da miséria. Cabe ao solução de problemas tão imi- am prestar (...) e não seriam esse can-
estado o dever de assistir aos pobres, cro social que todos nós devemos te-
nentes casam perfeitamente com mer. Guerra, pois, aos vadios (...)
aos desvalidos, aos velhos, aos enfer-
mos (...) Siga a Prefeitura, auxilia- o espírito positivista da física so- (DN, Ano I, n. 3, 23/02/1907, 1ª
da pelo Estado e pela população, o cial de Augusto Comte. As dis- pág.)
exemplo da municipalidade de São O alvo é a vadiagem em si,
torções sociais são explicadas pe-
Paulo, (...) prohibindo terminante-
mente a mendicidade nas ruas.” la rigidez das leis naturais que re- aquela que se origina na pobre-
(DN, Ano I, n. 137, 01/08/1907 – gem a sociedade. Ao Estado cabe za, na recusa ao trabalho assala-
1ª pág.). zelar pela harmonização desses riado. É a pobreza, em si, perni-
Percebemos um grande sen- conflitos e distorções. Nada mais ciosa. Desconsiderando que as
timento de temor nessas falas, e a fazer senão resguardar o cor- contradições da sociedade urba-
podemos avaliá-lo como a per- po social, confinar os mendigos no-industrial têm efeitos sobre
plexidade dos homens diante da e isolar os doentes, medidas que todas as camadas sociais, o jor-
nova realidade das multidões transparecem como humanitári- nal impinge ao pobre a culpa da
urbanas, aglomerações que se as. rebeldia, do mau exemplo.
movem sem parar e que já não Por outro lado, um sério pro- (...) Ao vadio, a cadeia ou meios efe-
podem parar, pois é o ritmo na blema social deveria ser elimina- tivos de pressão para transformá-lo
sociedade industrial. Se são ca- do, ao qual medidas paliativas em trabalhador assalariado, mão-de-
obra, força de trabalho. Por via das
minhos para o progresso, trazem não seriam satisfatoriamente efi- dúvidas se se educar esse homem po-
consigo uma revelação perturba- cientes e que se configurava co- bre será mais fácil prepará-lo e sub-
dora: seus problemas são poten- mo principal fator de desvirtua- jugá-lo pela palavra. (Melo, 1990,
p. 12)
ciais, e não se conciliam com a mento da ordem social. Vadios,
sociedade idílica projetada. Mais boêmios não eram vistos como É então a educação que entra
que isso, são problemas que sus- homens que estão fora do traba- em cena e se faz presente em vá-
citam revoltas. A sujeira, a men- lho, mas como aqueles que “(...) rios artigos que, muitas vezes,
dicância, a doença são o avesso vagam recusando-se a trabalhar “despretensiosamente” divul-
das promessas de bem-estar. Do- (...) se mantêm através de expe- gam realizações e acontecimen-

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Rita de Cássia Chagas Henriques

tos sociais em escolas públicas, ordem social. Aquele que apren- aprendiam essa sublime tarefa,
enfocando os serviços prestados de quando menino não vai para também na escola exercitavam-
pela instituição escolar. Pano de a cadeia quando adulto. na: “(...) O uniforme ensina a
fundo: o Estado efetuando me- A escola forma mente, corpo moça a vestir-se com decência e
didas de cunho social. É bem di- e caráter. Os grêmios literários singeleza (...)”. (DN, Ano I, n.
vulgada também a iniciativa da serviam perfeitamente para a di- 116, 07/07/1907, pág. 2)
Igreja em inaugurar a 19/10/1907 vulgação do ideal de comporta- Instrutor, o jornal também
uma Escola Noturna de Instru- mento que se esperava das crian- censurava os desvios e os maus
ção Primária, viabilizada pela As- ças e das mulheres em particu- caminhos que distanciavam as
sociação de Assistência à Pobre- lar. A estas cabiam não só a sub- mulheres de sua missão sagrada.
za da Paróquia Boa Viagem, des- missão natural, como também a Aqui também não lhes aponta
tinada a pequenos operários e missão de reproduzir, por com- uma opção de “recuperação”,
colonos. portamentos e ações, os valores trata-as como causadoras de sua
implícitos nessa submissão, que própria desgraça. Obviamente,
Os poderes públicos, zelando dos de-
senvolvimentos physicos e intelectu- é fundamental no pensamento podemos encontrá-las nas cama-
ais da infância, não visam exclusi- social positivista. Seriam as mu- das mais pobres, entre aqueles
vamente as individualidades de seus lheres o exemplo de resignação que não freqüentam escola, não
compatrícios, mas também a forma-
ção de uma sociedade resistente e de benéfica diante das leis naturais aprendem pelos jornais.
espírito bem formado para a glória que lhes atribuíam estatuto de
(...) Tenho-as visto pintadas. Car-
do paiz. (DN, Ano I, n. 72, 16/05/ inferioridade. O mesmo deveri- mim nos lábios, carmim nos olhos,
1907, pág. 2)
am fazer os demais segmentos carmim nos queixos, carmim nas
orelhas, carmim (...) etc. etc. E estas
A escola, a modeladora dos inferiores.
também serão esposas, estas também
futuros homens que fariam “a (...) Grêmio Aurélio Pires. No salão serão mães! (...) Senhoritas, as mo-
glória do paiz”, via ordem e pro- da Escola Normal-Modelo (...) ef- ças que se pintam são censuradas mi-
fectuou-se domingo passado mais seravelmente pelos homens de todas
gresso. Uma sociedade resisten-
uma sessão desta graciosa e promis- as idades. E muito mais poderia es-
te equivale a um corpo são, im- sora sociedade literária (...) foi dada crever, mas não quero fazê-las corar.
penetrável para os males exter- a palavra a talentosa senhorita Ga- (DN, Ano I, n. 3, 23/02/1907, 1ª
briella Varella (...) leu algumas tiras pág.)
nos ou suficientemente forte pa-
sobre o thema A modéstia, revelan-
ra combater os males internos. O do grande pendor para as letras. Mais que condenadas, são
poder público, o zelador, o con- (DN, Ano I, n. 120, 12/07/1907, 1ª apontadas como exemplo em ne-
dutor; seus agentes, os médicos pág.) gativo para as moças de família.
e educadores, detentores de um Ser modesto é não se dar con- As prostitutas são meras notíci-
saber científico que lhes permi- ta do próprio potencial, e assu- as policiais, não se tece nenhum
tia atuar para sanear corpos e mir que não pode, não sabe, não comentário sobre as causas so-
mentes. Mais que a afirmativa de deve. Impunham-se à mulher cioeconômicas da prostituição.
que o corpo era passível de edu- modelos que a configuravam co- Nem se clama por medidas para
cação tanto quanto a mente (o mo ser híbrido, não pensante, melhorar sua condição de vida
que nos remete a Foucault e sua cujo principal papel seria a re- e trabalho. A prostituição é vigia-
“docilidade dos corpos”) a edu- produção dos homens e dos va- da e só emerge como ocorrência
cação é alternativa que viabiliza lores inerentes à ordem social. policial, diante de fatos que po-
a adequação do homem à nova Não só em casa as mulheres dem ser explorados pelo jornal.

60 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 57-63, out. 1997


A razão moldando o cidadão: estratégias de política higienista e espaço urbano ...

O fim da devassidão moral era (...) Mal nos despertamos e após os científico embutido na própria
cuidados da toilette, o almoço, etc., a
invariavelmente a morte. primeira cogitação é a missa, depois organização estadual. Assim,
do que, portas abertas aos passeios,
ao gozo. (DN, Ano I, n. 266, 07/01/ convence-se a população de que
(...) Dois suicídios! Um era espírito
1908, 1ª pág.) a ciência é eficaz, prática, opera
cultivado, outra, pobre moça que o
bordel absorveu nas suas tances Vida esta que não mais com- pelo bem e é portanto digna de
hiantes, conspurcando-lhe o corpo e confiança e inquestionável.
a alma (...) o cirurgião que acabou portaria valores e crenças não
com a vida não resistiu às seduções fundamentados na ciência, na A fundação da Escola Livre de
do jogo (...) E o jogo continuará sem- razão. Os costumes populares Odontologia foi ótima oportuni-
pre indifferente às victimas que faz, dade para divulgar a valorização
indifferente às desgraças que occasio- são ferrenhamente apontados
na (...) o prostíbulo é a morte. (DN, como infundados, nefastos; são do saber profissional, científico.
Ano I, n. 51, 21/04/1907, 1ª pág.) alvo de críticas ferozes que apon- O aspecto da profissionalização
tam “milagre” e “santo” sob ad- é também importante faceta do
Cabarés, bares, bordéis e sa- discurso modernizador, já que
jetivos pejorativos. Obviamente
lões de jogos são os temíveis am- vai ao encontro do ideal de nor-
clama-se pela ação policial, ad-
bientes corruptores de corpos e matização social para melhor
vertindo-se para as sombrias
almas. Admitia-se uma sociabi- controle deste pelo Estado.
conseqüências que eventual-
lidade amável, não um munda-
mente surgiriam, diante da inefi- (...) A arte dentária (...) é exercida
nismo sem freio. Havia que con- por prácticos nem sempre possuin-
ciência da polícia. A ciência po-
ciliar privacidade com sociabili- do os conhecimentos precisos para
pular inexiste, é charlatanice, desempenhar-se bem. A Escola Li-
dade, de modo a responder aos
seus agentes uma versão da va- vre agora officialmente inaugurada
interesses da família e do Esta- vae preparar hábeis cirurgiões den-
diagem e da má fé.
do. O discurso higienista é o nor- tistas (...) afastando os ignorantes
teador das experiências pessoais (...) Feiticeiro (...) No logar denomi- (...) em benefício da saúde pública.
nado Fortaleza, Município de Cam- (DN, Ano I, n. 141, 06/08/1907, 1ª
com o mundo, é o saber científi- pág.)
pos Gerais (...) Tipo acaboclado tem
co capaz de orientar quanto à causado alarma à população (...) Este
tipo é de uma ignorância crassa e Os próprios termos científicos
realidade maniqueísta que cir-
com taes prácticas só poderá preju- eram divulgados nas notícias de
cunda a família, é o que aponta
dicar ... chamamos para o caso a feitos médicos, como maneira de
seus meios de defesa e o perigo attenção do Exmo. Sr. Dr. Chefe de
Polícia (...) só falta o santo fazer pré- reforçar o valor do profissional
virtual que a cerca.
dicas religiosas para se parecer com que os executa.
(...) Ora se todo mundo comprhen- o famigerado conselheiro. (Do Alfe-
nas) (DN, Ano I, n. 64, 07/05/1907, (...) praticou o Dr. Magalhães Junior
desse o encanto da paz doméstica: o
pág. 2) uma hysterectomia sub total por via
melhor livro da moral para os filhos,
abdominal em consequência de um
nenhum casal brigaria (...) Chegar a
Contraposto às crendices in- fibro myoma interno. DN, Ano I,
gente em casa, após o trabalho quo-
n. 130, 25/07/1907, 1ª pág.)
tidiano, encontrar satisfeita a espo- gênuas, infundadas, frutos da
sa e risonhos os filhinhos, que gran- ignorância, o discurso oficial ofe- Ao contrário, os remédios ci-
de delícia (...) (DN, Ano I, n. 268,
09/01/1908, 1ª pág.) rece informações pormenoriza- entíficos eram divulgados com
das sobre as maravilhas de fei- depoimentos de beneficiários de
Um padrão de comporta- tos científicos – quase sempre seus efeitos, portanto em lingua-
mento também era indicado pa- médicos – que sintonizam o Bra- gem coloquial. Várias cartas che-
ra a família, e foi assim resumi- sil com a modernidade e solidi- garam ao Diário para parabeni-
do: ficam a legitimidade do cunho zar e agradecer ao Dr. Motta Ju-

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 57-63, out. 1997 61


Rita de Cássia Chagas Henriques

nior pelo seu milagroso Dochmi- (...) o provecto Dr. Cícero Ferreira, dernidade erguida no centro de
encarregado pelo governo do Estado
cida e pó ferruginoso, que cura- Minas. A cidade exigia um novo
de estabelecer um cordão sanitário
vam: em pontos injectados pela varíola, modo de vida, tanto quanto a
medida útil e humanitária. (DN, República o trabalho assalariado,
(...) opilação, azia, dor nas pernas,
Ano I, n. 87, 02/06/1907, 1ª pág.)
zoeira nos ouvidos, falta de appetite, a nova concepção de família, de
dores de cabeça, nervosias, palpita- Um certo artigo conseguiu re- lazer, de sociabilidade. Foi no jor-
ções, menstruações difíceis e flores
brancas. (DN, Ano I, n. 164, 06/09/ sumir todo o ideal higienista do nal que a política higienista en-
1907, pág. 2) discurso oficial: controu seu maior veículo. Sua
Eram os benefícios da ciência periodicidade garantia a conti-
(...) A higiene pública é sempre a ga-
alcançando as pessoas mais sim- rantia da paz e felicidade de um povo, nuidade indefinida do discurso
ples. todos os males e desgraças vêm, é cer- e o seu disfarce em matérias cujo
to, de seu abandono. (DN, Ano I, cunho não era, necessariamen-
Os problemas de saúde públi- n. 289, 04/02/1908, 1ª pág.)
ca eram cobrados pelo jornal, te, político. Através dele o povo
como maneira de reforçar a im- Plena de contradições, a Re- foi sendo instruído para as no-
portância do caráter público da pública em Minas foi sendo im- vas exigências sociais, e apren-
questão. Se a ciência contribuía posta em nome da modernida- dendo que só a educação o faria
com os profissionais e as solu- de. Inimiga histórica do centra- ascender como cidadão, seme-
ções, cabiam ao Estado ações que lismo monárquico e aspirando a lhante à idílica sociedade euro-
viabilizassem seu emprego dian- uma democracia liberal, a elite péia.
te de necessidades que se referi- política mineira restringiu a par- Muitas são as formas de se
am à população como um todo. ticipação política a seus fiéis re- construir um ideário e difundi-
Mais que as medidas de cunho presentantes, que se alocavam lo entre uma população, com
social, tratava-se de canalizar como clientes em todas as esfe- mecanismos tão eficazes que esta
para o Estado a responsabilida- ras de poder. A um Estado forte, passe a assumi-lo como seu. As-
de dessas questões, mostrando construído segundo necessida- sim como a passagem para o sé-
ao povo que tamanha relevân- des autenticamente mineiras, culo XX, o limiar do século XXI é
cia só o Estado poderia resolver. deveria corresponder uma po- evidência de como acontecimen-
Grave problema da época, a pulação igualmente limpa dos tos históricos (de comemoração,
expansão do número de casos de costumes de outros tempos. A no nosso caso) podem oferecer
varíola nas vizinhanças da capi- cooptação popular se deu por vertentes para um discurso de
tal era alvo de denúncia e alerta, um discurso que apresentava o mudança, enquanto disfarçam
para a urgência de providências Estado como força eficiente e ca- as tramas de uma continuidade
que a situação exigia. Sabará, paz de promover melhorias em latente. E de como uma estrutu-
Nova Lima, Pedro Leopoldo são todas as instâncias da vida em ra de dominação, reformulada
citadas como focos da epidemia. coletividade. O maior exemplo: oportunamente, garante sua
Aparece em pequenos artigos, a construção de Belo Horizonte, permanência enquanto tal, pou-
na 2ª página, o número de casos cientificamente projetada, urba- co mudando o discurso. Nossa
registrados em cada localidade. nizada segundo os melhores centenária BH, palco do Fórum
Pede-se a nomeação de delega- moldes estrangeiros, sem dúvi- das Américas (?!) está aí para
dos de “hygiene e vaccinação”, da a versão arquitetônica da mo- prová-lo.
até que se anuncia:

62 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 57-63, out. 1997


A razão moldando o cidadão: estratégias de política higienista e espaço urbano ...

