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Resumo

O objetivo da pesquisa consistiu em sistematizar princípios


metodológicos para uma proposta de aprendizagem dos fundamentos
da escritura cênica, através de experimentos de análise, adaptação e
encenação de textos teatrais.

A observação de processos de criação de diretores de teatro abertos à


participação do grupo na escritura cênica (José Celso Martinez Correa
e Antônio Araújo); a observação de uma das práticas de ensino de
direção teatral na Universidade de São Paulo e de dramaturgia no
Institut del Teatre de Barcelona; a realização de oficinas de iniciação à
encenação com jovens e adultos e com professores em formação em
Natal, São Paulo e Rio de Janeiro, sedimentaram a proposta aqui
apresentada.

O primeiro capítulo se inicia com a revisão das relações entre


encenação e pedagogia para ressaltar a importância da dramaturgia
na formação do professor e no ensino de teatro na escola. Propomos
também a criação de um banco de textos sobre teatro que possa
servir de suporte para as práticas de leitura e encenação. No segundo
capítulo o texto teatral é abordado a partir da noção de jogo e, em
seguida, são apresentados os papéis de dramaturgo e de diretor
visando a ampliar as funções do aluno - professor em formação ou
iniciante - na criação teatral. O trabalho dramatúrgico que articula
procedimentos de análise, estudo teórico, criação de imagens e jogos
teatrais a partir de fragmentos e, depois, de textos completos é o
tema do terceiro capítulo. A experimentação de diferentes
procedimentos de criação utilizados por diretores e grupos expressivos
para a compreensão da cena contemporânea é tratada no quarto e
último capítulo, quando situamos critérios de seleção e formas de
abordagem de dossiês de encenações modelares.

Os resultados obtidos contribuem para o aperfeiçoamento da formação


de docentes e pesquisadores da pedagogia do teatro no contexto
brasileiro atual, contribuindo para o debate sobre as propostas
metodológicas que integrem o estudo teórico com a prática da
encenação durante a Licenciatura. O estudo pode interessar também a
diretores que valorizem o desenvolvimento de discursos teatrais
coletivos e que tenham a dramaturgia como ponto de partida.
Índice

Capítulo 1. O texto como ponto de partida de experimentos coletivos


de aprendizagem e criação..............................................................1

1.1. A encenação através de experimentos coletivos.......................2

1.1.1.Relações entre pedagogia e encenação.........................3

1.1.2. A pedagogia na encenação brasileira...........................5

1.2. A abordagem de José Celso Martinez Corrêa


no Teatro Oficina..............................................................10

1.2.1. A devoração dos clássicos antigos e modernos:


a atitude antropofágica na apropriação de textos..........11

1.2.2. O experimento artístico e pedagógico de “Os Sertões”...12

1.3. Para além do modelo dramático tradicional: o texto teatral


como ponto de partida da ampliação do repertório.................18

1.3.1. A Dramaturgia na sala de aula....................................20

1.4. A integração entre teoria e prática da dramaturgia:


Conexões entre criação e análises dos textos.........................21

1.4.1. A organização de bancos de textos teatrais..................23

1.4.2. A devoração dos clássicos antigos e modernos:


uma das várias propostas de seleção dos textos..........28

1.4.3. Bancos de texto sobre teatro:


teoria, crítica e história.............................................29

1.4.4. Apropriação lúdica de textos sobre teatro....................32

1.4.5. O texto teatral como uma pedagógica


provocação ao grupo...............................................35

i
CAP. 2. Uma abordagem lúdica dos textos: o jogo teatral entre os atores, o
diretor e o dramaturgo

2.1. A abordagem lúdica como eixo metodológico:


o aluno como ator............................................................40

2.1.1. O jogo teatral com textos.........................................40

2.1.2. A criação de imagens...............................................45

2.1.3. O revezamento de papéis pelos atores.......................48

2.2. A ampliação das funções no jogo teatral:


o aluno nos papéis de ator, diretor e dramaturgo..................49

2.2.1. O trabalho dramatúrgico em sala de aula....................50

2.2.2. A encenação textocentrista: em busca das indicações


cênicas do autor...............................................................56

2.2.3. A retomada do jogo teatral como eixo da encenação....61

2.3. Godot em jogo: um experimento de recriação do texto............62

2.4. Avaliação diagnóstica: os alunos como atores,


dramaturgos e diretores....................................................71

2.5. O revezamento de funções criativas......................................72

Cap. 3. A análise do texto: jogo, leitura e contextualização.............75

3.1. O aquecimento para a leitura: o jogo a partir de imagens


e recortes do texto teatral ................................................76

3.2. A análise de fragmentos dramatúrgicos: avaliação diagnóstica


e ampliação do repertório.................................................79

3.2.1. Análise estrutural do fragmento.................................79

3.2.2. A seleção do fragmento............................................81

3.2.3. A leitura detida do fragmento....................................81

3.2.4. Visão de conjunto....................................................83

3.3. A análise do texto teatral na íntegra......................................85

3.3.1. A análise seqüencial das ações..................................85

ii
3.3.2. A teoria e a criação de imagens durante a leitura..........87

3.3.3. O debate das atitudes e das relações dos personagens:


o jogo em torno das questões éticas e políticas..............89

3.4 A redação da fábula...............................................................91

3.5.Análise do texto teatral no modelo narrativo de justaposição........95

3.5.1. Um experimento a partir de Hamlet-Máquina


de Heiner Muller..................................................................95

3.5.2. A criação de imagens durante a leitura........................102

3.6. Análise de outras obras do mesmo autor...............................103

3.7. A análise de textos de outros autores referentes


ao mesmo assunto ou enredo do texto-base..........................106

3.8. Uma abordagem para a análise dramatúrgica


em sala de aula: leitura, contextualização e jogo com o texto....108

Capítulo 4: Experimentos a partir da análise de dossiês


de encenação modelares ..................................................................109

4.1. A criação de banco de dados sobre encenações modelares..........110

4.2. Poéticas cênicas como ponto de partida: investigando


os objetivos possíveis da encenação....................................119

4.2.1. Objetivos na encenação rapsódica:


a historicização em Brecht...................................................119

4.2.2. Objetivos na encenação: a abordagem do texto


por Robert Wilson e Gerald Thomas.......................................121

4.3. A análises de encenações modelares do texto em foco................131

4.3.1.Questões norteadoras para a seleção


e análise do material.................................................131

4.3.2. Uma encenação modelar do texto


como ponto de partida...............................................133

4.4. Multiplicidade de óticas de um mesmo procedimento..................138

4.5. O desenvolvimento de quadros cênicos e os encontros


com o público..............................................................................140

iii
i

Introdução

Como aprender a ler, criar e ensinar a cena teatral contemporânea que vai
além do modelo dramático? Como abordar de forma integrada a teoria e a
prática da dramaturgia e da encenação em sala de aula? Como desenvolver
experimentos1 de encenação e recriação dramatúrgica centrados numa
abordagem lúdica e crítica do texto teatral? Estas questões são o ponto de
partida desta investigação e dizem respeito ao professor de teatro em
formação, tendo em vista o seu trabalho futuro com alunos da disciplina
“Teatro” no ensino fundamental e médio ou com participantes de oficinas e
outros processos de ação cultural.

Sendo assim, o trabalho pretende responder essas questões através da


proposição de princípios para uma abordagem metodológica que possa
contribuir para o redimensionamento da área de encenação nos cursos de
Licenciatura, com ênfase nas relações entre a análise do texto dramático e
suas possibilidades de adaptação e recriação cênica, com vistas a incrementar
a fundamentação e a prática dos futuros professores nesse campo de
conhecimento.

No que diz respeito à formação universitária em teatro neste princípio de


século, novos desafios se apresentam tendo em vista a reforma radical na
estrutura do ensino superior que está em curso em várias universidades. As
novas diretrizes curriculares para o ensino superior de artes do Ministério da
Educação2, amplamente discutidas pela comunidade acadêmica, recomendam
a criação da Licenciatura em Teatro, cujo profissional deve receber, ao concluir
o curso, o diploma de “Professor de Teatro”.3 Neste sentido, a reforma dos
cursos de licenciatura deverá levar em conta que o professor de Teatro deve
dominar os conteúdos específicos da linguagem artística, o que inclui
necessariamente a capacidade de articular conteúdos estéticos e históricos à
prática competente da linguagem.

Participando da discussão que resultou no projeto do novo curso de formação


de professores em Artes Cênicas do Departamento de Artes da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, onde atuamos, partimos do princípio de que
uma nova concepção de ensino de teatro poderia ser implementada, tendo

1
Utilizamos este termo no sentido resumido por Koudela : “Brecht utiliza os termos Erlebnis
(experiência) e Experiment (experimento). (...) A diferenciação estabelecida por Brecht para o
conceito de aprendizagem insinua uma visão crítica do princípio pedagógico learning by doing,
que se limita a expor o aluno a uma situação de aprendizagem, sem que haja uma
problematização do objeto a ser aprendido. Brecht refere-se a elementos de comentário que
devem ser introduzidos na experiência. Ou seja, a reflexão deve conduzir o processo de
aprendizagem, transformado, então, em experimento.” ( Koudela, 1996, p.103 ).
2
MEC. Diretrizes Curriculares para o ensino do Teatro e da Dança, em nível de graduação”.
Brasília:SESu-CEEARTES, 1998.
3
A esse respeito, veja-se Santana, Arão.Teatro e formação de professores, São Luís, EDFMA,
2000.

i
ii

como parâmetro um aprendizado que busque aliar o exercício do fazer, do


apreciar e do criticar teatro, com as respectivas conexões históricas e
estéticas.

Outra premissa que é consenso entre os professores da Licenciatura naquela


universidade é que as áreas de jogo e interpretação, cenografia, teoria,
história, dramaturgia e direção possam, sempre que possível, convergir para
experimentos de encenação. A noção de prática teatral que adotamos não
prioriza a área referente ao ator; consideramos fundamental que o professor
em formação possa praticar também a realização de concepções cenográficas,
projetos de sonoplastia, de iluminação, o dramaturgismo – desde a adaptação
até a redação de textos teatrais – e a direção teatral, em diferentes
modalidades de processos.

A encenação na pedagogia

Partimos da premissa de que o professor de teatro deve desenvolver sua


capacidade de encenar para poder ter condições de coordenar processos que
estimulem os alunos nesta tarefa. Se o grupo de alunos tiver a necessidade
de se expressar cenicamente para um público, o professor deve saber orientá-
lo, desde a definição do tema e do tipo de linguagem cênica a ser adotada,
até o acontecimento teatral. Portanto, durante sua formação, o professor
deve passar necessariamente pela experiência de condução de processos de
encenação, tendo a oportunidade de refletir sobre sua prática à luz das
principais contribuições, tanto de encenadores que fundamentam a cena
contemporânea, quanto de autores voltados para o ensino do teatro.

Neste enfoque, o futuro professor de teatro deve desenvolver, não apenas


sua competência pedagógica, como também sua competência artística. Além
de saber estimular o aprendizado do fazer teatral em iniciantes – dominando
uma abordagem metodológica que lhe permita a socialização dessa linguagem
– o professor necessita praticar e refletir procedimentos de elaboração do
discurso cênico que possibilitem a participação criativa e crítica dos seus
alunos.

Neste contexto, a encenação – enquanto produto cênico resultante da


aprendizagem do teatro – não é pensada somente sob a forma de espetáculo
em cartaz em edifícios teatrais, mas abrange diferentes modalidades de
eventos cênicos, tais como a representação de curta duração, a performance4,
o ato artístico coletivo5, escolhidos pelo professor ou pelos participantes, de
acordo com as possibilidades e as necessidades de cada grupo.

4
“ Utilizamos o termo no sentido de eventos fora dos padrões convencionais do espetáculo
teatral, que podem associar idéias, artes visuais, teatro, dança, música, vídeo, poesia,
geralmente, utilizando espaços não destinados ao teatro e, muitas vezes, envolvendo o público
em um ritual cênico, no qual tende a se tornar participante, em detrimento de sua posição de
assistente”. (Cohen, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de
experimentação, São Paulo, Perspectiva, Edusp, 1989. pp. 28-30)
5
Atos organizados em torno do jogo teatral com textos da peça didática brechtiana, que no
Brasil tem no trabalho de Ingrid Koudela sua principal referência. São rituais sociais nos quais

ii
iii

Sabemos que a aprendizagem da encenação se configura como um processo


longo, de práticas complementadas pela leitura de textos de espetáculos, que
extrapola os limites de um curso de graduação. Consideramos, porém, que o
conhecimento dos princípios estéticos e metodológicos de encenadores como
Brecht, Meyerhold, Stanislavski, Peter Brook, Robert Wilson, Antunes Filho,
José Celso Martinez e Antônio Araújo, por exemplo, se torna imprescindível na
formação do professor, no sentido de possibilitar uma contextualização de sua
prática no multifacetado panorama da cena contemporânea.

No ofício de professor, porém, não basta saber encenar. Se entendermos que


a elaboração do discurso cênico deve acontecer de forma coletiva, com os
participantes podendo colaborar efetivamente nas decisões relativas à
dramaturgia, surge a preocupação de articular o seu posicionamento artístico
com os desejos estéticos do grupo. Assim, na construção do texto espetacular
ou texto cênico, entendido como “a relação de todos os sistemas significantes
usados na representação e cujo arranjo e interação formam a encenação”6,
interrogamo-nos sobre como proceder na condução de um trabalho sem cair
nos extremos da criação coletiva ou da centralização das decisões na figura
de um diretor e/ou dramaturgo. Faz-se necessária a busca de procedimentos
que permitam um equilíbrio entre três possibilidades de autoria do discurso a
ser posto em cena, ou seja, que possam equacionar a criação do ator, do
diretor e do texto na tessitura do acontecimento teatral.

No âmbito da formação do professor de teatro, defendemos que a encenação


pode ser vista como um experimento coletivo de investigação artística sobre a
natureza humana, no qual os atores e demais participantes colaboram
criticamente na construção do texto espetacular. Neste tipo de encenação que
se desenvolve através de oficinas, faz-se necessário que o coordenador domine
um conjunto de competências pedagógicas que viabilizem a condução do
grupo, desde a escolha do tema até a efetivação do acontecimento cênico e
sua análise.

A visão do professor como encenador, entendido como o coordenador de


experimentos colaborativos de construção da narrativa cênica é fundamental
em nossa pesquisa, pois ilumina o perfil do profissional para cuja prática e
formação pretendemos contribuir. Neste enfoque, o objetivo do professor de
teatro é o exercício de uma didática não depositária, no sentido atribuído por
Paulo Freire: partir do respeito ao universo do grupo, estimulando a apreensão
de novos enfoques e práticas, pois é através do diálogo que o indivíduo
constrói o conhecimento e avalia seu aprendizado.

Esta abordagem do aluno e do professor como pesquisadores tem seu


fundamento teatral na posições de diversos encenadores, como Bertolt Brecht

jogadores e público se misturam, permutando os papéis e se apropriando ludicamente do texto,


que funciona como modelo de ação para ser recriado pelos jogadores. (KOUDELA, Ingrid
Dormien. “Texto e Jogo”. São Paulo, Perspectiva, 1996.
6
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1999, p. 409.

iii
iv

e Peter Brook, quando afirmam que o encenador não deve entender por ensaio
a submissão àquilo que já está estabelecido anteriormente, mas como uma
experimentação de diferentes possibilidades de configuração das cenas. Cabe
ao coordenador descartar as soluções fáceis e desvendar crises que promovam
novas descobertas, sem receio de reconhecer que nem sempre conhece a
solução dos problemas que surgem. A confiança que os participantes
depositam nele é resultante do fato de que ele é capaz de decifrar aquilo que
não é a solução. Sendo assim, o encenador deve utilizar os mais variados
estímulos, provocando a multiplicidade de pontos de vista, estimulando novas
experiências e a atitude de pesquisa dos participantes.

Desse ponto de vista, o professor de teatro na escola e na ação cultural tem


como objetivo o desenvolvimento de um conjunto de competências
pedagógicas e artísticas, tais como:

- saber expressar seu posicionamento artístico com relação ao teatro


contemporâneo;

- reconhecer as principais referências históricas e teóricas da sua


prática;

- saber elaborar projetos de intervenção cultural e de pedagogia do


teatro;

- coordenar o aprendizado da leitura do espetáculo contemporâneo;

- conduzir o grupo de iniciantes e/ou atores desde a escolha do tema até


a efetivação do acontecimento cênico, sem perder o aspecto lúdico do
processo:

- saber avaliar e redigir textos que sistematizem sua prática.

Sendo assim, consideramos que uma das opções para a formação do professor
de teatro é a perspectiva do professor como encenador, entendido aqui como
aquele que busca realizar o ato cênico sem quebrar a continuidade da oficina,
mantendo o caráter coletivo do trabalho e o respeito ao grupo. O objetivo
central de sua prática não é montar espetáculos, mas sim, o desenvolvimento
do grupo na leitura e na criação da cena em moldes contemporâneos. Ao
professor cabe ser capaz de propor e coordenar experimentos de encenação
nos quais os grupos participem como co-autores do discurso cênico.

Repensando a encenação na licenciatura

Os princípios sistematizados durante o mestrado nortearam nossa


argumentação na defesa do redimensionamento do papel da encenação no
âmbito dos novos cursos de Licenciatura e a criação do Laboratório de
Encenação7 , na UFRN. Este espaço acadêmico destina-se à pesquisa de
7
Trata-se de um projeto que criamos junto ao Departamento de Artes da UFRN, cuja estrutura
física envolve um pequeno teatro, um banco de figurinos e adereços, sala de reuniões e ensaios.

iv
v

abordagens da encenação centradas na noção de jogo, tendo em vista a


melhoria da formação do professor de teatro. Nossa principal atividade é a
realização de experimentos coordenados pelos alunos de licenciatura, que
buscam integrar as oficinas de caráter pedagógico e a representação.
Podemos sintetizar o encaminhamento adotado da seguinte forma: ao longo
dos três últimos semestres do curso, durante as disciplinas “Encenação 1”,
“Encenação 2” e “Encenação 3” - os alunos planejam, realizam e avaliam
oficinas que resultam em acontecimentos teatrais em diferentes contextos:
escolas públicas e privadas de ensino fundamental e médio, grupos de teatro
já estabelecidos, bailarinos, grupos de idosos, dentre outros. Este percurso é
registrado e analisado em um trabalho escrito, que fundamenta e analisa o
percurso da encenação.

A maioria das montagens vem sendo desenvolvida através do jogo teatral com
diferentes espécies de textos: narrativos (romances, contos, literatura de
cordel), literatura oral (romances cantados, músicas, provérbios) ou
dramáticos. Até o presente momento foram realizadas diversas mostras que
apresentaram ao público da cidade do Natal mais de vinte encenações, cuja
dramaturgia foi elaborada através de jogos com textos de autores como Kafka,
Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Bráulio Tavares, Nelson Rodrigues, Bertolt
Brecht, Shakespeare e Fernando Arrabal, dentre outros.

Como complemento desta prática o professor em formação deve escrever um


texto monográfico relatando seu projeto artístico, os procedimentos utilizados,
citando seus fundamentos na teoria da encenação e na pedagogia do teatro
referentes à abordagem utilizada. É interessante notar que uma parcela
significativa dos alunos tem prosseguido com seus trabalhos para além dos
limites da disciplina, seja através da apresentação de suas conclusões em
congressos de iniciação científica, seja, em menor escala, sob a forma de
temporadas de espetáculos em teatro, ou mesmo na participação em festivais.

Apesar das dificuldades, consideramos que a iniciativa do Laboratório tem


contribuído para uma mudança de enfoque em relação ao perfil do professor a
ser formado em nosso curso. A assertiva - o professor de teatro deve saber
encenar – passou a fazer parte do cotidiano acadêmico na UFRN, a partir da
divulgação dessa prática. Ressaltamos o fato de a maioria dos alunos que
passou pelo Laboratório ter conquistado os primeiros lugares em concurso
público da Prefeitura de Natal, em 2003, e muitos deles assumirem que estão
ampliando, com sucesso, a abordagem da encenação como experimento em
suas respectivas salas de aula, ou em oficinas extraclasse.

Pretendemos continuar a busca de abordagens metodológicas da encenação


como experimento, baseadas no diálogo entre o professor e a análise
dramatúrgica do ator. Neste enfoque, encenar e aprender constituem um
mesmo caminho 8.

8
Expressão utilizada por Monique Borie para analisar a natureza pedagógica da prática teatral
de Grotowski e Eugenio Barba (1987, p. 127)

v
vi

Um pressuposto é o de que os elementos constituintes da escritura cênica – o


texto, o espaço, as imagens, a música - possuem múltiplas possibilidades e
significados a serem exploradas pelo grupo que se interessa em jogá-los
teatralmente. Este pressuposto de utilização de diferentes elementos cênicos
pode ser um eixo para a elaboração de encenações através do jogo, durante a
formação do professor. Outro pressuposto é que se faz necessário integrar os
textos de natureza teórica às imagens da história da encenação e à prática do
jogo teatral.

Sendo assim, tendo em vista a carência, na bibliografia disponível no Brasil, de


abordagens metodológicas de encenação voltadas para o professor de teatro,
consideramos que a sistematização de princípios e procedimentos aqui
apontada poderá dar uma contribuição ao trabalho destes professores, assim
como dos diretores interessados em elaborar discursos cênicos polifônicos.

A pedagogia da Encenação e da Dramaturgia: para além do enfoque da


atuação com textos.

É importante propor uma seleção de jogos teatrais e procedimentos de análise


dramatúrgica que possibilitem o exercício artístico-pedagógico dos principais
procedimentos cênico-narrativos, articuladores da dramaturgia
contemporânea. Em outras palavras, propor uma abordagem que privilegie não
a atuação, mas o pensamento do aluno na discussão dos rumos do texto
cênico. Interessa-nos o educando como leitor, como fruidor do espetáculo ou
do acontecimento teatral. Propomos uma forma de aprendizagem dos
elementos básicos da cena contemporânea através de uma prática que articule
procedimentos lúdicos com o estudo de textos teatrais e teóricos.

Em geral, a maioria dos autores no Brasil que pensam a pedagogia do teatro


com iniciantes e leigos9 propõe atividades onde todos devem, se possível,
atuar num mesmo encontro, inclusive como forma de equilibrar as
participações. Não é comum, – nem é visto como uma atividade corriqueira na
pedagogia do teatro atual – que um aluno passe, por exemplo, várias aulas
seguidas sem atuar, exercendo outras atividades ou apenas assistindo.
Para além do “todo mundo pode atuar”, propomos o “todo mundo pode
encenar”, pensar discursos cênicos sobre o mundo, articular estéticas,
administrar o uso dos componentes da cena (instrumentos cênicos), tomar
partido estético, filosófico sobre o discurso da cena vista ou produzida.

Repensar a dramaturgia na formação do professor e na escola

Como podemos encenar sem conhecer os principais instrumentos utilizados na


escritura cênica contemporânea? Por exemplo, como nós professores podemos
articular um espetáculo contemporâneo que não dependa de um texto
previamente escrito, sem aprender as técnicas fundamentais de composição de

9
Assim procedem Augusto Boal, Ingrid Koudela, Maria Lucia S. B. Pupo, Joana Lopes, Beatriz
Cabral, Joaquim Gama, Arão S. Paranaguá, dentre outros.

vi
vii

roteiro durante nossa formação? Como ajudar os atores a editar as ações


improvisadas a partir dos textos dramatúrgicos? Como fazer isto se não
dispomos de noções elementares das diferentes modalidades de discurso
teatral?

Em nossa experiência, percebemos que a prática da retomada do jogo teatral,


tendo em vista seu desenvolvimento eficaz, exige do professor e do ator-aluno
noções básicas de dramaturgia da cena - noções de ritmo, de unidade, de
superobjetivos, de leitura semiótica, de reconhecimento das ferramentas
narrativas da arte teatral. No Brasil, nem o diretor, nem o ator, nem o
professor costuma possuir essa base em sua formação.

A dramaturgia e a encenação nunca foram valorizadas nos currículos dos


cursos de Licenciatura no Brasil. A maioria dos professores em atuação e, pelo
visto, a maioria dos futuros formandos vai ter que enfrentar essa carência, pois
as reformas do currículo, em andamento, (até onde conhecemos), não
dedicam tempo suficiente para o exercício da dramaturgia no programa de
ensino do futuro professor. Muitos desconhecem a dramaturgia brasileira. A
evolução da cena no país não é examinada. Como se não bastasse, as
disciplinas dedicadas ao teatro brasileiro são insuficientes, possuem menos
prestígio e carga horária do que seria desejável.

Quando nos questionamos sobre como se deve organizar o processo de ensino-


aprendizagem dos conteúdos e práticas da encenação na formação do
professor, percebemos uma lacuna na bibliografia sobre o tema. Também
pudemos perceber, a partir da análise de Santana (2000) sobre os cursos de
formação de professores no Brasil, que a carga horária dedicada à disciplina
Encenação e Dramaturgia ou literatura dramática é infinitamente menor que a
carga horária dedicada às práticas nas quais os alunos jogam ou atuam em
espetáculos.

Da mesma forma, desconhecemos trabalhos que abordem maneiras de tratar o


texto teatral em sala de aula, não só na forma de fragmentos como também
por inteiro - como ponto de partida de aprendizagem dos procedimentos
dramatúrgicos e de encenação, sem perder a noção de jogo e uma atitude
freireana, que prioriza a construção do conhecimento pelo aluno.

A prática da análise sistemática e da criação de texto não é valorizada na


formação do diretor, ao contrário de escolas como o Instituto de Teatro de
Barcelona. Sendo assim, no presente trabalho, observamos e analisamos os
principais procedimentos de aprendizagem da escritura do texto, realizados
nos atelliers de Dramaturgia do curso de direção do Instituto Teatral de
Barcelona, tendo em vista a formulação de procedimentos intertextuais de
aprendizagem dos fundamentos da dramaturgia contemporânea.

Torna-se necessário recuperar a importância da dramaturgia como um


componente tão importante quanto a atuação no exercício e no jogo, seja em
sala de aula ou na prática do ator. Acreditamos que exercícios de como
escrever para a cena, como imaginar narrativas e diálogos, como ler e adaptar

vii
viii

os clássicos e como reescrever cenas ou diálogos a partir de improvisos são


importantes conquistas da pedagogia do teatro que podem ser incorporadas ao
trabalho com iniciantes.

Este trabalho pode contribuir – ainda que modestamente – para o


preenchimento de algumas das lacunas existentes na formação do professor.
Buscamos sistematizar procedimentos que proporcionem o aprendizado dos
fundamentos e das principais metodologias das modalidades de encenação,
especialmente aquelas que permitem a participação de todos na elaboração do
texto cênico.

A nossa participação como assistente de direção de Antonio Araújo na


elaboração do espetáculo Apocalipse 1,11 durante o ano de 1999 foi
importante para ampliar as nossas perspectivas em relação às práticas que
valorizem a participação dos atores e dramaturgos na construção do discurso
teatral.

Partimos da observação do processo de montagem do espetáculo, Os Sertões,


O homem, do Grupo Oficina, dirigido por José Celso Martinez Corrêea. Nosso
objetivo foi averiguar quais são os princípios gerais do diretor quando ele se
propõe a encenar textos de autores como Bertolt Brecht, Eurípedes, Nelson
Rodrigues, Oswald de Andrade e quais procedimentos utilizados por esse
diretor estimulam a participação dos atores e dos demais participantes na
tessitura das ações cênicas que compõem a dramaturgia híbrida do grupo.
Escolhemos este grupo por ele representar um dos coletivos teatrais mais
significativos da história da cena brasileira e, especificamente, pela proposta
de apropriação antropofágica desse diretor em relação aos clássicos, que nos
inspira na formulação da proposta em tela. A imersão no universo dos ensaios
do referido grupo e o diálogo que tivemos a oportunidade de manter com esse
diretor10 e com alguns dos atores e membros da equipe técnica, ao longo do
experimento, foi importante para consolidar a influência da prática
dramatúrgica realizada pelo grupo na formulação dos procedimentos aqui
sistematizados, pensando sua utilização com professores e devidamente
adaptados aos grupos.

Após a revisão bibliográfica sobre os temas, a segunda fase da pesquisa foi


dedicada à formulação e realização de duas oficinas teatrais para iniciantes
em teatro com idade acima de 16 anos, na Casa de Cultura do bairro de
Interlagos, no âmbito do projeto Teatro Vocacional da Secretaria Municipal de
Cultura de São Paulo, durante o período de junho a dezembro de 2003 e de
março a dezembro de 2004. Nosso objetivo, naquele momento, foi

10
Esse diálogo ocorreu entre os ensaios, em reuniões sobre o encaminhamento da dramaturgia,
e na entrevista concedida em 30 de março de 2006, na qual o diretor José Celso Martinez Corrêa
expôs sua visão sobre a aprendizagem de importantes textos clássicos brasileiros na escola e na
prática teatral. A realização de uma mesa redonda sobre a relação criativa entre o diretor e os
demais membros do grupo, no evento Ilhas de Desordem, - que coordenamos em conjunto com
o prof. Marcelo Denny, no Departamento de Artes da Escola de Comunicações e Artes da USP,-
também foi esclarecedora para complementar o estudo sobre esse diretor.

viii
ix

experimentar e refletir a respeito das possibilidades do jogo com textos


teatrais como eixo metodológico de uma oficina dedicada à experimentação
por iniciantes do revezamento das funções de dramaturgo, diretor e ator em
processos coletivos de análise e encenação de textos teatrais.

Neste sentido, consideramos de fundamental importância a formulação de


propostas de encenação que evidenciem o jogo teatral11 como modalidade de
aprendizagem do Teatro, desde o início do processo até a encenação
propriamente dita. Neste trabalho investigamos até que ponto podemos
viabilizar a elaboração de análises, adaptações, encenações e recriações do
texto teatral através de uma prática centrada em uma atitude lúdica,
colaborando assim para a discussão pedagógica que visa transcender
dicotomias como aprendizagem/apresentação ou processo/produto. Na fase
de realização das oficinas optamos por uma abordagem metodológica
centrada na pesquisa–ação, nos moldes formulados por Tiollent (1998). Neste
tipo de abordagem existe uma explícita interação entre o pesquisador e as
pessoas implicadas na situação investigada.

Na fase das oficinas os resultados dependeram, em parte, da forma como se


deu a inserção do pesquisador no universo da pesquisa, ou seja, a
intervenção direta, através de diálogo concreto ‘in loco’, com os participantes
das oficinas teatrais, formulado e coordenado por este autor. Sendo assim,
não tivemos qualquer intenção de neutralidade ou de pretender uma
qualidade de observador em separado de nosso objeto, ao mesmo tempo em
que tentamos dar prioridade ao planejamento e à avaliação contínua acerca
da viabilidade dos caminhos propostos durante o percurso da pesquisa. A
compreensão dos fenômenos ocorreu na perspectiva da cotidianidade, ou
seja, documentamos esse percurso na medida em que ocorriam as ações do
pesquisador junto ao grupo. A análise dos dados levantados se completou
posteriormente, valendo-se do registro escrito das avaliações através de
protocolos, do registro fotográfico, de gravações em fita cassete e em vídeo.

Por outro lado, pensamos em avançar no que se refere à modalidade de


participação do educando através da redação de textos teatrais. Partimos do
pressuposto de que as modalidades de estudo do texto contemporâneo são um
rico instrumental teórico que poderia estar acessível aos iniciantes de teatro ou
ao ator e diretor que não deseje se transformar em um crítico profissional, mas
sim deter as referências que lhes permitam dialogar em sua prática.
Desconhecemos até o presente momento, no Brasil, um curso de licenciatura
ou bacharelado em Teatro que possua em sua estrutura curricular disciplinas
obrigatórias que funcionem nos moldes das oficinas de escritura dramática
desenvolvidas por Sarrazac e Danan na Université Paris III ou no Institut Del
Teatre de Barcelona.

Por isso, no contexto da presente investigação, foi fundamental conhecer o


Institut Del Teatre de Barcelona, para se aprender como lá se ensina
dramaturgia nas “Oficinas de Escritura do Texto Teatral” e nas disciplinas

11
Cf. Koudela (1997), Pupo (1997) e Spolin (1999).

ix
x

“Dramaturgia I e II”, ambas pertencentes ao currículo dos atores e dos


diretores em formação. Os procedimentos didáticos utilizados pelos professores
observados contribuíram para formulação da proposta pedagógica resultante
desta pesquisa, no que concerne às proposições que enfocam o aluno como
dramaturgo, no sentido de adaptador e escritor de textos teatrais.

Iniciamos o primeiro capítulo com uma revisão bibliográfica sobre as relações


entre encenação e pedagogia teatral contemporânea, situando nosso enfoque
na destacada abordagem antropofágica de José Celso Martinez Corrêa. Em
seguida, propomos a valorização da dramaturgia como um dos eixos possíveis
para a realização de experimentos de aprendizagem e criação, situando
nossos critérios para a seleção e a proposição dos textos teatrais pelo
professor. Propomos ainda a criação de bancos de dados teóricos que possam
servir de material didático para incrementar as avaliações das práticas de
leitura e encenação.

No segundo capítulo defendemos uma abordagem lúdica do texto teatral,


situando-a nos autores que se dedicam às relações entre texto e jogo na
pedagogia do teatro. Em seguida, destacamos o princípio metodológico de
ampliação das funções criativas do aluno, tanto para o professor em
formação, quanto para o iniciante. Descrevemos aqui as características gerais
dos papéis de dramaturgo e diretor que propomos para o diálogo com os
atores. Para ilustrar esta proposta utilizamos exemplos de um experimento no
qual foram recriadas cenas de Esperando Godot de Samuel Beckett.