Referências bibliográficas
01. BRESCIANI, Maria Stella M. Metrópoles: as faces do monstro urbano – as cidades do século XIX. In: Revista
Brasileira de História . São Paulo: ANPUH – Marco Zero, 1985, V. 5, n. 8/9, p. 36-40.
02. CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988. Série Repensando a
História.
03. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Cia das
Letras, 1990.
04. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
05. FARIA FILHO, Luciano Mendes. A república do trabalho: a formação do trabalhador cidadão em Minas Ge-
rais no alvorecer do século XX. In: Revista do Departamento de História. Belo Horizonte: UFMG/Proed, n.
10, p. 79-91, nov. 89.
06. MELO, Ciro Flávio Castro B. de. Pois tudo é assim: ... Educação política e trabalho em Minas Gerais (1889-
1907). Belo Horizonte: UFMG, 1990 (mimeo)
07. MONARCHA, Carlos. A reinvenção da cidade e da multidão: dimensões da modernidade brasileira: a Escola
Nova. São Paulo: Cortez, 1989.
08. REZENDE, Maria Eugênia L. Formação da estrutura de denominação em Minas Gerais – o novo PRN (1889-
1906). Belo Horizonte: UFMG/Proed, 1982.
09. TINHA QUE SER MINAS? Ensaio de política mineira. Belo Horizonte: Museu Mineiro, 1986.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 57-63, out. 1997 63


Lucília de Almeida Neves

BELO HORIZONTE – CORAÇÃO


DAS MINAS E DAS GERAIS

Lucília de Almeida Neves


Historiadora – PUC•Minas

T
RESUMO ristão de Athayde, em A voz de Minas,
O artigo refere-se aos aspectos his- obra clássica sobre a mineiridade, afirma
tóricos, culturais, geográficos, ar-
tísticos e sociais constitutivos da que o passado tem papel decisivo em
mineiridade, além de situar Belo
Horizonte como centro pulsativo tudo o que é mineiro. “Os antepassados, os pro-
da diversidade e pluralidade pecu-
liares a Minas Gerais. cessos já utilizados imemorialmente, a lição do
tempo, enfim, tudo isso é ouvido e conservado em Minas com uma
devoção por vezes excessiva” (Lima, 1983, p. 61). De fato, o imaginário
da mineiridade é fortemente nutrido por um profundo apego à memó-
ria, por uma história transformada em tradição, pelas lembranças dos
feitos e ações das gentes que construíram a trajetória histórico-cultural
das Gerais e das Minas.
Minas Gerais é representada como encarnação dos ideais de re-
denção da mineiridade/brasilidade. Mineiridade de ritmo lento e sóli-
do, de substância e ação. Ação tecida no passado e reatualizada no pre-
sente, abrindo espaço para a reprodução da memória da gente mineira.
Brasilidade consubstanciada no valor da liberdade tão cara aos mi-
neiros. Pois, se são mineiros apegados à tradição, o são também à liber-
dade. “O Brasil como consciência de liberdade nasceu aqui... Só a liber-
dade faz as nações, cedo o entendemos e cedo reivindicamos a liberda-

64 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 64-68, out. 1997


Belo Horizonte – coração das Minas e das Gerais

de” (Neves, 1986, p. 160). E o que do ator político e social que in- estado de 1964, que mudou o des-
é a história senão a realização da tervém na realidade com o afã tino do país.
liberdade? Através do processo de transformá-la. A convivência aparentemen-
contínuo de construção da his- te paradoxal entre uma tradição
tória, o homem afirma-se como Mas soada a hora da ação, o mineiro secularmente cultivada e os va-
se agita, não teme surpresas e suas
senhor do seu destino, como su- lores da liberdade de ação é, na
arrancadas conservam a impetuosi-
jeito de sua trajetória. Na afirma- dade dos fenômenos sísmicos. Ele de- verdade, uma das muitas expres-
ção da liberdade, como ressalta safia as intempéries, enfrenta o pa- sões de uma sociedade pluralis-
tíbulo, planta instituições, rasga os
Arruda, “a mineiridade adquire ta, múltipla, de um estado no
céus, inova a ciência, aprimora a ar-
uma certa dimensão épica, por te, planta cidades, prega e faz revolu- qual diferentes costumes e cul-
apoiar-se no imaginário tecido ções. (Guimarães, 1995, p. 167) turas se constituem em um ca-
pelo destino dos inconfidentes” leidoscópio de cores e formas va-
(Arruda, 1990, p. 213). Imaginá- De fato, os mineiros, ao lon- riadas, algumas vezes contradi-
rio da luta pela soberania e pela go da história brasileira, têm se tórias, algumas vezes amalgama-
independência nacionais. Imagi- destacado por sua capacidade de das em uma construção cultural
nário de herança iluminista, ilu- inserção como sujeito ativo na peculiar.
minado pela crença na força de construção do destino do país. Na verdade, a cultura minei-
uma racionalidade autônoma ca- No período colonial, os inconfi- ra é uma multiplicidade, um ca-
paz de propiciar conhecimento dentes, através de um ato de re- dinho de manifestações artísti-
e ação libertadores. beldia, lutaram contra o domínio cas, literárias, musicais, artesa-
A mineiridade constitui-se português e a favor da sobera- nais, arquitetônicas, patrimoni-
por uma forte dimensão identifi- nia de uma nacionalidade que ais que retratam a realidade de
cadora do mineiro com sua ter- então nascia. Na república con- um território geograficamente
ra, com o solo em que nasceu, temporânea, os mineiros atua- diversificado e de uma socieda-
com os hábitos e costumes de seu ram em diferentes momentos, de plural.
estado. Terra de minério, ferro, deixando sua marca na vida do Minas Gerais é a região do mi-
pedras preciosas, ouro, prata, país. É bem verdade que essa nério e das minas. É a Zona da
calcário. Solo fértil para o plan- marca ora associou-se à liberda- Mata com suas serras sempre
tio do café e do milho. Amplo es- de e ao progresso, ora ao autori- verdejantes. É o Triângulo Mi-
paço para pastagens. Horizontes tarismo e retrocesso político. Na neiro com suas amplas pasta-
de múltiplo sonhar. primeira linha, foi o que ocorreu gens. É o Vale do Jequitinhonha
A mineiridade constitui-se com o Manifesto dos Mineiros com seu rico artesanato. É a re-
também por uma dimensão par- no fim do Estado Novo, com o gião das vertentes com seu ex-
ticular de temporalidade, na projeto de modernidade jusce- trativismo de prata e sua produ-
qual a tendência a valorizar o linista que plantou a Pampulha ção de estanho. É o Vale do Aço
passado mescla-se, em uma úni- e depois Brasília, além de, re- com suas metalúrgicas. É o sul
ca teia, com o apego à tradição, centemente, com a transição de- do estado com seus amplos ca-
inclusive com o que é identifica- mocrática para a Nova Repúbli- fezais.
do pelos mineiros como tradição ca. Na outra linha, destaca-se a As cidades históricas, Ouro
libertária. Liberdade de construir conhecida participação de seto- Preto, Sabará, São João Del Rei,
sua trajetória. Liberdade de ação res da elite mineira no golpe de Tiradentes, Serro, Congonhas,

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 64-68, out. 1997 65


Lucília de Almeida Neves

Diamantina são Minas e são Ge- de, com seus versos, animou a O Coral Ars Nova, Grupo Uak-
rais. As estâncias hidrominerais, capacidade criadora de Minas. ti e a Orquestra Ribeiro Bastos são
Poços de Caldas, Araxá, São Lou- Adélia Prado, marco da sensibi- sinfonias de mineiridade, são o
renço, Lambari, Cambuquira são lidade feminina, canta a singe- som das Minas reatualizado atra-
fontes de mineiridade. As gru- leza e a plenitude do interior mi- vés da alegria musical do Skank.
tas de Maquiné, da Lapinha e do neiro. Guimarães Rosa levou ao Gerais são as Minas. Muitos
Rei do Mato são as Minas e as mundo os sertões e a alma das são os mineiros. O gosto pela
Gerais mergulhadas em suas en- Gerais. Milton Nascimento trans- ação criadora, entretanto, os une
tranhas arqueológicas. Minas forma em musicalidade os sen- na paisagem do tempo, no espa-
diversificada. Minas unificada timentos da gente mineira. Fer- ço da história, na construção do
através da identidade de seu po- nando Brant constrói versos de futuro. Mineiros que agem com
vo com o passado e com a terra. travessia da mineiridade para a serenidade própria às mentes
Conexão de tempo, espaço, his- brasilidade. reflexivas, mas também com
tória, mentalidade. Pedro Nava fez renascer o passionalidade, arroubo e so-
Não se pode, portanto, discu- passado e a história nele conti- nhos, peculiares aos seres que
tir cultura em Minas sem se le- da, através do entrelaçamento têm espírito visionário. Fitar o
var em consideração a multipli- de suas profundas reminiscênci- horizonte, mesmo que, muitas
cidade de culturas do estado. O as com a memória coletiva da vezes, através das montanhas, é
Triângulo Mineiro, o Vale do Zona da Mata, de Belo Horizon- uma prática que, em Minas Ge-
Aço, a Minas Barroca, o Vale do te, do Brasil. Murilo Mendes pro- rais, cultiva-se desde a mais ten-
Rio Doce, o São Francisco, a Zo- duziu versos de fina e sofistica- ra infância.
na da Mata e a região sob influ- da sensibilidade. Do passado para o futuro,
ência mais direta de Belo Hori- Guignard, Carlos Scliar, Car- através da reconstrução/constru-
zonte apresentam características los e Fany Bracher, Dnar Rocha, ção cotidiana do presente, o olhar
histórico-culturais, costumes e Maria Helena Andrés, Yara Tupi- e os sentimentos do mineiro via-
hábitos muito diversos. nambá e Arlindo Daibert repre- jam pelo tempo. Constroem nova
Uma concepção de mineiri- sentam o que há de mais requin- temporalidade, reafirmam signi-
dade abrangente e que contem- tado e sensível na pintura e no ficados através de uma postura
ple essa diversidade pressupõe desenho deste grande mosaico indagativa, sonhadora. Pois, co-
o alargamento da visão e do de luz, cor e perspectiva que é mo afirma Braga, “Minas não é
olhar para além das montanhas Minas Gerais. um grande hospício: é simples-
de minério, para além do solo de O Grupo Corpo, com suas co- mente um caldeirão de sonhos”
ferro, para além do barroco. Co- reografias de especial leveza, faz (Braga, 1997, p. 3). Sonhar, mas
mo já dizia Daibert, “as paisagens viajar pelo mundo a mineiridade “nunca correr à frente da alma”
são muitas e em todos os níveis.” em movimento. Os bonecos do (Braga, 1997, p. 3). Sonhar e en-
(Daibert, 1995, p. 167). Em dife- Grupo Giramundo encantam al- xergar o mundo com olhos de
rentes cidades mineiras foram mas e corações com a melhor cri- universalidade. Ser cosmopolita
gerados talentos excepcionais. atividade dos mineiros. O Gru- sem perder a certeza das raízes
Uma gente reflexiva, densa, cria- po Galpão faz aflorar a fantasia e das sementes. Cristal de lumi-
tiva, pungente. e torna o teatro acessível à gente nosidade multifacetada. Ação/
Carlos Drummond de Andra- comum. criação.

66 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 64-68, out. 1997


Belo Horizonte – coração das Minas e das Gerais

As Minas e as Gerais em mui- pela música, pelas literaturas. do Contorno. Cidade que, toda-
to têm contribuído para a reno- Belo Horizonte, capital das Ge- via, teve o destino de mesclar,
vação das idéias, das letras, das rais. Região de amplitudes e amalgamar, acolher, conter mi-
artes. Plantado em sólido terre- aventuras, de linguajar metafó- neiros, mineiridade, mineirida-
no de ferro, em solo fértil, às mar- rico, de devaneios ao entardecer, des. Por isso se diz que seus ven-
gens de grandes represas e em de criatividade sertaneja. tos contêm horizontes vários e
montanhas verdejantes, o minei- Belo Horizonte, cidade cente- trazem em si o odor de toda a
ro não se recusa a contribuir para nária, plantada em solo mineiro Minas Gerais. “Maravilha de mi-
a transformação da sociedade na no alvorecer da república, quan- lhares de brilhos vidrilhos”. (An-
qual vive. do o gosto pela renovação con- drade, 1996, p. 195)
Em Minas, o futuro aparece tagiou a alma brasileira. Belo Ho- Traçado circular de brasilida-
como ameaça a um passado que rizonte, sonho e realização posi- de, que se faz presente no nome
se quer manter vivo. As cidades tivista de um tempo do acredi- de suas ruas, que trazem para o
históricas de Minas traduzem, tar no progresso. Capital de um centro pulsativo de Minas os es-
melhor do que qualquer outro novo tempo. Prenúncio de uma tados, as nações indígenas e ci-
movimento, o que vai pela alma época de efervescência. Tributo dades do Brasil. Belo Horizonte
do mineiro. Um pé na tradição à modernidade, que renova. Ci- onde “se agrupam mineiros de
de criativa liberdade, um cami- dade-síntese da alma mineira. todos os quadrantes do estado”
nhar pela história. Um olhar si- Belo Horizonte cravada na Ser- (Dourado, 1997, p. 9), Belo Hori-
multâneo para trás e para dian- ra do Curral, ocupando as terras zonte que é a Praça da Liberda-
te. Ousadia de renovar, de dis- da antiga Fazenda do Leitão, de com suas alamedas que apon-
cordar, de cultivar utopias, de anunciando uma nova vida, pre- tam para o poder e suas palmei-
concordar, de transgredir, de re- dominantemente urbana, gregá- ras que descortinam a vastidão
sistir, de lutar, de afirmar a ria. Belo Horizonte do alvorecer da altura. Belo Horizonte que é
alteridade, de cultivar o pluralis- do século XX. Nova temporali- a modernidade da Pampulha e
mo, de rasgar horizontes. dade no tempo secular das Mi- a heterogeneidade da Praça da
Belos, novos, atualizados, re- nas e das Gerais. Estação. Belo Horizonte que é a
novados, multicoloridos hori- Belo Horizonte centenária. Praça Sete de caminhos entre-
zontes. Horizonte de pôr-do-sol Cidade que, para Machado de cruzados, centralizados. Hori-
rasgado pela vermelhidão mine- Assis, parecia mais uma exclama- zonte que esbarra na Serra do
ral, ancestral. “Belo Horizonte ção do que um nome. Capital de Curral de poentes maravilhosos.
coração das Minas e das Gerais”. plurais e inquietas almas. Cida- Horizonte que descortina Minas
Das Minas várias de Guimarães de construída em poucos anos. Gerais por inteiro. Horizonte in-
Rosa. Da região das montanhas, Reconstruída, renovada, rear- terior, incontido, incontinente.
onde habita uma gente cautelo- quitetada em outros cem. Belo Coração represado. Coração de
sa, afeita ao isolamento, intros- Horizonte de Aarão Reis e Afon- minério, de leite, de café, de
pectiva, mas ávida de conheci- so Pena. Cidade planejada para água, de terra densa. Belo Hori-
mento. Região geradora de ho- separar, segregar. Em um outro zonte, coração palpitante das Mi-
mens de letras, de artistas, de se- mundo deveriam se estabelecer nas e das Gerais.
res viajantes pelas artes plásticas, os que viviam além da Avenida

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 64-68, out. 1997 67


Lucília de Almeida Neves

Referências bibliográficas
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Paulo: Abril Cultural, 1983.
02. NEVES, Tancredo de Almeida. In: DELGADO, Lucília de Almeida Neves e SILVA, Vera Alice Cardoso.
Tancredo Neves: a trajetória de um liberal. Petrópolis: Vozes, 1986.
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04. GUIMARÃES, Júlio Castanon(Org.), DAIBERT, Arlindo. Cadernos de Escritos. Rio de janeiro, Sette
Letras, 1995. p. 167.
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06. ANDRADE, Mário. Noturno de Belo Horizonte. In: ARAÚJO, Laís Corrêa. Sedução do Horizonte. (Co-
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07. DOURADO, Autran. Mineirice e... In: O Tempo. página Atualidades e Opinião. Belo Horizonte, 2/4/97.
p. 9.

68 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 64-68, out. 1997


Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio

CATOLICISMO EM BELO HORIZONTE


NA PROXIMIDADE DO NOVO MILÊNIO

Alberto Antoniazzi
Departamento de Filosofia e Teologia da PUC•Minas

Não saiba sua mão esquerda o que faz a direita.


(Mt 6,3)

RESUMO Mudança radical na religião?


O Autor parte da convicção de
que uma grande mudança está em

A
ato no campo religioso, nas socie- religiosidade do mundo ocidental so-
dades ocidentais e no Brasil. Esco-
lhe, como área de estudo, a respos- freu ou está sofrendo, nos últimos
ta da Igreja Católica a estas mu-
danças, nos anos ’90, no âmbito da anos, uma mudança radical, tal como
Arquidiocese de Belo Horizonte,
cuja população e território coinci- não se via há muitos séculos, talvez a mais ra-
dem substancialmente com a Re-
gião Metropolitana da Capital mi-
dical da época cristã ou mais profunda do que
neira. À luz das pesquisas dispo-
níveis, analisa: o prestígio da Igre-
aquela que Karl Jaspers situava no século VI
ja Católica comparada com outras a.C., por ele tido como o tempo-eixo da histó-
Instituições; a prática religiosa dos
católicos, em particular a freqüên- ria mundial?
cia à Missa dominical e aos sacra-
mentos; as crenças dos católicos e É difícil para nós, contemporâneos dessa mu-
dos fiéis de outras religiões; a in-
fluência da religião sobre a vida dos dança, opinar sobre ela e, principalmente, com-
católicos, inclusive sobre práticas
devocionais e atividades sociais e pará-la com outras épocas históricas. Mas não
políticas; a difusão de associações e
movimentos; a atuação no campo podemos descartar a hipótese de que a mudança
da comunicação social.
de que somos protagonistas (ou, pelo menos, ví-
timas) seja realmente tal que impeça considerar a nossa época – os anos ’90
do século XX – como uma simples continuidade das épocas anteriores.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 69-85, out. 1997 69


Alberto Antoniazzi

Ou seja: parece-me difícil ten- anos, afirmações que o tempo 1969, p. 134). Assim, no campo
tar uma história contemporânea parece ter confirmado. Para ele, religioso, quase como num mer-
do catolicismo (ou, em geral, da a principal mudança ou “revo- cado,2 “o indivíduo pode esco-
cultura) em Belo Horizonte, sem lução” da sociedade contempo- lher como mais lhe agrada num
levar em conta que – mesmo que rânea é que “a identidade pes- sortimento de significados ‘últi-
muitos tenham escassa consciên- soal se torna, essencialmente, mos’ – guiado unicamente pelas
cia do que está acontecendo – uma questão particular, privada” preferências determinadas por
algo novo está chegando, algo (Luckmann, 1969, p. 132). Em sua biografia individual” (Luck-
que não está enraizado antes de conseqüência, também a religião mann, 1969, p. 134-135). Um dos
tudo na história apenas centená- se torna “assunto pessoal” (Luck- resultados dessa tendência é a
ria da cidade ou no “catolicismo mann, 1969, p. 134). Explicitando chamada “religião invisível”, ou
mineiro”,1 mas num fenômeno um pouco mais: numa socieda- seja, uma religião feita pelas con-
de amplitude muito maior, que de “tradicional”, é a cultura que vicções interiores, pessoais, do
atinge todo o mundo ocidental determina, ao menos em gran- indivíduo, que pode se utilizar
e, numa medida a ser discutida, de parte, a identidade do indi- de elementos da tradição de
também o resto do mundo. víduo. No contexto da socieda- grandes instituições religiosas,
A transformação em ato é de pluralista e complexa do nos- mas que não se liga explícita e
muito complexa, para tentar so tempo, a cultura “não é mais exteriormente a nenhuma insti-
aqui tomá-la por inteiro como uma estrutura obrigatória de es- tuição religiosa em particular.
quadro de referência. Adotamos quemas de interpretação e ava- Outros resultados, que Luck-
uma hipótese mais simples a res- liação (da realidade), ordenados mann não tinha previsto com
peito das atuais mudanças no segundo uma bem definida hie- igual clareza desde os anos ‘60,
campo cultural e religioso: aque- rarquia de significação, mas é são a reação radical ao subjeti-
la formulada por Thomas Luck- antes um rico, heterogêneo sor- vismo moderno, encarnada nos
mann em sua obra “A religião in- timento de possibilidades aces- “fundamentalismos” (ou neo-
visível”. (Luckmann, 1969) síveis, em princípio, a cada indi- fundamentalismos), atualmente
Luckmann fazia, há trinta víduo consumidor”(Luckmann, em expansão,3 e a resposta, mais

1
O jovem historiador Sérgio Ricardo da MATA, autor de uma brilhante tese de mestrado sobre A fortaleza do catolicismo.
Identidades católicas e política na Belo Horizonte dos anos 60 (Mestrado de História da UFMG, 1996), afirma que “as publi-
cações sobre a história da Igreja em Belo Horizonte podem talvez serem carregadas em uma única mão” (tese cit., p. 4). De
fato, além dessa tese (de próxima publicação, esperamos!), trabalho de vulto é apenas o do amigo Henrique Cristiano J.
MATOS, autor de Um estudo histórico sobre o catolicismo militante em Minas, entre 1922 e 1936. Editora “O Lutador”, Belo
Horizonte, 1990, 502 p. (o livro é centrado ao redor da figura de Dom Antônio dos Santos Cabral, primeiro arcebispo de Belo
Horizonte, 1922-1967, ao qual dedica um longo capítulo, p. 377-453). Deve-se também mencionar o escrito do ilustre histori-
ador mineiro João Camilo de Oliveira TORRES, que em 1972, no cinqüentenário da Arquidiocese, tentou, em condições
precárias, um primeiro ensaio de história da mesma: A Igreja de Deus em Belo Horizonte. 215p. (edição comemorativa, sem
menção de Editora). Mas não são apenas a escassez de bibliografia e a minha falta de tempo que me induzem a não procurar
estabelecer laços de continuidade entre o catolicismo dos anos ’20 ou ’30, que não conheci, ou o dos anos ’60, do qual conser-
vo nítidas lembranças, e a Igreja Católica na Belo Horizonte desta década. Minha convicção é de que, neste momento, deve
ser ressaltada mais a descontinuidade.
2
A analogia entre o comportamento religioso e o comportamento do cliente ou consumidor no mercado não pode ser exage-
rada. Mas aqui não nos interessa uma discussão aprofundada da tese de Luckmann e outros, e sim apontar uma tendência.
Mais adiante corrigiremos ou completaremos a tese de Luckmann.
3
O nome “fundamentalismo” foi aplicado inicialmente a um movimento protestante, que teve alguma repercussão nos Esta-
dos Unidos nos anos ’20, e ressurgiu com força nos anos ’70, contra todo “liberalismo” e “modernismo”. Uma primeira
manifestação do fundamentalismo protestante estaria nos 12 volumes da coleção The Fundamentals. A Testimony to the
Truth (1910-1915), que defendiam uma interpretação literal da Bíblia e da tradição cristã. Hoje, discute-se de fundamentalismo

70 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 69-85, out. 1997


Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio

matizada e complexa, das pró- tólica: campo imenso e extrema- de algumas informações consis-
prias instituições e tradições re- mente diversificado, que não po- tentes6 e, creio, ignoradas pelo
ligiosas, especialmente do cato- de ser objeto deste breve artigo, grande público.
licismo. e só poderia ser assunto de uma É a um ensaio de apresenta-
ampla pesquisa de equipe, e po- ção das mudanças em ato na
de emergir também nos depoi- Igreja Católica – concretamente
Nosso objeto mentos e escritos de “católicos” na sua organização local, a Ar-
com profunda experiência reli- quidiocese de Belo Horizonte –
de estudo
giosa;4 que limitarei meu trabalho, ten-
2) o estudo dos fundamenta- tando salientar alguns aspectos
O quadro traçado esquemati- lismos católicos, ou das tendên- essenciais e explorar a documen-
camente logo acima nos põe di- cias fundamentalistas no âmbi- tação disponível, sem cansar
ante de três áreas de pesquisa: to do catolicismo; aliás, alguns muito o leitor com excesso de
1) o estudo do catolicismo “in- estudos não faltam,5 mas tam- detalhes.
visível”, do catolicismo reinter- bém esse assunto exigiria uma
pretado subjetivamente pelos in- ampla pesquisa de campo em
divíduos e – muitas vezes – mis- Belo Horizonte; A credibilidade
turado com outras crenças ou 3) o estudo da “resposta” das
da Igreja
práticas religiosas, do quadro das instituições religiosas e, em par-
“adesões parciais” ao catolicismo ticular, da Igreja Católica às no-
ou das experiências religiosas in- vas tendências culturais e reli- Na tese de Luckmann, a ins-
fluenciadas em parte pela fé ca- giosas. Nesse campo, dispomos tituição religiosa estaria perden-

católico, muçulmano, etc. Para um panorama internacional das atuais discussões (segundo um ponto de vista teológico
cristão), cf.: VÁRIOS AUTORES, Fundamentalismo: um desafio ecumênico, “Concilium” 241, 1992/3, 165p. (editora Vozes,
Petrópolis). A mesma revista tem dedicado o n. 253 (1994/3) ao Islã e o n. 265 (1996/3) aos Movimentos Pentecostais. Esclarecedor
o ensaio de Antônio F. PIERUCCI, Fundamentalismo e integrismo: os nomes e a coisa, Revista USP, n. 13, março de 1992, p.
144-156.
4
Seria imperdoável não citar aqui um exemplo de catolicismo – não “invisível”, mas convicto e militante – tão relevante na Be-
lo Horizonte do século XX (sobretudo para os anos 1940-1990) como o de Edgar de Godói da Mata Machado, cuja vida foi
narrada pelo próprio Edgar num depoimento a: Lucília Almeida NEVES, Otávio Soares DULCI, Virgínia dos Santos MEN-
DES (org.), Edgar de Godói da Mata Machado: fé, cultura e liberdade. Editora UFMG, Belo Horizonte – Edições Loyola, S.
Paulo, 1993, 255 p. O depoimento deve ser completado pela leitura do Memorial de idéias políticas, Editora Vega, Belo Ho-
rizonte, 1975, XIV, 534p.
5
Pode-se ver algum aceno no já citado n. 241 de “Concilium”. Vários pesquisadores se perguntam pelo caráter fundamentalista
da Renovação Carismática Católica, ainda pouco estudada no Brasil (o CERIS está prestes a publicar os resultados de uma
pesquisa sobre a RCC em Campinas e no Rio de Janeiro).
6
Utilizarei particularmente três relatórios de pesquisas promovidas pela própria Arquidiocese de Belo Horizonte. A primeira
pesquisa é um levantamento da participação nas missas dominicais realizado em 17 e 18 de novembro de 1990, que atingiu
175 das 178 paróquias da Arquidiocese. A segunda pesquisa foi realizada por Antônio C. Guimarães – “Pesquisa e Consultoria”,
em janeiro de 1991, mediante 803 entrevistas numa amostra da população adulta (18 anos ou mais) da Região Metropolitana
de Belo Horizonte. Uma síntese dos dois relatórios, com comentários, foi publicada em 1991 num fascículo de 52 páginas:
Religião na grande BH. Primeiro relatório das pesquisas promovidas pela Arquidiocese de Belo Horizonte. (Doravante a
citaremos como “Religião na grande BH”, indicando a página). A terceira pesquisa foi realizada também por “Antônio C.
Guimarães – Pesquisa e Consultoria”, entre dezembro de 1992 e janeiro de 1993, mediante 600 entrevistas de uma amostra
dos jovens da Região Metropolitana de Belo Horizonte; uma síntese do relatório foi publicada pela Arquidiocese num fascí-
culo de 45 páginas: Juventude face à vida. Pesquisa sobre os jovens na Região Metropolitana de Belo Horizonte. (Citaremos
essa pesquisa como: Juventude face à vida). – Desde já, esclarecemos que a Arquidiocese de Belo Horizonte compreende o
município da Capital mineira (2.091.770 habitantes em 1º/08/1996 segundo a contagem do IBGE) e mais 27 municípios vizi-
nhos (com um total de 1.684.611 habitantes). A Arquidiocese contava em 1996 com 3.776.381 habitantes, enquanto a Região
Metropolitana de B.H. contava com 3.803.249 habitantes; alguns municípios da Região Metropolitana não estão incluídos na
Arquidiocese e vice-versa.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 69-85, out. 1997 71


Alberto Antoniazzi

do prestígio e influência na soci- Quadro 1


edade contemporânea. Foi ob- Instituições Aprovam Desaprovam Sem opinião
servado que a situação da insti- Imprensa 72,0 9,0 19,0
tuição Igreja não pode ser exa- Igreja Católica 72,0 12,0 16,0
Forças Armadas 66,0 14,0 21,0
minada independentemente da Universidade Pública 62,0 15,0 23,0
situação de outras instituições. MST 59,0 24,0 17,0
Todas de algum modo estão em Polícia Federal 56,0 23,0 20,0
PM do seu Estado 49,0 30,0 21,0
crise ou mudando, parcialmen-
Polícia Civil 47,0 30,0 23,0
te, de papel. A Igreja Católica, CUT 45,0 30,0 25,0
em Belo Horizonte, nos anos ’90, Feder. das Ind. do seu Estado 37,0 24,0 40,0
Câmara Munic. do seu Estado 33,0 38,0 29,0
está mais em crise do que famí-
Congresso Nacional 27,0 44,0 28,0
lia, escola, Estado, sindicatos, Igreja Univ. do Reino de Deus 17,0 69,0 14,0
partidos, associações...?
Os dados de que dispomos
para responder à pergunta são
limitados e frágeis. Quem quiser 26/05/96, p. 8; Estado de Minas, dice de aprovação da Igreja Ca-
poderá fazer um estudo compa- 26/05/96, p. 3), realizada em oito tólica (74% no Rio de Janeiro e
rativo mais alentado. capitais brasileiras, com amostras 73% em São Paulo). Ao contrá-
Pesquisas de opinião anual- da população acima de 16 anos rio, cidades com maior número
mente procuram medir a confi- e mais de 5.000 entrevistas. É de católicos (como Porto Alegre
ança do público nas instituições. muito provável que o público ou Belo Horizonte) têm uma opi-
O IBOPE, por exemplo, achou das capitais seja mais crítico e in- nião mais crítica ou hesitam em
em dezembro de 1990 que 78% formado. As perguntas eram em se pronunciar. Em Belo Horizon-
dos brasileiros adultos achavam termos de aprovação/desaprova- te, temos 67% de aprovação, 12%
confiável a Igreja Católica (no ção. O resultado global foi: de desaprovação (ambas as por-
segundo lugar, vinha o rádio A Igreja Católica é, certamen- centagens são mais baixas que a
com 58%). Em novembro de te, a Igreja toda, incluindo a média nacional) e 21% sem opi-
1993, o mesmo IBOPE encontra- atuação do Papa e dos bispos em nião (os mineiros preferem o si-
va 77% dos brasileiros confian- geral. Não é a Igreja local, a Ar- lêncio?).
do na Igreja Católica; os Meios quidiocese ou Diocese. Significa- Um outro dado mais próximo
de Comunicação contavam com tivo é que Igrejas locais notavel- da Arquidiocese de Belo Hori-
a confiança de 62%, os Sindica- mente diversas, como as do Rio zonte vem da pesquisa por ela
tos dos Trabalhadores com 61%, de Janeiro (capital) e São Paulo promovida em 1993 entre os jo-
a Justiça com 53%, os Militares (capital), tenham tido aprovação vens de 16-24 anos (Pesquisa Ju-
com 52%, outras Igrejas com quase igual. Mais surpreenden- ventude face à vida) da Região Me-
42%, Congresso Nacional com te é que as capitais com menor tropolitana (RMBH). Dela resul-
32%, Empresários com 28%, Par- número de católicos adultos (cer- ta um evidente contraste entre
tidos com 19% e Políticos com ca de 60% no Rio de Janeiro e as aspirações ideais dos jovens e
15%. 65% em São Paulo, segundo pes- o comportamento prático. 52%
Pesquisa mais recente é a do quisa da Datafolha de setembro dos jovens da RMBH julgam
“Vox Populi” (Jornal do Brasil, de 1994) apresentam um alto ín- muito importante a participação

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Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio

em movimentos sociais, mas me- Janeiro e São Paulo, o número mover um levantamento da prá-
nos de 10% têm participação efe- dos que confiavam na Igreja era tica religiosa (católica) dominical.
tiva em movimentos sociais ou superior ao número dos que se A metodologia usada é a mesma
comunitários. 39% acham im- diziam católicos. É preciso ir um dos anos ‘50. Foram distribuídas
portante participar da política, pouco adiante e tentar definir em 175 das então 178 paróquias
mas apenas 2,3% têm filiação melhor quem são os católicos. da Arquidiocese mais de 300.000
partidária. A grande maioria dos A sociologia da prática religi- fichas, com 17 perguntas e 64 op-
jovens diz crer em Deus (apenas osa, que teve certa fortuna e pro- ções de resposta. Para responder,
2,1% se dizem ateus) e 53,3% duziu muitos trabalhos nos anos bastava rasgar a ficha em pon-
acham importante praticar a re- ‘50 e início dos anos ‘60 (Deelen, tos determinados, cada um cor-
ligião numa igreja. Porém, só 1967), foi, logo depois, muito respondente a uma resposta
16% têm um compromisso co- criticada – inclusive no livro de bem definida. Foram recolhidas
munitário assumido pela fé e T. Luckmann sobre “A Religião e analisadas 270.304 fichas dos
cerca de 35% participam, mais Invisível” – porque tomava um fiéis acima de 10 anos de idade.
ou menos assiduamente, das critério exterior, a prática, para (Não foram levantadas as res-
práticas religiosas. medir um fenômeno – a religio- postas de crianças menores de 10
De qualquer forma, é eviden- sidade – muito mais complexo. anos) (Religião na grande B. H., p.
te que as Igrejas atraem os jovens As críticas, muito severas no fi- 26-51). As respostas colhidas cor-
mais que os partidos, os sindica- nal dos anos ‘60, e a mudança na respondiam a 1.294 celebrações
tos, os movimentos sociais ou visão da realidade, que levou ao – 1.206 missas e 88 cultos domi-
comunitários, as associações es- predomínio do estudo das rela- nicais sem padre ou “celebrações
portivas... Apenas a família ofe- ções entre religião, política e eco- da Palavra” –, com presença mé-
rece, de fato, maior apoio aos jo- nomia, fizeram quase desapare- dia de 209 participantes em cada
vens do que a igreja e é, para a cer – ao menos no Brasil – os es- celebração. Note-se também que
grande maioria, a instituição que tudos da prática religiosa. 13.121 pessoas (4,85%) participa-
oferece segurança.7 ram de mais de uma missa no
fim de semana.
Dos participantes, 162.820
A prática religiosa (60,2%) eram mulheres e 90.953
A prática religiosa dominical (33,7%) eram homens; de 16.531
(6,1%) não houve informação
Os resultados da pesquisa do Quando, em 1990, por moti- quanto ao sexo. Desconsideran-
“Vox Populi” de maio de 1996 e vos que tentaremos ilustrar de- do esse último grupo, a porcen-
das anteriores, do IBOPE, foram, pois, a Arquidiocese de Belo Ho- tagem é de 35,84% de homens e
por certos aspectos, surpreen- rizonte resolveu encarar mais de 64,16% de mulheres. Em termos
dentes. Revelaram que, especi- perto a realidade sócio-religiosa, aproximados, a relação entre ho-
almente em cidades como Rio de uma primeira iniciativa foi pro- mens e mulheres é de 5 a 9 (em

7
Os dados que acabamos de citar estão esparsos na síntese de Juventude face à vida. Veja, porém, especialmente as conside-
rações da página 37 sobre “Pluralismo, fragmentação, contraditoriedade”.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 69-85, out. 1997 73


Alberto Antoniazzi

cada grupo de 14 participantes, tir dos 40 anos. Os participantes pulação o número dos católicos,
5 são homens e 9 são mulheres).8 acima dos 70 anos são 6,46%, en- temos 2.522.316 pessoas, das
A porcentagem da participação quanto a mesma faixa de idade quais podemos considerar obri-
dos homens é mais alta nas pa- constitui apenas 3,01% da popu- gadas (moralmente) à participa-
róquias do interior, atingindo lação. (Religião na grande B. H., p. ção da missa cerca de 65% (ex-
47,6% em Piedade dos Gerais, 30-33)9 cluindo as crianças até 10 anos,
47,2% em Vargem Alegre, 45,5% Mais importante é calcular a que não foram consideradas na
em Belo Vale. É mais baixa nas porcentagem dos participantes pesquisa, e mais uma pequena
paróquias da Capital, seja na zo- da missa dominical em relação porcentagem de doentes, pesso-
na sul (Santa Helena, 27,3% de ao total da população. O cálculo as que trabalham no dia festivo
homens; São João Evangelista, não é fácil, por vários motivos. ou são impedidas por outros
na Serra, 30,4%), seja na zona les- O levantamento foi decidido motivos). Temos assim o núme-
te (Divino Espírito Santo, em quando se esperava ter o Censo ro de 1.639.505 católicos que de-
Santa Efigênia, 28,7%; N.Sra. das do IBGE em setembro de 1990, o veriam participar da missa. Sen-
Dores, na Floresta, 29%; Sagra- que não aconteceu. Pela primei- do de 257.183 o número de par-
da Família, 29,8%). (Religião na ra vez, o Censo foi atrasado em ticipantes efetivamente registra-
grade B. H., p. 29-30) um ano, sendo realizado em se- do,10 a “taxa da prática domini-
A porcentagem dos partici- tembro de 1991. Uma nova con- cal” (Deelen, 1967, p. 19-23) na
pantes é também notavelmente tagem populacional, feita em Arquidiocese de Belo Horizonte
diferente por faixa de idade. Em agosto de 1996, revelou um cres- pode ser calculada em 15,7%.
síntese, pode-se dizer que está cimento anual da população da
próxima da média geral nas fai- Região Metropolitana de Belo
xas de 10 a 19 anos; está forte- Horizonte de 2,09% (Jornal do Pesquisas de opinião
mente inferior à média geral (al- Brasil, 6/8/97, p. 4). A população
e levantamento
cançando pouco mais de 60% da da Arquidiocese de Belo Hori-
média) na faixa de 20 a 29 anos, zonte, segundo o Censo de 1991,
estatístico
que é aquela que registra o me- era de 3.421.249 habitantes (a da
nor número de católicos prati- RMBH era de 3.436.060 habitan- As pesquisas de opinião dis-
cantes; está ainda sensivelmen- tes). Podemos subtrair 1,7% a poníveis tendem a atribuir aos
te abaixo da média na faixa de este número para obter a popu- católicos, mesmo em Belo Hori-
30 a 39 anos; e finalmente se tor- lação de novembro de 1990, que zonte, uma taxa de prática do-
na acima da média e progressi- seria então de 3.363.088 habitan- minical ou semanal ao redor de
vamente sempre mais alta a par- tes. Calculando em 75% da po- 30%.11 Como explicar a diferen-