No terceiro capítulo são apresentados os princípios de nossa proposta para


uma abordagem lúdica de leitura e análise do texto teatral em sala de aula.
De início, situamos a análise e o jogo com fragmentos de textos teatrais como
forma de ampliar o repertório do grupo. Depois, abordamos a análise do texto
teatral na íntegra, destacando as práticas de redação da fábula, análise
seqüencial das ações e criação de imagens no caso de textos que se atenham
à noção de fábula. Para a análise do texto que não se apóia na noção de
fábula utilizamos uma análise de Hamlet máquina, de Müller, de modo a
discorrer sobre o uso de recortes teóricos, o uso da crítica e da história no
auxílio à leitura, complementando a criação de imagens e de roteiros de ações
cênicas pelos alunos.

O quarto capítulo trata das questões da encenação e se inicia com a


apresentação do princípio metodológico de experimentação de diferentes
procedimentos de encenação do texto teatral utilizados por diretores e grupos
significativos para a compreensão da cena contemporânea. Após situar os
critérios para seleção de encenações modelares são abordados diferentes
pontos de partida para a experimentação do grupo: a) análise de recortes
teóricos, com os objetivos de encenação referentes a poéticas cênicas
distintas, como as de Robert Wilson e Brecht; b) a análise comparativa de
diversas abordagens de um mesmo procedimento, como o exemplo da
projeção de imagens; c) análise de registros de uma encenação modelar do
texto, ilustrada pelos exercícios de adaptação, re-escritura e encenação que
podem ser realizados a partir de materiais sobre o espetáculo Ham-let, do

x
xi

grupo Oficina. O capítulo se encerra com a abordagem da fase na qual os


grupos decidem quais princípios e procedimentos analisados serão utilizados
na formulação das encenações e na redação das adaptações de textos.

O leitor desta tese terá a oportunidade de constatar que alguns dos tópicos
apontados são retomados em diferentes capítulos. Como aqui se trata de
expor linearmente modalidades de trabalho que não ocorrem dessa maneira,
salientamos que em cada um dos capítulos é lançada uma luz mais direta
sobre determinado aspecto da proposta.

Docentes e estudantes dos cursos superiores de licenciatura em teatro


constituem o público privilegiado desta tese. Esperamos que a pesquisa possa
contribuir para o debate de propostas metodológicas no que diz respeito ao
papel da dramaturgia no âmbito da aprendizagem da encenação na formação
do professor. Por extensão, nosso estudo pode vir a contribuir também no
trabalho de professores que já se dedicam ao ensino do teatro na escola e às
oficinas de ação cultural, dentre outras modalidades de inserção.

xi
Capítulo 1. O texto como ponto de partida de
experimentos coletivos de aprendizagem e criação.
Como aprender a ler e a criar a cena teatral contemporânea que vai além
do modelo dramático? Esta questão é o ponto de partida de nosso trabalho
e diz respeito ao professor de teatro em formação, tendo em vista seu
trabalho futuro com alunos da disciplina Teatro no ensino fundamental e
médio - a partir da 5ª série - ou com participantes de um processo de ação
cultural. A proposta que sintetizamos nesta pesquisa articula dois princípios
fundamentais na tentativa de solucionar esta questão: o jogo de encenação
colaborativa - com a vivência de diferentes funções criativas pelo mesmo
indivíduo - e a análise hipertextual da dramaturgia, que visa integrar o
exercício da criação cênica com a apropriação da teoria e da história do
teatro.

Partimos de alguns princípios que podem contribuir como uma das opções
metodológicas para o professor de teatro interessado em fazer de um texto
teatral o início de um experimento de aprendizagem da encenação. São
eles:

- O exercício de diferentes procedimentos dramatúrgicos, contextualizados,


de forma a ilustrar o panorama das diversas opções de escritura teatral;

- A necessidade de o participante se apropriar de um elenco de opções


formais, antes de tomar decisões em relação aos objetivos e às opções
dramatúrgicas na criação de uma cena;

- A abordagem colaborativa de escritura cênica na qual cada participante


experimenta diferentes funções na criação de pequenas formas, na
encenação de fragmentos. Os participantes podem exercitar o processo
colaborativo em rodízio que estamos desenvolvendo nessa pesquisa. Nossa
intenção é que a criação de cenas resulte do confronto de diferentes
autorias e que os participantes experimentem variadas funções criativas.

- Uma primeira fase de contato direto dos atores com a textualidade, sem
mediação do professor ou da teoria ou da história, é fundamental para
gerar material cênico próprio do grupo, ver como os participantes reagem
ao tema e à estrutura do texto, sem racionalizações prévias nem mediação
teórica do professor. Nesta etapa da abordagem consideramos importante a
prática de jogos de apropriação de textos, como defendidos por Koudela,
Pupo, Ryngaert e Steinweg.

- É importante valorizar o conhecimento sistematizado nas áreas de


História, Teoria e Crítica do Teatro como conteúdos do ensino de teatro na
escola.

Nosso primeiro objetivo é desvelar as possibilidades de jogos do grupo em


relação ao texto escolhido como ponto de partida. Depois do levantamento
de imagens e idéias sobre o que fazer a partir do texto, pode-se
experimentar e discutir alguns dos principais procedimentos de criação da
cena teatral contemporânea, caracterizada pela diversidade temática e

1
formal, pelo uso de espaços não previamente destinados ao teatro, assim
como, a apropriação lúdica ou estranhada (Meyerhold/Brecht) da caixa
cênica (à italiana) e a mistura de linguagens: teatro, performance, vídeo,
música.

Neste sentido, os alunos podem detectar a presença no texto, dos


procedimentos cênicos dramáticos, épicos e pós-dramáticos. Nesta nossa
valorização da análise dramatúrgica como prática pedagógica com
iniciantes é fundamental que o professor não apenas emita suas próprias
opiniões, mas que ele possa atuar como provocador do debate de idéias
contraditórias sobre o mesmo tema, texto, ou procedimento. Ao mesmo
tempo em que coordena a leitura coletiva dos textos teatrais, ele apresenta
e comenta citações de encenadores e estudiosos acerca da passagem
destacada.

1.1. A encenação através de experimentos coletivos

O objetivo deste tópico é situar o leitor na tradição teatral em que se


inscreve este trabalho. Nosso foco é dirigido para alguns dos mais
significativos encenadores pedagogos que almejam a autonomia artística e
a renovação da linguagem teatral.

Interessaram-nos os diretores que realizaram percursos de construção do


texto espetacular permeados pela contribuição dos atores, seja na definição
e na elaboração dos superobjetivos da montagem, seja na abordagem dos
textos ou no levantamento e na definição das soluções com aqueles
diretores cujos métodos valorizam a opinião dos demais participantes na
escritura cênica.

O principal critério de seleção foi o da realização de encenações cujos


processos de criação ultrapassaram a abordagem técnica do que podemos
chamar de composição das ações 1, quando os atores se dedicam a elaborar
as suas partituras.

Priorizamos aqueles diretores que, além de criarem espetáculos,


procuraram compartilhar seus processos, tentaram registrar e ampliar as
possibilidades cênicas, sistematizando e divulgando os seus conhecimentos.
Este critério valoriza o papel do encenador no que se refere à ação cultural,
ou seja, na proposição de ações que modifiquem o panorama do teatro e
não apenas no âmbito de sua produção autoral.

1
No sentido do ator como “compositor de ações” físicas e vocais, segundo os principais
autores da pedagogia do ator (Aslan, 1994). Em recente trabalho, Bonfitto concluiu que são
três os aspectos centrais do trabalho do “ator-compositor”: ”a ação física, seu eixo; as
práticas improvisacionais e os seres ficcionais”. Esse autor ressalta a importância da ação
como instrumento central, uma espécie de “fio condutor” do trabalho do ator
contemporâneo para ”fazer das diferentes teorias ou técnicas de interpretação, pontos de
um mesmo fio, engrenagem de um mesmo eixo, faces de um mesmo sólido”. (Bonfitto,
Matteo. O ator-compositor. São Paulo, Perspectiva, 2002, p.140).

2
1.1.1. Relações entre pedagogia e encenação

A pedagogia do teatro e a encenação, quando caminham juntas com o


enfoque da pesquisa, são responsáveis pelo avanço do teatro enquanto ato
cultural e linguagem artística. Quando analisamos a história percebemos
que muitas das principais formulações da encenação foram conseqüência
de processos que uniram investigação artística e aprendizagem. Foram as
experimentações de encenadores junto aos grupos permanentes e em
determinados centros de pesquisa, oficinas e escolas, as responsáveis por
grande parte da revolução teatral promovida pela encenação no século XX.

Segundo este enfoque a pesquisa, a pedagogia e a encenação podem ser


encaradas como três faces freqüentemente integradas ao fenômeno teatral.
Referindo-se a encenadores como Stanislavski e Meyerhold, Fabrízio
Cruciani destaca o caráter pedagógico dos grandes renovadores da cena
moderna:

“As práticas e poéticas dos grandes mestres conduziram a uma espécie


diferente de teatro. O elemento essencial: a pedagogia, a procura pela
formação de um novo ser humano num teatro e sociedade diferentes e
renovados, a procura por um modo de trabalho que possa manter uma
qualidade original e cujos valores não são medidos pelo êxito dos
espetáculos, mas sim, pelas tensões culturais que o teatro provoca e
define.”2

Para Picon-Vallin, a pedagogia interioriza a ligação entre os atores e o


encenador:

"O processo pedagógico, comunicação de uma experiência e de um saber


advindo de uma reflexão sobre esta experiência, visa primeiramente
assegurar a coesão profunda, a unidade dos atores em torno de um
encenador".3

Em 1905 inicia-se uma nova etapa para a pedagogia do teatro, quando


Stanislavski cria o Teatro-Estudio, convidando Meyerhold para preparar os
jovens atores. Em 1912, Stanislavski já ministrava um curso completo,
viabilizando sua proposta de uma escola vinculada à pesquisa de um grupo
de vanguarda que não desejava transmitir um saber acumulado, mas
encontrar respostas e caminhos novos. Meyerhold foi um dos primeiros a
escrever sobre a competência pedagógica de um encenador de teatro, logo
após assistir os ensaios de Stanislavski, referindo-se ao diretor como um
metteur-en-scène-professeur.

2
Cruciani, Fabrizio. “Aprendizagem:exemplos ocidentais”. In: BARBA, Eugênio e SAVARESE,
Nicola. A Arte secreta do Ator, Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas, São Paulo,
Hucitec/ Unicamp, 1995, pp.26-29., p. 26.

3
Picon-Vallin, Bétrice. "Stanislavsk et Meyerhold, metteurs en scène-pédagogues” In: Le
metteur en scène en pedagogue, L’ Art du théâtre n.8, Actes Sud/Théâtre National de
Chaillot, 1987. p. 106.

3
Meyerhold concretizou a ampliação da perspectiva pedagógica do
encenador moderno quando manteve o seu próprio estúdio (1913-1917).
Em 1918 ele criou cursos para encenadores e cenógrafos, e em 1921
inaugurou as “oficinas de encenação” e um “laboratório de técnicas do
ator”. O ator Garine escreveu que nos atelliers todo mundo aprendia, "os
professores e os alunos".

Além destes dois “pais fundadores” da pedagogia teatral do Ocidente,


podemos destacar os nomes de Vakthangov, Michel Checkhov, Jacques
Copeau, Bertolt Brecht, Jerzy Grotowski, Viola Spolin, Ariane Mnouchkine,
Eugenio Barba, Peter Brook. Para eles, a pedagogia não é uma atividade
"paralela" à prática cênica, mas sim, uma necessidade inerente à sua
atuação. Cada espetáculo destes diretores impõe problemas diferentes,
gerando um programa de trabalho particular, considerado como um
elemento capaz de reformular a linguagem cênica.

Por outro lado, a pedagogia para a cena é vista como uma pedagogia para
a vida, devendo extrapolar o aprendizado da linguagem teatral. Para
Dantchenko, “um autêntico encenador deve ser um pedagogo”, ao passo
que para Stanislavski, o ator deve ser um "homem ideal", a saber:

"O estúdio impõe regras de trabalho, uma ética profissional, o senso de


responsabilidade no grupo diante do teatro, diante do público, diante da
época. Ele exige qualidades humanas, um espírito de equipe em torno de
4
um modo de vida em comum (...)"

Depois da fundação do Vieux-Colombier, o encenador francês Jacques


Copeau não cessou de considerar o fazer teatral como uma escola, no
sentido da necessidade de uma exploração intensa, resultante de uma
disciplina educativa. Em 1919 ele afirma que “a idéia da Escola e a idéia do
Teatro não são mais que uma só e única idéia”, ressaltando nesta
pedagogia a importância do jogo:

“A educação do senso dramático vai estar fundada essencialmente sobre o


jogo (no sentido lúdico) - portanto o instinto está ainda vivaz como no
jovem aprendiz - e sobre a improvisação que rende ao comediante a leveza,
a elasticidade, o verdadeiro caminho espontâneo da palavra e do gesto, o
verdadeiro sentimento do movimento, o verdadeiro contato com o público, a
5
inspiração, o fogo e a audácia do farsante”.

Durante todo o século XX, e principalmente após a década de 1960,


surgiram grupos interessados em uma prática do teatro para além do
artesanato bem feito de espetáculos de entretenimento. Concordamos com
Eugênio Barba quando afirma que as verdadeiras experiências teatrais que
subsistirão no futuro e irão influenciar o teatro estão ligadas ao processo
pedagógico:

4
Stanislaviski, 1989, p. 110.

5
Copeau cit. in Ertel, Èvelyne. “Commencer par le commencement” In: L’ art du théâtre
n.8: Le metteur en scène en pédagogue. Paris, Actes Sud/ Chaillot Théâtre National, abril de
1988. p. 119.

4
“A pedagogia como um ato criativo é uma realização da necessidade de criar
uma cultura teatral, uma dimensão do teatro cujos espetáculos somente
satisfazem parcialmente, e que a imaginação traduz em tensão vital. É por
isso que no princípio do século vinte o teatro existiu primariamente por
intermédio da pedagogia (antes que isso se tornasse enaltecido, organizado
e didático) e porque a pedagogia pode ser vista como uma linha direta na
6
continuidade da maioria das experiências teatrais significantes da época.”

No âmbito de nossa abordagem, interessa-nos uma integração entre


encenação e pedagogia do teatro. Nesse sentido, referindo-se ao trabalho
de Grotowski e Barba, Monique Borie afirma que:

“(...) é impossível distinguir o encenador do pedagogo. O pedagogo que


dirige a aprendizagem técnica e o encenador que elabora com o grupo um
espetáculo são a mesma pessoa. A osmose é total entre os processos de
treinamento e os processos de criação” (..) Não existe um vai e vem ou
tensão entre duas funções, de circulação entre dois papéis. A encenação na
sua essência é fundada sobre a relação pedagógica. Mas, esta relação
pedagógica define de algum modo o próprio ato de fazer teatro, tanto
7
quanto a preparação para esse ato.”

1.1.2. A pedagogia na encenação brasileira

No Brasil, parte da renovação da cena ocorrida no século XX começa com


iniciativas como o Teatro-Escola dirigido por Renato Vianna, que introduziu
na cena brasileira a figura do encenador 8.

No início dos anos 20, Renato Vianna deflagra sua luta utópica pela
renovação dos processos artísticos e do sistema ético no teatro, com o
lançamento da sua peça “A Batalha da Quimera”. A história do teatro
brasileiro ainda não valorizou o suficiente a figura desse artista como sendo
a primeira manifestação brasileira da arte do encenador. Na pesquisa ainda
não publicada “A Batalha da Quimera – Renato Vianna e o modernismo
cênico brasileiro“, Sebastião Milaré defende a tese de que foi Vianna o
pioneiro da encenação brasileira. Segundo ele, para a maioria dos autores,
parece suficiente citar o espetáculo “A Última Encarnação do Fausto”,
(1922), com a participação dos modernistas Heitor Villa-Lobos e Ronald de
Carvalho, como sendo apenas uma tentativa de se fazer “teatro síntese”
representando uma contestação à velha escola teatral através da subversão
dos valores cênicos, sem perceberem a raiz profunda da tentativa de
modernização do teatro realizada por Renato Vianna.

Sobre esse tema, Paschoal Carlos-Magno, no prefácio do volume I da obra


completa de Renato Vianna, afirma que aquele diretor teve a “suprema
audácia, a esplêndida coragem de traduzir na cena silêncios, valorizando-os
com gestos” e ele “procurou inicialmente, sublinhando o drama de

6
Barba in Cruciani, op.cit., p. 28.

7
Borie, op.cit., p.128.

8
Milaré, Sebastião. “Apontamentos cronológicos do desenvolvimento da encenação no
Brasil”. IN: Sete palcos, revista da cena lusófona. Lisboa, 1998.

5
situações e palavras, usar de recursos luminosos e sonoros” e, para
escândalo dos seus contemporâneos, ousou “representar de costas para o
público tentando esquecer-se deste na procura da verdade na arte”.9 Milaré
vai de encontro a críticos do relevo de Sábato Magaldi, Gustavo Doria,
Bárbara Heliodora que apenas mencionam de passagem o significado
histórico de “A Última Encarnação do Fausto”, como tentativa de
modernização dos nossos palcos, mas não cogitam consignar-lhe o título de
“modernista cênico”.

Vianna reconheceu a importância da renovação pedagógica como agente


propulsor na mudança da estética adotada nos palcos, tendo sido também
pioneiro ao inaugurar em 5 de outubro de 1934, o Teatro “Escola”. Esta
instituição vinculada a um núcleo cênico de pesquisa deveria se apresentar
pelo Brasil e pretendia “formar o artista teatral, dando-lhe uma
personalidade à altura da sua missão, - uma das mais nobres e difíceis, -
pelo sacrifício que impõe e pela cultura moral e intelectual que exige” 10.
Suas palavras, na época da inauguração da Escola, ainda nos soam como
atuais:

“Há quinze anos venho sofrendo pela consolidação de um teatro de arte


nacional. (...) O duelo travado tem sido tremendo e desigual: de um lado,
eu e meus ideais de cultura popular por intermédio de um teatro de arte ao
nível da dignidade humana; do outro, os negocistas inescrupulosos, os
histriões, os açougueiros da arte, os caftens dos intelectuais invertidos e
políticos ignorantes que eles conseguem hipnotizar, respectiva ou
simultaneamente, à sua bolsa e à sua lábia para exploração dos instintos
baixos da turba, transformando o teatro numa feira de corrupções e
11
imbecilidades.“

Ao realizar seus intentos no palco, assumindo o papel de encenador,


levando vários profissionais de primeira linha a experimentar novos códigos
interpretativos, e também como professor e criador de projetos
pedagógicos, Renato Vianna, efetivamente, renovou o teatro do seu tempo,
preparando-o para a definitiva modernização dos conceitos teatrais e de
seus processos cênicos que eclodirá no Brasil 60 anos mais tarde.

Outro exemplo de pioneirismo foi Paschoal Carlos Magno, amigo e


companheiro de lutas de Vianna. Ele deu continuidade àquele ideal como
criador do Teatro do Estudante do Brasil e os Festivais Nacionais de Teatro
do Estudante, que continham uma preocupação pedagógica intrínseca,
voltadas para a renovação da linguagem cênica. Seu trabalho teve grande
repercussão no país como estímulo à criação de uma cultura de teatro de
grupo permanente.

Foram estas noções de teatro de pesquisa, do ator como estudante e da


necessidade de romper com a forma de teatro convencional - que
começaram a ser difundidas por pioneiros como Vianna e Paschoal -

9
Paschoal Carlos Magno, artigo publicado sob o título “Jesus bate às portas, no Regina”, no
Correio da Manhã, RJ, 15/01/1948 (cit. in Milaré s.d., p.2.).

10
Viana cit. in Milaré, Sebastião. Renato Vianna. São Paulo, (texto inédito, s/d), p.197.

11
Renato Vianna, cit. in Milaré, op. cit, p.198.

6
influenciaram diversos grupos no país, tais como Os comediantes. Na
década de 1940, com a intenção de valorizar o surgimento de uma
dramaturgia moderna, este grupo convida Ziembinski para dirigir a
montagem de “Vestido de Noiva”, espetáculo que se tornou um marco
fundamental na renovação do palco brasileiro.

Na década de 1950, com a vinda dos diretores italianos, podemos destacar


a atuação de Ruggero Jacobbi como exemplo importante para o surgimento
de um modelo pedagógico de natureza crítica, alicerçado num pensamento
dialético que influenciará nomes importantes da chamada “primeira geração
de diretores brasileiros”, conforme críticos do calibre de Sábato Magaldi e
Décio de Almeida Prado. Sobre essa atuação destacamos o depoimento de
Antunes Filho:

“Acho que, se naquele momento irrompeu o diretor brasileiro, (...) a força


vetora de tudo isso foi Ruggero Jacobbi aqui em São Paulo, (...) (ele)
escrevia sempre a respeito de se criar um teatro brasileiro, com autores e
diretores brasileiros, porque havia uma desconfiança geral quanto ao diretor
brasileiro.(...) Ele já falava de Brecht, muito antes de Paris; era homem que
falava de Brecht pra gente, um homem que falava do teatro político, um
12
homem que falava de todos os problemas do teatro”.

Ruggero difunde a concepção de direção teatral como sendo uma “operação


crítica“, cujo objetivo é “sintetizar um fato de cultura com uma realização
artística”. Acreditando na estreita relação entre teoria e prática,
desenvolveu projetos pedagógicos como o Curso de Estudos Teatrais, em
Porto Alegre, no qual selecionava o repertório a ser montado, tendo em
vista o estudo de três categorias fundamentais da expressão cênica: a
tragédia, a comédia e o drama13. Fernando Peixoto, um de seus alunos
mais dedicados, realça suas qualidades de pesquisador e pedagogo:

“Incansável batalhador do campo das idéias e da política (Ruggero)


participou da fundação do teatro de Arena de São Paulo, empenhou-se na
batalha por uma dramaturgia nacional e para espaço para os encenadores
brasileiros, com uma lucidez crítica permanente, dinâmica, instigante, uma
generosidade estimulante, uma capacidade espantosa de despertar o
entusiasmo pelo trabalho criativo permanente, tornando-se pouco-a-pouco
um dos mais profundos conhecedores do processo cultural nacional e
integrando-se ao mesmo, a partir de uma postura marxista, como
companheiro e amigo de todos os que se entregaram à luta cotidiana por
14
uma sociedade culturalmente livre e soberana.”

Na aula inaugural do Curso de Arte Dramática da Universidade do Rio


Grande do Sul, em 1958, Ruggero defende uma pedagogia aberta à
investigação do novo e ao seu risco:

12
Antunes Filho, cit. in Raulino, op.cit., p.262.

13
Raulino, op.cit., pp.182 e 184.

14
Fernando Peixoto, cit. in Raulino, op.cit, p.263.

7
“A única atitude respeitável para o teatro de hoje consiste em pôr à prova,
até o extremo limite de nossas energias, tudo o que sentimos vibrar de vida
humana, de protesto, de revolta. Qualquer tentativa de acorrentar essa
exigência de liberdade a teses e programas rígidos deve ser considerada
uma ameaça grave. Até mesmo a ambigüidade é importante e necessária”.
(…)15.

Ruggero salienta a necessidade de um equilíbrio entre o aprendizado de


uma tradição teatral e a atitude investigativa voltada para novas
possibilidades da linguagem cênica, equilíbrio este que continua em pauta
quando pensamos na pedagogia do teatro hoje em dia:

“Um teatro fundado sobre o passado é regressivo, estatizante, nostálgico e,


enfim, se encontra num beco sem saída. Um teatro que pensa só no futuro
é veleidade: é facilmente superado pela teoria e pela prática revolucionária.
Só colocando-se no cruzamento onde se cruzam os tempos e se
interseccionam, realizando uma síntese violenta através da escritura
dramatúrgica e cênica, o ato teatral se torna verdadeiramente história: isto
é, deixa de ser positivistamente antropológico e utopicamente revoltoso, ou
banalmente crônica e se torna um ato total, que descobre a própria
Essência e revela a própria necessidade frente aos outros meios de
comunicação”. 16

A partir de 1960 muitos foram os diretores que se sobressaíram devido às


suas preocupações pedagógicas. A seguir nomeamos os principais artistas e
grupos que influenciaram a renovação da cena brasileira, desenvolvendo
práticas nas quais os atores também participavam efetivamente como co-
autores do discurso cênico. Deste grupo de diretores os mais significativos
para a formulação da proposta em tela foram José Celso Martinez Correa e
Augusto Boal, cujas abordagens destacaremos nos a seguir e no segundo
capítulo.

Na década de 60 o ator e professor Eugenio Kusnet, junto ao grupo


Oficina17, orientou o aprendizado de sua versão do sistema desenvolvido no
Teatro de Arte de Moscou. Da mesma forma, a contribuição de Augusto
Boal foi fundamental para divulgar no país tanto o entendimento
americano, via Actors Studio, do sistema de Stanislavski, quanto o teatro
épico de Brecht. De Boal destacamos ainda a participação na organização
do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena, exemplo bem sucedido
de iniciativas pedagógicas que promoveram mudanças artísticas.

De 1970 em diante, podemos destacar o movimento nacional de teatro


amador, que alavancou a noção de teatro como ação cultural e política. A
influência de César Vieira e o grupo “Teatro União e Olho Vivo” Ilo Krugli e
o Vento forte, Amir Haddad e o “Tá na rua”, os cursos e espetáculos no
Teatro Ipanema de Rubens Correa e Ivan Albuquerque (RJ). Uma

15
Jacobi cit. in Raolino, Berenice. Ruggero Jacobbi: presença italiana no teatro
brasileiro.São Paulo, Perspectiva, 2002 , p.274.

16
Jacobbi cit. in Raulino, op.cit., p.271.

17
Cf. Corrêa, 1998, p. 39.

8
pedagogia para o atuador/performático foi desenvolvida por Hamilton Vaz
Pereira à frente do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone (RJ). Os cursos de
Naum Alves de Souza deram origem ao grupo Pod Minoga (SP), dentre
outros.

Na década de 80 o Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo consolida-se,


assim como os Festivais e o intercambio nacional com o Projeto
Mambembão18, surgindo grupos cuja atuação modificou o contexto cultural
das cidades fora do eixo Rio-SP: “Galpão”(MG), “Alegria Alegria“ e
“Estandarte”(RN), “Imbuaça (SE), Ponto de Partida (MG), dentre tantos
outros. Surgiram então novos centros de formação, tais como o de
pesquisa e pedagogia organizado em Porto Alegre pelo grupo Oi Nós Aqui
Traveiz, e o Lume, núcleo de pesquisa fundado por Luís Otávio Burnier na
Universidade de Campinas. Um curso de Antunes Filho gerou o espetáculo
e o grupo Macunaíma. O Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do SESC de São
Paulo é criado sob a coordenação de Antunes e desde então vem realizando
obras resultantes de longos processos de aprendizagem, tendo como meta
a busca de um ator renovado.

Na década de 90 surgem novos grupos que se dedicam a diferentes formas


de participação dos atores na dramaturgia, tais como a Cia do Latão, Os
Parlapatões e a Cia dos Atores dirigida por Henrique Diaz, dentre outros.
Por outro lado os mestres se renovam. Antunes Filho desenvolve o projeto
Prêt-à-porter no qual os atores também escrevem e discutem a
dramaturgia, como parte integrante de sua formação. É um grupo de
atores liderado por Marcelo Drumond que viabiliza o ressurgimento do
teatro Oficina de José Celso, equipe cada vez mais aberta à influência dos
seus membros na recriação dos textos.

Dos grupos surgidos no final do século XX, ressaltamos a influência do


Teatro da Vertigem coordenado por Antonio Araújo, como uma contribuição
significativa na formulação de nossa abordagem. O método “colaborativo”
de construção dramatúrgica, centrado no diálogo entre atores, escritor e
diretor abriu perspectivas inovadoras no panorama teatral brasileiro,
conforme atestam diferentes obras e dissertações sobre o assunto.

Deste grupo, destacamos o experimento que gerou o espetáculo Apocalipse


1,1119, do qual participamos como assistente de direção, durante o ano de
1999. A análise desta experiência resultou fundamental para o
desenvolvimento de nossa proposta para o exercício dos papéis de diretor e
dramaturgo por iniciantes e professores, que será descrita no capítulo dois.

18
Projeto da FUNARTE, órgão do governo federal que selecionava grupos de teatro fora do
eixo das grandes capitais como Rio de Janeiro e São Paulo, produzindo temporadas de seus
espetáculos nessas cidades.

19
No espetáculo Apocalipse 1,11, o público percorre o espaço de um presídio desativado, no
Brasil. A peça estreou em janeiro de 2000, como conseqüência de um projeto artístico e
pedagógico coordenado pelo diretor Antônio Araújo e seu grupo de atores do Teatro da
Vertigem, sendo considerada pela imprensa como a conclusão da “trilogia teatral da
década”.(Cf. Teatro da Vertigem.Trilogia Bíblica.(organização de Arthur Nestroviski).São
Paulo, Publifolha, 2002.)

9
O processo começou com workshops de improvisação a partir do tema
“apocalipse brasileiro”. Deste material, o autor criou um protótipo de texto,
que serviu de ponto de partida para o processo colaborativo de construção
das cenas e reconstrução simultânea do texto (cinco horas, cinco dias na
semana, durante dez meses). Neste período, o autor desta tese participou
na função de assistente do diretor e como membro da equipe do autor,
Fernando Bonassi. A metade dos ensaios com os atores foi voltada para
práticas de improvisação de novas cenas e de retomada dos jogos teatrais.

O que nos interessa neste experimento do Teatro da Vertigem é o alto grau


de participação, não só dos atores, como também dos assistentes de
direção, dramaturgistas, cenógrafos, iluminadores, na criação do discurso
teatral. Na condição de assistente de direção de Antonio Araújo tivemos a
oportunidade de nos apropriar, através da prática, dos principais
procedimentos da abordagem do ator-criador que propõe ações dramáticas,
textos, que inventa personagens para dialogar com o diretor e o
dramaturgo. O segundo aspecto que valorizamos no experimento, nessa
fase do processo, diz respeito à abertura, para pessoas que não pertencem
ao grupo, poderem acompanhar e, por vezes, influir de forma colaborativa
na complexa construção do texto teatral em andamento.

Diferentes oficinas de ensino de teatro funcionaram paralelas à pesquisa


20
dos atores: duas delas com apenados do presídio do Carandiru , uma
turma de iniciação à interpretação, coordenada pelos atores e outra de
dramaturgia, coordenada pelo autor. Na Oficina Cultural Oswald de
Andrade, no período entre abril e dezembro de 1999, foram realizadas
diversas oficinas abertas à comunidade21, integradas aos ensaios de
interpretação, cenografia, iluminação, produção e encenação.

A análise dessa prática, através da revisão bibliográfica, da sistematização


de anotações feitas durante a montagem, de entrevistas com participantes
das oficinas de direção e de diferentes reuniões com o encenador, permitiu
a consolidação de nossa proposta na modalidade de processo colaborativo
em rodízio, para criação de discursos cênicos com iniciantes, que
apresentaremos no segundo capítulo.

1.2. A abordagem de José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina

José Celso Martinez Corrêa é considerado um encenador que deu respostas


brasileiras a alguns dos principais movimentos e tendências estéticas da
cena moderna e contemporânea ocidental22. A trajetória do seu grupo é
uma parte fundamental na organização de qualquer curso que priorize a
linguagem da encenação brasileira. Se observarmos o seu programa de

20
Na época, o maior presídio da América Latina, com mais de sete mil apenados.

21
Algumas delas, como a de direção, com acesso através de entrevistas e testes. Outras
permitiram o ingresso de iniciantes, sejam jovens atores ou técnicos em cenografia e
iluminação.

22
Baseamo-nos em autores como Sábato Magaldi, Décio de Almeida Prado, David Jorge,
Armando Sérgio, Mauro Meiches, Sílvia Fernandes, Luiz Fernando Ramos, dentre outros.

10
montagens, podemos compará-lo ao de uma escola de teatro, abordando e
recriando as propostas de autores como Stanislavski, Brecht, Oswald de
Andrade, Artaud, Grotowski, para ficarmos com os exemplos clássicos,
além de ter avançado e canibalizado a estética “pós-moderna”. Este diretor
investigou possibilidades da encenação não-dramática para, em seguida,
encontrar uma abordagem dramatúrgica que sintetizasse as propostas de
Brecht, Artaud e Oswald: o "Te-Ato" com texto clássico brasileiro, em “Os
Sertões”.

1.2.1. A devoração dos clássicos antigos e modernos: a atitude


antropofágica na apropriação de textos

Da prática de José Celso como encenador, um importante referencial que


fundamenta nossa abordagem dos textos antigos e modernos é a
antropofagia cultural inicialmente defendida por Oswald de Andrade23.
Estimulamos o desenvolvimento de uma “atitude canibal” do futuro
professor em relação aos mestres da tradição e da cena contemporânea
teatral, tendo em vista a apropriação crítica tanto de proposições estéticas
para a cena, quanto de procedimentos de encenação que possam ser
adaptados para a sala de aula.

Propomos então que esta “atitude canibal” possa permear todo o processo
de criação dos experimentos conduzidos pelos alunos, desde a seleção e
utilização do espaço, à concepção cenográfica e dramatúrgica da
encenação. A Antropofagia é entendida em nosso trabalho, não como
movimento artístico, forma fixa ou modelo, mas como uma atitude:

“(...) A antropofagia deveria ser definida como uma atitude em relação à


miríade de modelos culturais originários da experiência colonial brasileira
(...), o denominador comum das criações antropofágicas é o uso livre de
24
todos os modelos culturais disponíveis, não importando a sua origem” .

Apesar de o desenvolvimento da história nos impedir de permanecer


concordando com algumas idéias defendidas pela vanguarda artística na
primeira metade do século XX – como a crença no socialismo como
proposta viável de mudança no sistema, a visão idealizada quanto à pureza
do índio, ou a necessidade de exportação da cultura pau-brasil – a
antropofagia cultural propõe uma atitude ao mesmo tempo não-reverente e
não-xenófoba para com o produto cultural estranho ao nosso universo.

Esta atitude de abertura ao confronto crítico e lúdico ainda nos parece


muito atual e particularmente recomendável em contextos como o Brasil,
que, reiterando Gerald Thomas, possui uma nacionalidade cuja idéia de
mundo é “quase pré-colombiana, vendo o mundo de longe, celebrando seus
encantos com uma mistura de idolatria e superstição 25”.

23
ANDRADE, Oswald. Do pau-brasil à antropofagia e às utopias. (Obras Completas, vol. 6)
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972.

24
GEORGE, David. Teatro e antropofagia. São Paulo, Global, 1985, p. 87.

11
Deste ponto de vista, o termo canibal tenta abarcar o indivíduo que olha a
obra cultural alheia com interesse, estranhamento o desejo de apropriação
crítica, sem a intenção de imitar, nem sentimento de inferioridade. Um
canibal sabe escolher o melhor referencial artístico de outro contexto,
capturá-lo, desconstruí-lo e rearranjá-lo conforme a dinâmica da sua
própria cultura. Ele se opõe ao colonizado e ao tradicionalista. O primeiro é
aquele indivíduo que absorve o elemento cultural produzido noutros lugares
como um modelo a ser seguido ou simplesmente admirado com respeito. A
abordagem tradicionalista compreende aqueles que defendem a não-
contaminação entre culturas, e a conservação das formas tradicionais do
passado recente, ou do folclore.

A idéia da antropofagia, como a compreendemos, é um enfoque aberto e


não dogmático dos problemas da dependência cultural, que não endossa a
retórica nacionalista de autores como Ariano Suassuna, mas que se
mantém crítica em relação aos códigos estéticos tanto estrangeiros, quanto
brasileiros, que se limitam à cópia.

De acordo com o tema ou a questão que origina o experimento de


encenação a ser conduzido pelo aluno, apresentamos e estimulamos a
pesquisa de diferentes elementos – textos, imagens, músicas, concepções
cenográficas - que possam servir de ponto de partida ou de retomada de
jogos teatrais. Nesta proposta, a escolha do material a ser canibalizado não
pode prescindir de qualidade estética, seja ele nacional ou estrangeiro, e
que também seja representativo no universo das principais obras da
humanidade.

1.2.2. O experimento artístico e pedagógico de “Os Sertões”

O projeto “Os Sertões” compreende a criação de diversos espetáculos no


período entre 2001 e 2005 pelo Teatro Oficina Uzyna Uzona, dirigidos por
José Celso Martinez Correia.

Dentro da trajetória dos quarenta e sete anos do grupo, até hoje, esse
projeto se destaca pela realização de oficinas pedagógicas sistematizadas,
abertas a atores de outros grupos e iniciantes, cujas pesquisas
contribuíram para a criação dos espetáculos. O encenador resume a gênese
da montagem de “OS SERTÕES” de Euclides da Cunha:

“Essa história começa nos anos 70 (...). Na Grécia, os cineastas Zé Celso e


Celso Lucas leram a Terra e juraram perante os deuses de lá, filmarem “Os
Sertões”.(...) Início dos anos 80, no antigo teatro enquanto se projetava o
atual, antes da demolição, Zé Celso, Catherine Hirsh, Surubim, Edgar
Ferreira, Zuria, Pascoal da Conceição, Luciana Domscke e outros artistas
enveredaram pela leitura do livro. No final da década, durante a campanha

25
THOMAS, Gerald. “Menino você esteve com ele?” In: Fernandes, Silvia e Guinsburg,
Jacó.(orgs.) Um encenador de si mesmo: Gerald Thomas. Ed. Perspectiva, São Paulo, 1996,
p.162.

12
eleitoral da primeira eleição direta para presidente, o teatro estava em
26
construção, e o livro tornou-se o objeto de força da luta do Oficina.”

Em 2000 José Celso decidiu retomar “Os Sertões”, “premido pelas


circunstâncias de um embate, tipo David contra Golias (a ameaça de um
shopping center, incorporado por um poderoso grupo econômico, de lacrar
a estreita caixa do teatro Oficina)”27. Inicia uma série de leituras, cuja
ênfase didática na compreensão do texto fica evidente na primeira fase,
fase esta superada depois de meses de leitura com apoio do dicionário: “Ia-
se lendo cuidadosamente e parando, cada vez que uma palavra estranha
surgia, para consultar o dicionário.” 28

A abertura do processo de criação para alunos, atores e iniciantes.

Este trabalho de leitura interna preparou o grupo para o “tratamento do


livro”, ou seja, o exercício da tradução do texto narrativo de Euclides da
Cunha para a cena, tarefa iniciada durante as oficinas pedagógicas
realizadas na Oficina Cultural Três Rios (atual Oswald de Andrade). Nelas,
José Celso Martinez Corrêa, Tom Zé, músicos e atores jovens e iniciantes
transformaram o episódio “A Terra” em musical e encerraram a fase de
trabalhos com a adaptação das cenas de “O Homem”.

“Na oficina Três Rios, apenas com seus corpos, um bastão, planejamentos e
seus pouquíssimos elementos, jovens reproduziam o que Zé Celso chamou
de ‘maquete de música, encenação para um espetáculo’ (...) Imagens
fotográficas arranhadas dão uma idéia do excelente resultado dos exercícios
que, inspirados pela força do texto, os alunos foram aos poucos
29
arquitetando” .

É interessante notar, no depoimento de Lenerson Polonini30, 22 anos, aluno


das oficinas de direção oferecidas pelo grupo na Oficina Cultural Três Rios
que, em seguida, irá dedicar-se à carreira de diretor de teatro profissional,
como o contato com a abordagem de José Celso influenciou a construção
de uma atitude político-estética em relação ao fazer e pensar teatro sem,
no entanto, direcionar sua linguagem cênica:

“Mais do que aprender técnicas de direção de forma didática e organizada, o


que obviamente não aconteceu, aprendemos e refletimos num ‘continuum’
entre leitura, improvisação, avaliação. Sinto que nas oficinas de direção dos
‘Sertões’ aprendi, antes de mais nada, a desenvolver uma atitude de
seriedade em relação ao fazer teatro, de dedicação integral, radical,

26
José Celso M. Corrêa em página do grupo na Internet: www.teatroficina.com.br

27
Ramos, Luis Fernando.“Dossiê Os Sertões”, Revista Sala Preta, São Paulo, Escola de
Comunicações e Artes, USP, 2002, pp.137-138.

28
Ramos, op. cit., p.137.

29
Vargas, Maria Tereza. “Dossiê Os Sertões”, Revista Sala Preta, São Paulo, Departamento
de Artes Cênicas da Escola de Comunicações da USP, 2002, p.141.

30
Jovem diretor paulista que há alguns anos pesquisa a estética teatral do dramaturgo e
encenador Samuel Beckett, através de diferentes montagens das suas peças com a Cia Nova
de Teatro Moderno.

13
apaixonada, exigente. Zé Celso me ajudou a estruturar questões antes não
pensadas como ‘Qual o sentido de encenar este texto?’ ‘Como atualizar a
questão do texto para o Brasil de hoje, como fazê-la ter sentido para uma
platéia contemporânea?’ Estudar para ensaiar, criar, voltar ao estudo, ler
muito, entender o que se está dizendo, como se está dizendo, para depois
poder improvisar. Aprendi também a respeitar o ator, e os demais
participantes, também como proponentes da cena, como alguém que não
apenas interpreta mas também propõe músicas, ações. Aprendi, no Teatro
Oficina, que a total liberdade é possível, quando se é rigoroso e se trabalha
31
muito, sem se contentar com as primeiras soluções” .

A experimentação nas oficinas gerou a invenção de uma abordagem cênica


do texto de Euclides da Cunha, como escreveu o diretor:

”Nesta adaptação, que nos serviu como referência para o trabalho atual, a
Campanha de Canudos se funde com a história dos presidentes (de Getúlio
às eleições diretas) e, com a transformação do Teatro OFICINA (de 1961 até
32
sua reconstrução).”

Este fato aumentou o nosso interesse na montagem específica deste


episódio do romance de Euclides da Cunha, que tivemos a oportunidade de
acompanhar, no período entre maio e novembro de 2003. Anos antes, o
diretor havia registrado o seu entusiasmo com essas oficinas naquele
período inicial:

“Em 16 de agosto de 2000 - aniversário do Teatro Oficina - iniciamos a


leitura do livro com os atores da Companhia. Em outubro, com o Projeto de
Residência Externa da Oficina Cultural Oswald Andrade, cerca de 100
pessoas divididas em oficinas de: atuação, direção, direção de arte, vídeo,
dramaturgia, programação visual e iluminação, se reuniram no Teatro
Oficina. Foram seis meses de trabalho, em que lemos o livro em coro e
demos um novo tratamento para a Terra que foi apresentada no dia 23 de
dezembro.(...)

Em 2001 trabalhamos ‘o Homem’. Suas cenas foram levadas nos dias 1º e 7


de Maio, por atores junto aos integrantes do Movimento de Moradores sem
Teto, para as ruas: Abolição, a Praça da Sé e o pátio do Colégio. Ato que
encerrou o ciclo de oficinas.(...)

A primeira parte de A Luta, (expedições 1, 2 e 3), foi apresentada no


Festival Internacional de São José do Rio Preto, no dia 25 de julho, e em
São Paulo, no dia 16 de agosto de 2001, em comemoração aos 40 anos do
Teatro Oficina. Os estudos prosseguiram durante os meses de setembro e
outubro, encerrando o ano com a realização do debate público: “As relações
33
entre a guerra de canudos e a do Afeganistão.“

31
Polonini, Lenerson. (Entrevista ao autor, dezembro de 2004).

32
Corrêa, José Celso Martinez. “Os quatro tempos dos quarenta anos do Oficina”. Sítio do
Teatro Oficina na Internet: www.teatroficina.com.br

33
Corrêa, idem, ibidem.

14
Nos planos de José Celso pudemos perceber a influência da pedagogia
brechtiana 34 na mistura de atores e público, quando ele planejava
determinados encontros-happenings em torno de trechos literários, eventos
que se inspiraram na proposição do ato artístico coletivo de Brecht35.
Segundo esta proposta utópica de um teatro do futuro sem separação entre
atores e a audiência, os textos poéticos (fragmentos ou peças curtas) são
jogados, no sentido do Theaterspiel, ou seja, podem ser recriados conforme
as necessidades e o contexto:

“Estamos, a partir de 2 de maio, em campanha com o ENCONTRO COM OS


SERTÕES, em dez casas de cultura da Secretaria Municipal de Cultura,
procurando encontrar pessoas cujas vidas revelem a herança cultural de
Canudos e descobrir juntos Os Sertões hoje, fazendo deste livro nosso canal
de comunicação e expressão. Leremos uma cena do livro e com os
presentes encenaremos misturando os atuadores do Oficina com os
36
oficineiros das Casas de Cultura. Merda!”

Outro momento de pedagogia com iniciantes foi a consolidação do “Projeto


Bexigão”, que visa a educação de dezenas de crianças e adolescentes do
bairro do Bexiga. No Manifesto Bexigão, em janeiro de 2002, o encenador
incorpora em seu discurso uma preocupação pedagógica explícita:

“Que se crie uma infra-estrutura pública na restauração de muitos espaços e


na conquista de equipamentos para que se desenvolva um trabalho de arte,
educação de artes populares e eruditas. Que o Bexiga seja todo ocupado
com Oficinas, Uzynas Uzonas, Estúdios, Sítios de Arte, como uma
universidade popular onde todo o saber da gaia (sic) ciência das periferias
37
venha se encontrar nesta periferia (...).”

Através do apoio da Lei de Fomento da Prefeitura Municipal de São Paulo e


do patrocínio de pessoas como o jogador de futebol Raí, as oficinas
aconteceram, desta vez na própria sede do grupo, em 2002 e 2003:
preparação corporal, circo, atuação, canto, leitura. Crianças e adolescentes
integrantes dessas oficinas entraram no espetáculo, participando como um
“coro de gado” e “coro dos sem-terra”.

A participação do grupo na dramaturgia

Em segundo lugar interessa-nos o método de criação da dramaturgia em


“Os Sertões”, desenvolvida como um work in progress, mantendo, de certa
forma o espírito inicial das oficinas, no sentido de permitir a proposição de
cenas aos participantes: atores, músicos, diretores de arte e coreografia,
cenotécnicos, iluminadores, que trabalham juntos nos ensaios de
montagem.

34
Cf. Koudela (1997)

35
Conforme abordagem descrita por Koudela (1991;1997).

36
Corrêa, idem,ibidem.

37
Corrêa, idem,ibidem.

15
Após a primeira fase de leituras e improvisações, a edição de uma nova
versão do texto, feita no escritório, pelo diretor-autor e seus auxiliares
dramaturgistas, é o ponto de partida de um novo processo: a montagem,
onde podem ser ainda incorporadas cenas, quadros coreográficos, músicas,
sugeridas ou criadas pelos atores, técnicos, diretores e, por vezes, alunos.

Foi muito interessante poder acompanhar os ensaios de levantamento de


cenas do espetáculo “O homem”. Durante ensaios diários de mais de sete
horas, quase sempre juntos, atores, músicos, artistas e técnicos da
cenografia e da iluminação improvisaram suas cenas após o novo texto
escrito. Por exemplo, diversas vezes os atores trouxeram propostas de
composições musicais para trechos do texto que foram pacientemente
escutadas pelos músicos e demais atores, sofreram interferências do
diretor e do dramaturgo, foram recriadas pelo maestro e seus músicos e,
após três horas de tentativas, avaliações grupais e retomadas direcionadas
pelo encenador, se transformaram em um “quadro”, onde se misturaram a
narrativa épica, o song (número musical e narrativo de influência
brechtiana) e os elementos da tradição do samba ou do maracatu, assim
como jogos dramáticos populares brasileiros.

A preparação pré-expressiva e a atitude do ator brincante

O terceiro aspecto da abordagem de José Celso que nos parece importante


para o professor é seu enfoque sobre o ator jogador ou o ator-brincante, o
respeito à tradição popular brasileira, da atuação épica e carnavalizada.

No que se refere à preparação do ator, chama-nos a atenção o princípio de


procurar iniciar cada encontro por práticas que conduzam à transição de
atores e demais participantes do “estado de prosa” para o “estado de
poesia”, tais como danças circulares, cirandas, danças e cantos coletivos. O
diretor defende que o ator precisa, antes de mais nada, estar pleno de
energia, em atitude de jogo com os colegas e o público, em relação às
vezes, direta, ora como personagem ora como narrador, ora como o próprio
ator. Trata-se da mesma preocupação de autores como Michel Chechov
quando fala da necessidade de o aquecimento promover a sensação de
poder do ator sobre o espaço, assim como de “irradiar” energia, colocando
todos em sintonia, em conexão de jogo.

O diferencial é que a busca desse estado, segundo este nosso recorte da


prática da Oficina, pode vir através de canções e danças de nossa tradição,
assim como de outras práticas grupais de celebração em grupo, como os
rituais de espelho coletivo.

Ao analisar essas práticas de preparação para o “te-ato”, sistematizamos


alguns procedimentos experimentados na oficina de encenação com
iniciantes realizada em Interlagos, no âmbito do projeto Teatro Vocacional,
que trataremos nos capítulos 3 e 4. Naquela oficina, por exemplo, pudemos
perceber como aquele tipo de ritual, de dança e canto coletivo, pode passar
a ser significativo no contexto da vida dos participantes, também por se
tornar uma manifestação de identidade cultural, de uma troca de energia,
de uma alegria de jogo, lúdica, prazerosa.

16
Destacamos ainda a forma de avaliação das cenas. Enfoques como os
critérios de avaliação da atuação que diferenciam da atuação
“ensimesmada, narcisista, egocêntrica” da atuação “poética, em conexão
com os demais”, por exemplo, podem ser referência na prática do
professor.

A primeira fase de nossa abordagem metodológica voltada para a


preparação do grupo incorpora e adapta procedimentos de aquecimento de
elenco. Na segunda fase utilizamos procedimentos de criação do texto
cênico de natureza antropofágica, como a colagem, a paródia, a citação, a
intertextualidade, o uso de diferentes linguagens, a performance, a
linguagem cênica popular da tradição: um ator pode criar uma cena a partir
da dança de um Orixá, por exemplo. Quanto à linguagem épica e
carnavalizada de interpretação do ator utilizada por José Celso,
consideramos que esta pode ser uma das modalidades de atuação
fundamental para a análise de alguns espetáculos contemporâneos. Trata-
se, a nosso ver, de uma das referências de atuação que formam o corpus
de conteúdos fundamentais sobre teatro brasileiro na formação do cidadão.

Em síntese, a pedagogia aconteceu de forma explícita, nas oficinas


integradas de dramaturgia, atuação e direção, realizadas na Casa de
Cultura Oswald de Andrade. A apropriação sistemática do texto de Euclides
da Cunha e o levantamento das cenas através das improvisações e
desenhos foram realizados a partir do estudo interdisciplinar da narrativa
literária. A partir da criação das oficinas do “Projeto Bexigão”, abertas aos
adolescentes do bairro, ocorreu a inclusão de alunos de interpretação em
determinadas cenas do espetáculo.

Enfim, entendemos que tanto o diretor de teatro profissional quanto o


professor de teatro devam conhecer esta tradição e as principais
modalidades de procedimentos38 de criação da cena brasileira
contemporânea que permitem a descentralização da autoria da encenação.

A encenação como ilha de desordem: aprendizagem e criação num mesmo


caminho

Estas experiências de encenação destacadas anteriormente podem ser


vistas como “ilhas de desordem” que, segundo a metáfora utilizada por
Heiner Müller, seriam as ilhas que proporcionam a mudança, isto é, aquelas
exceções “revolucionárias” num mar de teatro convencional e comercial,
baseado em fórmulas consagradas e voltado para a produção de
espetáculos de entretenimento ou à manutenção de tradições cênicas:

“Tenho esperança no teatro em pequenos grupos. Como possibilidade de


produzir espaços para a fantasia, espaços livres para a fantasia - contra

38
Utilizamos neste trabalho a noção de procedimento teatral de Pavis, que denomina tanto
os recursos de criação dramatúrgica como os de encenação: ”O procedimento teatral é uma
técnica de encenação, de jogo cênico ou de escritura dramática da qual o artista se serve
para elaborar o objeto estético e que conserva, na percepção que temos dele, seu caráter
artificial e construído. (Pavis, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo, Perspectiva, 1999.
p.306).

17
esse imperialismo de ocupação da fantasia e liquidação por clichês pré-
fabricados e modelo da mídia. Serão apenas pequenos grupos que no futuro
possibilitarão a experiência estética e serão capazes de formular uma
qualidade política, ilhas de desordem no mar da nossa sociedade
capitalista.” 39

Enfim, foram as “ilhas de desordem”, da tradição do teatro ocidental, que


nos inspiraram na formulação desta proposta de aprendizagem dos
fundamentos da encenação contemporânea. Não pretendemos encontrar
princípios para uma teoria geral da encenação, intento que sabemos vão
diante da diversidade de métodos e estilos, mas adotamos um ponto de
vista para fundar nosso enfoque de realização de experimentos artísticos e
pedagógicos de análise, encenação, adaptação e recriação de um texto
teatral.

1.3. Para além do modelo dramático tradicional: o texto


teatral como ponto de partida da ampliação do repertório

Consideramos fundamental que o professor de teatro possa contribuir para


que os alunos sejam capazes de se situar diante da diversidade de opções
dramatúrgicas que vão além do modelo dramático40. A competência para
reconhecer as modalidades da cena teatral e a utilização dos procedimentos
de criação são mais importantes, em nosso enfoque, do que a evolução do
aluno como ator. Deste ângulo, o que interessa em relação à formação do
ser humano é a educação do espectador crítico e do inventor de cenas que
vão alem do modelo dramático. Consideramos importante o
desenvolvimento de sua capacidade de leitura da cena na função de platéia
– como propõem Spolin, Koudela e Pupo, conforme veremos no capítulo
dois. Neste item, propomos como complemento à vivência do jogo nas
funções de ator e platéia, que o aluno possa conhecer textos teatrais
importantes para a sua formação como espectador e cidadão.

O condicionamento formal da cena aparentemente espontânea do jogador,


muitas vezes não é discutido. Entendemos que um professor que objetiva
apenas desenvolver o discurso teatral que o grupo já possui está, sem
querer, abandonando-o ao seu próprio repertório de formas da encenação,
possibilidades literárias e temáticas. Sem conhecer as principais referências
estéticas do teatro, é “natural” que um grupo simplesmente reproduza a
forma de representação à qual está condicionado.

39
Muller, Heiner. Guerra sem batalha: uma vida entre duas ditaduras.(tradução de Karola
Zimber) Estação Liberdade,1997, p.57.

40
Nesta tese, utilizamos o termo dramático para designar tanto uma modalidade de
construção do texto teatral quanto de encenação, na perspectiva resumida por Pavis: ”O
dramático é um princípio de construção do texto dramático e da representação teatral que
dá conta da tensão das cenas e dos episódios da fábula rumo a um desenlace (catástrofe ou
solução cômica), e que sugere que o espectador é cativado pela ação. O teatro dramático
(que BRECHT oporá à forma épica) é o da dramaturgia clássica, do realismo e do
naturalismo da peça- bem-feita: ele se tornou a forma canônica do teatro ocidental desde a
célebre definição de tragédia pela Poética de ARISTÓTELES: imitação de uma ação de
caráter elevado e completo, de uma certa extensão [...],imitação que é feita pelas
personagens em ação e não através de um relato, e que, provocando piedade e terror, opera
a purgação própria de tais emoções”.(Pavis, op.cit., p.110.)

18
Torna-se necessário, por exemplo, relativizar o sistema de jogos teatrais
propostos por Viola Spolin. Quando o professor utiliza o jogo teatral e adota
critérios de avaliação de Spolin, como dizer ao ator “procure mostrar e não
contar” está utilizando e cobrando dos atores critérios inerentes ao modelo
de representação cênica do realismo. Nesta proposta, consideramos que o
professor pode contextualizar esteticamente estes critérios, assumindo
quando está experimentando um jogo realista, mas ressaltando nas
avaliações que existem muitas outras formas de configurar cenicamente a
mesma ação escolhida pelo grupo. É importante apresentar um leque de
opções, para que o grupo experimente um jogo teatral necessariamente
épico, com a instrução que visa a inserção de narrador(es) ou de coro(s),
cuja função seja “contar” (Cf. Pupo e Koudela). Além do contar e do
mostrar, a cena pode abstrair, pode trazer uma visão onírica, abstrata,
“não-figurativa,” do mundo representado. Um exemplo da imposição de
uma modalidade de representação se deu em um experimento num bairro
popular de Natal. Ao pedir que os alunos improvisassem uma situação que
gostariam de abordar no futuro espetáculo de um grupo que sairia da
escola, eles começaram a improvisar sem nenhuma ação no palco, apenas
com alguns gestos comedidos, reforçando um jogo de narrações em versos
rimados. Não havia ação dramática, apenas narração. Na posição de
coordenador, utilizamos as instruções de Spolin: “Não mostre, conte”, e em
determinado momento a dupla de atores parou e disse: “O senhor quer
parar de atrapalhar nossa invenção?” Percebemos naquele momento que
estávamos impondo a forma dramática tradicional, buscando a identificação
do espectador com os personagens mostrados. Enfim, cada exercício de
criação dos alunos, nesta proposta, deve ser comentado pelo professor, que
estimula o grupo a situar a opção adotada no contexto das demais
modalidades de encenação e opções dramatúrgicas.

Sabemos que a maioria dos principais autores da pedagogia do ator, desde


Stanislavski, propõe que no seu trabalho de preparação o ator tenha como
um dos objetivos a tomada de consciência acerca dos clichês e dos padrões
de comportamento que lhe são automáticos. Se acreditamos, como o
psicanalista Wilhelm Reich, que os movimentos e comportamentos
humanos são limitados por “couraças” - bloqueios musculares resultantes
de sucessivas repressões em nossa formação – o ator precisa “dissolver”
essas “couraças” através de um trabalho físico que vise a exploração de
novas possibilidades de movimentos. Assim como Grotowiski, Barba e Boal
propõem que o ator, em primeiro lugar, busque o descondicionamento
muscular em relação às técnicas cotidianas (o comportamento automático
do ator) e às extracotidianas (as técnicas e formas corporais e vocais do
palco) que surgem naturalmente no jogo de improvisação do ator,
defendemos o descondicionamento estético do participante que atua em
experimentos de dramaturgia. Ou seja, os pedagogos concordam que é
preciso ir além do padrão de comportamento cênico “automático” do ator,
para que o mesmo possa encontrar novas formas corporais e vocais,
enriquecendo a elaboração dos personagens.

No que se refere ao trabalho com iniciantes, propomos que o coordenador


promova a conscientização do grupo, dos seus modelos “espontâneos” de
encenação, ou seja, a forma como improvisam ou concebem cenas

19
espontaneamente. Muitas vezes percebemos que os grupos, por exemplo,
são moldados pelas referências de narrativa cênica da televisão e do
cinema realista hegemônico, e quando muito, da sua experiência anterior
como público de teatro, na maioria das vezes limitada, no Brasil, por vários
problemas de ordem econômica, social e educacional, dentre outros, que
dificultam o acesso às manifestações teatrais. A partir deste diagnóstico, o
coordenador pode propor a investigação coletiva de outras formas de
espetáculo.

1.3.1. A Dramaturgia na sala de aula

Outro aspecto limitador é o fato de a literatura dramática ter sido


praticamente excluída da escola brasileira. Na formação dos professores de
Língua Portuguesa e de Literatura, a disciplina teatro é, em geral, pouco
valorizada, e por vezes oferecida como matéria “optativa”. Na formação do
professor de teatro o mesmo acontece. Sem aprender a ler o texto teatral
contemporâneo, por exemplo, como pode o professor ajudar o seu aluno
nesta tarefa? Reiteramos que, ao se ignorar a dramaturgia como
importante patrimônio da herança cultural ocidental, nosso sistema
educativo, via de regra, sonega a mediação entre literatura teatral e o
cidadão.

Entendemos que a formação do professor deve recuperar o ensino de


Dramaturgia. O saber nesta área muitas vezes se limita à história e aos
principais modelos da literatura dramática. A ênfase é em geral dada na
prática da atuação. Desta forma, a maioria dos alunos na licenciatura
desconhece os fundamentos das grandes poéticas do texto teatral
universal, tais como, Shakespeare, Moliére, Brecht, Beckett, e nacional,
dentre os quais Nelson Rodrigues, Oswald de Andrade, Jorge Andrade,
assim como os dramaturgos contemporâneos Fernando Bonassi, Mário
Bortolotto, Newton Moreno, dentre outros.

A dramaturgia e a encenação foram raramente valorizadas nos currículos


dos cursos de Licenciatura no Brasil. A maioria dos professores em atuação
e, pelo visto, a maioria dos futuros formandos vai ter que enfrentar essa
carência, pois as reformas do currículo, em andamento, (até onde
conhecemos), não dedicam tempo suficiente para o exercício da
dramaturgia no programa de ensino do futuro professor. Muitos
desconhecem a dramaturgia brasileira. A evolução da cena no país não é
vista. Como se não bastasse, as disciplinas dedicadas ao teatro brasileiro
são insuficientes, possuem menos prestígio e carga horária do que seria
desejável.

Partimos do princípio de que o educando, aluno do ensino fundamental ou


iniciante que participa de uma oficina, deve ter acesso aos mais
importantes textos da dramaturgia mundial e aos modelos fundamentais
para compreensão da cena contemporânea brasileira. Fundamentamo-nos
em autores, como Jean-Pierre Ryngaert, que defendem a importância do
texto teatral como parte da herança artística da humanidade, patrimônio
este ao qual o aluno da disciplina Teatro deveria ter acesso.

20
Concordamos com Pavis que a análise do espetáculo não pode mais estar
vinculada a uma visão filológica, pela qual a encenação deve ser estudada
em função das operações em relação ao texto. Esta posição é importante
quando tratamos da disciplina e da análise dos espetáculos. Nossa pesquisa
considera esta visão uma contribuição importante para a análise da cena
contemporânea, que não deve ser descartada.

Na aula de teatro, valorizamos os modelos dramatúrgicos fundamentais


para compreensão da cena contemporânea. Se concordarmos que é preciso
recuperar a noção de dramaturgia como algo a ser aprendido, devemos
pensar formas de reativar a presença do texto teatral em sala de aula sem
perder o caráter lúdico e a perspectiva de construção do conhecimento pelo
próprio aluno. Esses pressupostos metodológicos fundamentais são
resultantes dos estudos que relacionam o jogo teatral e a abordagem de
textos, conforme veremos no capítulo dois.

Nos experimentos que coordenamos com professores em formação na


UFRN percebemos que, em geral, falta conhecimento em dramaturgia, no
sentido de os alunos terem condição de analisar, identificar e se apropriar
dos procedimentos teatrais utilizados pelos dramaturgos. Da mesma forma,
quando os alunos foram desafiados a criar roteiros que articulassem as
cenas resultantes de suas improvisações, pudemos notar a tendência para
a utilização dos recursos inerentes às narrativas cênicas veiculadas pelo
cinema e pela televisão. Em geral, os conhecimentos em dramaturgia se
limitavam às leituras de algumas peças, em disciplinas voltadas para a
história do teatro ou “Literatura dramática”, porém esse contato com o
texto teatral se dava, quase sempre, como uma leitura desvinculada da
prática da encenação. Por isso, muitos professores em formação têm
dificuldade de ler e estudar um texto teatral sendo, por vezes, incapaz de
desvelar suas múltiplas possibilidades de adaptação cênica.

O estudo da dramaturgia exige o domínio dos fundamentos da análise


brechtiana e das “noções fundamentais” sistematizadas por Ryngaert em
“Ler o Teatro Contemporâneo”, por exemplo. Essas noções constituem
conteúdos imprescindíveis na formação do professor, pois são ferramentas
inspiradoras de leitura da cena.

Com este trabalho, apresentamos uma das formas possíveis de recuperar a


importância da dramaturgia como um componente tão importante quanto a
atuação em sala de aula. Exercícios de escrever para a cena, como
imaginar narrativas e diálogos, ler e adaptar os clássicos, reescrever cenas,
reescrever diálogos a partir dos improvisos, dentre outros, são importantes
conquistas que podem ser incorporadas ao trabalho com iniciantes.

1.4. A integração entre teoria e prática da dramaturgia:


conexões entre criação e análise dos textos

Com a rede mundial de computadores, podemos ter uma nova relação


professor-aluno, pois este instrumento permite que os alunos compartilhem
do mesmo universo de informação, o que nos leva a pensar em novos
paradigmas de aquisição dos conhecimentos e de constituição de saberes
como afirma Pierre Lévy:

21
”(...) a principal função do professor não pode mais ser uma difusão dos
conhecimentos, que agora é feita de forma mais eficaz por outros meios.
Sua competência deve deslocar-se no sentido de incentivar a aprendizagem
e o pensamento. O professor torna-se um animador da inteligência coletiva
dos grupos que estão a seu encargo. Sua atividade será centrada no
acompanhamento e na gestão de aprendizagens: o incitamento à troca dos
41
saberes, a mediação relacional e simbólica (...).”

Em nossa proposta, a Internet é a extensão dos bancos de dados didáticos


trazidos para a sala de aula. Pode-se também atualizar o debate sobre
determinados conteúdos teóricos ou as possibilidades de encaminhamento
de experimentos de encenação, quando for possível, através de uma lista
de discussão na Internet. Outra hipótese válida é o professor ter o seu
próprio hipertexto em formato digital da disciplina. Neste caso, o professor
listar seus principais contatos teatrais, relacionando seus verbetes aos
endereços eletrônicos dos principais endereços eletrônicos sobre teatro. Por
exemplo: páginas dedicadas ao teatro-educação, o centro de pesquisa
teatral coordenado por Brook, em Paris, o CPT de Antunes Filho, o site do
Teatro Oficina, etc.

Em nosso enfoque, as principais conexões entre o fazer, a história e a


teoria do teatro podem ser realizadas a partir da técnica de criação de
imagens 42 e de jogo teatral, na tessitura de pequenas encenações com
fragmentos de textos, tendo como suporte das avaliações de jogo e/ou
ponto de partida e a leitura de textos.

Protocolo digital e banco de dados coletivo

Em conformidade com as premissas gerais da linha de pesquisa em


pedagogia do teatro da qual fazemos parte, adotamos a prática na qual
protocolo de cada encontro é realizado por qualquer um dos participantes
do grupo. Um rodízio é estimulado pelo professor. O aluno que estiver
assumindo o papel de redator do protocolo possui a seguinte tarefa:
registrar em um recorte de análise dramatúrgica as conquistas e
descobertas do grupo, naquele dia, relativas a temas, personagens, idéias
de enredo, e atitudes em relação ao texto. Essas conquistas e materiais
levantados são lembrados por todos ao final de uma rodada de jogos e de
criação de imagens. O recorte que registra as conquistas da análise
dramatúrgica ou do jogo de encenação, pertence ao Banco de dados do
experimento.

Uma possibilidade de uso na Internet é uma “web question”. O professor


e/ou os alunos podem criar um diário coletivo – um blog - na Internet, que
possa articular professores e participantes. Através desse instrumento, os
participantes do experimento são convidados a escrever um protocolo
coletivo, enviando seus comentários, fragmentos, fluxo de idéias,
sugestões, citações, dicas, dúvidas. Ao longo do processo, são

41
Lévy, Pierre. Cibercultura. São Paulo, Editora 34, p.171.

42
Boal, Augusto. Jogos Para Atores e Não Atores. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1998
pp.5- 10.

22
encaminhadas questões artísticas e pedagógicas. Em nosso experimento a
parti de Hamlet avaliamos que o protocolo digital, através da redação
coletiva de um ‘blog’ pode ser um instrumento excelente para democratizar
as informações, o planejamento dos encontros e as sugestões de inclusão
de textos no roteiro.