8
Com base nas pesquisas dos anos ‘60, G. DEELEN (A Sociologia a serviço da Pastoral, II, 29) afirmava que, nos estados do
Paraná e de São Paulo, entre dez pessoas que freqüentavam a missa dominical, 6 eram mulheres; no Nordeste do Brasil, a
relação era de três mulheres para cada homem. Comentava que nenhum psicólogo ou sociólogo tinha explicado claramente
as causas do fenômeno.
9
Cf. ibidem, p.30-33. O fenômeno não é novo. O declínio da prática entre 20-30 anos já era assinalado por G. DEELEN nos
anos ‘60 (cf. A sociologia a serviço da Pastoral, II, 42 ss.), que menciona também diversas explicações (ibidem, p.46-51).
10
O número total foi de 270.304, mas subtraímos o número de 13.121 pessoas que freqüentaram mais de uma missa no fim de
semana em que foi realizada a pesquisa.
11
O Gallup encontrou 32% de prática semanal entre os católicos brasileiros em março de 1990 e 33% em julho de 1988. A
PNAD do IBGE, também de 1988, encontrou 31% de prática semanal entre os católicos. Para verificação das fontes e uma
análise crítica desses dados, cf. o estudo de L. Piquet CARNEIRO e Luiz Eduardo SOARES, Religiosidade, estrutura social e

74 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 69-85, out. 1997


Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio

ça entre o nosso levantamento outros 250.000 praticantes ocasi- gundo o censo do IBGE de 1991,
(que pode apresentar uma por- onais, perfazendo assim os 30% os nascidos no ano anterior à da-
centagem levemente inferior à de católicos que se dizem prati- ta do Censo na Arquidiocese de
realidade, pela falta de três pa- cantes. O levantamento mostra Belo Horizonte eram 68.144, os
róquias e dados incompletos de assim sua utilidade, revelando a batizados na Igreja Católica re-
poucas outras) e as respostas distinção entre os praticantes as- presentariam 77,25% dos nasci-
dadas às pesquisas de opinião? síduos, cuja participação é cons- dos no ano. Aliás, é provável que
Provavelmente, a resposta está tante e cujo vínculo de pertença o número dos nascimentos, de
na distinção de dois tipos de pra- à Igreja católica é forte, e os pra- 1991 para cá, tenha diminuído,
ticantes, que se encontram jun- ticantes ocasionais, cuja partici- acompanhando a tendência na-
tos na missa dominical, mas re- pação é pouco freqüente e cujos cional.13 Essa porcentagem de
presentam dois universos dife- vínculos eclesiais são fracos. batizados significa que todos os
rentes: o primeiro grupo é cons- católicos (e talvez até alguns
tituído pelos praticantes real- não-católicos) batizam os filhos.
mente assíduos, que vão à missa A prática dos A mesma coisa não se pode
todos os domingos (ou mesmo, dizer da Primeira Comunhão,
sacramentos
uns 10%, todos os dias da sema- cujos números oscilam ao redor
na): são cerca de 80% do total; Os dados acima apontam, de 40.000 por ano. Em 1993, hou-
um segundo grupo, que repre- grosso modo, a partir da partici- ve 41.644 primeiras comunhões,
senta os restantes 20%, é consti- pação na missa dominical, três o que representava 56% das cri-
tuído por pessoas que declaram categorias de católicos: 15% de anças com 9 anos de idade (to-
ir à missa dominical raramente. praticantes assíduos, 15% de mando como referência o Cen-
Em resumo, num domingo co- praticantes ocasionais, 70% de so de 1991). As primeiras comu-
mo aquele considerado no le- não praticantes. nhões representavam pouco me-
vantamento, temos nas missas Mas é possível dispor, para a nos de 80% dos batizados daque-
cerca de 200.000 fiéis estáveis, Arquidiocese de Belo Horizon- le ano. Isso indica que cerca de
com prática regular e continua- te, de dados bastante confiáveis 20% das famílias que batizam os
da, mas também temos cerca de sobre a prática dos sacramentos filhos não se preocupam em
50.000 fiéis que somente uma nos anos 1993-1996.12 Esses da- prepará-los para a Primeira Co-
vez ou outra participam da mis- dos trazem novos matizes na munhão ou Eucaristia.
sa. Admitindo que estes fiéis es- análise da prática religiosa cató- Mais acentuada é a queda do
tejam presentes, em média, num lica em B.H. De fato, tivemos número dos crismandos. Houve
domingo em cada cinco, teremos 52.639 batismos em 1993 e 52.010 20.334 crismas em 1993 e 20.550
– além de 200.000 fiéis assíduos, em 1996. Considerando que, se- em 1996. A crisma é ministrada

comportamento político, in: Mª Clara BINGEMER (org.), O impacto da modernidade sobre a religião, Loyola, São Paulo,
1992, p. 9-58. Na pesquisa de opinião, por amostragem, encomendada em janeiro de 1991 pela Arquidiocese de Belo Hori-
zonte, 29% dos católicos se declaram praticantes assíduos da missa ou mesmo empenhados em atividades pastorais.
12
Esses dados são recolhidos pelo chanceler da Cúria Metropolitana, mons. Geraldo dos Reis Calixto, e publicados (geralmen-
te no mês de junho do ano seguinte) no boletim Arquidiocese em Notícias.
13
Segundo o IBGE, o crescimento anual da população brasileira foi de 1,38% entre 1991 e 1996, contra 1,93% no período de
1980 a 1991. Na mesma época, a taxa de fecundidade caiu para 2,3 filhos, contra 4,3 em 1980. Cf. F. L. NOEL, População tem
crescimento em baixa, Jornal do Brasil, 6/8/1997, p. 4.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 69-85, out. 1997 75


Alberto Antoniazzi

agora, geralmente, para adoles- sobre o catolicismo belo-hori- que não aderem a nenhuma re-
centes de cerca de 15 anos. Se- zontino. ligião. Acreditam na reencarna-
gundo o Censo de 1991, os jo- Na pesquisa de 1991, sobre ção, em média, 55% dos entre-
vens de 15 anos de idade eram uma amostra de 803 adultos, re- vistados (54,8%). A crença, como
67.647, ou seja, aproximadamen- presentando a população da Re- é natural, é altíssima entre espí-
te o mesmo número das crian- gião Metropolitana, foram pos- ritas (97%) e umbandistas (91%);
ças até 1 ano de idade e um pou- tas perguntas sobre crenças. é media entre os católicos (63%,
co menos das crianças de 9 anos. Apenas 1,6% se disseram ateus levemente acima da média ge-
O número das Crismas repre- e não acreditam em Deus (ape- ral!); é baixa entre os pentecos-
senta cerca de 40% dos Batizados sar de 8,2% se declararem sem tais (26%) e os protestantes tra-
e 50% das Primeiras Comu- religião). Também a fé na divin- dicionais (22%) e quase nula (3%)
nhões. dade de Cristo é comum a qua- entre os que não têm religião.
Finalmente, temos 12.165 ca- se todos (média geral: 87,2%), Outra questão interessante,
samentos religiosos em 1993. O sendo um pouco menos fre- levantada pela pesquisa, foi a
número dos casamentos subiu qüente entre protestantes histó- imagem de Deus. Embora a per-
um pouco em 1994 e 1995, mas ricos e espíritas kardecistas (mas gunta indicasse nove alternati-
em 1996 foi de 11.630 (queda de mesmo estes acreditam na pro- vas de escolha e limitasse ante-
5% em relação a 1993). O núme- porção de 87%). O único grupo cipadamente as respostas, pare-
ro dos casamentos, portanto, que, maciçamente, não acredita ce-nos significativo que quase
proporcionalmente, é um pou- na divindade de Cristo é o dos 50% dos entrevistados optassem
co superior ao número das cris- “sem religião”, dos quais 5% ma- por um Deus que é “Tudo, o To-
mas e envolve cerca de 40% da nifestam a fé cristã. Um número do, o Todo-Poderoso”; só 17,6%
população da Arquidiocese que semelhante (só com menor par- indicaram Deus como “O Cria-
poderia casar-se naquele ano ou ticipação de espíritas e umban- dor, o Pai”; 7,8% como “Força ou
53% dos católicos (na hipótese distas) acredita que a Bíblia é pa- Energia Superior”; 7,6% como
de que os católicos na idade de lavra de Deus. Mais curiosa é a “O Ser Superior ou Supremo”;
se casar sejam 75% da popula- resposta com relação à imortali- 6% como “Protetor, Salvador da
ção total). dade da alma: a média geral é de Humanidade”, 4,9% como “Je-
72%. Excluindo os “sem religião” sus Cristo” e 1,5% como a “San-
(cuja crença na alma não passa tíssima Trindade”. Distinguindo
Persistência ou
dos 5%), a média sobe para 76% as respostas dos fiéis das várias
fragmentação das para os católicos, 80-85% entre os religiões, constatam-se algumas
crenças? protestantes (mais baixa entre os acentuações diversas, mas não
pentecostais, mais alta entre os diferenças radicais: os espíritas
Seria interessante poder en- tradicionais), 90% entre os espí- designam Deus como Energia
tender melhor as motivações ritas e 100% entre os umbandis- Superior em 26% dos casos (con-
que levam à (ou afastam da) prá- tas. A crença na vida após a mor- tra uma média de 7,8%); os um-
tica religiosa. Possuímos poucos te é mais forte entre os espíritas bandistas se aproximam da po-
dados a respeito. Mas os poucos (97%), bastante fraca entre cató- sição dos espíritas, mas com me-
não deixam de ser significativos licos e pentecostais (ambos com nor freqüência; os pentecostais
e de jogar um pouco mais de luz 62%) e quase nula (3%) entre os preferem “Deus Todo-Poderoso”

76 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 69-85, out. 1997


Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio

em 67% dos casos (contra a mé- tantismo e espiritismo), as cren- atuais, acrescenta-se a fragmen-
dia geral de 49,3%) e também ças tipicamente cristãs não pare- tação da própria mensagem re-
acentuam Deus como “Jesus cem se sobressair vigorosamen- ligiosa. Pelo menos, é a partir
Cristo”; os católicos, por seu peso te, nem na questão de Deus (cuja dessa hipótese que a Arquidio-
preponderante na amostra, es- imagem continua, muito fre- cese de Belo Horizonte reagiu di-
tão próximos das médias gerais, qüentemente, pré-cristã), nem ante dos resultados da pesquisa
mas é possível detectar uma leve na questão da reencarnação. A de 1991. Preocupou-se em dimi-
preferência (19% x 17,6%) por explicação estaria (Valle, 1976) no nuir a fragmentação de suas men-
Deus Pai e pela SS.ma Trindade fato de que o catolicismo ou o sagens e em articular melhor os
(1,9% x 1,5%). cristianismo teria sido imposto diversos meios de comunicação
Como interpretar esses da- ao povo brasileiro, acabando por (celebrações, homilias, reflexão
dos? Uma primeira hipótese, encobrir (mas não substituir!) em pequenos grupos, programas
que mereceria uma verificação um conjunto de crenças mais en- de rádio e televisão), embora sa-
mais rigorosa, mas que não é raizadas, de origem indígena e bendo que isso não resolve tudo.
desprovida de argumentos, é africana, depois novamente re-
aquela que nos faz pensar numa elaborado num contexto de in-
espécie de “matriz religiosa bra- fluências externas mais recentes A influência da
sileira” ou num conjunot de “tra- (por ex.: espiritismo), mas sem- religião na
ços marcantes, convergências pre persistindo por baixo de uma vida social
notórias e condutas padroniza- catequese cristã superficial e
das, que nos fazem inferir a pre- pouco “inculturada”. A pesquisa de 1991 revelou
sença efetiva e decisiva de um Essa interpretação, que olha também que mais de 56% dos
substrato religioso-cultural” antes de tudo para o passado, entrevistados consideravam
(Bittencourt, 1996, p. 45). A essa não exclui outros fatores, ligados muito importante a influência da
“matriz” ou a esse “substrato”, ao presente e destinados, quase religião na vida do dia-a-dia e
perdido por aqueles que dei- certamente, a se fortalecerem no 27,9% a julgavam importante
xaram toda religião, mas presen- futuro. As pessoas que vivem (total = 84,3%). O mesmo núme-
te – com algumas diferenças – hoje na metrópole belo-horizon- ro julgava importante a religião
nos fiéis brasileiros de todas as tina (ou em qualquer outra se- nas questões morais. Apenas
religiões, pertenceriam a crença melhante) recebem diariamente 20% julgavam muito importan-
em Deus, considerado predomi- uma tal série de mensagens – pe- te a influência da religião na po-
nantemente como o Todo-Pode- la TV, a imprensa, a propagan- lítica e 25,9% a consideravam im-
roso, mais temido que amado, e da, a convivência com o mundo portante (total = 45,9%). A me-
a fé na divindade de Cristo, no urbano – que dificilmente os nor relevância política da reli-
valor divino da palavra da Bíblia, poucos minutos semanais de ho- gião era confirmada por outras
na imortalidade da alma, na exis- milias ou as poucas horas men- respostas: apenas 6,1% achavam
tência dos anjos, na vida após a sais de catequese conseguem ótima e 26,7% achavam boa a
morte, na reencarnação. Apesar contrabalançar, proporcionando ação política da Igreja, enquan-
da aceitação de Cristo e da Bíblia uma formação religiosa coeren- to 20,5% achavam ótima e 43,2%
(crenças reforçadas tanto pelo te e consistente. À fragmentação achavam boa a ação social da
catolicismo, como pelo protes- da informação e da cultura Igreja (total = 63,7%).

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 69-85, out. 1997 77


Alberto Antoniazzi

Mas, em que medida a reli- santos era praticada, nas três re- outras religiões) e recebem mais
gião – declarada tão importante giões, por 47-48% dos católicos a influência da família (91,5%).
– consegue levar a um compro- praticantes, aparentemente sem (Religião na grande B. H., p. 17-18)
misso moral e social efetivo? No nenhuma diferença significativa Outro fato que pode ser cita-
início do artigo, falando da crise por área geográfica ou por clas- do sobre a devoção aos santos é
das instituições, lembramos que se social. (Religião na grande B. H., a atração extraordinária exercida
a pesquisa de 1993 mostrava p. 43) nos últimos anos em Belo Hori-
uma forte distância entre as in- A devoção aos santos parece zonte por São Judas Tadeu, cujo
tenções e a prática dos jovens. ainda maior entre os católicos santuário no bairro da Graça é
Para os adultos, e em particular não-praticantes. A pesquisa por visitado por dezenas de milha-
para os católicos praticantes, te- amostragem de janeiro de 1991 res de devotos todo dia 28 e, por
mos alguns dados mais precisos. encontrou confiança nos santos muito mais fiéis, no dia 28 de
O levantamento da participação em 73,5% dos católicos não-pra- outubro.15
nas missas (novembro de 1990) ticantes, porcentagem nitida-
incluía perguntas sobre o tipo de mente superior aos 57,5% dos
“engajamento” dos fiéis. As res- católicos praticantes. (Os núme-
Comunidades,
postas revelavam que a militân- ros das duas pesquisas – a por
cia política era pouco freqüente amostragem e a imediatamente
movimentos e
(menos de 2% nas Regiões N. Sra anterior entre os participantes pastorais
da Conceição e N. Sra. da Pieda- das missas dominicais – não são
de; 4% na Região N. Sra. Apare- perfeitamente comparáveis, por- O levantamento da participa-
cida).14 O empenho em associa- que as questões foram formula- ção nas missas dominicais cons-
ções de bairro e sindicatos era das diversamente). A devoção tatou também uma forte influên-
um pouco mais freqüente (RENSP: aos santos dos católicos em ge- cia do movimento conhecido
3,3%; RENSC: 4,1%; RENSA: ral é confirmada também, na como “Renovação Carismática
6,2%). Mais forte era o compro- pesquisa por amostragem, pelo Católica”.16 De fato, entre 15%
misso com as pastorais da Igreja fato de que os católicos provêm (na RENSP) e 18,8% (na RENSA)
(entre 9 e 12%). Ainda mais nu- do interior mais que os membros dos fiéis que estavam nas missas
merosos(as) os(as) que freqüen- de outras religiões, valorizam de 18/11/1990 se declararam par-
tavam os grupos de oração (en- mais a tradição na escolha da re- ticipantes dos “grupos de ora-
tre 15 e 18%). E a devoção aos ligião (67% contra 35%-45% das ção”.17 Quanto à participação em

14
A Arquidiocese está dividida territorialmente em três Regiões Episcopais, que receberam como título e padroeira, respecti-
vamente: Nossa Senhora da Piedade (abreviatura: RENSA), que inclui o Centro e a região Sudeste de Belo Horizonte, mais
os municípios de Caeté, Nova Lima, Sabará e vizinhos; Nossa Senhora da Conceição (RENSC), que inclui a Região Norte da
Capital, com o distrito de Venda Nova e os municípios de Neves, Vespasiano, Lagoa Santa, Pedro Leopoldo e vizinhos; Nos-
sa Senhora Aparecida (RENSA), que abrange a Cidade Industrial de Belo Horizonte e o Barreiro, Contagem, Betim, Esmeral-
das, Ibirité e os municípios do Vale do Paraopeba. A RENSA concentra a área industrial e a população operária; a RENSP
concentra a classe média alta; a RENSC está numa situação socioeconômica intermédia, com muitos bairros residenciais po-
pulares e alguns bairros de classe média alta (Pampulha).
15
No dia 28.10.1996 teriam visitado o santuário cerca de 200.000 pessoas.
16
A “Renovação Carismática Católica” é um movimento difundido em muitos países, a partir dos Estados Unidos, poucos
anos depois do encerramento do Concílio Vaticano II (1965). No Brasil, está festejando 25 anos de história. Promove especi-
almente os grupos de oração, além de eventos de massa.
17
17% dos presentes nas missas representavam cerca de 44.000 pessoas; note-se que há pessoas que freqüentam assiduamente
os grupos de oração, mas nem sempre a missa dominical.