1.4.1. A organização de bancos de textos teatrais

Neste tópico pretendemos identificar o recorte adotado no amplo leque de


opções dramatúrgicas disponíveis. Denominamos “Textos em Jogo” o banco
de dados didático que estruturamos, que é composto de fragmentos e de
textos completos relacionados com citações teóricas e históricas referentes
aos procedimentos de escritura teatral escolhida. Estas seleções fazem
sentido em função dos grupos de professores em formação e de iniciantes
com os quais trabalhamos, de sua faixa etária e do nível de conhecimento
em teatro. Cada professor, evidentemente, organiza seu banco de textos e
atribui um nome conforme suas necessidades específicas. Lembramos ao
leitor que estamos apresentando princípios metodológicos e não um modelo
fechado a ser seguido, ou um método universal, pois concordamos com
Peter Brook que “não há segredos”, nem fórmulas prontas para se encenar,
tudo vai depender de diferentes fatores, do grupo, da época e dos nossos
objetivos artísticos.43

Uma premissa fundamental é a da necessidade de composição de dois tipos


de bancos de textos teatrais modelares. O primeiro é uma coleção geral de
fragmentos de autores diversos, que visam ilustrar diferentes propostas
dramatúrgicas, com temas diversos, apresentados ao grupo como forma de
ampliar seu repertório e, ao mesmo tempo, continuar o desvelamento dos
conhecimentos do grupo sobre dramaturgia.

O segundo é o banco de textos específico de cada experimento, composto


de textos completos e de fragmentos. Após a decisão sobre qual texto será
o eixo articulador dos procedimentos da segunda fase do experimento, um
novo banco de textos é formado, desta vez, para reuni-los em torno do
mesmo tema, ou que tenham igual enredo como ponto de partida, o que
facilita uma análise comparativa entre diferentes abordagens
dramatúrgicas.

O texto-base é aquele que serve de matriz narrativa - que foi escolhido em


função de sua temática ou de seus procedimentos e possui diferentes
versões cênicas dos principais encenadores. Ele é material para a
apropriação crítica e a re-escritura do grupo. Um texto-base serve para o
grupo exercitar sua fragmentação e remontagem, e comparar sua estrutura
com as de diferentes versões contemporâneas. O segundo tipo é o texto
secundário, é o texto teatral que adaptou ou desconstruiu a fábula do
texto-base.

Os dois tipos de texto são organizados em bancos de dados pelo professor


para servirem de objeto de análise, criação de imagens e re-escritura por

43
Brook, 1999, pp. 85-102.

23
parte dos alunos. Na fase final do experimento (analisada no capítulo 4), os
grupos propõem roteiros de encenação para um dos textos ou para novos
textos teatrais baseados na adaptação, na colagem, e/ou reescritura, dos
diferentes fragmentos analisados.

O texto teatral dramático convencional ou “aristotélico”, na definição de


Brecht - entendido como uma composição de diálogos organizada em cenas
e atos que mostram o desenvolvimento linear de uma fábula - é abordada
nesta proposta como fonte de temas ou fábulas, como fazia Brecht com as
narrativas e textos antigos. Este tipo de texto é utilizado como base para
ser comparado com outras versões da mesma fábula, a ser fragmentado,
sofrer epicização nos moldes brechtianos, ou ser completamente re-escrito.

A leitura de textos clássicos do drama moderno é uma das formas de


promover com os alunos o questionamento da forma dramática. O
questionamento é a respeito da ideologia que subjaz por detrás das
narrativas, na forma cênica centrada nos diálogos entre personagens e no
desenvolvimento linear e sem comentários da trama. Esta forma dramática
convencional ainda é a forma hegemônica, presença constante no cotidiano
dos alunos. Este questionamento, incrementado pelos dramaturgos e
encenadores a partir de 1880, foi divulgado e redimensionado por Brecht e
continua a ser retomado por inúmeros dramaturgos contemporâneos:

“(...) a partir do momento em que se torna mais importante falar de uma


fábrica, da coletividade de seus operários ou de seus empregados, das
relações entre o Estado e o capital, o Estado e o trabalho, etc., a partir do
momento em que se torna mais importante falar disto do que colocar em
cena um operário e um patrão ou alguns patrões que se entrechocam, tal
relação inter-individual se torna um pouco irrisória: a forma dramática não é
suficiente. Ou ainda, se adoto um ponto de vista simbólico e não mais
naturalista, a partir do momento em que Maeterlinck pensa que é mais
importante dar conta da relação entre cada pessoa, cada ser humano com a
totalidade do cosmos, com a morte, com as forças invisíveis que tramam
44
nossas vidas, a forma dramática é questionada.”

O universo dos textos teatrais que denominamos nesta proposta de


clássicos do drama moderno é constituído a partir da abordagem da
rapsodização do Drama construída por Sarrazac (1981). Sabemos que o
termo rapsodo (rhapsode, em francês) designa aqueles que iam de vila em
vila cantar poemas e, sobretudo, trechos detalhados da Ilíada e da
Odisséia. Sarrazac parte da noção etimológica do termo (rhaptein, que em
grego, significa cozer) para definir o escritor-rapsodo, como aquele que
“junta o que previamente despedaçou e, no mesmo instante, despedaça o
que acabou de unir”, ressaltando que esta metáfora antiga não deixará de
nos surpreender com as suas ressonâncias modernas.45

44
Sarrazac, Jean-Pierre. “L írruption du roman au théatre”. (tradução não publicada de
Paulo Roberto Massaro e Denise Radanovic) Théâtres en Bretagne, n. 9, avril, 1996, pp. II-
VII.

45
Sarrazac, Jean-Pierre. L`avenir du drame. Lausanne, Éditions de l’Aire, 1981, p.37.

24
Pretendemos estimular o desenvolvimento do rapsodo que existe em cada
um, o contador de estórias, que assume uma voz narrativa, isto é,
posicionar-se levando em consideração os diferentes pontos de vista sobre
o mundo. Valorizamos, porém que o aluno seja também capaz de
fragmentar sua fonte narrativa – nesta proposta, o texto teatral - e
conectar os trechos que lhe interessam, renovando a significação do texto
em função dos seus objetivos de comunicação com o espectador do seu
contexto.

Sarrazac assume o uso da expressão drama moderno, apesar deste termo


Drama ser considerado ultrapassado por alguns estudiosos, como
Lehmann:

“A tal objeção retorquirei que o conceito de drama tende, hoje, a assumir


um significado e uma extensão que não conheceu no passado (...) Nem
transcendente aos gêneros, nem gênero em si mesmo, o drama moderno
representa, a meu ver, uma das formas mais livres e mais concretas da
escrita moderna. (...) descrever a anatomia paradoxal desta forma híbrida
da modernidade. Uma modernidade que, aliás, se apóia na tradição. Pelo
menos na parte mais ativa desta tradição: naquelas obras consideradas
menores de forma sempre, mais ou menos maldita e rejeitada pelas
dramaturgias dominantes. Porque, precisamente, elas violaram o tabu do
46
hibridismo.” .

Deste ângulo, o panorama do drama moderno é enfocado como um lugar


de permanente ebulição, constituído por um arquipélago de peças cujas
formas narrativas competem com a percepção de que o ser humano urbano
atual possui da vida; como uma colcha de retalhos (patchwork) de
acontecimentos e sensações.

“O modelo dramático fundado sobre um conflito interpessoal mais ou menos


unificado, deixou de dar globalmente conta da existência moderna. E isso,
desde os finais do século XIX e cada vez mais claramente com o passar das
décadas. (...) O devir rapsódico aparece, assim, como a resposta acertada
esta explosão de mundo. A montagem das formas, dos tons, todo este
trabalho fragmentário de desconstrução/reconstrução (descoser/coser) em
torno das formas teatrais, pára-teatrais (nomeadamente, o diálogo
filosófico) e extra-teatrais (romance novela, ensaio, escrita epistolar, diria,
relato de experiências de vida...) praticado por escritores tão diferentes
como Brecht, Müller, Duras, Koltés, apresenta características de uma intensa
47
rapsodização das escritas teatrais.

O conceito de devir rapsódico do drama propõe uma alternativa à noção de


“epicização” defendida por Szondi:

“Quanto à epicização do teatro, tão freqüentemente verificada na prática,


levanta várias objeções de ordem teórica. A principal objeção é o fato de o
teatro épico ser geralmente apresentado – inclusivamente por Szondi –
como o produto de uma (r)evolução, como um resultado de um progresso
em matéria de dramaturgia. O processo dialético de uma superação da crise
da forma dramática disfarçando mal a perspectiva teleológica de uma

46
Sarrazac, op.cit., p.28.

47
Sarrazac, op.cit., p. 230.

25
dialética apologética do Novo - a grande forma épica do teatro - em
48
detrimento da Antiga - o teatro dramático considerado moribundo.”

Sendo assim, incorporamos nesta proposta pedagógica as características da


obra teatral rapsódica delimitadas por Sarrazac49. Elas compõem o quadro
de critérios para a seleção dos textos clássicos do drama moderno que
propomos:

a) Recusa do modelo das unidades aristotélicas e escolha da irregularidade;

b) Caleidoscópio dos modos dramático, épico e lírico;

c) Reviravolta constante do alto e do baixo, do trágico e do cômico;

d) Junção de formas teatrais e extrateatrais, formando o mosaico de uma


escrita, resultante de uma montagem dinâmica;

e) Passagem de uma voz narradora e interrogante 50, desdobramento de


uma subjetividade alternadamente dramática e épica (ou visionária)

Neste enfoque assumimos, como um objetivo pedagógico, o


desenvolvimento da capacidade do aluno de detectar na escrita teatral uma
pulsão rapsódica, ou seja, de perceber os instrumentos dramatúrgicos que
provocam um jogo múltiplo de aposições e oposições: dos modos
(dramático, lírico, épico e mesmo argumentativo dos tons) ou dos gêneros
literários (farsesco e trágico, grotesco e patético, etc.) Do ponto de vista
histórico, assumir a noção de pulsão rapsódica é voltar à idéia de “atalho,
de contrabando” através do qual a herança do drama medieval e barroco
chegou até nós. 51

Comparação entre textos clássicos e suas versões rapsódicas e recriações


contemporâneas

Nesta proposta, sempre que possível, valorizamos a utilização de textos


provenientes do drama convencional ao lado de adaptações e recriações
rapsódicas, para que os alunos possam comparar as suas estruturas em
relação ao tratamento da fábula. Na fase de análise dos textos,
pretendemos estimular os alunos para que possam ser capazes de pensar
as mutações da forma dramática do texto-base (ex: Hamlet de
Shakespeare) em termos de devir rapsódico, ou seja, como os dramaturgos
“fazem fugir o sistema dramático” até, nos casos mais radicais, exauri-lo
quase que por completo, como aconteceu com Macbeth de Shakespeare no
espetáculo OBS, do grupo catalão La Fura del Baus.

48
Sarrazac, op.cit., p.226.

49
Sarrazac, op.cit., p.229-230.

50
Voz esta que, segundo Sarrazac, não podemos reduzi-la ao sujeito épico szondiano.
(Sarrazac, op.cit., pp.229-230).

51
Sarrazac, op.cit., p.227.

26
Deste ponto de vista, os textos clássicos modernos são encarados em sala
de aula como um espaço de tensões, de linhas de fuga, de
transbordamentos do modo dramático pelo épico e/ou pelo lírico, um livre
jogo de contrários52 que os alunos são convidados a desvendar, mediados
pelo confronto com textos sobre teatro e fragmentos de outros textos
teatrais, provocado pelo professor.

Deste ponto de vista, a dramaturgia de Brecht é fundamental numa coleção


de fragmentos modelares que possam ir para escola, pois muitos dos seus
quadros cênicos são modelares para esclarecer o efeito de estranhamento.
Este procedimento desenvolvido por Brecht, como já defendeu Ingrid
Koudela, deve ser apropriado pelos alunos de teatro. Ao ler o quadro dos
palhaços ou aquele em que o protagonista é convencido a assumir a
personalidade de um soldado do exército invasor, recortado do texto “Um
Homem é um Homem”, por exemplo, os alunos podem perceber como o
estranhamento se dá, como um ato estético, mas também político, na
medida em que descreve os processos representados como processos
bizarros, transformando a atitude aprovadora do espectador, baseada na
identificação, numa atitude crítica. Nossa intenção é que a análise
dramatúrgica em sala de aula possa estimular a compreensão dos alunos
de que, para Brecht, este procedimento não se prende a uma nova
percepção ou a um efeito cômico, mas a uma desalienação ideológica que
se efetua simultaneamente em vários níveis da representação teatral: na
fábula, no cenário, na gestualidade, na dicção, na atuação, na relação com
o público, na utilização da narração e de canções.

Da mesma forma, consideramos importante que o professor selecione


textos nos quais os diálogos não sejam imprescindíveis como geradores de
teatro, como acontece nos monólogos de “A missão” de Müller.

“A noção contemporânea de fragmento surge de uma escritura que está em


perfeita contradição com o drama absoluto. Este tipo de texto teatral é
construído na perspectiva de um olhar único, de um princípio organizador,
onde cada parte engendra necessariamente a seguinte. O fragmento, ao
contrário, induz a pluralidade, a ruptura, a multiplicação dos pontos de
53
vista, a heterogeneidade.”

A escrita teatral por fragmentos é uma tendência arquitetural das obras


contemporâneas. Segundo Ryngaert, os efeitos decorrentes da justaposição
das partes são buscados por autores muito diferentes, com objetivos até
mesmo opostos, que valorizam:

“(...) as arestas vivas que marcam as separações e entalham o relato com


vazios narrativos preenchidos à sua maneira pelo efeito de montagem que
propõe uma ordenação ou que, ao contrário, revela as fendas, produz um

52
Sarrazac, p.229.

52
Lescot, David; Ryngaert, Jean-Pierre. “Fragment/Fragmentation/Tranche de vie” in
SARRAZAC, Jean-Pierre (org.) Poétique du drame moderne et contemporain, lexique d’une
recherche. Études Théâtrales, n.22, Centre d’études théâtrales/Institut d’ études théâtrales-
Paris III, 2001, P.51.

27
efeito de quebra-cabeça ou de caos cuja eventual reconstituição é deixada,
54
em parte, à iniciativa do leitor”.

A intertextualidade55 é um procedimento valorizado na cena contemporânea


fundamental em nossa abordagem, como critério de seleção dos textos.
Esta abordagem intertextual, porém, não é um exercício formal isolado em
si mesmo. Preocupa-se, além disso, em tomar uma atitude crítica para com
o legado cultural. Neste ponto, identificamo-nos com Heiner Müller, quando
afirma:

“(...) cada texto novo se relaciona com numerosos textos anteriores de


outros autores; ele também modifica o modo com que os olhamos. Minha
relação com assuntos e textos antigos é também uma relação com um
‘depois’. É por assim dizer, um diálogo com os mortos.” 56

Muitas obras de Heiner Müller, por exemplo, nos oferecem o que ele próprio
prefere chamar de materiais teatrais, constituídos por verdadeiros blocos
maciços compactos de texto sem pontuação nem emissor definido, o que
ainda hoje perturba os mais conservadores. Uma característica é a
retomada de fábulas e da História, num cruzamento de citações, exigindo
do leitor o acesso a outros textos.

1.4.2. A devoração dos clássicos antigos e modernos: uma das


várias propostas de seleção dos textos

Quais as fontes de textos ideais nos ajudam a aprender a cena


contemporânea? O fato de este banco de dados didático que propomos a
partir da noção da existência de obras clássicas, entendida por aqueles
textos e encenações que deveriam estar em classe, ser composto de
objetos passíveis de apropriação crítica pelos alunos, nos remete à questão
polêmica da seleção das obras. Não temos a pretensão de propor um
modelo único que sirva de parâmetro curricular geral. Mas na medida em
que nossa proposta não abre mão de textos sobre teatro que fundamentem
o professor e sua mediação com os alunos, somos obrigados a admitir que,
evidentemente, o professor não tem uma escolha tão ampla. Quais obras
selecionar? O que destacar para compor o universo teatral do currículo
básico do ensino fundamental e médio?

54
Ryngaert, 1998, p. 86.
55
A intertextualidade é a irrupção de um texto no outro. As relações existentes de texto
para texto são de ordens diversas e estabelecem os limites da intertextualidade: “Fora da
intertextualidade, a obra literária seria muito simplesmente incompreensível, tal qual a
palavra de uma língua desconhecida. De fato, só se aprende o sentido e a estrutura de uma
obra literária se a relacionarmos com seus arquétipos - por sua vez abstraídos de longas
séries de textos, de que constituem, por assim dizer, uma constante. (...) Face aos modelos
arquetípicos, a obra literária entra sempre numa realização, de transformação ou de se
transgressão.”(Jenny Laurent citado por Machado, 1998, p.1) A intertextualidade se revela
através da transformação e assimilação de vários textos, operada por um texto
centralizador, que detém o comando do sentido.

56
Müller citado por Ryngaert, op.cit., p. 193.

28
Se considerarmos o fato de as obras terem provocado uma quantidade
considerável de análises críticas e das respectivas encenações como critério
de seleção, esse amplo leque disponível se reduz. Nem todos os textos
teatrais interessantes do ponto de vista temático e formal serviram de
exemplo em métodos de análise de textos teatrais, ou em estudos sobre a
redação de roteiros de cinema e vídeo. Menor ainda é o número de textos
críticos de fácil acesso ao professor, apesar da revolução ocasionada pelos
bancos de dados e da Internet.

Durante a fase de pesquisa bibliográfica, encontramos as mais variadas


coletâneas de textos, que a nosso ver poderiam fornecer ao professor
textos modelares. Dentre elas, destacamos aquelas que possuem recortes
de peças teatrais acompanhados por análises, na perspectiva iniciada por
Vinaver, conforme abordamos no capítulo três. Sendo assim, priorizamos os
diferentes textos clássicos da modernidade que foram objeto de estudo não
só na coleção organizada por Vinaver como também, e principalmente, por
trabalhos de Ryngaert publicados no Brasil. Valorizamos também a seleção
dos fragmentos numa perspectiva histórica, como a adotada por Ryngaert e
Danan. Se priorizarmos os textos da literatura teatral ocidental que
possuem análises de fragmentos modelares, podemos contar com textos de
autores como: Koltés, Novarina, A. Jarry, Beckett, Ionesco, Arrabal, Brecht,
Heiner Müller, Vinaver, Pinter, Büchner e Pirandello, dentre outros.

Quanto aos textos que representam a modernidade cênica brasileira,


desconhecemos, até o presente momento, publicações que tragam análises
de recortes dramatúrgicos selecionados. O professor interessado em
apresentar modelos dramatúrgicos nacionais para serem apropriados e
recriados, portanto, pode se guiar pelos estudos sobre dramaturgia de
autores como Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Silvia Fernandes,
Tânia Brandão, Iná Camargo Costa, Luís Fernando Ramos, dentre tantos
outros. Publicações cujos artigos por vezes abordam análises de peças -
tais como Revista Percevejo e Revista Sala Preta - podem complementar a
orientação desta seleção. Dos principais dramaturgos brasileiros que
possuem um material analítico capaz de orientar o professor, podemos
citar: Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Oduvaldo
Viana Filho, Plínio Marcos, Alcione Araújo, Luis Alberto de Abreu, Fernando
Bonassi, Newton Moreno, dentre tantos outros.

1.4.3. Bancos de texto sobre teatro: Teoria, Crítica e História

No que se refere à seleção e organização dos textos que podem co mpor o


banco de dados a ser criado pelo professor, a pesquisa revelou a
praticidade da estruturação de fichários e/ou pastas. Sendo assim, nesta
proposta, cada professor concebe sua coletânea de textos da História, da
Estética, da Análise de Espetáculos. Podem ser pequenos textos ou mesmo
frases, com referências e citações dos principais autores, distribuídas por
categorias como: formatos cênicos (espetáculo, performance,
acontecimentos cênicos) temas, modalidades de dramaturgia e encenação,
ou instrumentos cênico-narrativos como Fragmentação, Gestus, Citação,
Estranhamento.

29
Com relação ao recorte na Teoria e na História do Teatro consideramos dois
aspectos principais: a relativização das classificações e o enfoque dos
procedimentos cênico-narrativos.

Nossa abordagem não pretende colocar ordem em um panorama teatral em


movimento. Procuramos um enfoque não redutor, que escape da tentação
de classificar os artistas em categorias simplificadoras, “didáticas”.

Uma grande novidade no teatro do século XX, é que as teorias produzidas


outrora por intelectuais e dramaturgos foram ofuscadas pela influência das
reflexões produzidas pelos praticantes de teatro, os encenadores, a partir
de 1880. Em primeira instância, poderíamos destacar Craig, Antoine, Appia,
Stanislavski, Meyerhold, Piscator, Brecht, Artaud, Grotowski, Kantor,
Beckett, Barba, Brook, Julian Beck, Bob Wilson, Richard Schechner, e
Heiner Müller. Nos últimos trinta anos ocorreu no panorama teatral a
“pulverização dos modelos”, constituindo o marco de uma época, mas
também um limite, pois se torna quase impossível falar de um modelo
teórico isoladamente:

“Nossa época se afirma pluralista. As doutrinas mais antagônicas passam


simultaneamente pela prova do palco. Além disso, a mestiçagem torna-se
uma tentação permanente de nossos diretores. E que eles encontram, na
combinação de vários modelos, o espaço de uma liberdade e de uma
renovação.”57

A imagem do caleidoscópio utilizada por Roubine para transparecer um


esquema teórico global da cena contemporânea nos parece muito
adequada para ser trabalhada durante a aprendizagem dos fundamentos da
linguagem cênica. O caleidoscópio, como sabemos, se caracteriza pelas
infinitas possibilidades combinatórias de seus elementos, assumindo
diversas formas, numa eterna renovação. 58

No Brasil, temos uma grande diversidade cênica. Se ampliarmos o conceito


de encenação para abranger também práticas espetaculares que não se
enquadram no modelo eurocêntrico de espetáculo teatral, tais como
manifestações como a dança dramática do “Boi de Reis”, por exemplo,
podemos olhar o panorama brasileiro em sua complexidade.

Para Roubine, o sincretismo que parece prevalecer atualmente é


conseqüência de um espírito de liberdade e tolerância: “Cada um tem o
direito de fazer o que quer, e de roubar seu mel onde acha que vai
encontrá-lo. O público, aberto e acolhedor, julgará a peça.”59 Enfim, caso se
tente definir um modelo contemporâneo, irá se falar de cruzamentos, de
mestiçagens, em suma, de um teatro no plural, que conjuga elementos
heterogêneos.

57
Roubine, Jean- Jacques. Introdução as grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 2003, p.140.

58
Roubine, op. cit., p.141

59
Roubine, op. cit., p.201.

30
Do ponto de vista do nosso interesse em formular princípios pedagógicos,
não faria sentido que a consciência desta realidade múltipla nos conduzisse
ao “indiferentismo teórico”, um dos “efeitos perversos da evolução”. Nas
palavras de Roubine não devemos concordar com o “cinismo”, ou com o
“relativismo” de certa crítica dita pós-moderna, alardeando o fim da teoria:

“Teorizar, já se disse, é reivindicar, excomungar, combater. Mas para que


teorizar quando todo mundo se vê amparado por uma legitimidade de
60
princípio (...)”

Do ponto de vista do professor de teatro, é recomendável evitar o enfoque


que Pavis denomina de “impressionismo crítico”, ou seja, na
supervalorização da subjetividade, na avaliação da cena e na ausência de
qualquer parâmetro de leitura e análise do espetáculo, assim como na
responsabilização no espectador por toda a produção dos sentidos da obra.
Essas são “tentações” fortes, não apenas devido ao ecletismo estético da
numerosa tipologia de manifestações espetaculares, como também diante
da multiplicidade de instrumentos de análise da obra cênica: Semiótica,
Estética da Recepção, Antropologia Cultural, dentre outras.

Diante da confusão de enfoques e tipologias que nunca dão conta da


complexidade das formas atuais, fica fácil querer abolir qualquer iniciativa
de sistematizar princípios organizacionais da encenação, o que
inviabilizaria, por tabela, qualquer iniciativa pedagógica destes
instrumentos.

“Mas, como teorizar a partir do momento em que coabitam pacificamente as


ideologias mais diversas, em que elas contaminam-se umas às outras
61
relativizando-se reciprocamente?”

O fim dos modelos teóricos exige olhares não dogmáticos, faz caducar
divisões estanques e categorizações absolutas. Portanto, a partir do
enfoque da análise de espetáculos de Pavis - para o qual, hoje em dia, não
faz sentido a defesa de uma única estratégia de analisar os espetáculos -
consideramos que o professor deve confrontar o educando com diferentes
enfoques do fenômeno teatral.62

Outro critério de seleção de citações de textos sobre teatro é o enfoque nos


procedimentos de criação da cena. O que nos interessa na teoria são três
modalidades de texto: os que explicam os objetivos inerentes à escritura,
os que descrevem os procedimentos criativos e aqueles que contextualizam
o texto teatral no campo da história ou da estética do teatro.

60
Roubine, op. cit., p.202

61
Roubine, op.cit., p.140.

62
Pavis, Patrice. A análise dos espetáculos . São Paulo, Perspectiva, 2003.

31
A conexão entre a análise do texto teatral e a leitura de citações teóricas

O coordenador pode selecionar um verbete do “Dicionário de Teatro” de


Pavis, como foi sugerido por Koudela63, no caso, para complementar a
avaliação do jogo teatral, seguindo a linha de Spolin, que recomenda no
final de Improvisation for the theatre, ao apresentar os seus termos, uma
seleção de verbetes relativos, em sua maioria, aos elementos técnicos da
arte do ator64:

“Ensinar é necessariamente um processo repetitivo, para que o aluno


incorpore o material apresentado. Os termos que se seguem estão definidos
tendo isto em mente, na esperança de que seja mais um instrumento
65
dentro do processo de aprendizagem.”

Sendo assim, nesta pesquisa optamos por testar o uso de textos sobre
teatro como complemento da prática cênica dos educandos. A leitura de
recortes de textos sobre teatro após a análise do texto teatral e a prática
do jogo desenvolve uma gradual apropriação de conceitos importantes para
a prática teatral contemporânea, tais como: estranhamento, identificação,
antropofagia, partitura cênica, superobjetivo, espaço vazio, dentre outros.

1.4.4. Apropriação lúdica de textos sobre teatro

A mediação dos saberes teóricos e históricos na leitura do texto e da


encenação pode ser feita de forma lúdica e integrada à prática. A escrita
teatral se liga não somente a outros tipos de escrita, mas a todas as
práticas artísticas, portanto, desejamos introduzir como prática
complementar à análise estrutural do texto, que detalharemos no capítulo
três, a contextualização da dramaturgia:

“Nunca estamos em contato direto com o texto, mas com o conhecimento


que temos dele; tal conhecimento se alimenta de todos os saberes
possíveis. Sem teoria nem metalinguagem, ela (a análise) acede apenas, na
melhor das hipóteses, a uma ilusão de uma coisa que se auto definiria sem
66
produzir qualquer conhecimento novo.”

Ao invés de repetir mecanicamente a definição de conceitos transmitidos


pelo professor, consideramos produtivo que os alunos sejam estimulados a
utilizar os instrumentos cênico-narrativos, através de procedimentos
lúdicos, para só depois identificá-los no texto. Notamos que este caminho
promove intenso envolvimento, pois na tentativa de resolução dos
problemas cênicos propostos pelo coordenador, os alunos são instigados a
utilizar o recurso em foco, o que agiliza a aprendizagem.

63
Koudela in Jogos Teatrais: o fichário de Viola Spolin.(tradução de Ingrid Koudela) São
Paulo, Perspectiva, 2001.
64
Tais como “emoção”, “energia”, “foco”, “instrução”, “marcação não-direcional”.

65
Spolin, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo, Perspectiva, 1978, p.335.

66
Pavis, op. cit. 2003, p. 208.

32
A abordagem da diversidade cênica

Na perspectiva assumida no início deste capítulo, a noção de pesquisa e de


experimentos coletivos de escritura cênica não é invenção recente na
história da encenação. Ela coincide com a invenção da pedagogia do teatro
moderno e a difusão e a valorização social da atitude de investigação, em
detrimento das visões místicas e da transmissão de saberes engessados,
imutáveis.

Portanto, intentamos uma prática de aprendizagem da escritura cênica que


provoque sempre, e de forma imbricada, discussões de natureza estética e
política. A ênfase na avaliação das atitudes políticas inerentes às relações
entre os homens, como propõem autores da pedagogia do teatro, como
Koudela (através do jogo teatral com fragmentos de textos de Brecht), é
complementada pela discussão sobre as opções estéticas e de organização
simbólica adotadas, com ênfase na relação com o texto escrito, como
enfatizam Maria Lúcia S. B. Pupo e J. P. Ryngaert.

Se a forma de elaborar a encenação deve ser contextualizada, os rumos a


serem seguidos pelo grupo na adaptação cênica do texto poderiam, a nosso
ver, ser discutidos após a leitura de diferentes posições teóricas. Um
procedimento que funcionou no presente trabalho é o uso de citações dos
principais encenadores, que defendam soluções diferentes para os mesmos
problemas cênicos.

Este é um princípio que orienta a formulação da atitude de pesquisa que


propomos como meta a ser construída em nossa abordagem. Não existe,
portanto, um modelo único de teatro a ser ensinado, mas diferentes
possibilidades. Esta afirmação parece óbvia, mas, na prática da pedagogia
do teatro, muitas vezes o esclarecimento da opção tomada em relação aos
múltiplos enfoques possíveis do fazer teatral não é relativizada pelo
professor.

A definição do ponto de vista pelo qual se olha o teatro gera uma discussão
interessante que deve passar, e ser retomada sempre, não só pelo
iniciante, como por todo e qualquer ser humano envolvido com esta
prática. Em nossa abordagem recomendamos alguns procedimentos, como
o debate através da leitura de citações teóricas e verbetes. Responder a
esta questão é tomar uma atitude diante de um leque de opções. Para os
principais encenadores que ajudaram a mudar os rumos da história do
teatro, a resposta dada por seus antecessores a esta pergunta tão simples
não pareceu óbvia, nem fácil, e muito menos, definitiva.

O debate dos saberes teatrais do grupo

São vários os procedimentos possíveis a partir destas fichas de citação de


pensamentos norteadores da cena contemporânea. Podemos utilizá-las
depois de um exercício de avaliação diagnóstica, distribuindo fichas com
objetivos antagônicos, como os de Brecht e Dantchenko, por exemplo, após
a avaliação estética da linguagem adotada na cena improvisada, via jogo
teatral, ou concebida previamente pelos subgrupos. Cada um dos que estão
na platéia, pode ler o fragmento de texto teórico, relacionando-o com o que

33
acabou de ver apresentado e se posicionar criticamente diante desta
afirmativa citada, através das seguintes instruções: “Você concorda com
este pensar sobre o teatro? Você já conhecia esta visão da prática teatral?
Qual espetáculo você conhece que poderia servir de modelo para este
enfoque?”

O debate sobre objetivos teatrais

O que é e para que serve o teatro? O que queremos em relação ao público?


Para quê fazer teatro? Não existem respostas únicas. Cada grupo,
dependendo de cada contexto e para qual espectador se dirige, encontra
uma forma adequada para efetivar o seu acontecimento cênico. Portanto,
interessa-nos, antes de tudo, e sendo mais importante do que o
aprendizado de técnicas teatrais específicas, que o iniciante na arte teatral
possa, através da aprendizagem e do exercício da encenação, desenvolver
o seu senso crítico e artístico como leitor e também como um interventor
na sua realidade social.

Propomos que uma das categorias possíveis de organização dos dados


teóricos e das obras teatrais pelo professor em seu fichário-base seja:
“Objetivos do Teatro”. “A seleção de textos teatrais e registros de
encenações que possam ilustrar diferentes pontos de vista sobre o sentido
da prática teatral - Definições e objetivos diversos da cena
contemporânea”. Trata-se da seleção de fichas que contêm citações dos
principais pensadores do teatro que ainda valem para representar a maioria
das tendências cênicas atuais.

Desde o primeiro instante, propomos que as diferentes visões do fenômeno


teatral sejam abordadas concomitantemente, e o debate se instaure,
permitindo sempre uma discussão de diferentes pontos de vista,
enfatizando a importância de pensar teatro, hoje em dia, sem as amarras
do olhar dogmático. O debate sobre o texto teatral é complementado pela
leitura de recortes de texto teóricos, que ajudam o grupo a apropriar-se de
noções importantes para a leitura do texto clássico moderno e
contemporâneo.

Os experimentos realizados comprovaram a necessidade de os alunos


entrarem em contato direto com os textos escritos pelos encenadores,
complementando a leitura do registro - fotográfico ou em vídeo - das
imagens cênicas.

Esta abordagem intertextual que relaciona exercícios de criação,


informações históricas, e reflexões teóricas utiliza o princípio de jogo
dialético, da leitura, ou seja, sempre que possível, de fichas que tragam
expressões contraditórias, evidenciando o caráter relativo dos pontos de
vista e estimulando a discussão. A ficha anterior, portanto, foi apresentada
na ocasião com o seguinte contraponto de Heiner Müller: “Não se pode
escrever apenas fragmentos. Isso não é possível. Mas é preciso reagir a
histórias que encontram sua conclusão no palco.” 67

67
Müller, cit. In Koudela, Ingrid. Heiner Müller o espanto no teatro.São Paulo, Perspectiva,
2003, p.111.

34
Podemos, além de complementar o estudo de um texto teatral ou a
avaliação do jogo, utilizar as fichas teóricas como ponto de partida de jogo
teatral, assim como elemento estimulador de um debate. É o que ocorre
quando dividimos a cena em grupos, segundo as opiniões contraditórias
sobre o mesmo tema e pedimos para que os participantes encontrem
argumentos e os defendam através de um discurso que vai aos poucos se
apropriando dos conceitos. Cada participante defende a sua idéia, a
discussão busca determinar os prós e os contra de cada abordagem, uma
síntese possível. Nestes momentos o grupo discute teoria de forma aplicada
à prática de jogo.

O debate de temas e questões

Para debater ou gerar material cênico centrado no tema “traição política” e


no âmbito do experimento com a modalidade épica de espetáculo, certa vez
trouxemos para um grupo de alunos de uma oficina três tipos de textos:
poético (um fragmento de “A Missão” de H. Müller e outro de “Arena conta
Zumbi”, de Guarnieri e Boal), histórico (um trecho sobre a traição realizada
pelos revolucionários da França criticando o abandono do povo logo em
seguida à conquista do poder; um trecho de artigo recente criticando os
políticos que mudam radicalmente de discurso logo após as eleições), uma
charge de Angeli, um trecho do filme “Zumbi” de Cacá Diegues, para
comporem o nosso fichário coletivo sobre o tema. Estes diferentes tipos de
texto são considerados motivos que inspiram jogos, imagens, adaptações,
atualizações, dentre outros procedimentos.

1.5. O texto teatral como uma pedagógica provocação ao


grupo

Proposição pelo professor ou seleção coletiva do texto teatral? A resposta


para esta questão dependerá da avaliação que o professor fizer sobre o
grupo. Durante esta pesquisa percebemos que muitas vezes é mais
interessante do ponto de vista pedagógico que o texto seja proposto pelo
professor. Também é importante que selecionemos um outro texto teatral
com tema semelhante, porém com estrutura diversa, para servir de leitura
complementar, tendo em vista o principio metodológico da ampliação do
repertório teatral. Propomos a seleção, de, no mínimo, um texto teatral de
outro autor, o mais distanciado possível do texto base, para enriquecer a
análise comparativa. No caso de Hamlet de Shakespeare, por exemplo,
decidimos que o texto a ser confrontado seria Hamlet máquina, de Heiner
Müller, opondo desta forma uma abordagem de desconstrução da fábula ao
modelo linear do drama clássico.

Em relação à busca de um material textual que seja “incendiário” para o


contexto da encenação, Müller defende uma atitude que poderíamos
denominar de antropofágica, termo caro ao encenador e dramaturgo José
Celso Martinez Corrêa. Para Müller, a atualização do texto de Brecht passa
por estripar o texto clássico, sem nenhuma reverência:

35
“Por outro lado acredito, que mesmo as peças tardias de Brecht contêm
bastante material incendiário, quero dizer, incendiário também politicamente
para nós aqui. Apenas acredito que elas deveriam ser estripadas. É
necessário que essas pecas de Brecht sejam estripadas e retiradas de sua
canonização. Ou seja, é preciso encená-las de uma forma totalmente
diferente daquilo que Brecht fez, daquilo que Wekwerth fez... é preciso
encontrar outras abordagens para que os textos possam operar novamente.
Tal como é feito, os textos já não operam mais, são meros textos de ópera e
68
monumentos. Eles não operam”.

Para que os textos a serem escolhidos para compor um experimento


possam “operar novamente”, é preciso buscar a potencialidade “incendiária”
deles. Este critério nos parece muito valioso para ser discutido com o
grupo:

“Eu acho que deve haver uma relação contraditória, uma relação de conflito
entre o palco e a platéia. Porque eu acho monótono quando lá embaixo
existe apenas um público que concorda. E também não leva a nada quando
lá embaixo está sentado um público que apenas discorda. A diferença talvez
esteja no fato de que, para Brecht, ainda se tratava de AuflKarung,
(esclarecimento) no teatro. Eu acho que isto acabou, pois agora isso é
assumido (ou deveria ser assumido) por outra mídia. E o teatro não pode
mais assumir a função de Auflklaren (esclarecer). No teatro trata-se agora,
ao menos para mim, de envolver as pessoas em processos, torná-las
participantes.” 69

Ao se referir, naquele momento, à sua última obra, A Batalha, o pensador


alemão apresenta seu desejo de que as pessoas do público se perguntem
como teriam se comportado na situação dos personagens e, desta forma,
atinassem para o fato de que “também são fascistas em potencial, quando
se afigura uma situação como essa”. E conclui, com esperança, na função
de desordem do teatro como fantasia social 70: “Isto eu julgo positivo”.

Outra visão mülleriana que nos parece muito apropriada para ser
compartilhada e debatida com iniciantes é a de que o teatro deve tratar de
questões e levantar perguntas que não são colocadas e respondidas pela
imprensa. Concordamos que se o teatro não colocar outras perguntas,
deixa de ter função social e política. Por outro lado, existe uma série de
perguntas que não são tratadas pela imprensa e, nesses casos, o teatro
“tem de assumir as tarefas que caberiam à imprensa“.

Não é a natureza política da mensagem do texto a ser escolhido que


determina a criação de “ilhas de desordem,”71 do ponto de vista da ação

68
Müller, Heiner. “Diálogo com Bernard Umbrecht.” In Koudela, op.cit., 2003, p.112

69
Müller, Heiner. “Diálogo com Bernard Umbrecht.” In Koudela, op.cit., 2003, p.106.

70
Como preconizou Wolfgang Heise, citado por Müller in Koudela, Ingrid, op.cit., p.107.

71
Müller, dramaturgo que buscava a “arte como perturbação do consenso e como
instrumento de subversão”, utiliza a expressão “ilha de desordem” ao se referir ao potencial
político do teatro em pequenos grupos, no contexto do Terceiro Mundo. Koudela destaca
que, “de um lado, objeto de colonização, exploração e refugo, lugar de caos e desordem, o
Terceiro Mundo é visto por ele como fermento do novo - ‘ilhas de desordem’, espécie de

36
cultural provocada tanto pelo processo, quanto pelo resultado; é o
acontecimento cênico em si. Por exemplo, um espetáculo de texto idealista,
que fale de esperança, mas realizado no contexto de uma prisão ou de um
hospital, pode ser muito mais importante socialmente do que a repetição
da cartilha marxista para uma platéia de estudantes da elite intelectual.

Portanto, a escolha de textos reconhecidos por sua natureza de


argumentação dialética, como os de Brecht, não garante uma produção que
possa provocar a reflexão crítica sobre as relações humanas, seja no
público que irá assisti-la ou naqueles que a realizam. A abordagem de
Lehmann, quando defende que é a forma escolhida para dar corpo à cena
que possui uma ação política determinante, e não necessariamente as
mensagens do texto, também é fundamental. Do mesmo modo, a
perspectiva de Müller nos ajuda a compreender que na conjuntura atual,
não se trata mais de esclarecer politicamente o público, mas de envolvê-lo
em processos, através de formas novas que provoquem o “espanto”, que
nos forcem a olhar o mundo de ângulos diferentes daqueles impingidos
pela mídia.

Por vezes a seleção dos materiais dramatúrgicos pode ser resultante de


consensos entre o grupo e o professor; em outros momentos defendemos
que o professor apresente textos que desafiem o grupo a pensar o mundo e
teatro de forma diferente, que amplie sua visão do mundo e suas
referências estéticas.

Citamos como exemplo um experimento com um grupo de teatro formado


por adolescentes de um colégio estadual de um subúrbio da cidade do
Natal, que tinham “uma excelente auto-estima” no sentido teatral.
Questionados pelo novo coordenador da oficina sobre sua prática, sentiam-
se muito à vontade, pois consideravam então o que faziam no palco como
sendo um “ótimo teatro”. No entanto, eles não conheciam outras
referências artísticas da cidade e muito menos da história ou da cena
contemporânea. Não eram acostumados a ver teatro, fato que foi agravado,
pois não fazia parte da ação da professora anterior a mediação de
espetáculos. Desta forma, o grupo já possuía cinco anos de prática de
teatro improvisacional, criando espetáculos com dramaturgia coletiva,
falando em cena com sotaque, imitando a estética do programa televisivo
‘Malhação’.

Foi quando a professora em formação, ao constatar esta realidade em sua


avaliação diagnóstica, questionou: Qual a ilha de desordem que podemos
provocar neste contexto? Se o grupo imita a forma de falar de outra região
de forma acrítica, como um modelo de elegância, faz teatro como exibição
de seus corpos, qual atitude do coordenador do experimento poderia
provocar uma desordem nesta situação? Foi necessário algo que os
instigasse a ver a realidade que os cerca; que repensassem sua identidade;
que percebessem a necessidade de qualidade literária nas palavras
proferidas em cena, e no bem escrever; que o texto poético faz parte da
arte teatral.

tumores benignos em que, forçando o convívio com camadas diversificadas de história e


cultura, preparam o solo para mudança.” (Müller cit in Koudela, op.cit., p.31).

37
A escolha do texto seguinte a ser trabalhado recaiu sobre aquele que
estabelecesse fácil comunicação com o público que interessava ao grupo.
Pensamos em textos que provocassem a revisão da auto-imagem dos
alunos, que os levassem a refletir a existência da sua própria significação
como ser nordestino. Neste sentido, estimulamos a professora a propor a
montagem de a comédia A Pena e a Lei de Ariano Suassuna. O confronto
com a leitura e o estudo sobre outras formas de encenar a partir desse
texto, abriu novas perspectivas àquele grupo potiguar.

Outro exemplo é o experimento realizado pelo professor em formação Fábio


Dantas. Ao se deparar com uma turma de adolescentes do ensino médio
numa escola particular, sua avaliação diagnóstica detectou alto índice de
individualismo, dificuldade de trabalhar em grupo e pouca sensibilidade em
relação aos problemas sociais brasileiros. Segundo o desejo do grupo, eles
iriam encenar algum texto que falasse de sexo, namoro. Ao ser
questionado sobre o seu papel crítico na formação do grupo, o professor
respondeu que na verdade gostaria de impor um outro tema, impingindo o
debate acerca de valores humanitários e éticos, tais como a solidariedade e
o sentido de projeto coletivo. Continuando nossa orientação, sugerimos ao
estagiário que nesse caso evitasse a decisão coletiva e propusesse, como
seleção de material didático que cabe ao professor de uma disciplina
escolar, um determinado texto. Indicamos alguns autores, como Oswald de
Andrade, Bertolt Brecht e Heiner Müller, salientando porém que a peça
“Aquele que diz sim, Aquele que diz não” de Brecht poderia ser muito
apropriada. O professor levou o texto para sala de aula como um desafio ao
grupo. Ao final do processo, o professor avaliou que o trabalho com a peça
gerou uma série de discussões interessantes sobre atitudes e sobre
princípios éticos. O grupo encenou fragmentos deste texto, mas, o mais
importante foi o estímulo que o material brechtiano proporcionou para que
o grupo realizasse um significativo avanço em sua visão crítica.

Por ocasião do experimento em foco neste capítulo, quando pensamos na


possibilidade de escolher Hamlet, já conhecíamos a possibilidade de análise
comparativa de diferentes versões da narrativa, como as de Shakespeare,
Heiner Müller, Brecht, Berkoff, Stoppard, por exemplo, pode ser muito
enriquecedora para a apropriação dos operadores de leitura da cena
contemporânea.

A utilização de Hamlet neste experimento, por ser um dos textos mais


explorados pelos grandes diretores, garante uma variada gama de pontos
de vista da critica dos encenadores e dos teóricos.

O texto de Shakespeare também permite abordar uma multiplicidade de


temas, desde a noção de cena dramática, à função da tragédia; desde a
técnica de inclusão do elemento cômico em meio a cenas de tensão como
forma de equilibrar a composição de roteiros cênicos de distanciamento
crítico e da tensão provocada pela narrativa trágica, bem como pelo gestual
(a pantomima na cena dos comediantes) e, até mesmo, discutir a técnica
do ator, a partir do famoso “conselho aos atores” proferido pelo
protagonista.

38
Poderíamos dizer que, do ponto de vista temático, o texto de Shakespeare
trata da questão da consciência humana, da decisão entre acomodar-se ao
contexto e usufruir regalias ou tomar uma atitude contra a injustiça, lutar
pelo que se acredita, mesmo arriscando perder tudo. Este enfoque
específico do “ser ou não ser” nos interessa muito, tendo em vista a
avaliação diagnóstica que fizemos dos participantes de nossa oficina. Qual,
onde, quando e com quem?

Nosso interesse com Hamlet foi reconhecer os procedimentos de escritura


textual do bardo inglês e acercar-se da opção teatral do príncipe
dinamarquês. Isto se dá, nos limites desta pesquisa, como caminho
necessário para a apropriação crítica de outros tipos de abordagem
narrativa: a épica e a não-dramática. Nesta proposta abordamos o texto
dramático como preparação para se fazer comparações entre diferentes
versões dramatúrgicas do personagem. Objetivamos o que para nós é
fundamental: o conhecimento e a discussão a respeito dos instrumentos
narrativo-cênicos e épicos ou, – como prefere Sarrazac, – rapsódicos,
inerentes aos modelos narrativos de justaposição ou de pós-cena não-
dramática. No caso, este interesse nos levou a Hamlet-máquina de Heinner
Müller e a outras versões do personagem.

Uma das grandes vantagens do trabalho em torno dos arquétipos literários


da dramaturgia teatral é que podemos realizar comparações entre
diferentes formas teatrais. É produtivo, do ponto de vista didático, conhecer
uma narrativa e ao analisar uma adaptação e/ou recriação desta narrativa,
perceber as formas e atitudes do adaptador em relação ao or iginal.

A presente investigação comprovou que o estudo de textos considerados


modelares permite diferentes abordagens cênicas e textuais, na medida em
que se constitui de material utilizado e encenado por uma grande variedade
de montagens. Esta diversidade de propostas dos principais encenadores
permite um enfoque multiforme, diversificado sobre o evento teatral.

39
CAP. 2. Uma abordagem lúdica dos textos: o jogo
teatral entre os atores, o diretor e o dramaturgo
Neste capítulo apresentamos o princípio metodológico da ampliação das
funções criativas do educando, que propomos para a formação do professor
de teatro, tendo em vista sua utilização com alunos da disciplina teatro na
escola de ensino fundamental e médio. Propomos a vivência de diferentes
papéis pelo mesmo indivíduo – dramaturgo, diretor e ator – em experimentos
de jogo, análise e encenação a partir de fragmentos de textos teatrais.

Apresentaremos um resumo das propostas de abordagem lúdica de


aprendizagem e criação do teatro que fundamentam a noção de jogo teatral.
Como já vimos na introdução, nossa abordagem se inscreve na linha de
pesquisa pedagógica do teatro da Universidade de São Paulo, tendo sua base
nas investigações de Koudela e Pupo. Como complemento deste enfoque,
adotamos alguns dos princípios de Augusto Boal.

De forma complementar, neste capítulo iniciamos a descrição dos principais


objetivos e regras dos procedimentos que estimulam os alunos no
desempenho das funções de dramaturgo e de diretor, que serão
desenvolvidos nos capítulos 3 e 4. Estes procedimentos foram
sistematizamos a partir da observação das oficinas de escritura teatral na
formação do dramaturgo no Institut del Teatre de Barcelona, dos resultados
obtidos nas análises dos processos de criação observados e dos experimentos
que coordenamos.

2.1. A abordagem lúdica como eixo metodológico: o aluno como


ator

2.1.1. O jogo teatral com textos

Visando sistematizar procedimentos que articulem a aprendizagem e o


desenvolvimento da dramaturgia e da encenação, adotamos como eixo
metodológico central os princípios defendidos pela linha de pesquisa em
pedagogia do teatro da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo, Brasil. Sendo assim, o enfoque de caráter lúdico do teatro e a
abordagem dos fragmentos de textos que utilizamos, são uma continuidade
das investigações de Ingrid Koudela e Maria Lúcia Pupo, na medida em que
nossa formulação parte de elementos do theater games de Viola Spolin, do
jeu dramatique de Jean-Pierre Ryngaert e do theater spiel de Bertolt Brecht.

Em nossa abordagem do jogo teatral podemos dividir os principais pontos das


avaliações, da seguinte forma:

a) O enfoque na corpo, e na ação física: utilizamos perguntas do tipo: Como


vocês se sentiram fisicamente? Havia verdade física na ação dos jogadores e
envolvimento físico com a ação? Quais as relações entre a forma, o
comportamento físico e os sentimentos e pensamentos?

40
b) A resolução do problema de jogo: questionamos se o grupo conseguiu
resolver o foco do jogo teatral apresentado antes e durante a improvisação.
São exemplos: o relacionamento com um espaço imaginário, a configuração
de uma ação cênica, a representação de um personagem;

c) A atitude e gestus: comentários críticos sobre a elaboração do gesto ou


mesmo do gestus social. Às vezes, se faz necessário também questionar o
posicionamento político do grupo em relação ao tema, procurando confrontá-
lo com outras atitudes possíveis;

d) Através das entradas possíveis para a avaliação “gosto, critico e


proponho” cada indivíduo deve se posicionar com uma argumentação
justificada suscitada pelo uso destes três verbos, sugerindo alterações no
jogo.

O jogo teatral com texto literário

Os procedimentos de jogo teatral com textos literários não-dramáticos


utilizados são inspirados diretamente na prática teatral desenvolvida por
Maria Lúcia Pupo (2005). Esta proposta parte da discussão sobre o papel do
texto não-dramático e a estética dos fragmentos no teatro contemporâneo,
analisada e implementada por autores como Anne Ubersfeld, Jean-Pierre
Sarrazac, Michel Vinaver, e busca integrar os princípios de jogo com texto
inerentes à abordagem do jeu dramatique de autores como Richard Monod, J.
P. Ryngaert, Gisèle Barret, J. C. Landier, Jean Baune e Bernard Grosjean,
dentre outros, com o sistema de jogos teatrais de Viola Spolin.

Desta forma, a apropriação do texto não-dramático se dá de forma


concomitante à formulação de problemas de natureza teatral, gerando
pontos de concentração para atuação em cena, os focos do jogo. Outro
aspecto importante é a abordagem sensorial da fisicalização e as instruções
dadas pelo coordenador durante o jogo, centradas no foco previamente
definido.

Outro procedimento fundamental é o jogo teatral com texto narrativo em


mãos, no qual é feita a leitura durante as ações do jogo, seja durante a
análise dramatúrgica, conforme detalharemos no Cap. 3, seja quando
experimentamos jogos que alteram o sentido original dos textos.

A abordagem de jogo com texto narrativo desenvolvida por Pupo1 , nos


parece imprescindível, quando pretendemos abordar de forma lúdica os
textos teatrais contemporâneos, particularmente aqueles que se valem de
monólogos, coros e outras formas textuais rapsódicas, como por exemplo, os
fragmentos sintéticos de Heinner Müller, cuja escrita se constitui de blocos de
palavras, sem pontuação dividindo as frases, nem referência concreta do
emissor do discurso. Em um de nossos experimentos com iniciantes, quando
propusemos o jogo com um trecho do monólogo do elevador de “A Missão”,

1
Pupo, Maria Lúcia de Souza Barros Pupo. Entre o Mediterrâneo e o Atlântico, uma aventura
teatral. São Paulo, 2005, p.24.

41
por exemplo, foi muito interessante ver como cada grupo se apropriava do
texto dividindo-o entre os personagens inventados de diferentes maneiras.

Outro procedimento de jogo com texto narrativo que adotamos é o seguinte:


os jogadores se dividem em subgrupos e planejam a estrutura de um jogo.
Uma regra é que o jogo deve ter pelo menos um narrador, que deve optar
entre as diversas posições possíveis de um narrador durante o jogo, dentro
ou fora da área de atuação. Os subgrupos recortam do trecho entregue pelo
professor, o fragmento que interessa a todos e escolhem o espaço físico onde
acontecerá o jogo. Antes de interagir no espaço, o grupo combina quem vai
falar e quando. Em geral, após as rodadas, observamos que os jogos de
apropriação lúdica de recortes facilitam a ampliação do repertório de imagens
em relação ao texto. A improvisação feita sem estes jogos de apropriação
lúdica de recortes do texto2 tende a isolar o jogador em seu próprio
repertório de gestos e movimentos, o que nos parece limitar as possibilidades
lúdicas.

Jogos teatrais com diferentes atitudes e posições do narrador são muito úteis
nas fases de exploração de textos e de levantamento de temas.

Às vezes propomos um jogo teatral em determinado espaço, com o objetivo


de recuperar a atitude lúdica, de provocar uma ruptura no repertório de
formas cênicas do grupo, instigando novos modos, ou estabelecemos um
fragmento de espaço anteriormente planejado, tendo em vista os confrontos:
temático, complementar ou contraditório com o texto3. A instrução é a
seguinte: “Recortem uma parte pequena do texto. Para vocês qual trecho do
texto, teatralmente, contém a imagem mais interessante? Qual é essa
imagem?"

O jogo com textos teatrais

Alguns dos procedimentos formulados pela vanguarda do início do século XX


inspiraram autores da pedagogia teatral para uma abordagem lúdica de
textos dramáticos, como é o caso de Jean-Pierre Ryngaert:

“As experiências a partir de um texto teatral existente permitem provocar a


capacidade de jogo e de imaginação a partir de um objeto muito diferente das
experiências pessoais diversas vezes evocadas.”4

A abordagem deste autor sobre o uso de curtos diálogos dramáticos como


ponto de partida de jogo nos inspirou a formulação de práticas como as que
realizamos com material advindo de Esperando Godot, de Samuel Beckett ou
de Hamlet de Shakespeare. Na seleção dos fragmentos buscamos sempre
trechos que possibilitem bastante espaço para o jogo e a imaginação. Nas
fases iniciais dos experimentos, no preparo das fotocópias entregues aos
atores, procuramos neutralizar as indicações cênicas, apagando as

2
Pupo, op.cit., pp. 25-30.

3
Ryngaert, Jean Pierre. Jouer, représenter. Paris, Cedic, 1985 e Pupo, op.cit.
4
Ryngaert, op.cit., p.108.

42
didascálias que fornecem pistas sobre o contexto original da peça ou a forma
de atuação dos personagens.

Após uma leitura silenciosa, em subgrupos, os atores lêem os textos em voz


alta, para que se familiarizem com eles. Depois dos jogos de apropriação de
textos, cada dupla possui um determinado tempo estabelecido pelo professor
para improvisar, com o texto em mãos, a partir de um determinado espaço
por eles escolhido. Ao final do tempo de preparação, todos os subgrupos
apresentam uma proposta de leitura no espaço. Estas proposições são
comentadas e comparadas, destacando-se as questões sobre as direções
apontadas pela escolha do texto e pelas soluções cênicas adotadas. Na
segunda fase do procedimento, novas instruções são dadas no sentido de
propor alterações concretas nos jogos no que diz respeito ao uso do espaço,
ao acréscimo de novas ações físicas para determinadas réplicas, à troca de
papéis, às alterações no ritmo e às mudanças no estilo de jogo.5

O theaterspiel de Brecht

A integração dos principais aspectos do theaterspiel de Bertolt Brecht com a


noção de jogo teatral de Spolin resultante da abordagem de Koudela tem
importância fundamental para a formulação de instruções e de focos de
avaliação dos jogos neste trabalho. A ênfase na consciência, na possibilidade
de citação e na re-elaboração dos gestos, a análise e o questionamento das
atitudes e das relações sociais e a discussão do contexto histórico e social de
algumas das ações representadas, foram alguns dos elementos inspirados no
jogo com a peça didática (Lehrstück). O instrumento didático de origem
brechtiana que mais utilizamos é o estranhamento, que visa ao
descondicionamento e à liberação da automatização das percepções,
estimulando a inclusão de elementos contraditórios nos jogos.

Na proposta que apresentamos nesta tese, a noção de construção do gestus


social6 e o enfoque nas relações entre os diferentes papéis sociais são uma
das formas de abordagem de recortes do texto teatral que procuramos
estimular. Outra perspectiva interessante é o foco em papéis que
representem modelos associais, nos quais o comportamento serve como
provocação de uma discussão tendo em vista um novo olhar diante do
mundo 7, no sentido de estranhar o que é aparentemente natural, assim como

5
Ryngaert, op. cit, p. 107.

6
Gestus é o termo latino para gesto e é entendido neste trabalho como uma maneira
característica de usar o corpo para configurar uma atitude para com o outro, conceito que
Brecht formula em sua teoria do gestus social: “Ao espectador é conferida oportunidade para
uma crítica do comportamento humano segundo uma perspectiva social e a cena á
representada como uma cena histórica. O espectador deverá passar a ter possibilidade de
estabelecer comparações no domínio do comportamento humano.De um prisma estético isto
significa que o gesto social dos atores adquire especial importância. A arte tem, pois, de
cultivar o ‘gesto’.(gesto que possua, evidentemente, significado social, e não que ilustre e
exprima.)O princípio da mímica é assim, a bem dizer, substituído pelo princípio do gesto”
(Brecht, Bertolt. Estudos sobre teatro. Lisboa, Portugália Editora (s/d), p.297.)

7
“As peças didáticas oferecem como modelo de imitação modelos ‘associais mas altamente
qualificados’, segundo Brecht.(...) Ao experimentar, no jogo, o comportamento negativo, ‘os
impulsos associais’(...) o atuante experimenta a contradição proposta pelo ‘modelo de ação’

43
de uma análise das diversas possibilidades de ação para a transformação da
realidade. Valorizamos na abordagem brechtiana da peça didática a noção do
texto teatral como um modelo de ação:

“- modelo: como um exercício artístico coletivo que tem por foco a investigação das
relações dos homens entre os homens”.
- modelo como um texto que é objeto de imitação crítica.”8

O modelo de ação visa incrementar o procedimento de estranhamento da


realidade. Dessa maneira, o texto está aberto à improvisação do jogador,
pois cada grupo atualiza o tema, as ações e os papéis de acordo com seu
próprio contexto, na medida em que trechos de invenção própria e de tipo
atual podem ser introduzidos.9

Nossa abordagem da peça didática está fundamentada na apropriação do


texto de Brecht através do jogo teatral, desenvolvida por Ingrid Koudela. O
princípio do jogo visa a uma representação não só simbólica e discursiva,
como também sensorial, da realidade, sendo a educação dos sentidos a via
pela qual se processa o estranhamento:

“O descondicionamento de ações que se tornaram rotina e de hábitos de percepção


que se tornaram automatizados é a condição da qual depende a aprendizagem
futura. Neste sentido, o sistema de jogos teatrais pode trazer grande contribuição
para o exercício da peça didática. A educação da sensorialidade, aliada aos
procedimentos com o jogo, promove o campo dentro do qual texto poderá ser
introduzido”.10

A aproximação destas duas modalidades de jogos teatrais, o theaterspiel de


Brecht e o theatre games de Spolin, é uma das inspirações de nossa prática
lúdica com textos, ampliando nossos focos de avaliação de jogo teatral. Neste
sentido, trata-se de uma atuação que visa discutir também as relações
sociais, ou seja, que não abre mão do enfoque político das ações entre os
homens.

Em nossa proposta de aprendizagem da dramaturgia, baseamo-nos neste


estudo das atitudes e relações humanas através do jogo com fragmentos
desenvolvido por Koudela (1996) a partir de Brecht e H. Müller. Nesta
proposta, na fase de avaliação diagnóstica dos interesses do grupo, ao
selecionarmos trechos de textos teatrais para confrontá-los com os alunos,
utilizamos diversos procedimentos de apropriação e recriação lúdica
sistematizados por Koudela.

(texto) refletindo sobre ela.” (Koudela, Brecht, um jogo de aprendizagem. São Paulo,
Perspectiva/EDUSP, 1991, p.37).

8
Koudela, Ingrid.Texto e Jogo. São Paulo, Perspectiva, 1996, p.15.

9
Koudela, Ingrid. Brecht, um jogo de aprendizagem. São Paulo, Perspectiva,1991, p.16.
10
Koudela, op. cit, p.158.

44
2.1.2. A criação de imagens

O trabalho com imagens corporais no espaço como instrumento de


investigação de novas formas, ações e relações cênicas, e não como
reprodução de modelos ou fórmulas pré-existentes, surgiu a partir das
pesquisas dos principais encenadores do século XX.

Como sabemos, Meyerhold foi um dos primeiros encenadores a enfatizar a


elaboração consciente de gestos pelo ator, atitudes e deslocamentos com
foco na plasticidade corporal. Para ele, se a forma está adequada, então os
tons e sentimentos também estão certos, porque eles são determinados
pelas posturas físicas. Deste autor adaptamos o instrumento metodológico
das posições-poses (rakurz) como ponto de partida de imagens coletivas,
ações físicas e jogos teatrais. O rakurz é uma imagem corporal sem
movimento exterior, que indica a atitude cristalizada e fundamental de um
personagem. Meyerhold buscava o rakurz mais preciso para cada situação,
assim como, o escritor busca a palavra exata. Segundo ele, devemos
encontrar a posição física que revele os verdadeiros breques no movimento
gestual.11 Esta noção de imagem fixa como instrumento cênico foi
desenvolvida por Brecht em sua formulação para o estudo da observação e
configuração do gestus social dos personagens. A montagem e remontagem
de gestus é um recurso pedagógico potente, na medida em que concretiza no
palco as atitudes e as relações dos papéis, conforme apontaram Steinweg e
Koudela em seus estudos sobre o jogo com a peça didática brechtiana.

Além do uso pedagógico do gestus em Brecht, nossos procedimentos para a


criação de imagem se baseiam em uma das técnicas do teatro-imagem de
Augusto Boal. Estas técnicas, apesar de terem se tornado cada vez mais
introspectivas e terapêuticas, ”podem ser igualmente úteis para ensaiar
espetáculos”.12 Apesar de considerar esta última possibilidade, a intenção
primeira de Boal é proporcionar formas do espectador atuar como interventor
direto na cena, através da composição da imagem com os corpos dos demais
participantes. Para Boal, o participante de uma oficina deve ser estimulado a
expressar sua opinião sobre determinado problema social: os participantes se
revezam, modificando em parte ou totalmente o posicionamento dos atores
em cena. O importante, segundo Boal, é chegar a um denominador comum:
um modelo que, na opinião geral, seja a representação mais adequada do
problema colocado. Após a configuração da imagem mais adequada para
sintetizar o problema social, os atores são estimulados a modificar o conjunto
de “estátuas” que, nesta segunda etapa, deve representar a solução do
problema social em foco, ou seja, a superação do conflito identificado na
“imagem real” através de uma “imagem ideal”. Após a construção dessas
duas imagens – a real e a ideal - Boal solicita a um outro participante que
demonstre, através de uma nova imagem – a “imagem de trânsito” - como
se poderia alcançar a resolução do respectivo conflito social.

11
Meyerhold cit. in Pavis, Patrice. Dicionário do teatro, Perspectiva, 1999, p.187.
12
Boal, Augusto. O Arco Íris do desejo.Rio de Janeiro,Civilização Brasileira,1996, p.232.

45
Um exemplo destas técnicas de Boal que utilizamos é o instrumento da
imagem cinética, que tem como foco a configuração de um desenho dos
movimentos das ações “purificados, simplificados e magnificados naquilo que
eles têm de essencial”. Ela é a imagem do movimento e do significado.13 Boal
ilustra sua proposta com o seguinte exemplo:

“João Paulo I morreu muito pouco tempo depois de João XXIII. Vendo-se cada
foto em separado, pode-se ver o papa respectivo - as duas juntas mostram a
morte papal.” 14

Apesar de defendermos que o professor em formação possa se apropriar


deste enfoque de Boal para o Teatro-Imagem - assim como de outras
técnicas do Teatro do Oprimido, como o Teatro-Fórum – em nossa proposta
elas não são um fim em si mesmo, sendo consideradas dentro de um painel
amplo de procedimentos que o professor pode se valer para, na fase inicial
do experimento, desvelar os interesses do grupo. Desta maneira como Boal
propõe a criação de imagens, valorizamos esta prática como forma de
desvelar os possíveis temas que nortearão a escolha futura de textos teatrais
que serão abordados, da mesma forma que o jogo teatral de Spolin pode
revelar os conteúdos significativos para o grupo antes do encontro com a
literatura.

Do ponto de vista do professor interessado em ensinar o conteúdo específico


do teatro na escola, porém, não basta discutir e averiguar formas de
superação de relações de opressão que afligem os participantes. Portanto,
quando pensamos a preparação para a docência do teatro com adolescentes,
a criação de imagens em nossa abordagem adquire objetivos distintos.

Em um primeiro nível, este procedimento é usado para estimular a


proposição de idéias dramatúrgicas pelos alunos quando estes jogam os
papéis de atores. Trata-se de uma forma que agiliza sobremaneira a
sugestão de diversas soluções para um mesmo problema de configuração
cênica. Esta perspectiva de uma dramaturgia dos atores iniciantes através
das imagens concebidas com o posicionamento dos próprios corpos no
espaço, foi aprofundada por nós durante a pesquisa anterior, cujos resultados
foram publicados (Martins, 2004). Por exemplo, quando trabalhamos com
alunos utilizamos instruções como: “A partir deste espaço, inscrevam nele
personagens através de imagens fixas. Antes de decidirem, experimentem
várias possibilidades de ação e atitude física, através de pequenas
improvisações que durem alguns segundos. Escolham a imagem corporal
mais significativa e retomem-na, definindo um foco externo no espaço e um
desejo em relação a este foco. Iniciem a ação e parem na posição que vocês
sentirem ser a posição mais fortemente determinante, a imagem que melhor
retrata o movimento interior e exterior do personagem”.