78 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 69-85, out. 1997


Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio

“comunidades eclesiais de base” tos e associações no meio católi- merosas e atuantes no campo da
(CEBs), as respostas eram vári- co da Arquidiocese. Aliás, Minas assistência e promoção social.
as: desde 1,2% na região mais se destaca pela presença dos “ou-
central (RENSP) até 5,6% na re- tros movimentos”.19 Não dispo-
gião mais operária (RENSA). A mos, no momento, de dados pre- Igreja e comunicação
média geral era de 3,2%, equiva- cisos sobre os movimentos fami-
lente a cerca de 8.300 pessoas liares (como “Movimento Fami- Quem tem acesso aos instru-
(Religião na grande B. H., p. 43). A liar Cristão” ou “Equipes de Nos- mentos de informação interna
pesquisa da Datafolha de setem- sa Senhora”, mais antigos, ou da Igreja em Belo Horizonte fica
bro de 1994 encontrou quase 2 “Encontro de Casais com Cristo”, surpreendido com o número e a
milhões de membros das CEBs mais difundido), ou grupos de variedade das organizações que
e 4 milhões de carismáticos (res- jovens ou os diversos ramos da compõem o mundo da Arqui-
pectivamente 1,8% e 3,8% dos “PJ” (Pastoral da Juventude). Ali- diocese: 204 paróquias, 24 fora-
eleitores). Em Minas Gerais, a ás, esses movimentos seguem nias, dezenas de associações,
porcentagem de carismáticos era geralmente um ciclo de altos e movimentos e pastorais. Ao mes-
um pouco mais alta (4,4%) e a baixos, de entusiasmo e de arre- mo tempo, não deixa de ser
dos membros das CEBs um pou- fecimento, de retomadas e de igualmente surpreendente – nu-
co mais baixa (1,4%). No caso da impasses. Contribuem, contudo, ma época de abundância dos
Arquidiocese de Belo Horizon- para a socialização dos jovens e meios de comunicação – o des-
te, vários fatores explicam o pe- a formação de lideranças, que conhecimento recíproco.21 Exis-
queno número de CEBs: a qua- posteriormente atuam em movi- tem, porém, bons canais de co-
se ausência de população rural mentos sociais, associações de municação entre o centro da Ar-
(onde as CEBs proliferam mais bairros, sindicatos, partidos. quidiocese e sua base. A Rádio
facilmente); o apoio oficial dado Mais estáveis são as associa- América desempenha um papel
somente nos últimos anos; a fal- ções tradicionais, como o Apos- essencial para o contato entre o
ta de um trabalho específico de tolado da Oração, a Legião de Arcebispo e os fiéis, particular-
criação de CEBs, a não ser em Maria20 ou as Conferências de S. mente os mais devotos e um im-
poucas paróquias.18 Vicente, mais autônomas em re- portante público feminino, com
Há muitos outros movimen- lação às paróquias, mas muito nu- participação ativa nas atividades

18
Uma valiosa experiência de CEBs é a da Paróquia Jesus Operário no bairro Petrolândia (Contagem), próximo de Betim, da
Refinaria da Petrobrás (que deu o nome ao bairro) e da Fiat. A história das CEBs de Petrolândia foi estudada pela professora
de Comunicação da PUC•Minas Sandra de Fátima Pereira TOSTA. Os primeiros resultados da pesquisa foram publicados
pela própria Paróquia: Fé, memória e comunicação: a construção das comunidades eclesiais de base de Petrolândia. Conta-
gem, 1995, 55 p. Uma análise mais completa da vida dessas comunidades, de sua cultura, de suas opções políticas e religio-
sas, é desenvolvida pela autora na tese de doutorado, que defenderá proximamente na USP.
19
A pesquisa da Datafolha de 1994 encontrou 10,4% dos eleitores ligados a movimentos católicos diferentes da RCC e das
CEBs. A média nacional era de 7,9% de eleitores ligados a outros movimentos. Cf. A. F. PIERUCCI – R. PRANDI, A realidade
social das religiões no Brasil, p. 216.
20
O Apostolado da Oração conta com 40.000 membros; a Legião de Maria, com 5.848 legionários(as) e 45.500 auxiliares, segun-
do o informativo da Arquidiocese de junho de 1997, com estatísticas relativas ao ano de 1996.
21
A “Assembléia do Povo de Deus”, realizada pela Arquidiocese em 12-13 de outubro de 1996, com a participação de mais de
500 delegados de paróquias e organismos diocesanos, pôs em relevo esta falta de comunicação, seja pelo desconhecimento
por parte da maioria dos participantes das iniciativas de outras paróquias ou pastorais ou organizações diocesanas, seja
pelas propostas avançadas para melhorar a comunicação interna da Arquidiocese.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 69-85, out. 1997 79


Alberto Antoniazzi

paroquiais. Além do Arcebispo, dos meios existentes; formação exige: “Não saiba a tua mão es-
outros padres e dirigentes de de equipes de comunicação em querda o que faz a direita” (Mt
pastorais desempenham o papel nível paroquial...). A que parece 6, 3). Mas se não deve ser incen-
de informar sobre pensamento mais fraca é a comunicação “ex- tivado o exibicionismo ou o cul-
e ação da Igreja. Há vinte anos, terna”, dirigida ao grande públi- to da personalidade (e neste es-
a Arquidiocese produz uma mis- co, seja para fazer conhecer as tudo não citamos nenhum nome
sa na televisão no domingo pela atividades da Igreja, seja para de pessoa), seria bom divulgar –
manhã (atualmente na TV Mi- contribuir com um serviço de in- com a devida discrição – exem-
nas) e o Arcebispo apresenta o formação, educação e reflexão plos a serem imitados e prestar
programa “Palavra de Deus”, re- crítica.22 conta com mais clareza daquilo
produzido também por outras Limitando-nos ao primeiro que paróquias, movimentos,
emissoras. Além disso, podem ser aspecto – o da divulgação da pastorais e a organização dioce-
citados uma centena de boletins ação social da Igreja –,23 parece sana fazem com recursos que
paroquiais e o semanário “Jornal haver um grande déficit de co- provêm substancialmente das
de Opinião”, muito apreciado, municação quanto aos 4 hospi- próprias comunidades.
mas pouco conhecido. tais, 33 ambulatórios, 20 casas de Outra análise – que aqui não
Apesar das falhas indicadas, repouso ou asilos, 15 centros pa- é possível – deveria ser feita
a comunicação “interna” (no ra atendimento a menores, 70 quanto à presença dos católicos
sentido de dirigida aos católicos creches, 50 consultórios familia- na produção cultural ou na atua-
convictos e praticantes) funcio- res, 44 centros de educação espe- ção política, que hoje parece mais
na satisfatoriamente na Arqui- cial e outras 26 obras sociais (to- diluída do que na sociedade for-
diocese e há sinais concretos de tal: 262), além das 61 escolas de temente marcada pelo conflito
uma maior expansão nesse cam- 1º e 2º grau (com 63.654 alunos) das ideologias dos anos ‘30 ou ‘60
po (projeto de um canal de TV e a Pontifícia Universidade Ca- deste século, quando a presença
próprio; aquisição de uma se- tólica, com 24.013 estudantes. católica era agressiva e polêmica.
gunda rádio; melhor articulação É verdade que o evangelho (Matos, 1990; Mata, 1996)

22
Mesmo um meio de comunicação hoje indispensável e extremamente difundido, como o telefone, não parece merecer
grande atenção. Por curiosidade, verificamos o número de telefones de “Igrejas, Templos e Agremiações Religiosas” nas pá-
ginas amarelas da Lista Telefônica de Belo Horizonte (1997). Encontramos 144 telefones de instituições Católicas (paróquias,
comunidades religiosas, obras sociais...), 67 instituições Batistas, 44 de Igrejas Pentecostais diversas, 39 da Igreja Quadrangular,
17 dos Metodistas, 13 de Grupos interconfessionais (evangélicos, geralmente), 13 de Presbiterianos, 12 de Centros espíritas
(kardecistas), 8 da Assembléia de Deus, 7 da Seicho-no-iê, 6 da Igreja Universal do Reino de Deus, 4 de Umbanda, 4 de Mór-
mons, 4 de Igrejas Brasileiras, 4 de Adventistas, 3 da Perfeita Liberdade, 2 da Congregação Cristã, 2 da Igreja Messiânica, 1
dos Luteranos, 1 da Igreja Episcopal, 1 do Bahai, 1 do Hare Krishna, 1 do Movimento Gnóstico, 1 da Igreja da Unificação. A
interpretação desses números deve ser cautelosa. Não se trata de um levantamento estatístico confiável. O uso do telefone
(e sua publicação na lista oficial) depende da situação socioeconômica e, às vezes, das particularidades de cada religião. Os
católicos parecem pouco preocupados em divulgar seus telefones: nem metade das 200 paróquias (com quase 1.400 lugares
de culto!), das 120 casas religiosas, das 250 obras sociais aparecem na lista. Igrejas evangélicas de classe média (Batistas, Qua-
drangular, Metodistas, Presbiterianos) têm um alto número de telefones em proporção ao número de fiéis, enquanto Igrejas
petencostais pobres, muito mais numerosas, como Assembléia de Deus e Congregação Cristã, ou cultos como o da Umbanda
quase não estão mencionadas na lista telefônica. Outro fator é o tamanho do Templo: os da Igreja Universal do Reino de
Deus são relativamente poucos, mas de tamanho muito superior aos pequenos templos da Assembléia de Deus e da Con-
gregação Cristã. Mesmo assim, a lista não deixa de ser útil para mostrar a grande variedade de opções religiosas oferecidas
aos belo-horizontinos, entre as quais não faltam as que atendem à distância, como “Telepaz Mensagem” ou “TeleShalom
Pronto Socorro de Jesus”.
23
A ação social não é a função própria e característica da Igreja, mas ela a exerce de fato, solicitada pelas necessidades da po-
pulação, especialmente da mais carente. Essa função social, como vimos, é julgada positivamente pela opinião pública e, em
muitos casos, é o único canal de contato com a Igreja por parte de não-católicos e não-praticantes.

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Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio

Assinalamos, enfim, que a As respostas da no início do século (o pe. Júlio


Arquidiocese de Belo Horizonte Maria ou Dom Leme) lamenta-
Igreja-instituição
conta com um número significa- vam a situação herdada do Im-
tivo de ordens e congregações
às mudanças pério e da Colônia: um catolicis-
religiosas, masculinas (42, com socioculturais mo festivo, nada empenhado so-
306 sacerdotes e 121 irmãos) e fe- cialmente, com pouco peso na
mininas (82, com 1425 irmãs), as Está na hora de concluir essa sociedade civil e – na expressão
quais atuam com bastante auto- resenha de números e de aspec- de Dom Leme – fortemente mar-
nomia e em campos diversos tos da Arquidiocese de Belo Ho- cado pela “ignorância religiosa”.
(desde a vida contemplativa até rizonte e de esboçar brevemen- A reforma católica do século XX
a ação social). Particularmente te um quadro de conjunto quan- foi marcada inicialmente por
forte é a concentração, na capi- to à ação organizada da Igreja fa- modelos europeus, por uma in-
tal mineira, dos institutos de for- ce aos desafios dos anos ‘90, fim compreensão da tradição religio-
mação dos futuros padres e reli- de século que preanuncia o novo sa popular, por um excesso de
giosos. Há três centros principais milênio. ênfase no conflito ideológico ou
de estudos: o Seminário da Ar- Retomamos a hipótese que doutrinário e, na prática religio-
quidiocese, que recebe, além dos nos serviu de ponto de partida. sa, por uma acentuação demasi-
seminaristas de Belo Horizonte, O contexto cultural atual criou ada da importância dos sacra-
os de várias outras dioceses e uns uma situação de pluralismo reli- mentos.
poucos religiosos; o Instituto gioso, que necessariamente tor- O contexto eclesial dos anos
Santo Tomás de Aquino (ISTA), na mais competitiva a coexistên- ‘90 apresenta-se muito diferen-
mantido por um consórcio de di- cia de várias religiões na mesma te dos primeiros sessenta anos
versas congregações masculinas sociedade (e cidade). Além do do século, após a virada do Con-
e femininas; as Faculdades de Fi- mais, o indivíduo é hoje estimu- cílio Vaticano II (1962-65) e, prin-
losofia e Teologia do Centro de lado a construir sua identidade, cipalmente, o esforço de rein-
Estudos Superiores da Compa- não a partir de um modelo tra- ventar de forma original e pró-
nhia de Jesus, completadas pelo dicional, mas com base em livres pria uma ação eclesial latino-
Instituto Santo Inácio (ISI). Os escolhas. A situação é muito dife- americana e, especificamente,
seminaristas religiosos dos cur- rente daquela em que o catolicis- brasileira.
sos superiores (filosofia ou teo- mo detinha uma espécie de mo- Em Belo Horizonte, durante
logia) eram 335 em 1996; os dio- nopólio do campo religioso (Bra- o ano de 1990, os trabalhos de
cesanos eram 78 da Arquidiocese sil colonial) ou uma hegemonia três Assembléias do Clero, im-
e cerca de 80 de outras dioceses.24 muito nítida. pulsionados pelo Arcebispo, o
Temos aqui quase 500 seminaris- A nova situação exige uma Conselho Presbiteral e uma Co-
tas, ou seja, 1/14 dos seminaris- nova qualidade do catolicismo. missão “ad hoc”, desembocaram
tas brasileiros. A hegemonia, como se sabe, po- num projeto de dinamização da
de gerar um certo relaxamento. pastoral, denominado “Cons-
Os líderes da renovação católica truir a Esperança”. Os primeiros

24
Cf. o citado informativo da Arquidiocese de junho de 1997, que porém omite os dados dos seminaristas diocesanos de outras
dioceses, que estudam em Belo Horizonte.

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Alberto Antoniazzi

passos do projeto foram as pes- vento e o Natal, mais centrado quanto à metodologia e à orga-
quisas já citadas25 e uma ampla na celebração e na oração do que nização das práticas pastorais,
consulta ao “laicato” católico, aos em novas ações). E cada progra- depende em grande parte do
fiéis mais ativos nas paróquias e ma procura integrar diversas ati- Projeto Pastoral da Arquidiocese
organizações católicas. Daí nas- vidades e diversos meios de co- de Belo Horizonte, cuja equipe
ceram um processo permanen- municação: a celebração litúrgi- assessora atualmente a CNBB
te de reflexão26 e um plano de ca, enriquecida de gestos e sím- nesse aspecto.
ação, que tem duas diretrizes bá- bolos; a homilia, tornada mais Quanto à segunda diretriz, a
sicas: próxima da S. Escritura e da vida Arquidiocese procura o cami-
• aprimorar as celebrações li- atual; o grupo de reflexão, que nho... caminhando. Além de
túrgicas, as homilias e a for- confronta o evangelho do do- buscar repetidamente conscien-
mação dos católicos; mingo com a vida cotidiana do tizar os católicos de sua respon-
• transformar os católicos grupo; as transmissões de rádio sabilidade missionária ou de tes-
praticantes em evangeliza- e televisão, que animam e orien- temunhar o evangelho, procu-
dores, capazes de prestar tam os grupos. O programa da rou-se encontrar formas simples
serviços às comunidades e Quaresma se inspira na Campa- de colocar os católicos pratican-
de testemunhar sua fé no nha da Fraternidade, promovi- tes em contato com os católicos
Evangelho. da anualmente pela Conferência não-praticantes e os não-católi-
Quanto à primeira diretriz, Episcopal (CNBB). Os progra- cos. Teve notável amplitude e re-
ela vem sendo desenvolvida mas do Tempo Pascal e do Tem- percussão a visita às famílias, re-
desde o 2º semestre de 1991 atra- po Comum (2º semestre) são de- alizada pelos católicos a partir
vés de programas específicos cididos pela Arquidiocese. Ou das paróquias, inicialmente em
que oferecem subsídios para as melhor: eram decididos até 1º de outubro de 1994, com a finalida-
celebrações e homilias domini- dezembro de 1996, quando a de de anunciar a realização em
cais, para a realização semanal CNBB lançou seu Projeto “Rumo Belo Horizonte do 5º Congresso
de grupos de reflexão e para a ao Novo Milênio”, em sintonia Missionário Latino-Americano,
execução de ações de serviço co- com as sugestões da carta do Pa- efetivamente realizado em julho
munitário ou de evangelização. pa João Paulo II “Tertio Millennio de 1995. Foram cerca de 300.000
Cada programa aborda um tema Adveniente”. Esse projeto prevê, visitas, que serão repetidas em
determinado durante algumas entre outras coisas, uma espécie outubro deste ano de 1997, com
semanas (geralmente 7 semanas de catequese intensiva dos cató- a finalidade de anunciar o ano
na Quaresma, 9 semanas no licos nos anos 1997, 1998 e 1999, de Jesus Cristo em preparação ao
Tempo Pascal, 15 semanas no 2º centrada ao redor das pessoas de Jubileu do ano 2000 e distribuir
semestre, desde a Assunção até Jesus Cristo, do Espírito Santo e gratuitamente um exemplar dos
o último domingo do ano litúr- de Deus Pai. O projeto da CNBB Evangelhos. Outra forma de
gico, no final de novembro; há se inspira, quanto ao conteúdo, conscientização e ação foram as
ainda um programa para o Ad- nas orientações do Papa. Mas, missões de férias, realizadas ge-

25
Particularmente as duas cujos resultados estão em Religião na Grande B.H., 1991.
26
Essa reflexão é partilhada anualmente, num seminário de “Pastoral Urbana”, que se realiza em setembro, desde 1992, com
outras Arquidioceses como São Paulo e Campinas (que promoveram a iniciativa junto com Belo Horizonte) e Curitiba,
Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Rio de Janeiro...

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Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio

ralmente em janeiro, em bairros impregnar não apenas os “novos apoiada pelos grupos de fiéis tra-
periféricos (como Taquaril, Rosa- movimentos religiosos”, mas dicionalistas e nostálgicos (que
neves ou Cafezal...). Outra ini- também o próprio universo ca- não são poucos, recrutados en-
ciativa importante, embora ain- tólico. É ainda cedo para dizer tre os muitos que a modernidade
da de dimensões modestas, é a quais rumos tudo isso tomará e desiludiu ou prejudicou); é a
extensão das pastorais sociais, quais serão as conseqüências pa- continuação das atitudes de uma
particularmente ligadas a Cam- ra a Igreja-instituição. Mas não Igreja perseguida, que chegaram
panhas da Fraternidade: a de é cedo demais para prestar mais às suas expressões mais fortes
1993, sobre Moradia, deu origem atenção (do que a pastoral tri- nos países comunistas e daí re-
a um trabalho de apoio aos sem- dentina, preocupada acima de percutiram sobre todo o catoli-
casa, trabalho que continua; a de tudo com a doutrina e a discipli- cismo recente; 2) a Igreja poderá
1995, sobre os Excluídos, deu ori- na) às pessoas, para acolhê-las fragmentar-se numa multiplici-
gem a uma multiplicidade de com espírito evangélico, com es- dade de grupos ou comunidades
iniciativas e a uma revisão geral pírito de abertura e solidarieda- de base, com grande autonomia
das obras sociais das paróquias, de, com sensibilidade humana e pouca coesão entre si, o que
visando a uma melhor adequa- ao menos! provavelmente enfraqueceria a
ção das mesmas às necessidades presença pública da Igreja na so-
reais, sobretudo às necessidades ciedade, embora atendendo a
novas ou emergentes.
Perspectivas: até desejos individuais de experiên-
Todas as iniciativas assinala- onde irá a cias religiosas comunitárias ou
das prolongam o que, substan- renovação? “emocionais”; é uma tendência
cialmente, a Igreja no Brasil foi que, de fato, já avançou e já mos-
descobrindo e assumindo desde Sobre os rumos da Igreja no trou seus limites em alguns paí-
os anos ‘70: a formação de gru- futuro é possível apenas imagi- ses da Europa Ocidental; 3) a
pos e pequenas comunidades, a nar algo. O destino da Igreja em Igreja aceitará um forte pluralis-
redescoberta da Bíblia e sua lei- Belo Horizonte não dependerá mo interno e administrará seus
tura a partir da vida de hoje, a apenas dela mesma, mas das conflitos, mantendo uma auto-
pastoral do serviço e o empenho transformações em toda a Igreja ridade central de referência e, ao
pela promoção humana ou soci- Católica. Alguns sociólogos for- mesmo tempo, reconhecendo
al. Mas não está ausente, especi- mularam três hipóteses alterna- ampla autonomia às comunida-
almente nos anos mais recentes, tivas: 1) a Igreja poderá tentar re- des locais e mesmo a grupos de
a preocupação de compreender forçar sua centralização e sua dis- orientação diferente (como, de
e atender à nova religiosidade, à ciplina, fechando-se novamente fato, aconteceu na Igreja antiga,
espiritualidade – às vezes mar- dentro dos “bastiões” que H. Urs embora num contexto muito di-
cadamente subjetivista, que bus- von Balthasar 27 queria abater ferente do atual, e acontece em
ca mais a felicidade do que a as- desde os anos ‘50, permanecen- parte nas Igrejas Orientais).
cese – que parece sempre mais do numa atitude antimoderna, A curto prazo, pode-se até

27
O livro de Hans Urs von BALTHASAR foi publicado em 1952 e os bastiões eram os que separavam a Igreja do “mundo”. Bal-
thasar (nascido na Suíça, em 1905), excluído dos peritos do Vaticano II porque demasiadamente “avançado”, acabou eleito
cardeal em 1994, pouco antes da morte.

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Alberto Antoniazzi

pensar – com Peter Beyer (1994, nomia dos diversos grupos. O se ainda concentra quase todos
p. 395-419) – que a solução fun- clero, ao contrário, não tanto por os seus recursos humanos nas
damentalista ou de defesa in- decisão ou qualidades pessoais, paróquias, sem criar novas estru-
transigente do passado tem mais mas pela situação estrutural em turas e funções para cuidar dos
probabilidades de prevalecer, que se encontra, tem mais difi- problemas urbanos, que se colo-
mas que – a longo prazo – é a culdades para mudar no senti- cam no nível da cidade e da me-
solução mais pluralista e ecumê- do que a evolução do catolicis- trópole (com algumas exceções
nica, capaz de reconhecer e acei- mo parece exigir. Os padres es- – como no campo da comunica-
tar as diferenças, que tem chan- tão sobrecarregados de traba- ção – mas que são exatamente...
ces de se afirmar. De imediato, a lhos, inclusive burocráticos, por exceções, não regra).
solução mais inteligente – e tal- uma excessiva centralização das Sem uma redistribuição das
vez mais conatural ao catolicis- funções eclesiais no clero e pelo responsabilidades no interior da
mo mineiro – é a de evitar os ex- excessivo número de fiéis que re- Igreja-instituição, dificilmente
tremismos e apostar na convi- correm a eles.28 Nessas condi- ela poderá dar respostas adequa-
vência pacífica e no diálogo. ções, o grande risco – nas paró- das aos desafios do novo milênio
A tarefa, contudo, não pare- quias, mas também nos colégi- que se aproxima. Mas o catolicis-
ce fácil. O “povo de Deus”, os ca- os, universidades, seminários, mo não é apenas a hierarquia,
tólicos comuns – mais ligados à instituições assistenciais – é que nem a instituição eclesiástica,
instituição eclesiástica ou mais o padre se transforme mais num nem os católicos praticantes. Ele
inclinados às práticas do catoli- gerente administrativo, reduzin- impregna mais amplamente – em-
cismo popular e às devoções aos do ao mínimo o atendimento bora escondido, como as semen-
santos – parecem aceitar o plura- propriamente “pastoral” e espi- tes na terra – a população da capi-
lismo sem grandes problemas e ritual, sobretudo o atendimento tal centenária e mineira. Que fru-
desejar uma renovação da Igre- individual ou personalizado. tos dará? Isto depende do Espíri-
ja no sentido de uma maior di- Além disso, não se pode deixar to, mais do que da terra. E o Espí-
versidade e de uma maior auto- de observar como a Arquidioce- rito sopra onde e quando quer.

28
Na Arquidiocese de B.H., pode-se calcular que, geralmente, um pároco atenda a cerca de 1.500 fiéis assíduos às práticas
religiosas, outros tantos com prática esporádica, e mais 10 ou 15.000 habitantes da paróquia, afastados das práticas religio-
sas, mas que mesmo assim aguardam a prestação de algum serviço e o anúncio do evangelho.

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Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio

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Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 69-85, out. 1997 85


Elisabeth Guerra Parreiras Baptista Pereira; Herbe Xavier

IMAGENS DA BELO HORIZONTE


DE PEDRO NAVA

Elisabeth Guerra Parreiras Baptista Pereira


Departamento de História – PUC•Minas
Herbe Xavier
Departamento de Geografia – PUC•Minas

Para sempre. Jamais poderei esquecer-me de ti Belo Horizonte, de ti nos


teus anos vinte. E, se isso acontecer, que, como no salmo, minha mão direita
se resseque e que a língua se me pregue no céu da boca. Belo, belo Belorizonte.
(Nava, 1976, p. 306-307)

C
RESUMO om menos de cem anos, Belo Horizon-
Este ensaio propõe-se a recuperar te, criada sob a influência das idéias
a imagem de uma Belo Horizonte
que se perdeu no tempo. Utiliza co- de progresso e de modernidade do
mo fonte a obra memorialística de
Pedro Nava, buscando integrar pensamento positivista dos primeiros anos da
conceitos, métodos, terminologia e
procedimentos da história e da geo- República, tem demonstrado uma acentuada
grafia para entender um tempo e
um espaço vividos. tendência autofágica, num processo compul-
sivo de renovação e superação contínuas, o que
constitui uma ameaça corrosiva à sua memória histórica e material. Por
isso, é urgente guardar algo do que se foi, para que suas imagens não
se percam irremediavelmente.
Pedro Nava descreveu em suas memórias a sua Belo Horizonte,
num tempo (1910/1930) e espaço vividos intensamente, expressos com
forte carga afetiva, cheia de encantamento e aguçada observação críti-
ca. Suas memórias são de uma Belo Horizonte “congelada”, ponto de
referência para se perceber o quanto a cidade perdeu de suas caracte-
rísticas iniciais, na efemeridade de suas coisas.
Essa efemeridade já fora percebida e denunciada por Nava ao lon-

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

go de seus textos memórias, sociedade nas suas diversas e ri- vação de Belo Horizonte nas
como Chão de ferro. cas faces. suas primeiras décadas.
A transformação de uma obra “Interrogar a sociedade, pôr-
A beleza da Praça da Estação, a ári- literária em fonte histórica é a se à sua escuta, esse é o primeiro
da subida da Caetés, os oito renques
de árvores da Afonso Pena: no cen-
tarefa do historiador, que ao in- dever do historiador ” (Ferro,
tro da avenida corriam duas filas de quirir e extrair dela alguma for- 1992, p. 76). Assim, o que se quer
palmeiras imperiais, as primeiras ma de representação do passa- é interrogar Pedro Nava, como
sacrificadas. Nos passeias, nas sar-
do, confere à obra o caráter de representação individual de
jetas, outras filas vegetais. Entre es-
tes e as palmeiras, a teoria gloriosa fonte primária de grande valor, uma sociedade, pôr-se a escutá-
dos ficus recentemente assassinados. porque logo está superada a lo para reconstituir um comple-
idéia de que a imaginação é xo contexto espaço-temporal e
Morte! aos prefeitos, cuja carapaça
lhes impede a percepção das paisa- “uma faculdade produtora de entender que as cidades são a
gens impregnadas de passado das ilusões, sonhos e símbolos, e que expressão da subjetividade indi-
cidades que eles desgovernam. (Na-
pertencia sobretudo ao domínio vidual e coletiva dos homens
va, 1986. p. 148)
da arte, (...) (Baczko, 1985. p. 296). que nelas vivem. Mesmo apoi-
Os contestatórios anos sessenta ando-se numa obra memorialís-
imprimiram uma outra conota- tica e reconhecendo que a me-
A obra literária
ção a essa palavra. A imaginação mória tem certa dose de autono-
como fonte primária é hoje tida como construção de mia, o que lhe garante ampliar,
da história símbolos de uma sociedade no reduzir, violar a ordem cronoló-
afã de se entender e se fazer en- gica das efemérides, impor, em-
Na perspectiva da nova his- tendida, expressa sobretudo baçar a reavivar os fatos, sabe-se
tória, tomar a obra memoria- uma representação coletiva, que que ela guarda uma correspon-
lística de Pedro Nava como do- está longe de ser apenas um dência de “realidade” com o
cumento-monumento de uma “floreamento” da realidade ma- objeto representado.
Belo Horizonte que se perdeu no terial, ao contrário, “o imaginá-
tempo é mais do que uma tenta- rio social informa acerca da reali- A viagem da memória não tem pos-
sibilidade de ser feita numa só dire-
tiva de representar o passado. É dade”, (...) (Baczko, 1985, p. 296)
ção: a do passado para o presente.
uma tentativa de se entender a Segundo Le Goff (1976), as Não é a sós que velejamos para os
História como uma possibilida- obras literárias e artísticas são anos atrás em busca dos nossos eus.
Levamos conosco uma experiência
de de garantir a cada persona- consideradas importantes fontes
não inarranciável que ela é elemen-
gem-testemunho (inserido num históricas, porque constituem to de deformação que nos obriga a
tempo e num espaço) o direito à uma representação dos fenôme- agir com as nossas recordações como
voz e ao reconhecimento, é re- os primitivos que pintavam a Nati-
nos objetivos, são “documentos
vidade, o Pretório e a Ressureição,
conhecer nele e em sua obra uma da imaginação”. dando à Virgem, a São José, a Nosso
expressão individual (uma me- A História que se quer produ- Senhor, a Pilatos e aos centuriões,
mória individual como que uma roupas medievais em ambientes ita-
zir não tem a veleidade de se ver
lianos, flamengos e espanhóis. (Na-
encarnação de memória coleti- como “total”, mas pretende se va, 1986, p. 282)
va), capaz de reconstruir de for- ocupar dessa obra memorialís-
ma estética e crítica, ao mesmo tica de talento e representativi- Diversos estudos, especial-
tempo, a complexidade de uma dade como um lugar de obser- mente aqueles ligados à historio-

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 86-100, out. 1997 87


Elisabeth Guerra Parreiras Baptista Pereira; Herbe Xavier

grafia saída da École des Anna- ao atribuir aos eventos funções dife- São acolhidos os sábios “con-
rentes como elementos da história,
les, permitem-nos transitar por selhos” da história nova, que res-
de maneira a revelar a coerência for-
diversas áreas na inteção de bus- mal de um conjunto completo de salta uma forte aliança entre si e
car uma representação do pas- eventos como processo compreensí- a geografia, porque busca simul-
sado. Essa historiografia indica- vel, com princípio, meio e fim discer- taneamente o tempo e o espaço
níveis. (White, 1995, p. 221)
nos novos objetos, abordagens e na construção de um tempo-es-
problemas, permitindo-nos re- O fundamento norteador paço vividos. Este estudo é uma
ver o fato histórico sob um novo deste estudo é, portanto, buscar possibilidade de realização des-
prisma (por sinal, mais vivaz), e na forma de um discurso narra- sa construção.
escolher uma variedade de cami- tivo em prosa e em algumas ima- A geografia observa e analisa
nhos e de fontes, não considera- gens fotográficas a montagem de aspectos do meio ambiente na
dos como tais até bem pouco uma representação do passado escola e nas categorias em que
tempo. belo-horizontino a partir de um comumente são apreendidos na
E mais, hoje, o historiador po- “achado” literário de Nava. vida diária. O temperamento de
de se ver livre dos velhos limites Quanto às imagens fotográ- seus praticantes a fazem univer-
ortodoxos da história-ciência, in- ficas, tem-se a consciência de que sal e multifacetada. (Lowenthal,
tercambiando com outras ciên- cada uma delas não representa 1982)
cias humanas e sociais e com ou- a Belo Horizonte de Nava, mas Segundo Dardel (1954), ciên-
tras construções culturais do ho- de tantos fotógrafos que se deti- cia geográfica pressupõe um
mem como a arte e a literatura. veram na tarefa de guardar ima- mundo que pode ser entendido
No momento, segundo Le gens iconográficas dessa cidade geograficamente, em que o ho-
Goff (1995), ao longo do tempo. A câmara mem pode sentir e conhecer a si
não é um objeto frio e imparcial, como ligado à terra. A ligação
... fala-se da crise da história; crise por ela passam o foco, o jogo de com a terra pressupõe experiên-
há, mas creio que se trata sobretudo
luz e sombra, o senso estético e cias de lugares, espaços e paisa-
de uma crise das ciências sociais, e
se a nova história nela está envolvi- a chama afetiva que cada fotó- gens, de um mundo vivido,
da é provavelmente porque foi a que grafo quis imprimir à sua cons- aquele mundo de ambigüida-
mais se compreendeu com essas ci-
trução imagética. As fotografias, des, comprometimentos e signi-
ências. Isso merece um exame aten-
to, e não creio que a solução possa se aqui usadas como discurso ico- ficados nos quais estamos inex-
encontrar num fechamento da his- nográfico, não são imagens na- tricavelmente envolvidos em
tória em si mesma. (p. 8)
vianas, são apenas uma tentati- nossas vidas diárias. É um mun-
va de dar visualidade, uma cer- do em acentuado contraste com
Nesse universo tão amplo de
ta concretude, a uma Belo Hori- o universo da ciência, com seus
possibilidades, caminhos e fon-
zonte que não existe mais, per- padrões e relações cuidadosa-
tes, o que cabe ao pesquisador
mitindo-nos acompanhar o pro- mente observados e ordenados
da história?
cesso ágil de mudança do espa- (Relph, 1979). Assim, cabe aqui
ço, numa sucessão de paisagens uma interação tempo-espaço na
... explicar o passado através do
“achado”, da “identificação” ou de e lugares das primeiras décadas construção do tempo-espaço vi-
“descoberta” as “estórias” que jazem desse lugar urbano, hoje cente- vidos por Nava, na Belo Hori-
enterradas nas crônicas, (...) o histo-
nário. Os pontos de parada es- zonte das primeiras décadas.
riador arranja os escritos da crônica
dentro da hierarquia de significação tão nas memórias de Pedro Nava. Este estudo, tendo como su-