13
Boal, Augusto. O Arco Íris do desejo. Civilização Brasileira, pp. 265-266.
14
Boal, op. cit., p. 266.

46
Imagens cênicas no espaço vazio

Nossa abordagem para estimular a capacidade de investigação de problemas


cênicos por atores iniciantes começa sempre pela criação de imagens
complementares, ou seja, aquelas cujos elementos se complementam,
formando um quadro que transmite um conceito, uma ação, uma atmosfera,
ou um espaço, dentre outras possibilidades. São imagens não
necessariamente realistas, mas que possuem um reduzido grau de polissemia
e que visam comunicar informações claras, objetivas e sem ambigüidades
que possam dificultar a leitura da imagem teatral.

Um segundo tipo de imagem utilizado é a imagem dialética que estimulamos


nos momentos seguintes à confecção de imagens complementares. O foco é
a criação de imagens que contenham em sua composição elementos
contraditórios entre si. O uso deste termo dentro do trabalho foi
fundamentado no conceito de imagem dialética utilizado por Röhl, ao se
referir ao trabalho do autor e encenador Heinner Müller:

“O fato de a dialética não se localizar mais no diálogo, como arte de


argumentação/persuasão, mas na imagem dialética/poética, significa um
afastamento de Brecht não só em direção a Benjamim, como também a Kafka
15
- uma opção pela abertura via metáfora, polissemia.”

Um primeiro nível de exploração diz respeito à elaboração de imagens de


natureza cênica no espaço como ele é, ainda sem transformação simbólica,
aproveitando a atmosfera do próprio ambiente. Os atores escolhem o seu
fragmento de espaço16. Cada um então se coloca, assumindo uma posição e
um gesto definido, que aos poucos é complementado pelos demais. A
imagem é questionada com instruções, com o foco na fisicalidade: “Tentem
configurar de forma mais clara o gesto que está fixado nesta imagem. "Após
a criação de imagens coerentes com o espaço como ele é, repetimos o
procedimento determinando a sua transformação simbólica.

Nas duas abordagens de elaboração de imagens, os procedimentos podem


evoluir para o foco nas ações físicas quando pedimos que as imagens criem
vida. Nestes momentos a ação improvisada é interrompida pelo coordenador
com instruções como: “procurem definir melhor a ação cênica”. A ação é
então retomada e depois novamente interrompida: “Procurem concluir a ação
e encaminhem-se para a configuração de imagem final”.

A imagem, tomada como a condensação da atitude de um personagem,


realizada através da suspensão do movimento corporal no espaço, é objeto
de vários procedimentos, principalmente quando utilizada como indutora dos
jogos teatrais.

15
RÖHL, Ruth. O Teatro de Heiner Müller, São Paulo, Perspectiva, 1997, p.154.
16
Estas modalidades foram desenvolvidas em nosso experimento “1999” (Cf. Martins, Marcos
Bulhões. Encenação em Jogo. São Paulo, Hucitec, 2004).

47
2.1.3. O revezamento de papéis pelos atores

Outro princípio metodológico brechtiano que adaptamos para o jogo teatral


dos atores é o rodízio de personagens, papéis e outras funções de cena,
como contra-regras, narradores e curingas. A primeira grande influência na
encenação contemporânea em relação ao rodízio de papéis entre os atores
durante um experimento teatral é difundida a partir da prática de ensaios de
Brecht com seus atores do Berliner Ensemble. Brecht experimentou esta
técnica como forma de instaurar o estudo coletivo dos gestus entre os
personagens durante o período dos ensaios, apesar de isto não acontecer nos
seus espetáculos. De qualquer forma, salientamos em nossa abordagem a
influência desta atitude brechtiana de investigação de diferentes formas de
configuração de uma cena pelo atores. No entanto, na peça “A Decisão”, na
qual se narra distanciadamente o que no passado ocorreu com uma patrulha
de soldados; a morte de um companheiro é mostrada diante dos juízes; o
“tempo presente” é a narração do fato acontecido. Neste texto, Brecht reitera
constantemente o recurso da desvinculação entre ator e personagem.
Podemos ler o texto como uma das formas de exemplificar um tipo
estranhado de efetuar a troca de papéis.

A noção de rodízio de papéis entre os atores foi difundida no Brasil por


Augusto Boal, a partir da montagem de Arena Conta Zumbi, no qual vários
atores representavam o protagonista ao longo do espetáculo. Em seus
escritos teóricos, Boal denominou esta técnica de “desvinculação do ator-
personagem”:

“Cada ator foi obrigado a interpretar a totalidade da peça e não apenas um


dos participantes dos conflitos expostos. Fazendo-se com que todos os atores
representassem os mesmos personagens, conseguia-se o segundo objetivo
técnico dessa primeira experiência: todos os atores agrupavam-se em uma
única perspectiva de narradores. O espetáculo deixava de ser realizado
segundo o ponto de vista de cada personagem e passava, narrativamente, a
17
ser contado por toda uma equipe, segundo critérios coletivos”.

Do nosso ponto de vista é necessário que o professor em formação tenha


condições de estimular a proposição da análise comparativa de diferentes
versões para a mesma cena ou personagem. Quando se trata dos
protagonistas de peças dramáticas consideradas clássicas, valorizamos a
proposição do revezamento, também pelo fato de socializar a vivência dessas
situações-chave pelos alunos. Ao analisar, criar imagens e jogar teatralmente
um recorte do Pacto do diabo com Fausto, por exemplo, consideramos
fundamental que os alunos possam vivenciar tanto a perspectiva de
Mefistófeles quanto a de Fausto, assim como a de um narrador que o grupo
tenha decidido introduzir na cena. Portanto, assim como Brecht, valorizamos
o revezamento no decorrer do processo, mas não necessariamente temos de
respeitar o modelo de espetáculo proposto por Boal. Para este enfoque, a
troca de papéis na encenação é apenas uma das possibilidades existentes.

17
Boal, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 1977, p. 189.

48
2.2. A ampliação das funções no jogo teatral: o aluno nos
papéis de ator, diretor e dramaturgo.

Neste tópico o objetivo é apresentar nosso enfoque para ampliação das


funções criativas do educando, seja ele o professor em formação ou iniciante
em teatro. Sob este ponto de vista, enfatizamos a criação, a aprendizagem e
a análise da escritura cênica através da vivência de diferentes papéis –
dramaturgo, diretor e ator – em procedimentos de encenação, adaptação e
recriação do texto teatral escolhido como foco central de experimentos de
aprendizagem.

Sendo assim, destacaremos neste momento a definição e os principais


objetivos e regras que sistematizamos visando a proposição destes papéis no
âmbito do ensino do teatro. Esta proposição é fruto do estudo de
procedimentos de ensino de dramaturgia no Institut del Teatre de Barcelona
no âmbito da formação do dramaturgo, assim como dos resultados obtidos
nas análises dos processos de criação observados (Teatro da Vertigem e
Teatro Oficina), dos experimentos que coordenamos na licenciatura em
Teatro da UFRN e das oficinas realizadas durante esta pesquisa.

A avaliação de nossa experiência com os professores em formação nos levou


ao desenvolvimento de princípios metodológicos que ampliam as funções do
aluno em uma aula de teatro. Sob esta visão, além de ator, dramaturgo e
crítico, funções estas que estão integradas na atuação e na avaliação do jogo
teatral defendido por autores como Spolin, Pupo e Koudela, entendemos que
o aluno pode ser estimulado a exercer, de forma colaborativa, funções
artísticas que juntas, tecem a narrativa cênica.

Entre os extremos da criação coletiva, onde os alunos decidem em grupo o


encaminhamento das suas cenas e jogos, e a encenação centralizada na
figura do diretor-professor, propomos o desenvolvimento de procedimentos
que possam estimular os atores, não só como dramaturgos (para que
improvisem, selecionem, editem, e escrevam roteiros e textos), mas também
como diretores (que concebem cenas individualmente - redigindo roteiros
cênicos, moldando os corpos dos atores e demais elementos, no espaço, em
imagens fixas ou mesmo, conduzindo ensaios de cenas).

Em geral, os professores de teatro procuram dinamizar procedimentos nos


quais todos os alunos são estimulados a atuar, entrando no jogo, numa
mesma aula. Propomos uma mudança de enfoque: do aluno visto como
sendo um ator-criador para o do aluno que é convidado, constantemente, a
pensar também como um encenador e dramaturgo, no sentido do poeta da
cena (Artaud) do “artista do teatro do futuro” (Craig) entendido como um
regente de narrativas teatrais. Na perspectiva de alguém que também pensa
o roteiro, discute a estrutura dramatúrgica, combina com os colegas a forma
de criação coletiva, ou mesmo como um contador de estórias, ou rapsodo,
como prefere Sarrazac.

Neste enfoque a avaliação prioriza não a forma de atuação no jogo – se o


aluno mostrou ou não o personagem com competência, por exemplo – mas a
elaboração do discurso cênico, da narrativa, do conceito de encenação, sua

49
adequação com a forma estética adotada, o superobjetivo da cena em
relação ao efeito no público que se pretende encontrar.

Defendemos como princípio metodológico que os jogos de encenação em sala


de aula sejam elaborados através do exercício da troca, do encontro de
opiniões, de sensibilidades e de formas diferentes. Além das especificidades
de cada papel desempenhado no coletivo teatral, os participantes de um
experimento de encenação podem e devem discutir o encaminhamento da
dramaturgia.

Valorizamos, portanto, a criação de silêncios e escutas necessários antes da


conquista do consenso, a busca de harmonia na diversidade que o fazer
teatral pode proporcionar. Enfatizamos a abordagem colaborativa, o exercício
de tentativas de um discurso coletivo não centralizado, que reúne esforços de
diferentes olhares, de diferentes pontos de vista.

2.2.1. O trabalho dramatúrgico em sala de aula

No capítulo 1, salientamos que diversas modalidades de encenar permitem os


mais variados níveis de contribuição do ator no trabalho dramatúrgico
contemporâneo. Estas diferentes modalidades de processos colaborativos de
construção do texto cênico, termo caro a encenadores como Antônio Araújo,
merecem uma consideração especial no aprendizado da encenação.
Consideramos muito importante que o educando possa vivenciar processos
de natureza colaborativa.

A palavra dramaturgia traz consigo uma gama ampla de possibilidades de


definições. Em nossa abordagem defendemos que alguns destes diferentes
enfoques que dizem respeito ao panorama cênico contemporâneo devem
fazer parte dos conteúdos do ensino de teatro na escola, se pensarmos a
construção de conhecimentos tendo em vista um espectador crítico.

Foi através do filósofo e professor de estética Lessing que se deu o


aparecimento do conceito de dramaturgia e o nascimento da profissão de
dramaturgo 18 (dramaturgista, em espanhol, dramaturg em alemão). Ele
defendeu a necessidade de uma forma concreta de representação de acordo
com uma análise. Muitos outros autores dramáticos compartilharam dessa
preocupação em sua época, mas tudo indica que foi Lessing o primeiro a
abordá-la sistematicamente. Em 1769, após passar dois anos publicando
fascículos, o pensador alemão publica na íntegra sua “Dramaturgia de
Hamburgo”, obra que foi amplamente difundida e editada não só na área da
Lingüística na Alemanha como também alcançou traduções em dezenas de
países, tornando-se um clássico da teoria teatral. Lessing propôs a análise
rigorosa de textos teatrais à luz das concepções aristotélicas. Para este autor
a representação é uma parte necessária da poesia dramática. A arte da
representação merece nossa atenção ao mesmo tempo em que a arte da
composição deve ter suas próprias regras.19

18
Este marco inicial é consenso em boa parte dos principais críticos que influenciam a teoria
teatral no Brasil, tais como Anatol Rosenfeld, Bernard Dort, Peter Szondi, Patrice Pavis, Anne
Ubersfeld e J-J. Roubine.

50
Ao longo do século XIX o preconceito contra o que não é literário no teatro
ainda se impunha fortemente e o âmbito da dramaturgia ficou circunscrito à
análise dos textos. Neste enfoque, que prioriza a natureza literária,
dramaturgia significa a poética da arte dramática que procura estabelecer os
princípios da construção da obra, seja indutivamente a partir de exemplos
concretos, seja dedutivamente, a partir de um sistema de princípios
abstratos. Esta noção pressupõe um conjunto de regras especificamente
teatrais cujo conhecimento é indispensável para escrever uma peça e
analisá-la corretamente. O objeto da dramaturgia é, desse ângulo, a
literatura teatral. Esta dramaturgia clássica que examina exclusivamente o
trabalho do autor e a estrutura narrativa da obra é, na maioria das vezes,
descartada pela crítica teatral.

Percebemos muitas vezes em nossa prática que esta concepção clássica da


dramaturgia, — como sendo um sinônimo do texto escrito ou o estudo do
texto literário — pode estar presente nos discursos de nossos alunos. O
enfoque literário pode ser uma estratégia interessante em determinada fase
da abordagem do texto, porém, a nosso ver, esta abordagem pode ser
relativizada, encarada apenas como um instrumento de análise provisório.

O segundo enfoque historicamente importante e que utilizamos também,


como uma ferramenta de abordagem do texto em sala de aula é o enfoque
brechtiano, que contribuiu muito para a difusão de uma noção de
dramaturgia como sendo a estrutura, ao mesmo tempo, ideológica e formal
da peça. Brecht difundiu sobremaneira a noção de dramaturgia como prática
totalizante do texto encenado. Para ele, estudar a dramaturgia de um
espetáculo é, portanto, descrever a sua fábula ‘em relevo’, isto é, na sua
representação concreta, especificar o modo teatral de mostrar e narrar um
acontecimento.

Um outro sentido do termo dramaturgia é aquele que a considera como


sendo a atividade própria do dramaturgo, encarada como a instalação dos
materiais textuais e cênicos, destacando os significados complexos do texto
ao escolher uma interpretação particular, em orientar o espetáculo no sentido
escolhido:

“Dramaturgia designa então o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas


que a equipe de realização, desde o encenador até o ator, foi levada a fazer.
Este trabalho abrange a elaboração e a representação da fábula, a escolha do
espaço cênico, a montagem, a interpretarão do ator, a representação
ilusionista ou distanciada do espectador. Em resumo, a dramaturgia se
pergunta como são dispostos os materiais da fábula no espaço textual e
cênico e de acordo com qual temporalidade. A dramaturgia, no seu sentido
mais recente tende, portanto, a ultrapassar o âmbito de um estudo do texto
dramático para englobar texto e realização cênica.”20

19
Lessing,Gotthold Ephraim. Dramaturgia de Hamburgo. (tradução de Manuela Nunes).
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
20
Pavis, 1999, p.114.

51
Compreender como as idéias sobre o homem e sobre o mundo são enfocadas
em texto e cena. Examinar como a cena se articula com o mundo. Estudar as
relações entre ideologia e estética da cena. Estas são as diretrizes principais
da dramaturgia contemporânea, segundo autores como Sarrazac, Szondi e
Pavis:

“Ao escolher ler e montar o texto de acordo com um ou vários pontos de vista
coerentes, o dramaturgo esclarece a historicidade do texto, sua ancoragem ou
seu desvinculamento da história dos homens, a defasagem entre a situação
dramática e o nosso universo de referência. Ao interpretar a peça, —
conforme este ou aquele gênero literário — produzem-se fábulas e
personagens muito divergentes, de sorte que o seletor genérico dá ao texto
uma configuração particular a cada vez. Todas essas escolhas permitem
situar, senão explicitar, as ambigüidades (estruturais e históricas), os não
ditos (dizíveis e indizíveis) e os pontos cegos (dificuldades de leitura que
resistem a todas as hipóteses)”.21

Na perspectiva do ensino de teatro com iniciantes, consideramos importante


o enfoque da dramaturgia como teoria de representatividade do mundo.
Deste ponto de vista, o objetivo final da escritura é representar o mundo.
Através do trabalho dramatúrgico efetuamos o ajuste entre texto e cena,
decidimos de que forma interpretar o texto, como lhe dar um impulso cênico
que o esclareça para uma determinada época e para um determinado
público. A relação com o público é o vínculo que determina e especifica todos
os outros.

De outro ponto de vista, uma parte significativa da dramaturgia


contemporânea deseja ir além da representação do mundo. Neste enfoque,
não se procura mais, então, elaborar uma ideologia coerente e uma forma
adequada e, freqüentemente, uma mesma representação recorrente a
diversas dramaturgias. Não se fundamenta mais o espetáculo apenas na
identificação e no estranhamento:

“Portanto,a noção de opções dramatúrgicas está mais adequada às tendências


atuais do que àquela de uma dramaturgia considerada como um conjunto
22
global e estruturado de princípios estético-ideológicos homogêneos. ”

Roubine por sua vez realça que o conselheiro em dramaturgia do encenador


proporá não tanto textos, mas “soluções textuais” aos problemas que se
apresentam, dando forma àquilo que é esboçado no trabalho de improvisação
ou de ensaios, ou ainda, transformando tal texto adotado como ponto de
partida, “não mais ao sabor de sua inspiração, mas atendendo a
necessidades precisas do encenador e de seus intérpretes”. 23

Em nossa abordagem os alunos – na licenciatura, na escola e nas oficinas


com iniciantes - são convidados a realizar o trabalho dramatúrgico, na
direção apontada por Bernard Dort:

21
Pavis, idem, ibidem.

22
Pavis, op.cit., p.115, (grifo nosso).
23
Roubine, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral:1880-1980. Rio de Janeiro,Zahar
Editores, 1882, p.72. (grifo nosso).

52
“Que é este trabalho dramatúrgico senão uma reflexão crítica sobre a passagem do
fato literário para o fato teatral?”24

Sendo assim, neste trabalho, referimo-nos ao autor de peças teatrais, com o


termo escritor teatral. O termo dramaturgo será utilizado não para quem cria
peças originais, mais para aquele que assume em um conjunto teatral a
tarefa de:

a. Propor peças ou os recortes de textos a serem montados.

b. Adaptar ou modificar o texto (montagem, colagem, supressões, repetições).

c. “Destacar articulações de sentido e inserir a interpretação num projeto global


(social, político, etc.)”

d. “intervir, de tempos em tempos, durante os ensaios, como um observador crítico


cujo olhar é mais ‘fresco’ do que aquele do encenador, confrontado cotidianamente
com o trabalho cênico. O dramaturgo é então o primeiro crítico interno do espetáculo
em elaboração.”
25
e. Assegurar a ligação com um público potencial.

Na atualidade, o papel do dramaturgo é o de ajudar o diretor na pesquisa dos


possíveis sentidos da obra, tanto na fase preparatória quanto na realização
concreta da interpretação do ator, na busca pela coerência de objetivos na
encenação e no encaminhamento da recepção por parte do público.

Este enfoque do dramaturgo como um participante integrado ao processo de


construção da cena, — não só como leitor, selecionador, adaptador e escritor
de textos, como também de assessor crítico do diretor — fundamenta a
nossa formulação de jogo teatral do dramaturgo. Ao propor que o aprendiz
de teatro assuma o papel do dramaturgo, em sistema de rodízio,
pretendemos valorizar esse trabalho como prática de teatro.

Com esta meta, os participantes de nossos experimentos opinam e discutem


em grupo a passagem da escritura literária - narrativa, poética e dramática -
para a escritura cênica: da materialidade das palavras no papel ao modo de
por em cena em imagens e em carne os personagens, o lugar e a ação,
entendendo a escritura cênica como a designação, por metáfora, da prática
da encenação:

“A escritura cênica nada mais é do que a encenação quando assumida por um


criador que controla o conjunto de sistemas cênicos, inclusive o texto, e
organiza suas interações, de modo que a representação não é o subproduto
26
do texto, mas o fundamento do sentido teatral”.

24
Dort, cit. in Pavis, op.cit., p.115.

25
Adaptação nossa de descrição de Pavis, op. cit. 1999.
26
Pavis, 1999, p. 132.

53
Neste sentido, se na maioria das vezes a análise dramatúrgica ocorre tanto
antes, quanto depois da encenação, pelo dramaturgo e pelo diretor, em
nossa abordagem optamos por uma participação bem maior dos atores
envolvidos. Além de pensar e discutir as cenas nas quais participam, os
alunos são convidados a se manifestar sobre o todo da escritura cênica,
influenciando e contribuindo para as instruções do aluno que joga o papel do
diretor.

Os alunos que jogam o papel do dramaturgo são estimulados ao exame da


realidade representada nos jogos teatrais através de questões como: Qual o
melhor uso do espaço? Que tipo de personagem ou papel? Qual a nossa
atitude diante deste conteúdo? Como ler o enredo? Interessa-nos o enredo?
Qual o vínculo do resultado de jogo com a contemporaneidade? Como
estranhar este texto? Que ação o tornaria mais convincente?

A proposição de questões como essas é fundamental no encaminhamento de


toda a abordagem, tendo em vista o levantamento constante de diferentes
opções de leitura e adaptação do texto. Desta forma, os alunos são
instigados a não aceitar a primeira solução que surge no jogo ou nas
avaliações, o que estimula a evolução de uma atitude questionadora, tanto
da cena quanto das visões de mundo.

Em nossas avaliações, tentamos sempre destacar as ambigüidades da obra,


assim como, estimular os atores para que clarificassem aspectos da fábula,
por vezes, tomando partido por uma concepção particular de abordagem do
texto e, em outras ocasiões, tendo que exercitar o diálogo em grupo visando
à síntese de uma proposta. Sempre que for pertinente, não abrimos mão de
checar o teor ideológico e o contexto originário dos fragmentos de texto,
expondo na roda de debates nossas observações sobre os vínculos entre a
individualidade e a vida social que atravessam determinadas personagens.
Como afirma Pavis, a análise dramatúrgica deve ultrapassar a leitura
semiológica dos sistemas cênicos, visto que sempre perguntamos,

“(...) de maneira pragmática, o que o espectador receberá da representação e


como o teatro desemboca na realidade ideológica e estética do grupo. Ela
concilia e integra, numa perspectiva global, uma visão semiológica (estética)
de signos da representação e uma pesquisa sociológica sobre a produção e a
recepção destes mesmos signos (sociocrática).”27

Nesta perspectiva, os alunos que jogam o papel do dramaturgo são


estimulados em nossa abordagem a escolherem os recortes de textos em
função de sua atualidade ou de uma utilidade determinada. Eles combinam
os trechos selecionados para uma mesma montagem, adaptam ou modificam
o texto através de montagens, colagens, supressões e repetições de
fragmentos.

Entendemos que o professor de teatro deve ser capaz de estimular os alunos


em sua capacidade de articular um discurso cênico através de um trabalho

27
Pavis, op. cit., p.116.

54
dramatúrgico. Esta é uma condição para que o aluno possa aprimorar o
aprendizado da atuação cênica e interferir, em diversos níveis, na escritura
da cena. Trata-se de estimulá-los para a composição de uma partitura de
focos de jogo teatral, concebida neste trabalho como sendo a sistematização,
por escrito, de uma seqüência de focos que os atores levam em conta para
mobilizar as ações que conduzem a cena de forma lúdica, elaborada
coletivamente: podem ser imagens projetadas pelo ator no espaço, uma
seqüência de ações físicas e vocais ou a relação com pontos determinados
nos espaços, mudanças de luz, percepção e manipulação de objetos. O
aspecto complementar a esta redação de partituras que vão orientar o jogo
dos atores é o encaminhamento de uma tomada de posição sobre o mundo
através da seleção e da atitude em relação ao texto escrito.

Neste enfoque é necessário incrementar a aprendizagem da linguagem


teatral pelo iniciante, indo além de sua habilidade na representação de
personagens. Nesta perspectiva, o professor pode estimular o ator a assumir
também a função de dramaturgo. Utilizamos este termo em seu sentido
técnico contemporâneo, proveniente da tradução do termo alemão
dramaturg. Assim, enfocar o ator como dramaturgo tem em vista enfatizar a
sua capacidade de interferir nas decisões quanto à pesquisa, à adaptação e à
redação de diferentes tipos de texto.

O participante que joga o papel do diretor coordena os ensaios e debates do


seu subgrupo. Como a função do diretor será detalhada ao longo da tese,
dependendo das fases de abordagem do texto, apresentaremos, a seguir, sua
atividade em nossa proposta, dividida em duas modalidades distintas:

- Estimular, coordenar e editar – juntamente com o dramaturgo - a criação


de imagens e o jogo teatral dos atores com o texto. Neste caso, o diretor dá
as instruções de retomada de jogo, após escutar todos os pontos de vista
sobre cada problema de configuração na narrativa cênica. São utilizadas duas
modalidades de regra: a) O grupo deve buscar um consenso, não uma
votação onde a maioria decide; b) Quando não há consenso, ou no caso de
exercícios individuais de concepção da encenação, o aluno que joga o papel
de diretor decide o encaminhamento do jogo.

- Conceber individualmente desenhos, e coordenar a montagem de imagens


e de jogos teatrais. Podemos apresentar, por exemplo, um fragmento do
texto A peça didática de Baden Baden sobre acordo, para que o aluno diretor
traga um roteiro dividido pelo número de acontecimentos e ações presentes
no recorte. As concepções podem ser objeto de debate e, sempre que
possível, de jogo de criação de imagens através da moldagem dos corpos dos
atores no espaço, da proposição de objetos, iluminação, concepção de
espaço, dentre outros, para posterior avaliação coletiva.

A imagem é uma forma de tornar ágil e eficiente a comunicação do diretor


com os atores; evitando racionalismos e longas explicações abstratas.
Através das imagens, a proposição do diretor pode contribuir para a
manutenção de uma atmosfera de jogo para a procura de diferentes versões
para a cena.

55
2.2.2. A encenação textocentrista: em busca das indicações cênicas
do autor

Uma modalidade de leitura possível e importante em nossa proposta, é a do


texto como matéria-prima para a prática da ação teatral. O procedimento que
denominamos neste trabalho de encenação textocentrista28 foi sistematizado
a partir da observação da prática de ensino de direção de Antonio Araújo, no
curso de bacharelado em Direção Teatral da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo. Essencialmente, Araújo pede que, antes de
experimentar sua visão de texto, o diretor em formação tente encená-lo,
seguindo o máximo possível o que considera as intenções do autor. Este
exercício que Araújo denomina de “textocêntrico” integra uma série de outros
procedimentos que este diretor e professor propõe aos seus alunos na
supracitada disciplina:

- a encenação centrada no diretor (que não deve respeitar as indicações


cênicas contidas no texto);

- a encenação centrada no ator (abordagem colaborativa que parte da


proposição dos atores, observada por um aluno na função de dramaturgo –
proveniente da disciplina de curso de cinema da mesma escola – que
trabalha em parceria com o diretor em formação).

Vale salientar que sempre tivemos fortes ressalvas diante da idéia deste
exercício de “respeito” ao que supomos ser as intenções do autor, seja
durante nosso trabalho de formação, seja em oficinas com iniciantes. Sempre
questionamos as pretensões de transmissão de modelos inerentes ao ensino
de teatro tradicional. Antes da guinada metodológica implementada pela
difusão entre os professores que trabalham com teatro na escola, da noção
de jogo e de dramaturgia elaborada pelo próprio aluno, com ou sem auxílio
de recortes de textos (Spolin, Koudela, Pupo), sabemos que quando o
professor de tendência pedagógica tradicional levava um texto para ser
analisado ou memorizado pelos alunos, na função única de atores dirigidos
pelo professor durante a preparação para o espetáculo de final de ano,
estava implícito um modelo prévio a ser seguido, – uma forma de encenar, a
do professor, entendida como unívoca, – que por vezes pretendia uma visão
de “fidelidade” a uma suposta estrutura clássica, que deveria ser respeitada e
tida como única forma de pensar aquele material.

Na medida em que este trabalho se insere na linha de pesquisa centrada na


noção de jogo, pensávamos no início da investigação que a tentativa de
obedecer às indicações cênicas e à estrutura dramatúrgica dos textos,
mesmo que limitada a uma fase de preparação para futuras adaptações e
recriações pelos alunos, pudesse limitar ou atrapalhar futuras descobertas
dos alunos. No entanto, a experimentação com iniciantes do exercício
textocentrista que realizamos a partir de uma cena de textos como Hamlet e
Godot nos revelou que esta prática é extremamente interessante para

28
Termo usado por Pavis para designar e criticar uma visão das relações entre texto e cena,
contrapondo-se à visão “cenocentrista”. (Pavis, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo,
Perspectiva, 2003, pp.189-193.)

56
estimular a aprendizagem da dramaturgia. Segundo a avaliação dos
participantes, ao tentarem descobrir a forma como o escritor pensou a
concretização de seu texto em cena, eles puderam entender a peça com
muito mais propriedade, sentiram-se mais instrumentalizados para as
operações rapsódicas que fizeram em seguida, montando sua próprias
versões dramatúrgicas.

Não pretendemos propor um jogo de encenação que seja “escravo” do texto,


pois concordamos com autores como Ubersfeld que esta noção de respeito às
indicações cênicas presentes no texto precisa ser utilizada com extrema
precaução:

“Ser fiel à letra do texto significa uma infidelidade no sentido que o realizador
deverá interpretá-la para o público a que se dirige. Uma representação que
seja a fiel reprodução de outra, digamos que faz trinta anos, por não nos
trazer de volta o tempo, não emite talvez mais que uma mensagem: eu sou
uma representação de trinta anos atrás, perdendo-se os sentidos que o texto
possa ter hoje para nós. Brecht representado como no Berliner Ensemble,
29
antes de sua morte, (...) não teria mais significação que a arqueológica”.

É desta perspectiva que se vê a encenação como um ato que não é nem


tradução nem ilustração do texto, mas uma realização – no mesmo sentido
em que podemos falar da execução de uma obra musical – em que podemos
propor aos alunos, para este exercício específico de criação de imagens e de
jogo, após os jogos iniciais de apropriação e antes dos exercícios de
adaptação, a busca pela maior fidelidade possível às indicações do autor.

Não pretendemos, portanto, propor o jogo da fidelidade ao texto numa


perspectiva de reconstrução arqueológica, mantendo a ilusão de que ele
contenha todos os signos da representação, quer dizer, os indicadores de
espacialidade, de temporalidade ou de movimento dos personagens que o
texto encerra. Esses indicadores são úteis, orientam uma parte da
representação que busca a referida fidelidade, mas somente em parte.
Sabemos que sempre existem elementos decisivos para a encenação – ações
vocais e físicas dos atores, espaço, cenografia – que, por mais descritivas
que sejam as rubricas, não são contempladas na escritura textual. A
pergunta formulada por Ubersfeld: “Que fazer em relação às indicações
ausentes, porém necessárias? – foi sempre uma constante por parte dos
alunos que se defrontaram com este procedimento de concepção cênica ou
jogo que se propõe fiel ao texto”. Em nosso caso, uma regra básica é que
tudo aquilo que o texto não direcione seja decidido através da edição pelo
diretor, após ouvir a sugestão de todos e, em separado, confabular com o
dramaturgo.

Seja no âmbito da formação de diretores supracitada, ou quando propusemos


este jogo com cenas de Godot, com professores em formação na UFRN e de
Hamlet com iniciantes durante o experimento em Interlagos - observamos
que o desafio de ser fiel ao texto resultou, em todos os casos, em uma forma
de o aluno poder aprender a decifrar as indicações cênicas do texto,
prestando muito mais atenção às didascálias, apropriando-se muito mais da

29
Ubersfeld, Anne. L’ école du spectateur. Lire lê théâtre 2. Les Éditions sociales, Paris, 1981,
p.12. (tradução do autor).

57
importância desses signos presentes no texto, que indicam a
espetacularidade pretendida pelo escritor, embora incompletos e
insuficientes. Principalmente nas peças dramáticas modernas e
contemporâneas, como bem demonstrou Ramos30, as indicações de ações e
gestos, mudanças de luz e de espaço não são meros indícios de uma
representação datada, muitas vezes ignorada de antemão pelos jovens
ávidos por encenar novas possibilidades de encenação do texto. Essas
indicações – de ação gestual, ritmo, jogo de diferentes planos espaciais,
presença da música, etc., fazem parte da poética do dramaturgo estudado,
auxiliam os alunos a perceber as diferenças entre o seu enfoque e a proposta
inicial do autor. Sendo assim, percebemos que a leitura de diferentes
maneiras de escritura das rubricas, assim como a forma dialógica, o uso de
narrador e coro, etc, ampliam as referências cênicas dos alunos,
instrumentalizando a redação do próprio aluno de futuras recriações. A
análise das diferenças entre as versões textocentristas estimula o debate
sobre a impossibilidade de afirmação de um modelo e das relações entre
texto e cena.

Com essas ressalvas, consideramos que do ponto de vista pedagógico este


enfoque do texto pode ser usado produtivamente. Trata-se de olhar para o
texto como sendo uma partitura de ações, não só executadas pelos atores,
como também pela música, pela luz, etc.

A discussão das especificidades do texto teatral é um eixo norteador de


avaliação com os alunos, acostumados ao exercício da análise literária de
romances e contos, na disciplina da língua portuguesa. Destacar as
diferenças entre o mundo da literatura e o do teatro, neste trabalho é um
foco de análise imprescindível. Podemos estimular os alunos a perceberem o
som, a música, o movimento, os aspectos dinâmicos, que devem ser
descobertos na profundidade do texto, e que ainda não podem ser detectados
por métodos de leitura e de análise estritamente literários. Trata-se de uma
análise em busca da dimensão cênica presente nas escrituras textuais.