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

porte documental as “Memóri- Percepção da sidera que a atitude assumida


as” de Pedro Nava, tentando re- frente ao mundo é formada por
paisagem geográfica
construir a história de uma cida- longa sucessão de percepções e
de, transita perigosamente na
da Belo Horizonte de experiências. As atitudes ado-
certeza de que a memória e a his- de Pedro Nava tadas pelas pelas pessoas em re-
tória nem sempre têm uma con- lação à paisagem espelham seus
vivência tranqüila; percebem-se Os estudos sobre a percepção interesses e valores e refletem
muitas vezes entre elas alguns da paisagem geográfica desen- sua visão do mundo. Trata-se de
pontos de incompatibilidade e volveram-se devido à preocupa- uma experiência conceitualiza-
até mesmo de oposição. ção no sentido de se conhecer e da, parcialmente pessoal e em
Memória, história, longe de serem
explicar as atitudes e valores da grande parte social.
sinônimos, tomemos consciência de população frente ao espaço geo- Neste estudo a noção de pai-
que tudo opõe uma a outra. A me- gráfico. Através da experiência, sagem será considerada em sen-
mória é vida, sempre carregada por
grupos vivos e, nesse sentido, ela está procura o homem conhecer as tido o mais abrangente possível,
em permanente evolução, aberta à paisagens de seu meio ambien- como concepção pluridimensio-
dialética da lembrança e do esqueci-
mento, inconsciente de suas mani- te. Aprende formas de ação para nal englobando componentes
festações sucessivas, vulnerável a seu uso, sua valorização e, quan- naturais e construídos, visíveis e
todos os usos e manipulações, sus-
ceptível de longas latências, de repe- do necessário, para assumir ati- não visíveis, tudo que está ao al-
tidas revitalizações. A História é a tudes em relação à paisagem. cance de nossos sentidos. A pai-
reconstrução sempre problemática e
incompleta do que não existe mais.
Isso concorre para que a com- sagem se constitui de um con-
(Nora, 1993, p. 9) preensão cognitiva da paisagem junto de acidentes geográficos,
se torne complexa. As relações mas, além de sua base física, es-
Mas é preciso recompor essas
das pessoas com a paisagem que tão nela incluídos todos os seres
imagens da memória para dar
as rodeia processam-se, também, vivos que aí habitam, inclusive
historicidade a um passado belo-
a partir da percepção que dela o homem. (Burle Marx, 1975)
horizontino que não é mais. É
se tem, das atitudes tomadas e Sabe-se que os fatores cultu-
preciso desvendar o enigma que
dos valores a ela atribuídos. São rais e os componentes naturais
é a cidade ou a cidade de cada
extremamente variadas as ma- da paisagem interferem na visão
um. Cada cidade “real” é a sínte-
neiras de perceber e avaliar a pai- de mundo. Os conceitos de cul-
se de uma multivariedade de
sagem. Do mesmo modo, são in- tura e paisagem se superpõem,
imagens construídas através da
constantes as atitudes das pes- do mesmo modo que os de ho-
percepção tempo-espaço de ca-
soas, pois refletem variações in- mem e natureza, constituindo
da um; reconstruir essa história
dividuais, bioquímicas, psicoló- um todo. Para se conhecer a pre-
significa vasculhar o código de
gicas, antropológicas e, de modo ferência ambiental de uma pes-
cada memória como uma encar-
relevante, seu estilo de vida. Se- soa, mister é examinar sua he-
nação da memória coletiva.
gundo Tuan (1980), os significa- rança biológica, sua educação,
Sinto o tempo parado em cada pedra dos da percepção, de atitudes e seu trabalho e seus arredores fí-
que piso.
O passado me envolve, pairo sobre as
de valores se superpõem e se tor- sicos.
igrejas e assisto à ressurreição dos nam claros dentro do próprio A pauta fundamental para a
mortos. contexto expresso em cada um percepção da paisagem geográ-
Sou apenas memória.
(Moura, apud Nava, 1983, p. 369) desses processos. Esse autor con- fica é o espaço onde se situam as

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 86-100, out. 1997 89


Elisabeth Guerra Parreiras Baptista Pereira; Herbe Xavier

habitações, os caminhos e as re- mento do corpo do sujeito. Col- mite a transposição daquilo que
giões. É o mesmo espaço onde lot (1986), com base em Vexhüel, foi percebido em outros lugares.
os homens caminham, valori- destaca três zonas distintas para A percepção deve ser encara-
zam as paisagens e passam as esclarecer a maneira como o es- da como fase da ação exercida
suas vidas. paço geográfico é percebido. A pelo sujeito sobre a paisagem,
Tuan (1980) afirma que o es- primeira zona corresponde ao pois as atitudes não se apresen-
paço geográfico é limitado e es- espaço imediato, situado até o tam justapostas, encadeadas
tático, não passando de uma raio de aproximadamente três umas às outras (Oliveira, 1979).
moldura para os objetos. A na- metros em torno do sujeito. A Assim sendo, o fenômeno per-
tureza consiste de objetos discre- seguir vem o espaço profundo, ceptivo não pode ser estudado
tos e de fundos envolventes e onde reinam as constâncias per- isoladamente, nem pode ser
contínuos, como a luz e a tempe- ceptivas até um raio de 8 km do apartado da vida das pessoas.
ratura. A visão tridimensional do sujeito e, mais adiante, o espaço Ao se processar, a percepção,
homem lhe permite a percepção longínquo, onde as constâncias além de permitir a interação do
da paisagem como constituída perceptivas se perdem. indivíduo com a paisagem, per-
de objetos contra um fundo in- O espaço imediato corres- mite também que sejam elabo-
distinto. ponde ao campo visual geográ- radas respostas apropriadas às
Considera o autor que as ex- fico do sujeito, no qual, segun- mudanças e às incertezas que o
periências com as paisagens do Gibson (1950), os componen- mundo oferece.
exercem influência na percep- tes paisagísticos que o constitu- Neste sentido, a experiência
ção. Pessoas com antecedentes em são predominantemente e a visão do mundo desempe-
socioeconômicos e aspirações di- sentidos. O espaço profundo nham importante papel no de-
ferentes avaliam as paisagens de corresponde ao mundo visual, senvolvimento da percepção,
modo distinto. Por outro lado o de onde, segundo o mesmo au- pois o contato direto com a pai-
autor atribui ênfase ao efeito da tor, descortina-se a paisagem sagem permite ao indivíduo
paisagem na percepção e na vi- que, pela variedade de objetos e construir seu espaço perceptivo,
são de mundo. formas apresentados, pode ser o que justifica a importância da
A idéia de que cada indivíduo considerado o espaço por exce- percepção geográfica no estudo
estrutura seu espaço geográfico lência da percepção visual. da paisagem, resgatando sua
em torno de si próprio parece Na dificuldade de perceber memória ou tratando-se de seu
universal. Os seres humanos, in- todos os seus componentes, dar- processo de decomposição.
dividualmente ou em grupo, se-á nesse espaço profundo uma Para Tuan (1980), a percepção
tendem a estruturar a paisagem seleção daquilo que é percebido. da paisagem é uma arte. Sua
tendo o “self ” como centro. Com Já o espaço longínquo, que avaliação envolve a cultura e é
isso, a paisagem se orienta por corresponde a um prolonga- influenciada pela arquitetura ou
uma série de valores irradiados mento do mundo visual, não é pela literatura. A paisagem é
da própria pessoa ou de seu gru- percebido. Porém, graças às uma combinação de pontos de
po. atividades perceptivas, que esta- vista objetivos e subjetivos, que
Em linha fenomenológica, o belecem um contínuo entre a tem lugar no “olho da mente”.
espaço geográfico perceptivo é percepção e a inteligência, pode- Ela se nos apresenta mediante
orientado como um prolonga- se inferir que esse processo per- um esforço de imaginação, exer-

90 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 86-100, out. 1997


Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

cida sobre uma forma altamen- namento viável com a natureza. nitamente grande mosaico que
te selecionada, a partir de um Assim, a paisagem é uma mistu- é o mundo.
sentido determinado. ra de homem e natureza. Finalmente, a interpretação
Compreender um lugar, diz Como artefato, considera-se o da paisagem como estética enfa-
o autor, envolve tempo e refle- impacto do homem sobre a na- tiza sua qualidade panorâmica.
xão. Aprendemos desde criança tureza. Muitas pessoas vêem em Meinig considera ainda que
a perceber sempre mais com os primeiro lugar o registro do ho- esses dez modos de interpretar
olhos da mente. As informações mem em todas as coisas. A terra a paisagem não esgotam a pos-
dadas pela paisagem motivam o se identifica como uma platafor- sibilidade de existência de ou-
pensamento. Entretanto, as res- ma sobre a qual tudo é conseqü- tros. Além disso, esclarece que
postas dadas às informações que ência da ação do homem. também vemos, em comum,
a paisagem oferece variam sig- Como sistema, percebem-se as muitos elementos da paisagem,
nificativamente de uma pessoa paisagens num conjunto, não se como casas, monumentos, estra-
para outra. considerando os fatos isolados. das, árvores ou elevações, carac-
As diversas maneiras pelas Como problema, tende-se a terizados pela forma, dimensão
quais as pessoas interpretam perceber ou inferir em uma cena e cor. Atribuímos-lhes significa-
uma paisagem estão contidas a existência de problemas como do a partir da associação de fa-
nos estudos de Meinig (1979). encostas erodidas, cidades ina- tos que ajustados, propiciam
Seus estudos basearam-se em dequadas, decomposição da pai- idéias coerentes.
entrevistas com um pequeno sagem. Lewis (1979), após observar
mas variado grupo de pessoas A paisagem é interpretada sistematicamente diversas paisa-
reunidas, olhando no mesmo como riqueza por aquelas pesso- gens, formulou alguns axiomas,
instante para a mesma direção. as habituadas a atribuir um va- como guias para interpretação
Essas pessoas não interpretaram lor monetário àquilo que enxer- de cenas.
da mesma forma a mesma cena, gam. Um desses axiomas conside-
podendo-se identificar dez enfo- Como ideologia, a paisagem ra a paisagem como um indício
ques diferentes da paisagem: na- representa a combinação de sím- de cultura. A cultura de uma na-
tureza, hábitat, artefato, sistema, bolos de uma sociedade, símbo- ção reflete-se em suas paisagens,
problema, riqueza, ideologia, los de valor, ideais ou o funda- que evidenciam o tipo de povo
história, lugar e estética. mento filosófico da cultura. que as construiu.
A interpretação da paisagem Como história, a paisagem é Um outro axioma é o da iden-
como natureza destaca os ele- um registro de experiências do tidade cultural e da igualdade de
mentos físicos, atribuindo pou- passado. Para alguns espectado- paisagens, pelas quais todos os
ca importância à ação do homem res, tudo que se manifesta dian- elementos da paisagem refletem
na cena e restituindo a natureza te de seus olhos é um complexo aspectos da cultura de um povo.
à sua primitiva condição. e cumulativo registro do traba- O axioma histórico revela que
Pelo enfoque do hábitat, a pai- lho do homem e da natureza uma paisagem é o registro do
sagem é vista como morada do desse lugar. passado no qual os hábitos, a tec-
homem. Aquilo que se percebe Como lugar, considera-se a nologia, as riquezas, as ambições
é o trabalho contínuo dos gru- paisagem familiar; toda ela é e as preferências eram diferen-
pos humanos para um relacio- uma parcela individual do infi- tes dos hodiernos.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 86-100, out. 1997 91


Elisabeth Guerra Parreiras Baptista Pereira; Herbe Xavier

Assim, consideradas essas for- e visível, e são também partes de Até 1910 o povoamento de
mas de interpretação da paisa- nossa própria compreensão do Belo Horizonte foi bastante dis-
gem vêm ao encontro da visão mundo vivido. O conceito de persivo. De 1910 a 1930, verifi-
de Santos (1982), segundo o qual mundo vivido se define a partir cou-se a ocupação dos vazios da
a paisagem é uma combinação do sentimento do homem de área. Deu-se a expansão em to-
de (objetos naturais e sociais estar ligado à terra. das as direções, exceto na sul,
mostrando a acumulação de ati- Pedro Nava mantém com as barrada pela Serra do Curral.
vidades de muitas gerações. Sua paisagens que descreve relações O crescimento de Belo Hori-
fisionomia reflete mudanças da íntimas e intensas, pois suas ex- zonte passou a ser mais acelera-
economia, das relações sociais ou periências humanas não se sepa- do, com o surgimento de vilas
da política. Assim, a paisagem de ram da paisagem. operárias no período entre guer-
uma cidade é o resultado da acu- Belo Horizonte foi uma cida- ras, quando foram implantadas
mulação de tempos, sendo sua de planejada com o traçado em nos municípios vizinhos indús-
forma alterada, renovada, supri- forma de tabuleiro de xadrez, so- trias de grande porte, ligadas a
bre o qual foi desenvolvido um
mida ou mantida em permanen- extração de minérios.
sistema de avenidas orientado
te modificação, a fim de acom- Com a industrialização e a ex-
num ângulo de 45 graus, cortan-
panhar as transformações da so- pansão urbana, multiplicaram-
do quarteirões em diagonal e
ciedade. Na obra de Pedro Nava, se os bairros periféricos, caren-
possibilitando a formação de
as experiências dos lugares são tes de infra-estrutura e construí-
praças nos cruzamentos. A plan-
carregadas de significados, valo- dos à revelia de qualquer plano
ta da cidade foi concebida como
res afetivos intensos, conheci- diretor.
modernizante para a época.
mentos que abarcam, simultane- Registra-se atualmente em
O plano Original de Belo Ho-
amente, o sentimento, a familia- Belo Horizonte um crescimento
rizonte dividiu-a em três setores:
ridade e a intimidade. Nava, ao periférico acelerado que se rela-
o urbano, o suburbano e o rural.
escrever sobre Belo Horizonte, ciona à renda familiar mais bai-
O setor urbano corresponde ao
cidade por ele vivida, transmitiu trancado delimitado pela Aveni- xa e transforma a paisagem da
experiências humanas para to- da do Contorno. Foi cuidadosa- cidade.
dos nós que hoje a vivenciamos. mente planejado, com ruas e A história revela que a paisa-
Em todas as sociedades, an- avenidas largas, onde se instala- gem é o registro de um passado
tigas ou modernas, os laços en- ram o centro administrativo, o no qual os hábitos, tecnologia,
tre o homem e a paisagem têm comercial e os bairros residen- ambições e preferências eram di-
sido percebidos e experimenta- ciais. Para o setor suburbano, de- ferentes dos atuais.
dos no contexto de transforma- terminou-se que as ruas teriam Contemplar uma cidade é
ções espaciais e temporais com apenas quatorze metros de lar- sempre algo agradável. A cada
significados profundamente va- gura, incluindo as calçadas, pois, instante existe mais do que a vis-
riados. Projetamos nas paisagens sendo ladeadas por chácaras e ta alcança, mais do que o ouvi-
os símbolos de nossas histórias e quintas residenciais, tornava-se do possa ouvir, uma composição
mitos. (Lima, 1994) desnecessário um espaço para a ou um cenário à espera de ser ob-
Os símbolos atribuídos à pai- arborizacão. O setor rural, evi- servado. Assim Lynch (1960) se
sagem representam valores que dentemente abrigava as ativida- expressa ao estudar a imagem
ultrapassam a realidade objetiva des agrícolas. das cidades, acrescentando que

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

todas as pessoas possuem nume- O outro mundo é o vivido so- cia, a paisagem como centro de
rosas relações com as partes da cial ou culturalmente, compre- significados no espaço, e o lugar
cidade e que a sua imagem está endendo os seres humanos com como centro de significados no
impregnada de memória e sig- toda a ação e interesses, traba- espaço e na paisagem. As rela-
nificados. lhos e sofrimentos. ções das pessoas com o mundo
O estudo de Lynch apóia-se O mundo vivido social é o da dependerão de um sistema de
na qualidade visual das cidades. intersubjetividade, linguagem correspondência entre os dados
A imagem, conceito central de comum, contato com outras pes- sensoriais, obtidos a partir de um
seu trabalho, é o resultado de um soas, instrumentos, edifícios e mesmo conjunto de objetos.
processo bilateral, entre o obser- obras de arte, tudo o que não é Com efeito, o espaço perceptivo
vador e a paisagem. Varia con- meramente predeterminado, dependerá não só das caracterís-
forme os significados que lhe mas usado, transformado e ma- ticas do mundo físico no qual as
atribuem as pessoas. Situações nipulado. Há poucos relatos so- pessoas estão inseridas, mas
como a cultura e a familiaridade bre as coisas do mundo vivido também dos sistemas sensoriais
com os objetos interferem na
cultural (espaços, ruas, edifícios, de que dispõem, e através dos
atribuição de significados.
paisagens), nas quais passamos quais entrarão em comunicação
Para Lynch, a identidade, a
a maior parte da nossa vida diá- com o mundo físico.
estrutura e o significado com-
ria e que estão cheias de ideais e A paisagem vivida é o resul-
põem a imagem mental. Em
de significados para nós, pois tado das imagens que as pesso-
uma paisagem legível, os objetos
estamos envolvidos com elas. as têm dela, resultado que é in-
podem ser reconhecidos, possi-
Na obra memorialística de fluenciado pelas condições psi-
bilitando sua distinção de outros
Pedro Nava vislumbram-se pai- cológicas, físicas, individuais e
objetos. É assegurada também
sagens de Belo Horizonte por ele da experiência de vida, acresci-
uma relação estrutural ou espa-
vivenciadas. Seus escritos retra- das das heranças culturais, indi-
cial dos objetos com a paisagem,
tam informações carregadas de viduais e coletivas. As imagens
para a qual os objetos podem ter
significados práticos ou afetivos. emoção, de afetividade. Fenô- percebidas aparecem como uma
Acrescenta-se de acordo com menos como as ligações afetivas reprodução na mente das pesso-
Relph (1979), com base em Hus- com o lugar constituem substân- as. Por vezes, podem ser tão cla-
serl, a relevância de dois compo- cia significativa sobre o nosso ras vividas detalhadas que per-
nentes significativos estreita- envolvimento no mundo e de- mitem um exame mental e for-
mente inter-relacionados. Um vem ser compreendidos como necem detalhes de fatos origi-
deles é o mundo predetermina- realmente são. nais, importantes para a vida do
do ou natural, de coisas, formas Uma cidade é vista e experi- homem.
e de outras pessoas, as quais pos- mentada não como a soma de Vivemos na paisagem, nela
suem modos variados de apa- objetos, mas como um sistema projetamos nossa personalidade
rência no tempo e no espaço. É de relações entre o homem, seu e a ela somos ligados por limites
o mundo que vivemos e senti- espaço e seus focos de interesse. emocionais. Não se refere exata-
mos, mas no qual estamos ape- Segundo Relph (1979), três fenô- mente à percepção, aos sentidos
nas implicados, porque se cons- menos inter-relacinados da ex- ou às representações, mas à vida.
titui numa situação necessária periência constituem o mundo E porque ela é vivida, deve ha-
que nos é dada. vivido: o espaço como experiên- ver tantas paisagens quantas fo-