Enfocamos este procedimento, porém, na perspectiva do jogo teatral. Araújo,


na formação de diretores profissionais, não induz a metodologia que o aluno
diretor deve utilizar para configurar sua cena. Nossa proposta, na medida em
que pensamos a formação do professor, que pode vir a trabalhar com atores,
mas deve ser capaz de lidar com jovens iniciantes na escola, não pode abrir
mão da atitude lúdica na encenação. Deixar em aberto a forma como os
alunos diretores trabalham com seus atores em cada subgrupo não seria uma
atitude responsável, pois poderia abrir caminho para todo tipo de relação
autoritária entre o diretor e seus “comandados”. Portanto, em nossos
experimentos percebemos que uma auto-regulação do grupo acontece
sempre que as regras que limitam os poderes daquele que joga o papel do
diretor estiveram claras e foram retomadas pelo professor ao longo dos
encontros. Para evitar a relação autoritária entre os alunos é fundamental a
retomada das regras e limites durante o jogo (side-coaching), com as
instruções sendo dadas sem que o movimento de improvisação se

30
Ramos, Luiz Fernando Ramos. O parto de Godot: e outras encenações imaginárias: a rubrica
como poética da cena. São Paulo, Hucitec, 1999.

58
interrompa, como recomenda Spolin. Consideramos importantes as regras
básicas abaixo mencionadas.

Sobre a definição do papel de cada ator: O aluno diretor combina com o


aluno que joga o papel do dramaturgo a distribuição dos papéis. Durante os
experimentos percebemos que, quando a definição dos papéis fica por conta
de um debate amplo no subgrupo, este tende a se demorar e, muitas vezes,
surgem polêmicas. O fato de os atores não opinarem, de acordo com a nossa
análise, aumenta a chance da definição dos papéis não causar celeuma, torna
o grupo de atores mais coeso. Se algum ator não aceitar o papel atribuído e o
grupo não resolver a questão internamente, o professor intervém, como
mediador. Neste momento é interessante perceber se a seleção não está
sendo utilizada como forma de agressão por parte do dirigente (um papel
feminino para um ator, ou o contrário, para uma adolescente).

Sobre a condução dos atores pelo diretor: Decidido o elenco e as funções de


cada um, é o diretor quem indica o momento da entrada e da saída de cena
dos atores. Ele deve ser democrático, no sentido de não impor ordens e
dirigir suas instruções aos atores sem perder a atmosfera lúdica. A
manutenção desta relação deve ser acordada entre as partes e reavaliada
constantemente. Na definição de novos focos para a criação de imagens e
jogos teatrais, o aluno-diretor deve sempre sugerir e nunca impor. Nas
avaliações internas, o diretor não deve emitir julgamentos de valor sobre os
atores, nem usar adjetivos para definir a maneira como os colegas estão
desempenhando suas funções, mas ater-se aos focos de jogo pré-definidos.

Sobre o encaminhamento dos jogos de encenação: as decisões sobre as


mudanças nas ações vocais e gestuais, na visualidade e no uso do espaço, na
iluminação e no ritmo devem ser discutidas entre o diretor e o dramaturgo,
após ouvir a opinião dos atores. Essas opiniões não são julgadas nem se
busca votar na mais “acertada”. Após a explanação sucinta dos atores,
dramaturgo e diretor discutem suas impressões e devem buscar o consenso.
Ao diretor, porém, cabe a última palavra, evitando assim polêmicas
desnecessárias.

Nesta perspectiva, o roteiro das ações resultante da decupagem do texto


integral é tomado como uma partitura de focos de jogo teatral. O diretor
identifica a ação no roteiro e pergunta aos atores quais são os desejos de
cada personagem. Os atores se pronunciam individualmente. Esses desejos
são checados pelo diretor e pelo dramaturgo, buscando o consenso nos seus
objetivos, que serão os próximos focos. Os atores jogam, primeiro sem texto
na mão, apenas com as intenções – os desejos dos seus personagens. A
improvisação tem duração limitada. Os atores relêem o texto buscando as
ações e entonações que o autor dá a entender ou recomenda explicitamente.
Novo debate sobre os objetivos de cada um no jogo é criado.

Nova retomada de jogo é realizada. Os atores improvisam com suas


palavras, incorporando frases do texto original. Um novo jogo é feito com o
texto na mão, tentando manter as ações físicas que haviam encontrado sem
o texto. Este processo de leitura e improvisação é repetido, seguido sempre
da leitura do texto, até que gradualmente ele é incorporado pelos atores. O

59
objetivo é que na última rodada de jogo somente o texto do dramaturgo seja
pronunciado em cena.

Os grupos assistem as cenas dos outros participantes. Nas avaliações


recomenda-se que os grupos não sejam cobrados por se manterem “fiéis” ao
texto. O professor esclarece então, que este exercício foi uma provocação
para que eles discutissem as relações entre o texto e a cena. O importante é
saber que os diferentes resultados desta tentativa de cumprir as rubricas do
autor são uma conseqüência da impossibilidade de se reproduzir à risca o
conteúdo do texto. Ao comparar as diversas versões, os alunos percebem
mais claramente as diferenças entre a representação e a peça. Neste
momento, cabe ao professor estabelecer o debate sobre o fato de que
inexiste uma interpretação “fiel à idéia do autor”, e que toda encenação é
necessariamente uma adaptação. É importante valorizar cada forma de
superação das lacunas encontradas pelos alunos no texto.

Valorizamos a apropriação dos elementos de composição dramatúrgica. O


que interessa, essencialmente, é a seguinte regra básica: a cena em imagens
ou o jogo teatral a ser elaborado pelos subgrupos deve manter o texto na
seqüência proposta pelo autor, sem cortes, manter as indicações cênicas das
didascálias, procurando configurar imagens que estejam coerentes com o
gênero do texto, dentre outros.

Do ponto de vista da contextualização do procedimento na história da


encenação, este procedimento é realizado antes que o grupo possa ler
recortes teóricos que exemplifiquem esta abordagem stanislaviskiana da
encenação, centrada no movimento pendular entre a improvisação das ações,
e as diversas voltas à leitura do texto. Em nosso experimento, por exemplo,
usamos um trecho da carta do diretor russo aos seus atores, escrita em
1938, pouco tempo antes de morrer, explicando a seqüência de
procedimentos que ele indicava para a montagem de Otelo.31

Outro ponto de partida para este experimento textocentrista é o roteiro


organizado e desenhado pelo aluno-diretor para uma cena do texto. Os
diretores trazem sua proposta imaginada fora do espaço da aula e podem
apresentar sua concepção e, quando oportuno, desenvolver estas imagens
com os atores.

Nas oficinas realizadas, detectamos que ao ler e encenar o texto, os alunos


podem ser estimulados a estabelecer relações entre o texto estudado e os
conteúdos de história e técnica do teatro. Descobrir através das rubricas e de
outros indicadores, a encenação imaginária do escritor (Ramos,1999), pode
se transformar num jogo de investigação que envolve os alunos como a
composição dos pedaços de um quebra-cabeça, e isso depende da forma
como a tarefa é colocada ao grupo pelo professor. Reiteramos que uma
atitude lúdica é fundamental durante este tipo de exercício. Nas avaliações
destas encenações textocentristas, é importante que os critérios sejam
estabelecidos de antemão. Valorizamos questões como: o grupo conseguiu
ser fiel às indicações explicitadas no texto? Alguma ação ou elemento destoa

31
Stanislavski, Constantin. A Criação de um Papel. (4ª edição) Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 1990 pp.263-286.

60
da proposição do escritor? Quais as lacunas dessas indicações? De que forma
ela foram resolvidas pelo grupo?

O exercício textocêntrico é um dos indutores para que o aluno se aproprie de


caracterísiticas importantes da obra do autor, mas só tem sentido nesta
proposta quando for circunscrito ao jogo com um ou dois fragmentos, de
forma a poder ser comparado com a adaptação e a recriação feita em
seguida pelo mesmo grupo.

Por um lado, o texto é visto como um objeto poético e histórico, um bem da


nossa tradição cultural que traz narrativas e mitos significativos para o ser
humano, e isto se comprova na medida em que esses textos estão sendo
constantemente reencenados ao longo dos últimos anos. Por outro, como
modelo dramatúrgico a ser apropriado criticamente pelo grupo, que pode vir,
se quiser, a incorporar seus procedimentos em sua redação e seu jogo.

2.2.3. A retomada do jogo teatral como eixo da encenação

Na maioria das práticas do jogo teatral com texto, os fragmentos são o ponto
de partida, e a retomada de jogo ocorre isenta da proposição de novos
materiais textuais por parte do coordenador. Assim procedem autores como
Jean-Pierre Ryngaert, Reiner Steinweg, Ingrid Koudela, Maria Lúcia Pupo,
Jean Baune e Bernard Grosjean.

A partir do nosso envolvimento com as abordagens citadas, mas sobretudo,


querendo propor novos enfoques, em nossa pesquisa anterior32 sugerimos
aos alunos que iniciassem pelo jogo teatral sem texto, e somente a partir de
seus resultados selecionassem fragmentos que pudessem servir de
elementos a serem propostos pelo encenador ao longo das sucessivas
retomadas do jogo. Desta forma, o novo texto funciona como elemento de
ruptura com aquela encontrada pelo grupo, instigando-o a novas elaborações
da cena. O confronto gradual do grupo de atores com diferentes recortes de
textos de autores diversos, ao longo das retomadas de jogo, demonstrou ser
um caminho viável para a elaboração de diferentes dramaturgias. Na
pesquisa anterior, todos os alunos participavam como atores e a decisão para
a retomada dos jogos teatrais era tomada através do consenso, como
acontece nos processos de criação coletiva. Este percurso resultou numa
nova dramaturgia que surgiu através da colagem de fragmentos diversos,
provenientes de vários tipos de texto (literário, teatral, jornalístico,
filosófico).

Desta vez, nossa intenção é outra. Pretendemos estimular o grupo para o


diálogo criativo tendo um único texto como base de cada experimento, posto
pelo professor como um desafio pedagógico. O exercício textocentrista que
tratamos no tópico anterior é apenas uma preparação para a nossa meta
final, que é a encenação de uma adaptação do texto feita pelo grupo.

Na presente investigação, enfocamos os alunos que assumem diferentes


papéis em cada subgrupo como co-autores dos jogos de encenações. A

32
Martins, op.cit., 2004.

61
escolha deste texto-base se dá após a fase de análise e jogo de diversos
fragmentos, conforme veremos no próximo capitulo. A operação de recriação
dramatúrgica será resultado de diferentes experimentos. Na busca da
condição de criador, os alunos ampliam seu repertório expressivo para poder
criar não só a forma de representar personagens, como também participar da
análise dramatúrgica nos papéis de ator, dramaturgo e diretor, através da
redação, da pesquisa, do recorte e da montagem de fragmentos de textos.

Nesta abordagem dos textos, todos opinam sobre a organização do discurso


cênico a ser lido pelo público. É o dramaturgo que sistematiza as conquistas
de cada encontro em protocolos, diários ou fichas dramatúrgicas, anotações
essas que serão retomadas na fase em que cada grupo decidirá a montagem
de seu respectivo quadro cênico.

Através do jogo os participantes compõem as ações numa síntese realizada


durante as improvisações e repensada nas avaliações que levam às
retomadas de jogo. O aluno que assume o papel de dramaturgo é convidado
a pensar a estrutura, o tamanho, a quantidade, a concisão, a qualidade, a
funcionalidade, o tempo, a clareza, a intertextualidade, o teor ideológico e as
imagens poéticas dos textos.

Nesta proposta, a análise dramatúrgica deve ser realizada também em


momentos distintos das aulas ou encontros, através da discussão sobre
temas, da pesquisa e proposição de textos literários, da adaptação de textos
narrativos para a forma dialógica e da redação de roteiros. Além de
improvisar suas falas ou opinar sobre textos elaborados por um escritor, os
atores discutem e propõem materiais textuais em um trabalho de mesa que
os envolve como co-autores da escritura cênica.

Em cada subgrupo, o aluno que joga o papel do dramaturgo é o responsável


por coordenar a pesquisa e a administração do banco coletivo de textos
poéticos, que abordaremos no Cap. 3. Ele recebe de todos os participantes as
propostas de roteiros e alterações (fragmentos para inclusões no roteiro
cênico), atualizando as mudanças na dramaturgia. Quando não for possível o
consenso, dá a última palavra na edição final do texto. Pode ainda anotar as
palavras proferidas em improvisos, as concepções e colagens propostas.

Resumiremos a seguir os principais procedimentos de trabalho dramatúrgico


que estamos propondo em nossa abordagem metodológica. Esta
sistematização provém de nossos experimentos com iniciantes e da análise
dos procedimentos de ensino de dramaturgia que observamos no Institut del
Teatre de Barcelona.

2.3. Godot em jogo: um experimento de recriação do texto

Esta proposta foi pensada pela coordenação e pelos alunos da Licenciatura


em Educação Artística - Artes Cênicas, a partir de experimentos de
encenação com fragmentos do texto de “Esperando Godot”, de Samuel
Beckett, realizada no âmbito do Laboratório de Encenação Teatral da UFRN. O
primeiro experimento se deu em 1997, quando o texto foi apresentado pelo
professor para gerar uma discussão estética e existencial, pois serviu de

62
contraponto à falta de esperança em relação ao futuro profissional,
demonstrada pela turma concluinte naquele ano.

O segundo experimento aconteceu em 2001, durante a disciplina “Encenação


3”, na qual os professores em formação planejam e conduzem oficinas que
devem resultar em uma encenação, sintetizando o diálogo criativo entre o
coordenador, o grupo e pelo menos um escritor literário, partindo da seguinte
questão: “O que lhes interessa investigar sobre o ser humano?”

A aluna Naize Araújo, reunindo uma dupla de senhoras com mais de sessenta
e cinco anos, que havia passado a juventude em um sítio em Mulungu (RN),
levantou os seguintes temas, através de jogos teatrais (Spolin, 1999): a
espera, a natureza da morte, o medo do vazio, a esperança dos excluídos, a
passagem do tempo. Nos jogos, esses conteúdos surgiram através de
imagens e brincadeiras repletas de humor negro, quando as duas senhoras
reviviam danças, jogos, desafios através de provérbios e piadas, poemas e
canções, revelando um repertório de literatura oral que sobrevive na
memória da juventude, do tempo em que as duas irmãs brincavam à sombra
de uma quixabeira, na margem de uma estrada do interior, numa região de
salinas, de paisagens desérticas.

Com a intenção de gerar um contraponto poético e filosófico aos jogos


criados e tendo em vista a temática escolhida, apresentamos o texto de
Beckett. A aluna-diretora aceitou o desafio e passou a estimular o jogo com
fragmentos do texto dramático, redimensionando o sentido das
improvisações. As personagens se transformaram em duas artistas da
tradição popular que se encontravam na miséria, mendigas de rua, sonhando
com a redenção, com a descoberta de seus talentos por um salvador. Através
do jogo teatral, as palavras de Beckett se mesclaram gradualmente ao
improviso e aos textos poéticos relembrados. O espetáculo “Godot,
experimento N.1” foi apresentado na mostra de alunos da UFRN, na
programação cultural do II Congresso da ABRACE (Salvador, 2001) e no
Festival Universidade em Cena, (USP, 2002).

Em seguida, a abordagem de jogo com Godot foi experimentada em dois


cursos de extensão que ministramos entre abril e agosto de 2002, no mesmo
Laboratório de Encenação Teatral acima referido.

Nossa proposta consistiu em realizar um experimento de encenação a partir


de um tema central: as situações de espera crônica no mundo
contemporâneo, partindo do confronto entre o jogo dos atores e a poética do
texto Esperando Godot de Samuel Beckett. No primeiro encontro colocamos
algumas justificativas para a escolha do texto:

1.- Permite diferentes possibilidades de composição de ações físicas e


situações dramáticas;

2.- Vladimir e Estragon formam uma dupla de personagens cujos diálogos


podem ser aplicados aos mais diferentes contextos.

63
3. Aborda dois temas que consideramos interessantes para serem debatidos
em classe com o grupo: a passividade diante da espera (os protagonistas) e
a exploração de um homem pelo outro (Pozzo e Lucky).

Perguntamos ao grupo se eles aceitavam a empreitada de recriação


dramatúrgica da dupla original proposta por Beckett, a partir de uma
investigação direcionada para a observação daqueles diferentes tipos de
seres humanos envolvidos em situações de longa espera, de passividade, de
falta de domínio e iniciativa sobre sua própria vida. Isto implicaria na
elaboração de cenas criadas a partir da observação da realidade. Nossa meta
final seria um duplo exercício: por um lado, os atores teriam contato com a
montagem respeitosa às indicações cênicas contidas nas rubricas de Beckett.
E, por outro, eles acompanhariam diferentes modalidades de abordagem do
texto dramático.

A partir desse levantamento discutimos a pertinência das duplas, tendo em


vista a articulação de um discurso cênico coerente com as discussões
provenientes da temática levantada pelos jogos. Pensamos coletivamente um
roteiro que contivesse seis diferentes duplas, além daquela proposta por
Beckett. Uma vez definidas as duplas e o roteiro, cada ator dedicou-se a
investigar o seu personagem, tanto na oficina, quanto na observação
externa. Esta definição seguiu não só as necessidades dramatúrgicas
inerentes ao roteiro, como também procurou contemplar diferentes
possibilidades de estilo de interpretação teatral dos alunos.

Nos encontros, a apresentação de quadros cênicos revelava a influência das


observações externas sobre a criação, tais como: citação de gestos, utilização
de objetos, músicas, e até mesmo fragmentos de textos narrativos, canções,
frases colhidas em diferentes espaços.

Um procedimento que comprovou ser muito eficiente do ponto de vista


pedagógico foi a avaliação coletiva dos jogos e imagens. Podemos realizar
debates em torno dos problemas de configuração cênica que aqueles que
exercem o papel dos diretores estão tendo na montagem de sua cena. Os
demais jogadores também comentam, complementando ou discordando da
opinião dos diretores. Também se analisa o texto teatral.

Os alunos que jogam os papéis de diretores e dramaturgos propõem os


recortes do texto para suas duplas e mostram as contribuições dos atores. Na
aula seguinte o material trazido pelos diretores e atores é testado em jogos
com texto em mãos. Após as duplas experimentarem algumas possibilidades,
os diretores definem, em conjunto com os dramaturgos, a redação de uma
síntese de partitura de focos que irá nortear a retomada das imagens e jogos
teatrais. Esta partitura é jogada, às vezes, sem o olhar externo ao grupo,
outras com os demais grupos formando uma platéia.

Em nova reunião de planejamento de encenação as sínteses apresentadas


são discutidas. Algumas perguntas servem de norte à avaliação: “Do que
sentimos falta na cena?”; “Há contradição nas interpretações?”; “O que
queremos dizer, provocar ou mostrar que se concretiza em cena?”; De
quantas formas poderíamos resolver esta cena?”

64
Os alunos podem experimentar o jogo centrado na diversidade de ações
físicas com os fragmentos de textos, levantando diferentes possibilidades
para as cenas que podem ser incorporadas na síntese dramatúrgica, em
forma de jogo, de criação de imagens ou a redação de texto que transcreve o
resultado dos jogos.

A distribuição das duplas deve ser coerente com a temática e o tipo de


linguagem cênica que cada grupo define para aprofundar. Interessa-nos a
evolução de um posicionamento político-estético dos alunos, a discussão de
uma atitude diante do mundo que possa responder ao seu desejo de
investigação do ser humano:

“Como tínhamos um grande interesse em discutir religião optei como diretora


pela dupla de religiosas fundamentalistas. A pergunta que moveu esta
pesquisa foi a seguinte: Até que ponto as religiões não são as maiores
causadoras das guerras que existem no mundo, dos grandes conflitos; a
exemplo de Israel e Palestina? Ao contrário do que seria óbvio, não é a paz,
nem a união o ponto de interseção entre as diferentes correntes religiosas.
(...) Tantos conflitos em cima da palavra de Deus. (...) O mercado da religião
cresce de forma assustadora, a cada dia. Hoje, emissoras e mais emissoras de
rádio e tv têm sua programação dedicada exclusivamente à religião. Uma
incrível competição por espaço, por fiéis e, principalmente, por dinheiro.
Assistindo um desses canais outrora, quando já estava pesquisando material
para a cena das fundamentalistas religiosas, pude presenciar o momento em
que uma pastora dizia: “10% é muito pouco para Jesus, dê 50% do seu
salário para agradar Jesus, para ter seu espaço ao lado dele”. Parece
inacreditável, mas é a realidade dos dias atuais.” 33

Resolvido o universo temático, os diretores, dramaturgos e atores pesquisam


por conta própria elementos que possam subsidiar, com novos estímulos, o
jogo dos atores:

“Começamos então uma pesquisa na Internet em sites de igrejas


protestantes, buscamos salmos, cantos, depoimentos, fotos e uma série de
materiais que pudessem enriquecer o trabalho. As atrizes também tiveram um
papel fundamental na construção da cena, isto porque o curso que estávamos
fazendo tinha a proposta de colocar o ator também como dramaturgo do texto
cênico, fazer o ator pesquisar, ler, compreender o todo, o super-objetivo, e
contribuir na sua construção.” 34

Após a definição da temática e o levantamento de outros textos que


interessam a cada um dos subgrupos, propomos a questão: de quantas
formas podemos configurar nossa cena? Sugerimos a experimentação de um
leque de opções de estilos de atuação e de contextos dramatúrgicos para a
recriação da dupla becketiana.

Sendo assim, cada dupla é estimulada a desenvolver uma forma diferente de


abordagem do texto, desde aquela que tinha como regra a recriação dos
personagens sem alterar o conteúdo nem a seqüência dos diálogos propostos

33
Protocolo de aluna Renata Carozza.
34
Protocolo, idem, ibidem.

65
pelo dramaturgo irlandês, até aquela que poderia realizar o mais ousado
procedimento de recorte e colagem, acrescentando novos recortes aos
fragmentos de Beckett:

“Nas primeiras semanas, a meta era estruturar a dramaturgia. Levávamos


então, nossa proposta de texto que era discutida pelo grupo, cada diretor
expunha seus argumentos, pelos quais havia escolhido aquele recorte e nós o
avaliávamos. Na primeira reunião, o professor sugeriu que eu utilizasse
apenas o essencial do texto de Beckett, pela quantidade de material que havia
para trabalhar (salmos, cantos,...) na tentativa de construir uma dramaturgia
em que se entrelaçassem o texto clássico e o texto proveniente de pesquisas.
Foi, sem dúvida, um desafio que aceitei no mesmo momento.” 35

Ao longo de quatro semanas, cada dupla em conjunto com seu diretor,


provocada constantemente por novas instruções do coordenador, foi tecendo
aos poucos o seu texto cênico. Este vai e vem dramatúrgico, algumas vezes
foi incômodo, como aponta uma das diretoras:

“As atrizes foram até as igrejas, participaram dos cultos e trouxeram para os
ensaios muito material para trabalharmos. (...) Até conseguir fechar a
dramaturgia houve várias discussões e alguma resistência por parte das
36
atrizes”.

Em nossos experimentos, nem sempre a ida aos locais foi possível,


confortável ou produtiva, mas, no final, todos os participantes avaliaram
positivamente o método utilizado.

Para ilustrar parte desse resultado de entrelaçamento de textos colhidos na


literatura oral e em outras fontes não dramáticas com a poética de Beckett,
utilizaremos novo recorte do relatório da direção da cena das “beatas
fundamentalistas”. Neste caso, foram escolhidos, sob nossa orientação, dois
trechos aleatórios de “Godot”, para iniciar e finalizar o roteiro desta cena.

Os recortes escolhidos como ponto de partida de jogo foram os seguintes:

Momento inicial.

“V – Vamos fazer o quatro para ver como vai nosso equilíbrio

E – O quatro?

V – (Vladimir faz o quatro, titubeando) Agora é sua vez.

E – (Estragon faz o quatro, com os olhos fechados) Será que Deus está me
vendo?

V – Você tem que fechar os olhos?

E – Deus tenha piedade de mim.

V – E de mim.

35
Idem, ibidem.
36
Idem, ibidem.

66
E – Deus tenha piedade de mim.

V - De mim.”

Momento final.

“E – É Godot (silêncio).

V – Não era ele.

E – E o que a gente faz agora?

37
V – A gente espera.”

Com estes dois fragmentos em mãos, as participantes iniciaram seu trabalho


para levantar possibilidades de ações dramáticas que iriam configurar os
jogos de passatempo dos personagens à espera de Godot. Após colherem
textos nas visitas aos cultos e reuniões religiosas, novas falas foram
incorporadas ao “jogo da disputa” entre as duas personagens radicais que,
após diversas retomadas de jogo teatral, foram assim editadas:

“(Gogo se joga ao chão de forma trágica)

G – Senhor, tenha piedade de mim! (mostrando os pés e fingindo muita dor)

D – E de mim, Senhor? E de mim? (abrindo a blusa e mostrando o marca-


passo no peito)

G – Opera Senhor, opera! (Fingindo contato celestial em transe milagroso)


Glóooooria Senhor, glóooria! O Senhor seja louvado!

(Didi corre na direção da Bíblia)

D - Santa Rita de Cássia, São Pedro, Santa Terezinha! (abre a Bíblia e desafia
Gogo para um duelo de Salmos) Salmo 2 Versículo 3, porque tumultuam as
nações, tramam os povos em vãs conspirações...

(Enquanto Gogo tenta abrir o fecho da Bíblia, Didi continua atacando).

D – Salmo 80, Versículo 2, Exultai em Deus nosso protetor, aclamai o Deus de


Jacob.

G – Salmo 3, Versículo 7, página 606 Levanta-te senhor, salva-me Deus meu,


pois feristes no queixo todos os meus inimigos, quebre os dentes de todos os
pecadores!

(Cada vez mais exaltada)

D – Salmo 90, versículo 2 ao 16: Tu que habitas sob a proteção do altíssimo...

G – Até quando ó Deus, blasfemará o inimigo?

37
Beckett, Samuel.Esperando Godot. São Paulo, Editora Abril, 1976.

67
(Didi pula e começa a cantar, de forma insana, uma música de louvor. Gogo
rebate com o exorcismo cantado.)

G – O sangue de Jesus é poderoso! A doença sai, o demônio sai, porque é o


sangue de Jesus que pode mais!

(A disputa é cantada e dançada num crescendo. As duas são interrompidas


38
pela visão de alguém que se aproxima).”

Para encerrar a cena, após a decepção causada pela falta de Godot, elas
caem lentamente em pranto silencioso até formarem o quadro da espera
inicial, complementado pelo texto de Beckett.

Podemos ressaltar alguns problemas, como a resistência dos atores


envolvidos com a elaboração da dramaturgia devido à regra básica de nosso
jogo de encenação, que garante a última palavra sobre a edição do texto
cênico ao aluno-diretor, conforme relatou a professora em formação que
dirigiu a cena em seu protocolo:

“Devo destacar que tive alguns problemas com a minha dupla, proveniente
desta metodologia. (...) Notei que no decorrer do processo os caminhos foram
levando para a “sensibilidade”, que não admite que mexam em seu trabalho,
pois faz parte de uma criação profunda e não pode ser alterado pelo ser
humano. Quando ia editar o que era proposto por elas, havia uma resistência
39
muito grande, e isto prejudicava, logicamente, o trabalho como um todo.”

Como vimos, mesmo que a regra seja colocada de forma clara no início do
processo, é natural um envolvimento mais intenso entre ator e texto que, às
vezes, dificulta o abandono de descobertas, sejam elas movimentações
cênicas, ações físicas, textos, canções ou simples gestos: “Os atores, como
dramaturgos, são essenciais para um melhor resultado, contudo, o
responsável pela edição destes materiais é o diretor. É ele que vai dar a
palavra final, porque estará pensando no todo e no superobjetivo da
encenação”.

Ao final de cada encontro, quando possível, havia uma retomada de jogo de


cada uma delas. A encenação vai tomando corpo e vida com todas as cenas
sendo preparadas ao mesmo tempo, possibilitando uma visão de conjunto e
incrementando a discussão sobre encenação.

A noção de retomada de jogo direciona toda a fase de síntese, iniciada após a


efetivação dos roteiros dramatúrgicos de cada cena, sob a forma de
partituras de focos, entendidas como uma seqüência de imagens projetadas
no espaço, integradas a ações físicas, textos mentalizados e vetores
indicativos de relação com espaço, com outros personagens e objetos.
Começamos então a propor novas instruções visando o aprimoramento das
partituras escolhidas:

“Quando uma das atrizes tentava resolver o problema de uma interpretação


superficial e exibicionista de uma prostituta, o diretor da cena dava instruções

38
Protocolo da aluna diretora.
39
Protocolo do aluno Márcio Rodrigues.

68
do tipo: ‘Imagine que a personagem esteja exausta fisicamente, após uma
noitada intensa. São 8 horas da manhã e ela mal consegue andar de tão
cansada’. Com essa instrução, o andar sensual foi substituído por um
40
caminhar mais adequado à cena”.

Outro exemplo deste tipo de instrução pode ser destacado em outro


protocolo, evidenciando o papel importante desempenhado pelos alunos que
assumem a direção no aperfeiçoamento das cenas:

“Pedi que testassem um jogo mais rápido e em ritmo crescente na hora do


insulto. Também propus ao ator que no meio da discussão começasse a
chutar, como na imagem que me veio do filme ‘Laranja Mecânica’. Seria como
se a bolsa fosse um mendigo ou o próprio índio Pataxó onde buscávamos
inspiração (por ele ter sido queimado enquanto dormia numa parada de
ônibus em Brasília, por adolescentes filhos de juízes e de outras pessoas
importantes) (...) Também pedi para testarem uma atmosfera mais sensual,
na cena das pazes propondo um abraço e que, ao invés de incendiarem a
esperança (o inseto) pisassem nela.”41

São realizados diversos ensaios abertos ao público externo ao processo,


antes da estréia. Eles são úteis para que todos possam ter noção dos
elementos que se mostraram pertinentes em cena. Percebemos em nossos
trabalhos que esta experiência é muito interessante por dois motivos:
primeiro porque uma parte dos atores nunca havia se apresentado para uma
quantidade considerável de público, em segundo, porque no final de cada
ensaio aberto, a platéia argumenta, posicionando-se em relação ao que
considerava interessante.

Noutro protocolo podemos perceber que a boa recepção do público não


impediu os grupos de realizarem autocríticas sobre os inúmeros problemas
cênicos que ainda poderiam ser resolvidos:

“Isso não significa que o espetáculo fosse algo perfeito, havia muitas falhas,
algumas, inclusive, consideráveis. Mas era teatro vivo e a platéia
imediatamente se identificava. A cena das fundamentalistas religiosas provoca
euforia na platéia, era um tiro” de comédia e todos adoravam. Quanto à cena
que dirigi tenho uma crítica. Acho que poderia até ser engraçada, mas
discordo quando ela acaba virando comédia. Na primeira versão, creio que a
cena perdeu algumas características que são evidentes e fundamentais neste
texto de Beckett, as quais pretendemos recuperar com a inclusão de novos
fragmentos da peça no final da cena, acentuando o tom trágico. São elas: o
vazio, a angústia, o sofrimento, a agonia. Acabei não alcançando o super-
objetivo, o que de certa forma me deixou um pouco frustrada como diretora.
Caso o trabalho seja retomado, esta cena será repensada.” 42

No que se refere ao aprendizado da interpretação teatral, a maioria dos


participantes avaliou como positiva a ênfase na análise dramatúrgica do ator,

40
Idem, ibidem.

41
Protocolo da aluna Nara Kelly.
42
Protocolo do aluno João Júnior.

69
conforme ressalta o protocolo de avaliação escrito pelo ator iniciante, Pedro
Costa:

“Hoje aprendi a gostar mais e a participar mais de processo de criação


teatral, não apenas como mero ator, que recebe suas falas e marcações
prontas, mas como alguém que observa (workshops), participa, traz
propostas, interfere e cria”.

43
Em suma, as modalidades de adaptação do texto que propomos para os
alunos nos papéis de dramaturgo e de diretor são as seguintes:

- Adaptação que mantém a seqüência das ações:

a) As ações dramáticas são transpostas para outro contexto.

b) Alteração do tempo e do espaço da narrativa proposta pelo texto. Adaptar


o texto para a realidade brasileira.44;

c) Neutralização: retirada de todas as referências sobre a época e o local dos


episódios, buscando a atemporalidade do texto.

-Adaptação que altera a fábula original:

a) Modificações ocasionais na fábula: quando a redação e a encenação do


texto seguem o seu modelo da construção fabular, subvertendo-o em alguma
passagem, porém sem alterar essencialmente a narrativa.

b) Modificações do sentido final do texto, subversão das intenções do autor:


quando a adaptação cênica altera o final, quando cria efeitos paródicos,
quando ironiza o texto, ou interpreta-os no mesmo palco, de diferentes
formas, tornando relativo o seu conteúdo.

c) Ampliação da fábula: redação de prólogos, epílogos e cenas implícitas,


que não foram desenvolvidas pelo dramaturgo estudado.

- Montagem de fragmentos do texto para a formação de um quadro cênico.


Dentre todas as diferentes formas de montagem dramatúrgica destacamos
em nossa proposta as seguintes modalidades:

a) restrita ao universo do texto;

b) restrita ao universo das obras do autor;

43
Utilizamos o termo fábula no sentido de estrutura da narrativa dramática que é objeto de
uma reconstituição por parte de toda a equipe teatral, como defende Brecht no “Pequeno
Organon”: tudo depende da fábula, cerne da obra teatral. São os acontecimentos que ocorrem
entre os homens que constituem para o homem matéria de discussão e de crítica, e que
podem ser por ele modificados.” (Brecht, Bertolt. Estudos sobre teatro, Lisboa, Portugália, s/d.
pp.204-205).

44
Na perspectiva de recriação de textos que vai da adaptação de alguns termos à recriação
completa do final, por exemplo, como fez Augusto Boal no Teatro de Arena. (Boal, 1977,
pp.180-183).

70
c) aberta a todo tipo de procedimento intertextual, por exemplo, às citações
de elementos alheios à peça teatral em estudo, tais como imagens, textos,
cenas da história do teatro, soluções cênicas dos principais encenadores
profissionais.