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Elisabeth Guerra Parreiras Baptista Pereira; Herbe Xavier

rem as experiências espaciais; Diante disso, recuperar a pai- a cidade, construindo ou produ-
ou, em outros termos, nossa sagem da Belo Horizonte de zindo sua transformação proces-
consciência da paisagem se mo- Pedro Nava é recuperar os valo- sam-se também a partir da per-
difica. Suas qualidades e signifi- res que ele atribuiu às suas pai- cepção que dela têm, das atitu-
cados mudam para nós. sagens. des nelas tomadas e através dos
Com nossos sentidos pene- Neste sentido, o presente es- valores a ela atribuídos. A expe-
tramos e olhamos dentro da pai- tudo fundamentou-se no traba- riência e a visão do mundo de-
sagem, movemo-nos através de- lho de Lynch (1960), um arqui- sempenham importante papel
la, ouvimos e cheiramos através teto que lançou novas maneiras no desenvolvimento da percep-
dela (Relph, 1979). As paisagens de se planejar uma cidade, uma ção, pois o contato direto com as
que encontramos em nossos cidade apoiada na percepção de partes da cidade permite às pes-
mundos vividos são, acima de seus usurários, uma cidade legí- soas construírem seu espaço
tudo, paisagens construídas, fei- vel, com elementos marcantes perceptivo urbano, favorecendo,
tas pelo homem e, conseqüente- no cenário para que as pessoas assim, a elaboração de respostas
mente, comunicam intenções e pudessem ter facilidade de ori- às paisagens que as cidades ofe-
significados humanos. Da mes- entação e de locomoção. recem.
ma forma, a cidade é uma reali- Segundo Lynch, a cidade não A construção da imagem é
dade geográfica tendo as ruas é apenas um objeto vivido por um processo complexo, que tem
como centros e cenários para a muitas pessoas das mais diferen- como ponto de partida a percep-
vida de todos os dias, onde o tes classes sociais e pelos mais ção, fenômeno físico e inteligen-
homem é um transeunte, um variados tipos de personalida- te que coloca o ser humano di-
residente, um admirador. (Dar- des. A cidade é sobretudo o pro- ante de algo externo a ele pró-
del, 1954) duto de muitos construtores, prio, fazendo com que ele cons-
Assim, reforça-se o fato de que constantemente modificam trua de maneira inteligente, mas
que contemplar uma cidade é sua estrutura. Assim, a Belo Ho- nem sempre consciente as ima-
sempre agradável. Entretanto, o rizonte de hoje vem sofrendo a gens que se transformem em
que agora queremos contemplar corrosão do tempo e tem sua pai- lembranças. A percepção é um
é a paisagem da Belo Horizonte sagem transformada pela ação fenômeno humano do presente,
de Pedro Nava, uma cidade que de seus muitos construtores, da- isto é, realiza-se no aqui e agora.
fez parte de seu mundo vivido, queles que planejam suas mu- Não há possibilidade de se per-
ao qual o memorialista se ligava danças ou daqueles que espon- ceber o que aconteceu no passa-
como à terra. taneamente participam de sua do ou o que irá acontecer no fu-
Evidentemente, essa cidade expansão. Entretanto, se são inú- turo. O processo do passado é o
não existe mais. Só existiu no meras as transformações pelas da memória e o do futuro é a
mundo vivido de Pedro Nava. O quais a cidade vem passando, inferência.
que realmente existe é a Belo poderíamos dizer que mais nu- Acrescenta-se ainda como re-
Horizonte de cada um de nós, merosas ainda são as maneiras ferência aos trabalhos de Lynch
resultado da imagem que temos pelas quais as pessoas que parti- sobre a percepção das cidades a
dela, uma imagem carregada de cipam de sua construção a per- identificação dos elementos da
emoções e, sobretudo, de nossa cebem. imagem mental urbana: os tra-
maneira de ser no mundo. As relações das pessoas com jetos, os limites, os bairros, os

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

cruzamentos e os pontos mar-


cantes. A partir de tais marcos de
referência procuramos identifi-
car a Belo Horizonte de Pedro
Nava, falando de seu universo
geográfico, histórico, simbólico,
um verdadeiro arquivo de nos-
sa memória cultural.

Os quatro marcos de
referência na obra de
Pedro Nava
Rua da Bahia, 1927 (Arquivo do Museu Abílio Barreto)
Na obra de Nava, a percep-
ção de determinadas paisagens
da cidade foi tão viva, tão emoti-
vamente marcante que as ima-
gens formadas sob forte carga
afetiva ficaram como que sacrali-
zadas pela memória. Assim, a es-
colha dos quatro marcos referen-
ciais foi determinada pelo pró-
prio memorialista, tamanha a
grandeza e a carga significativa
que confere a estes lugares: a
Rua da Bahia, o Bar do Ponto, a
Praça da Liberdade e a Serra do
Curral. Em toda a extensão da
Rua da Bahia, 1997 (Foto: Marta Carneiro)
obra, há um volume enorme de
impressões-imagens sobre esses tro da elite politico-burocrata, – o “Bar do Ponto” – e o centro
lugares, traduzindo o que eles dos intelectuais, do homem co- do poder – a “Praça da Liberda-
realmente eram na memória do mum. de”. Nava a percorreu e a viveu
autor. Ali a sociedade desfila nos intensamente. Sua “Evocação da
Na rua da Bahia, verdadeira foyers dos cinemas, nos bondes Rua da Bahia” é uma verdadei-
coluna vertebral da cidade, rea- que sobem e descem mineira- ra ode a esse caminho-lugar. A
liza-se a complexidade da vida mente, nas festas profanas e re- Rua da Bahia é o trajeto.
social, política e cultural de Belo ligiosas e no simples transitar. É
Horizonte nos frenéticos anos aqui o elo de ligação entre o cen- ... endireita o corpo, levanta a cabeça
e começa a andar ritmadamente e a
20. Ali estão os pontos de encon- tro comercial e social da cidade
oscilar os braços como achava que de-

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Elisabeth Guerra Parreiras Baptista Pereira; Herbe Xavier

via aparecer na rua da Bahia. (Nava,


1982, p. 392)
... Vingaram depois Bahia a pé – na-
quele passo especial que só mineira
tem para subir ladeira. Passaram por
trás das secretarias. Mais um pouco
e estavam a sua porta. (Nava, 1982,
p. 81)
... Às vezes descia Bahia a pé, até o
Bar do Ponto. Visão de fachadas que
ficavam na minha lembrança como
cara de velhos amigos. (Nava, 1985,
p. 40)
... Todos os caminhos iam à rua da
Bahia (...) Da rua da Bahia partiam
vias para os fundos do fim do mun-
do, para os tramontes dos acaba-mi-
nas (..). A simples reta urbana (..).
Mas seria uma reta? ou antes, a cur- Vista da Serra do Curral, 1920 (Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte)
va? Era a reta, a reta sem tempo, a
reta. continente dos segredos dos in-
finitos, paralelos. E era a curva. A
imarcescível curva, épura dos pas-
sos projetados, imanência dos ciclói-
des, círculo infinito...
... mas jamais, ah! jamais sacudirá o
jugo do velho crepúsculo, daquela
tristeza da tarde morrendo varrida
de ventos, da lembrança submarina
dos fícus e dos moços que subiam e
desciam a Rua da Bahia. Não a Rua
da Bahia de hoje. A de ontem. A dos
anos vinte. A de todos os tempos, a
sem fim no espaço, a inconclusa nos
amanhãs. (Nava, 1986, p. 145)

Como marco-limite, procu-


rou-se desvendar a Serra do Cur-
Vista da Serra do Curral, 1997 (Foto: Marta Carneiro)
ral, referência que fecha a cida-
de em si própria e define seus
montanhosa, que durante mui- ma, a montanha diminuía, subíamos
horizontes. Nava, quando estu- até os íngremes que de tão, viravam
to tempo impediu a expansão
dou no Colégio Anglo-Mineiro numa parede, num muro em cima
urbana de Belo Horizonte na do qual corria a inacessível crista de
(hoje, o quartel do Corpo de
direção sul, foi tomada de assal- metal. (...) A vegetação era pouca
Bombeiros da PMMG) e morou naquele solo de ferro onde cintilavam
to pela urbanização acelerada e
no bairro da Serra, ainda nos pedregulhos e minérios em flor... A
indiscriminadamente ocupada. Serra, de longe parecia de veludo ...
seus primórdios, esteve muito
A Serra do Curral é o limite. De perto, tocada, era dura e áspera.
próximo da serra e pôde enten- (Nava, 1986, p. 180)
dê-la como intransponível e mis- Para trás era a Serra do Curral, cor
íamos além, para adiante dos cami- de violeta àquela hora da tarde. Era
teriosa. Essa imponente barreira nhos, tomávamos picadas ladeira aci- abrupta como uma parede, imensa e

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

um grande marco de referência.


Não se destaca apenas como um
local de encontro, mas apresen-
ta conotações mais amplas, como
se fosse um verdadeiro bairro. As
memórias de Nava registram ci-
tações como: “Moro no Bar do
Ponto”, “minha farmácia é pra-
ticamente no Bar do Ponto”, para
se referir a Rua dos Goitacazes,
à Avenida Afonso Pena ou à la-
deira da Rua dos Tupis. O Bar do
Ponto constitui um símbolo do
imaginário social de toda uma
Bar do Ponto, 1927 (Arquivo do Museu Abílio Barreto) época, entre os anos 10 e 30, de
toda uma geração que tinha aí
seu ponto de reunião, por onde
circulavam todas as informações,
boatos e fofocas, estabelecendo
uma identidade cultural entre os
que por ali transitavam ou vivi-
am. A vida social, cultural e po-
lítica da cidade começava e ter-
minava no Bar do Ponto.

... agora estamos a três quarteirões


do Bar do Ponto, que é o centro. Eu
me referia ao centro da cidade, mas
logo veria que aquilo era o centro de
Minas, do Brasil do Mundo vasto
Bar do Ponto, 1997 (Foto: Marta Carneiro) Mundo. (Nava, 1976, p. 103)

Chamava-se Bar do Ponto rond-


lembrava a imobilidade de pássaros sua vez, na pulverização azul mari- point formado pelo cruzamento de
gigantescos, caídos de asas abertas. nho e depois negra da noite que se Afonso Pena e Bahia, que era onde
(Nava, 1986, p. 157) constelava. (Nava, 1986, p. 263) desaguava também a ladeira de
Tupis. Todo o primeiro quarteirão
Para trás era a montanha, o Cerca- Ás memórias de Pedro Nava dessas ruas era caudatário da esta-
do, o Curral que, sob um céu que des- atribuem ênfase ao encontro da ção de bondes – o ponto – que ficava
maiava, ia perdendo o verde do mato em cima da ribanceira do Parque
e o vermelho do chão para esticar-se
Rua da Bahia com a Avenida Municipal e de um café chamado o
em todo o horizonte duma cor de vio- Afonso Pena, não havendo ne- bar do Ponto. Esse nome estendeu-
leta, dum roxo de quaresma que nhum outro cruzamento com se às circunvizinhanças. (...) Era o
avançava seus dois braços em direção centro da cidade, seu trecho obriga-
ao último clarão do crepúsculo para
tanta expressão na cidade. O Bar
tório onde todo mundo parava, pas-
apagá-lo enfim e desaparecerem por do Ponto foi identificado como sava, conversava, atravessava, espe-

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Elisabeth Guerra Parreiras Baptista Pereira; Herbe Xavier

A Praça da Liberdade, locali-


zada no topo de uma colina, sob
a forma de um tabuleiro, irradia
em todas as direções a imagem
do poder constituído; para isso
ela foi intencionalmente projeta-
do e suntuosamente construída.
É ali que está o complexo paisa-
gístico no estilo “fin de siècle”, de
construções ecléticas com traços
neoclássicos marcantes. Em
Nava, a praça perde sua fineza e
sisudez e ganha uma imagem
humanizada em expressões de
Praça da Liberdade, 1920 (Arquivo do Museu Abílio Barreto) efetividade e descrições minuci-
osas e enternecedoras de suas
belezas e singularidades. Não es-
tá ali o observador isento, é o ho-
mem que vive e percebe a paisa-
gem em derredor, estabelecendo
com ela uma sintonia única e
inalienável. A Praça da Liberda-
de é um importante marco de re-
ferência da cidade de Belo Hori-
zonte.

Além para a esquerda, a silhueta do


Palácio, das Secretarias, das palmei-
ras da Praça; mais longe as do Bon-
fim se perdendo em contrafortes de
Praça da Liberdade, 1997 (Foto: Marta Carneiro) colcotar ruivo, hematita e ferrugem.
Era principalmente para atrás do Pa-
rava, desesperava, amava, demora- do o estabelecimento, passando a de- lácio e da Praça que ia começar o es-
va, vivia no Bar do Ponto. (Nava, signar o polígono formado pelo cru- tardalhaço cósmico de mais um pôr-
1986, p. 132) zamento de Afonso Pena com Bahia de-sol. (Nava, 1985, p. 263)
– local onde termina também a la-
Aprendi a conhecer ou reconhecer de deira da rua Tupis. Enraizou-se tan- E tomaram a praça pelo lado esquer-
vista, surgindo no Bar do Ponto com to na toponímia da cidade que fez de- do de quem vai para o palácio.
precisão cronométrica, as figuras de saparecer, imaginem! o nome do Al- — Esse coreto tem um telhado lin-
funcionários legendários ... (Nava, feres – Praça Tiradentes – que figu- do. Não sei se exagero mas ele é o
1976, p. 306) rava nos antigos mapas de Belo Ho- meu Tadj-Mahall...
rizonte. (Nava, 1985, p. 4) — É verdade! Até que parece mes-
Encontro de amigos, encontros de As lingüinhas trabalhavam, sobre- mo ...
obrigação. O nome acabou extrapo- tudo dentro do Bar do Ponto. (Nava, O lago artificial era um espelho dei-
lando, se estendendo, ultrapassan- 1985, p. 5) tado, um espelho com efeito de cruz

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

cujos braços transversais terminas- recebeu a multidão cercado das pes- que a nova cidade do tempo e
sem na forma exata de hemicírculo. soas que estavam, àquela hora, na
do progresso e a incúria dos ho-
O Egon escolheu uma pedra achata- sede do Governo ... (Nava, 1987, p.
da e fez a mesma sair ricocheteando 454). mens os destruam irremediavel-
umas duas, três vezes na superfície mente. Ao utilizarmos essa obra
das águas. Eu andava agora no lado mais boni-
to da praça. Já tinham tirado a Itaco- literária como fonte documental,
— Também sei fazer.
E a pedrinha dela foi tirando fini- lomi e a fonte que havia em frente à deixamos que ela falasse por si,
nhos cinco vezes. Agricultura (creio que na reforma
sem cerceá-la nos limites de uma
Toda a superfície liquida enrugou, feita para receber o Rei dos Belgas)
mas lá estava o coreto, teto de linhas teoria ou tomá-la para ilustrar
angulou, fez rodas divergentes mul-
tiplicando as estrelas e os lampiões orientais, pintado de prata – ao ins- idéias previamente construídas.
da praça refletidos. O palácio aga- tante recoberto duma camada de pó
O significativo é tentar captar no
chado ria para eles suas portas den- de púrpura; o belo tanque onde se
refletiam cada dia mais cambiantes documento literário a carga sim-
te sim, dente não. (Nava, 1983, p.
72-73) do céu mais lindo do mundo – àque- bólica que o autor empresta à ci-
Era político demais chegando e sa- la hora cheio de sangue real do sol. dade através de sua subjetivida-
indo, era o Palácio da Liberdade ou a Saindo dentre as folhas e galhos o
perfil violento e lupercal dum semi- de criadora.
Secretaria de Segurança tudo aceso
e iluminado noitinteira era um tom deus – não era Pã, mas Bernardo Neste final de século, quan-
mais acalorado das conversas nas Guimarães em bronze. (Nava, 1985, do os homens vivem a crise do
ruas, nos clubes, nos cafés. (Nava, p. 30)
Estado, recuperar historicamen-
1987, p. 380)
Os textos de Nava resquar- te nosso lugar urbano é recupe-
O povo dispersou-se em pânico, re- dam os símbolos do passado his- rar a nossa própria territoriali-
concentrou-se no Bar do Ponto, dali dade.
tórico de Belo Horizonte, antes
subiu até o palácio da Liberdade para
dar conhecimento ao presidente. Este

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

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CADERNOS DE ENGENHARIA – IPUC – Instituto Politécnico da PUC•MINAS
CADERNOS DE LETRAS – Departamento de Letras
CADERNOS DE ODONTOLOGIA – Departamento de Odontologia
CADERNOS DE PSICOLOGIA – Departamento de Psicologia
CADERNOS DE SERVIÇO SOCIAL – Departamento de Serviço Social
EDUCAÇÃO – CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – Departamento de Educação
ENFERMAGEM REVISTA: CADERNOS DE ENFERMAGEM – Departamento de Enfermagem
EXTENSÃO – Cadernos da Pró-reitoria de Extensão
HORIZONTE – Revista do Núcleo de Estudos em Teologia da PUC•Minas
ORDEM E DESORDEM: CADERNO DE COMUNICAÇÃO – Departamento de Comunicação Social
SCRIPTA – Departamento de Letras – Programa de Pós-graduação em Letras – Centro de Estudos Luso-
afro-brasileiros – CESPUC-MG
SPIN – ENSINO E PESQUISA – Departamento de Física e Química

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102 Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 86-100, out. 1997

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