Destacamos ainda a necessidade de elaboração de fichas por todos os


participantes convocados para propor quais os trechos do texto dramatúrgico
estudado interessam ao grupo, tendo em vista os objetivos em relação ao
público. Um exemplo de instrução é: “Traga sua proposta de recortes do
texto, citando a numeração das páginas, na seqüência em que você gostaria
de ver estas cenas ou fragmentos desenvolvidos em nosso roteiro”. Tanto as
propostas podem ser debatidas em sala e aula por todos, com a edição final
do dramaturgo, como em certos momentos ele pode receber as sugestões de
todos e editar individualmente uma proposta. Da mesma forma o diretor
experimenta tanto suas concepções trazidas de casa, quanto aquelas
resultantes da edição das propostas de todos.

2.4. Avaliação diagnóstica: os alunos como atores, dramaturgos


e diretores

As práticas de jogo teatral são os procedimentos que valorizamos no início da


avaliação diagnóstica que propomos para a fase inicial dos experimentos,
tendo em vista o levantamento dos interesses temáticos e do repertório
teatral do grupo.

No que se refere ao aluno no papel de ator, além do jogo e da criação de


imagens, utilizamos uma adaptação da prática de workshops que observamos
no processo criativo do Teatro da Vertigem45 . Fora do espaço da sala de
aula, o ator cria e produz de forma livre, sem nenhuma indicação prévia, uma
cena que será interpretada por ele, podendo contar com a figuração de
colegas – neste caso, ele deve prepará-los com antecedência, determinando
o que eles farão em cena. Convidado a pensar como rapsodo, o ator planeja
sua cena dentro do limite de tempo pré-determinado pelo professor. Ele deve
conceber além de sua atuação, a existência de som, luz, cenografia e as
relações espaciais entre a cena e o público.

Testamos a eficácia pedagógica de duas variações deste procedimento. A


primeira é quando determinamos que a fonte de inspiração deva ser,
necessariamente, uma pessoa escolhida na cidade para ser observada pelo
aluno, prestando atenção em seus movimentos e atitudes, imaginando o que
ele deseja e pensa, o que sonham, possíveis conflitos. São três questões
geradoras: O que te interessa investigar sobre o ser humano? Sobre quem te
interessa falar? Quais as relações entre as pessoas que consideras
interessante para ser tratada em cena? A segunda variante é focada na
linguagem e a questão geradora é: quais as formas do fazer teatral que te
interessam? Após apresentação das cenas preparadas, os proponentes
expõem o que pretenderam em relação ao público e qual foi a fonte que
inspirou a sua cena.

45
(Cf. Teatro da Vertigem, Trilogia Bíblica, São Paulo, Publifolha, 2002)

71
As mesmas questões são postas para os alunos que estiverem jogando o
papel dos diretores e dramaturgos, nesta primeira fase. Os diretores são
convidados a trazer roteiros cênicos (story-boards) – ou estórias em
quadrinhos, quando o grupo não tiver referência do que seja este tipo de
roteiro – que descrevam, no máximo, cinco ações cada um, com ou sem
desenhos esquemáticos ilustrando-as. Os dramaturgos têm a missão de
redigir no espaço máximo de uma folha de papel, um texto que descreva um
personagem imaginário concepção de personagem feita por adolescente)
e/ou uma cena teatral para ser lida, com o limite máximo de 10 falas. A
imagem é outro elemento importante neste momento. Em cada subgrupo o
diretor e o dramaturgo são convidados a trazer para o encontro seguinte
fotografias que eles considerem interessantes para gerar sua transposição
para a cena, ou como proposição temática.

No encontro seguinte, o trabalho é coordenado, com controle de tempo, pelo


professor. Em primeiro lugar, são apresentados os workshops dos atores.
Quando trabalhamos com iniciantes, para evitar a bloqueio e a timidez
evitamos esta exposição fora do jogo teatral, pois ela bloqueia o processo
criativo. Após a apresentação das cenas preparadas pelos atores, sob
coordenação direta do professor – os subgrupos são distribuídos pela sala –
isto agiliza o processo, evitando que os grupos, ainda no início dos jogos,
percam tempo. Sob o comando do diretor, os dramaturgos lêem seus textos.
Os diretores apresentam seus roteiros e montam com os atores as cinco
imagens que trouxeram. Por último, as fotos são mostradas e comentam-se
os temas, as ações, as imagens e os personagens levantados.

Cada subgrupo volta para seu espaço e deve agora pensar numa proposta
consensual de criação de cinco imagens fixas que serão apresentadas ao
grupo. As imagens são apresentadas e os grupos anotam em fichas
dramatúrgicas os elementos que eles consideram mais significativos. Esta
síntese é lida para todo o grupo antes da avaliação final da aula.

2.5. O revezamento de funções criativas

Nossa intenção é que a resultante dos experimentos possa ter vários


diretores diferentes. O ideal é que cada aluno, professor em formação ou
estudante, possa participar pelo menos de uma cena como ator, noutra como
diretor e noutra como dramaturgo. Nem sempre o rodízio completo é
possível, mas o que importa é que os participantes não se apeguem a uma
única perspectiva, que possam, dentro dos subgrupos, revezar a posição de
poder. O poder de dar a última palavra que define as retomadas de jogo é
uma deliberação que necessita ser experimentada por todos.

Como vimos, consideramos fundamental que ocorra o rodízio, não apenas


entre os atores, durante a exploração dos ensaios, se possível, mostrando
diferentes versões de um mesmo personagem em cena, como também o
revezamento entre diretores e dramaturgos. Cada aluno pode ser estimulado
a exercer diferentes funções criativas, evitando-se um único ponto de vista.
Intentamos colocar em prática um enfoque coletivo da tessitura do texto
espetacular, no qual não se confunde a prática do teatro com o exercício da
atuação. Os experimentos demonstraram que a troca constante de posição –
dentro e fora da cena, não só como espectador, como também, como

72
proponente de textos e imagens – permite ao aluno a vivência ampliada do
teatro.

Concluindo esse capítulo, podemos afirmar que na determinação de um


enfoque lúdico do texto, nossa intenção é contribuir para o crescimento do
raio de ação da abordagem de jogo teatral. Valorizamos a mobilização de
outras habilidades, para além dos recursos do aluno como ator e
improvisador de dramaturgias coletivas a partir de fragmentos de texto
literário, como propõe Pupo, ou modelo-de-ação brechtiano, como defende
Koudela.

Essa abordagem do jogo teatral elaborada no Brasil, juntamente com o teatro


imagem, de Boal, fundamenta nossa proposta de busca de uma atitude, ao
mesmo tempo lúdica e crítica46, como uma prática contínua, a qual constitui o
eixo metodológico que emoldura os procedimentos de escritura e encenação.

Se partilhamos as tendências educacionais que enfatizam a autonomia do


cidadão (Paulo Freire, 2000), que se caracterizam por práticas geradas por
questões que são compartilhadas por alunos e professor, propomos que
todos se envolvam com os problemas de análise e adaptação cênica dos
textos. As perguntas intentam estimular a atitude de investigação do aluno
sobre os temas e procedimentos, manter o clima de experimento dentro e
fora da sala de aula, quando os alunos devem pesquisar ou elaborar material
que precisa ser trazido para a classe, tais como trilhas sonoras, roteiros de
ações, cenas dramáticas redigidas, roteiros, material para a improvisação
sobre as formas de argumentação dialética dos problemas analisados e de
levar em conta, sempre, diferentes ângulos de visão sobre um mesmo
objeto, diferentes respostas para a mesma pergunta.

Na perspectiva da autonomia do educando, as funções de diretor e


dramaturgo devem ser revezadas entre os membros de um grupo, no
mínimo, uma vez em cada experimento. A intenção é dar chance para o
debate sobre, pelo menos, duas propostas diferentes de encenação do
mesmo texto. Portanto não vemos sentido no posicionamento fixo dos alunos
em uma única função criativa.

Se por um lado as questões geradoras são definidas pelo professor,


consideramos imprescindível que, ao final de cada encontro, cada aluno
possa, em sua avaliação por escrito, escrever termos que sintetizam os
procedimentos de escritura cênica e/ou textual analisados, em palavras
soltas numa folha de papel e em seguida redigir perguntas que a aula tenha
lhe provocado. Essa série de novas questões passa a fazer parte do material
de trabalho dramatúrgico. O produto final do experimento, que abordaremos
no capítulo quatro, será uma mostra com os quadros cênicos produzidos por
cada subgrupo, porém, nesta primeira fase, priorizamos a diversidade de
métodos de produção da cena, de formas de adaptação e recriação da cena,
ecletismo de tipos de texto, e as diferentes maneiras de encenar a partir de
um texto teatral. Após a fase analisada neste trabalho, a mesma turma que
produziu uma grande variedade de modalidades de encenação, decide como
46
No sentido de desenvolver uma argumentação dialética sobre os problemas analisados e de
levar em conta sempre diferentes ângulos de visão sobre um mesmo objeto, diferentes
respostas para a mesma pergunta.

73
irá continuar encenando o texto na fase seguinte – na licenciatura, na
disciplina Encenação II, no segundo semestre – seja com a encenação
composta de quadros independentes e com linguagens cênicas diferentes,
seja optando por realizar uma montagem de dois ou mais modos, – ou ainda
optando por encenar em estilo único do início ao fim.

Apesar de priorizarmos o rodízio das funções criativas, outras modalidades,


tais como a criação coletiva47 não são descartadas, caso seja essa uma
necessidade inerente ao processo, desde que considerada como uma fase e
que o exercício da troca de funções criativas possa ser realizado em seguida.

No próximo capítulo abordaremos o complemento deste jogo de múltiplas


funções teatrais, ou seja, a análise do texto teatral através da conexão entre
leitura de dados teóricos, a criação de imagens cênicas e a análise dos
textos.

47
Conforme definição utilizada por Fernandes (Fernandes, Sílvia. Grupos Teatrais: anos 70.
Campinas, UNICAMP, 2000.)

74
Cap. 3. A análise do texto: jogo, leitura e contextuali-
zação

Apresentaremos neste capítulo os princípios de nossa proposta para análise


dramatúrgica como atividade complementar à experimentação cênica no en-
sino de teatro.

Iniciamos por discorrer sobre uma forma possível de preparação do grupo


para leitura do texto em moldes lúdicos, usando como exemplo o jogo com
recortes de Esperando Godot, já citado no capítulo anterior. Para a fase de
análise de fragmentos de diferentes autores que que nesta proposta antece-
de a definição de um texto a ser estudado na íntegra, destacamos nossa a-
propriação do método de Michel Vinaver. Em seguida, dedicamo-nos à análi-
se do texto por completo, fundamentada em R. Monod e David Ball. Por fim,
abordamos o estudo de Hamlet-Máquina de Heiner Muller, para ilustrar o es-
tudo de um texto que foge ao modelo dramático. Este estudo ocorreu duran-
te uma das oficinas realizadas no bairro de Interlagos, na cidade de São Pau-
lo, já anunciadas na introdução. Nela, utilizamos Hamlet como ponto de par-
tida para a criação de variados quadros cênicos que se utilizaram também de
recortes de diferentes textos. Concluímos resumindo os passos da análise
dramatúrgica proposta.

Partimos dos seguintes princípios:

- A análise de diferentes procedimentos dramatúrgicos de forma a ilustrar o


panorama das diversas opções de escritura teatral.

- A necessidade de o participante se apropriar de um elenco de opções for-


mais, antes de tomar decisões em relação aos objetivos e às opções
dramatúrgicas na criação de uma cena.

- É importante articular o conhecimento sistematizado nas áreas de História,


de Teoria e Crítica do Teatro com a prática da leitura e do jogo com textos.

Após desvelar as possibilidades de jogos com os textos, nosso primeiro obje-


tivo é que os alunos possam detectar a presença nas obras, dos procedimen-
tos de escritura. Nesta valorização da análise dramatúrgica como prática pe-
dagógica é fundamental que os alunos não apenas emitam suas próprias opi-
niões, mas que possam debater idéias contraditórias sobre o mesmo tema,
texto, ou procedimento. Ao mesmo tempo em que coordena a leitura coletiva
dos textos teatrais o professor pode apresentar e comentar citações de ence-
nadores e estudiosos que elucidem as estratégias do autor.

75
3.1. O aquecimento para a leitura: o jogo a partir de imagens e
recortes do texto teatral

Como vimos no capítulo anterior, adotamos a proposição de abordagem lúdi-


ca de textos de autores como Steinweg, Koudela e Pupo como sendo o me-
lhor ponto de partida para a aproximação didática do texto integral, com ini-
ciantes. Esta abordagem pode ser feita sem qualquer informação prévia so-
bre o texto. Portanto, propomos que recortes de frases selecionadas – ora
pelo professor, ora pelos alunos –possam ser objeto de criação de imagens e
jogos teatrais. Consideramos fundamental um contato direto com a materia-
lidade do texto, sem contextualização histórica do autor, das suas intenções,
do enredo ou da proposta na qual se insere o fragmento. A apropriação lúdi-
ca permite que os alunos possam imaginar as mais variadas situações e ima-
gens a partir do contato direto com a materialidade do texto, gerando res-
postas cênicas que dizem respeito aos conhecimentos teatrais do grupo antes
da ampliação do repertório que pretendemos realizar através do confronto
com a teoria, com os dados históricos e os procedimentos de encenação que
selecionamos nesta pesquisa.

As oficinas realizadas comprovaram que é interessante que o professor apre-


sente descrições de cenas extraídas da peça. A intenção é desvendar os con-
teúdos resultantes da criação de imagens e jogos do grupo, permitindo uma
avaliação diagnóstica dos interesses e temáticas significativas e dos procedi-
mentos cênicos utilizados antes do confronto com o texto. Sendo assim, o
professor redige em poucas linhas uma descrição simplificada das cenas es-
colhidas, procurando não caracterizar lugar, época, neutralizando o contexto,
buscando uma descrição atemporal.

Quando trabalhamos com Esperando Godot, por exemplo, duas situações de


Beckett foram apresentadas:

Situação 1. A espera: A situação de uma longa espera, que não se soluciona.


Duas (ou mais) pessoas - de qualquer raça, sexo, cor ou idade, profissão,
classe social, religião - esperam numa beira de estrada. Elas esperam por Go-
dot, nome que pode se referir a qualquer pessoa ou evento e cujo significado
jamais é revelado. Elas fazem alguma coisa para passar o tempo. Por um
momento elas pensam em desistir de esperar, mas logo se acomodam nova-
mente. Elas esperam porque decidiram esperar.

Situação 2. A submissão: Um ser humano caminha carregando a bagagem e a


cadeira de outro, bem vestido e gordo, que anda folgadamente logo atrás,
fumando um charuto, mantendo-o preso a uma corda amarrada ao pescoço e
dando-lhe ordens. A corda, porém, não impede a fuga do oprimido.

Em seguida coordenamos uma conversa sobre a primeira situação: o atual


crescimento do número de pessoas “suspensas no tempo”, fora do movimen-
to dinâmico da estrada, do mundo do trabalho e da cultura, ou por que estão
desempregadas ou por que se drogam, dentre outros motivos. O debate an-
tecipa a criação de imagens, iniciando um levantamento prévio de idéias.

76
A partir do acordo entre os participantes, iniciamos uma fase de exploração
do tema através do jogo teatral. Várias sugestões de personagens foram
surgindo: pessoas que esperam a cura, por um grande amor, pelo dia do
juízo final, ou por melhores condições de vida, dentre outros.

A segunda situação também proporcionou configurações cênicas variadas.


Realizamos o debate a partir da questão: “Qual a situação de opressão e
submissão que interessa ao grupo?” As imagens surgidas dentro do grupo
são comparadas com a descrição da cena desenvolvida por Beckett:

“Entram Pozzo e Lucky. Pozzo conduz Lucky através de uma corda passada
em seu pescoço. A corda dever ser longa o suficiente para permitir que Lucky
chegue até o centro do palco antes que o público possa ver Pozzo. Lucky car-
rega uma pesada valise, uma cadeira dobradiça, uma cesta de piquenique e
um sobretudo nos braços. Pozzo carrega um chicote”.

Em todas as etapas do processo os encontros eram divididos em três fases:


preparação, exploração e síntese. No primeiro momento, a ênfase maior foi
dada à exploração de diferentes possibilidades de configuração dos persona-
gens. Cada um dos atores experimentou vários tipos de papel social quando
dividíamos a turma em diversas duplas de “Didi’s” e “Gogo’s”, que se alter-
navam. A instrução central dos jogos era: “Os personagens podem estar em
qualquer situação, pertencer a qualquer classe social, em qualquer espaço,
com qualquer companhia, desde que estejam presos um ao outro. O que es-
tes personagens fazem enquanto esperam? Qual a relação que existe entre
eles?” Diversas modalidades de jogo foram utilizadas nesta fase, incluindo a
improvisação sem o olhar externo, o jogo a partir do espaço, de objetos, de
estímulos sonoros e com fragmentos de textos extraídos da peça.

Na busca de sintetizar um roteiro provisório são realizados diversos jogos


que resultam na redação de um roteiro. De volta ao debate interno, duplas e
diretores decidem o que vão modificar na partitura de focos e jogam nova-
mente, para nova avaliação.

Do ponto de vista pedagógico consideramos interessante que a aproximação


com a materialidade do texto seja gradual, permitindo desta forma que se-
jam ressaltadas, nesse momento, as imagens cênicas resultantes do primeiro
contato com o universo do texto. Um procedimento que valorizamos em nos-
sa proposta é uma adaptação do jogo de apropriação que Pupo(2005) utiliza
com o texto narrativo, no qual os jogadores escolhem frases aleatórias do
texto para serem proferidas em direção a outro jogador, assumindo neste
momento um gesto específico, tomando uma atitude diferente para cada
fragmento escolhido. Em nosso enfoque utilizamos frases recolhidas da peça
pelo professor, que são selecionadas por sua natureza ambígua, pela evidên-
cia de duplo sentido, pois a intenção é justapor frases retiradas de cenas di-
ferentes, como na seguinte seleção de réplicas de Godot:

77
é demais para um homem só

eu sonhei que era feliz

uma paisagem lunar

o senhor precisa dos ossos

isso passa o tempo será que vale a pena

um dia nascemos um dia morremos o mesmo dia

Durante esta pesquisa observamos que as possibilidades de jogo teatral au-


mentam quando o professor, além de destacar frases de momentos distintos
da peça que será lida em seguida, pode preparar o texto: são retiradas as
vírgulas e os pontos de interrogação ou exclamação das falas dos person a-
gens - como nos blocos de palavras de Heiner Müller. Esta retirada de sinais
torna os recortes mais neutros. Desta forma, no decorrer dos jogos as falas
tornam-se mais abertas aos múltiplos sentidos, conforme o leitor as entoe
seguindo a divisão e a intenção que decidir. Em nossa abordagem, não são
todos os alunos que jogam com os recortes ao mesmo tempo. A brincadeira
de criar gestos e atitudes diferentes para cada fala emitida é observada pelos
diretores e dramaturgos, que registram por escrito as melhores idéias. Desde
o início dessa aproximação com o texto, é estimulada uma atitude de inves-
tigação, tendo em vista o desenvolvimento de versões diferentes para os
personagens, espaços e acontecimentos previstos pelo autor.

Percebemos em nossos experimentos que esta introdução é importante, pois


revela, de início, as múltiplas propostas de utilização cênica daquele tipo de
escritura e estimula a curiosidade dos alunos à leitura e à análise dramatúr-
gica do texto na íntegra, a fase seguinte que propomos como um trabalho de
leitura de mesa lúdico. As imagens cênicas que o grupo considerar mais inte-
ressantes neste primeiro contato sem intermediação de outros materiais di-
dáticos podem ser anotadas pelos alunos em fichas do Banco de dados do
experimento voltadas para o registro de idéias/opções dramatúrgicas de en-
cenação. As primeiras idéias e cenas advindas desta apropriação lúdica são
consideradas nesta proposta como material que pode ser retomado na fase
de adaptação e encenação do texto.

Quando propomos um aquecimento lúdico que antecipe a leitura de mesa, o


fazemos também visando a motivação para um olhar sobre o texto que não
seja reverencial, como faziam os professores da escola de tendência pedagó-
gica tradicional, ao tratar o texto teatral como uma “obra prima” que deveria
ser estudada, respeitada, decorada e encenada conforme as “intenções do
autor”. Se na fase de análise que estamos propondo, nossa meta é conhecer
a estrutura do texto, esta leitura deve ser considerada como uma fase ne-
cessária para dar condições ao aluno de formular uma perspectiva própria de

78
recriação dramatúrgica fundamentada em um estudo coerente sobre o mate-
rial, e não como um exercício aleatório de fragmentação e montagem.

Podemos pensar na adaptação do princípio lúdico à leitura. Com os alunos


sentados em seus lugares, ou em pé, como o jogo em que um se dirige ao
outro, assume uma atitude ou gestus e emite a frase para o colega (Pupo,
2005), assumindo um ponto de vista e uma atitude em relação àquela répli-
ca. Durante uma oficina com professores de teatro do Rio de Janeiro fomos
questionados sobre a ocorrência, em determinados contextos escolares, da
falta de espaço para a movimentação em classe. Pensamos então, na se-
guinte adaptação: a leitura com todos sentados em suas cadeiras, com foco
no texto escrito, sem movimentação alguma, apenas dando à ação vocal di-
ferentes entonações. Todos podem repetir em coro a entonação dada, e re-
petir a ação vocal.

3.2. A análise de fragmentos dramatúrgicos: avaliação diagnós-


tica e ampliação do repertório

Como vimos na introdução, o princípio que norteia esta proposta é o da am-


pliação do repertório de temas e procedimentos teatrais do grupo através do
confronto com um elenco diversificado de opções dramatúrgicas. Sendo as-
sim, torna-se prioritário o planejamento do professor para que os grupos a-
nalisem diferentes tipos de fragmentos teatrais, e possam comparar diferen-
tes formas de escritura teatral.

3.2.1. Análise estrutural do fragmento

A principal referência para a análise estrutural do fragmento de texto teatral


que propomos é aquela desenvolvida por Michel Vinaver1. Ele elaborou seu
método através de suas proposições de autor dramático, de animador de ofi-
cinas de escritura e de teórico da forma dramática. Como pedagogo da escri-
tura teatral, Vinaver é figura de destaque no panorama francês, pois sua a-
bordagem influenciou teóricos e artistas como Sarrazac, Ryngaert, J. Danan.
Tendo em vista que este método se encontra atualmente inédito no Brasil,
anexamos à tese a síntese que fizemos, a partir da tradução feita por Ramos,
dos referidos glossários.

Em nosso enfoque, a proposta de análise de Vinaver é uma ferramenta im-


portante, como procedimento que viabiliza a exploração de diversos tipos de
textos teatrais visando a ampliação do repertório do grupo, na fase anterior à
definição do texto, que será lido na íntegra posteriomente.

Vinaver parte da proposição de que o modo de funcionamento dramatúrgico


se revela por uma exploração da superfície da palavra. Para ele, a análise de

1
Neste item, a tradução das citações de Vinaver foi realizada pelo autor, em conjunto com
Phillipe Combes, acrescentada de trechos inéditos traduzidos por Luis Fernando Ramos. (C.f.
Vinaver, Michel. Écritures dramatiques, Actes Sud, 1993.)

79
uma pequena amostra retirada do tecido da obra permite determinar o modo
de funcionamento do conjunto da peça como um todo e fornece todas os
meios necessários para a compreensão da obra em sua totalidade. Este en-
foque de Vinaver para a análise do fragmento dramatúrgico tem as seguintes
características:

-Parte do caráter específico da escritura teatral;

-Liga a dramaturgia à literatura de maneira geral e reafirma sua espe-


cificidade;

-Põe em contato, diretamente e imediatamente, com a estrutura do


texto, sem necessitar antecedentes;

-Não pressupõe a adesão a uma teoria, ou a elaboração de uma met a-


linguagem;

-Sem abordar a questão da encenação, serve tanto ao leitor como aos


operadores e permite ver o texto como objeto teatral, porque propõe
um passo em direção à montagem, principalmente no que se concen-
tra no exame detalhado de um fragmento;

-Não se prende à questão da primazia do texto ou do espetáculo;

-Aplica-se a qualquer dramaturgia de qualquer época;

-O uso de suas ferramentas aproxima a dramaturgia clássica da con-


temporânea;

-Ele não desemboca numa tipologia dos textos de teatro, mas permite
traçar uma topografia no interior da qual uma obra encontra sua posi-
ção singular;

-Alimenta um sentimento de aventura, porque não se define por ante-


cipação. Não é autoritário. Propõe um equipamento que estimula a
descoberta;

-Não deve ser utilizado num espírito cientificista, mas de forma lúdica.
As ferramentas propostas são suficientemente imprecisas para desen-
corajar a construção de um sistema. Nem por isso deixa de ser peda-
gógica no sentido de estimular o rigor e a precisão. Não se coaduna
com a utilização prematura de idéias gerais.2

2
C.f. Vinaver, op.cit.,1993.

80
3.2.2. A seleção do fragmento

Segundo Vinaver, a escolha de um fragmento para a leitura detida encampa


de cinco a dez por cento da peça (dois terços das peças que selecionou inclu-
em fragmentos com menos de cinqüenta falas). Salientamos de antemão
uma diferença de enfoque no que diz respeito à seleção dos fragmentos a
serem analisados. Esse escritor e professor considera a possibilidade de uma
seleção aleatória dos recortes de textos:

“Os fragmentos podem ser também do começo da peça, ou de qualquer outro


trecho que pareça característico da peça toda (um terço dos fragmentos sele-
cionados nas peças do volume são de inícios de peças). Não existe um critério
específico para orientar a escolha do fragmento podendo mesmo ser deixada
3
ao acaso.”

Em nossa abordagem, tendo em vista os objetivos do ensino de teatro na


escola, não podemos concordar com esta abertura ampla de critérios de se-
leção. Ao nosso ver, esta deve seguir também outros critérios, tais como:
significar parte do texto que exemplifique um recurso dramatúrgico (presen-
ça do narrador, de coro, de cena metateatral) e, de preferência, contenha
uma imagem ou tema relevante do ponto de vista pedagógico. Ao invés do
professor escolher aleatoriamente uma cena de textos, é muito mais produti-
vo que os trechos tragam imagens complexas, contraditórias, que digam
respeito aos temas que vêm sendo discutidos ou que o professor considere
importante para serem confrontados aos alunos.

O fragmento cortado inteligentemente conserva uma ligação orgânica com a


totalidade da obra. Vinaver sublinha isto em seu método de leitura ralentada.
A análise do fragmento se justifica como acesso à dinâmica de escritura da
obra inteira.

Nesta pesquisa, em oficinas com jovens iniciantes experimentamos uma se-


qüência simples de passos que podem nortear a abordagem do professor, a
partir da seguinte síntese que fizemos dos procedimentos de Vinaver.

3.2.3. A leitura detida do fragmento

A divisão do fragmento em segmentos tem como objetivo facilitar sua apre-


ensão. Decide-se que um segmento termina e que outro começa quando há,
por exemplo, uma mudança de sujeito, ou de tom, ou de intensidade, ou de
interlocutores no diálogo.

A leitura detida ou ralentada acontece com o exame de cada fala e começa


pela questão: qual é a situação original? Estando definida esta situação con-
sidera-se por ordem: os acontecimentos, as informações, os temas, de modo

3
Vinaver, Michel. Écritures dramatiques. Paris, Actes Sud, 1993. (tradução de Luís Fernando
Ramos).

81
a isolar no texto o que é propriamente ação. O essencial da leitura detida
consiste em apontar as ações de uma fala à outra, ou mesmo no interior de
uma fala. Quer dizer, a ação no nível molecular do texto. Trata-se de micro-
ações produzidas pelas palavras de uma fala, ou, se calhar, pelas rubricas.
Procura-se determinar então: O que acontece de uma fala à outra e no inte-
rior desta fala? Por qual meio isso acontece, através de qual figura textual?
Que ligações funcionais ocorrem entre a micro-ação de um lado, e os aconte-
cimentos, informações e temas do outro?

A leitura detida compreende paradas para reexames. Cumprido o percurso de


cada segmento e depois do fragmento, pára-se e tenta-se, olhando global-
mente, considerar retrospectivamente como a sucessão de micro-ações ana-
lisadas contribuiu no avanço da ação ao nível dos detalhes e do conjunto.

Sabemos que analisar uma cena é, antes de tudo, tentar se fazer perguntas
eficazes. Na perspectiva de Vinaver, separamos as informações que a cena
comporta e que permitem identificar a situação da palavra, mesmo quando
não se conhece o resto da obra. Apresentamos a seguir uma síntese das
questões propostas para situar e analisar um fragmento, no âmbito dos ex-
perimentos realizados durante esta pesquisa:
- Qual é o espaço onde se dá a ação? Em que tempo? Quem está em ce-
na? Existe um único espaço, ou diversos espaços superpostos? Como o
espaço cênico dá conta das dimensões espaciais? Que distâncias existem
entre os personagens em função de suas relações? Existe contato físico
entre personagens?

- Qual é a posição do espectador? Quais as informações que o leitor d e-


tém? O leitor sabe mais sobre a situação que os protagonistas? Ele é con-
siderado por quem está em cena ou sua presença é ignorada, como se
houvesse uma quarta parede entre a cena e o publico? São utilizados a-
partes, trocadilhos, alusões ao mundo fora de cena? O espectador se i-
dentifica ou estranha o personagem ou os papéis?

- Quem fala com quem? Por quê? Os personagens se conhecem? Qual é o


sexo, a idade, a classe social de cada um, o sistema de relações? Qual é o
tratamento utilizado entre eles - formal ou informal? O que cada um
quer? O que ele arrisca, o que ele tem a ganhar e a perder? Trata-se de
um momento íntimo entre dois personagens? Existe liberdade de expres-
são, repressão, ou cuidado com as palavras? Há cooperação ou conflito?

- Os personagens falam a verdade? Suas alegações são informações crí-


veis ou se há enganação, manipulação?

- Como se passa do início ao fim? Qual é a imagem inicial? Em que ritmo


começa a cena? Quem está aí? Quem entra? O que fazem? O espaço é
familiar ou estranho às personagens?

82
- O que dizer sobre a ação e a relação da palavra com a ação? A palavra
serve para transmitir informações ou ela muda a situação? Há um confli-
to? Quais os obstáculos aos desejos dos personagens? Do seu ponto de
vista alguém ganha nesse conflito? Quais as ações físicas descritas pelo
autor? Qual é a ação da fala, o que ela provoca? Quais são os assuntos
que podemos destacar da conversação, da narração ou da ação ou das
imagens em cena?

- Como circula a palavra? Quem fala mais, toma a iniciativa da palavra?


Como se faz a troca de falas? Há continuidade, bifurcações, rupturas, si-
lêncio? Os personagens se escutam?

3.2.4. Visão de conjunto

Partindo das descobertas feitas ao longo da leitura ralentada do fragmento,


resta tentar uma visão de conjunto do modo de funcionamento da obra em
sua inteireza. Para fazer isso Vinaver leva em conta a posição do texto anali-
sado diante de um certo número de eixos dramatúrgicos, do que resulta um
quadro gráfico que revela o perfil geral da obra, que não apenas esclarece
seu singular modo de funcionamento, mas ainda permite medir suas conver-
gências e sua situação frente a qualquer outra obra dramática em particular,
e conseqüentemente frente ao universo de obras do teatro.

Para dar suporte à sua proposta, Vinaver apresenta dois glossários. O primei-
ro é dedicado ao que ele denomina de “palavras-ferramentas”, ou seja, as
noções fundamentais que podem nortear a leitura do fragmento. O segundo
sistematiza as “figuras textuais” que este autor elege e nomeia, dividindo-as
em quatro categorias. Consideramos estes dois glossários sintetizados por
Vinaver também como possibilidades de material teórico a ser levado para a
sala de aula, servindo inclusive para basear as anotações dos alunos em re-
lação aos conteúdos trabalhados em classe.

Em nossa investigação, percebemos que é recomendável que as noções teó-


ricas não sejam colocadas, no início, sob a forma de informação, mas que os
alunos possam se apropriar das “palavras-ferramenta” e das “figuras textu-
ais” estabelecidos por Vinaver, através de procedimentos lúdicos que envol-
vam, de preferência a movimentação corporal dos alunos na resolução dos
problemas cênicos, através do jogo e da criação de imagens.

Com relação ao estabelecimento dos quadros propostos para configurar gra-


ficamente esta visão de conjunto através de eixos dramatúrgicos, não nos
estenderemos mais nesta leitura de Vinaver. Tendo em vista a utilização de
suas propostas com iniciantes, consideramos que este enfoque pode ser sim-
plificado e, neste sentido, encontramos na versão de Grosjean e Dulibine
uma redação mais apropriada. Como podemos observar no resumo a seguir,
esses autores utilizam esta forma de análise de modo parcial. Eles estudam
coletivamente uma cena, réplica por réplica, colocando no quadro negro a

83
análise em seis colunas justapostas, num quadro que sintetiza os eixos pro-
postos por Vinaver:

1. Númeração das falas: f1, f2, etc

2. Informações: anotam-se todas as informações transmitidas pela fala.

3. Acontecimentos: contrariamente à informação, que pode ser duvidosa,


o acontecimento é certo.

4. Temas: anotamos ou notamos o conteúdo da conversação.

5. Figuras textuais: as figuras textuais servem para nomear as relações


que envolvem as falas entre si. Os alunos identificam facilmente as estru-
turas fundamentais como, por exemplo, o duo e o duelo, o interrogatório
e o coro; eles podem, assim, se apropriar das noções de narrativa, profis-
são de fé, solilóquio, direcionamento ao público, etc.

6. Conclusões: relação da fala com a ação: “a palavra é ação ou instru-


mento da ação; a ação é centrada; a ação é engrenagem (“peça–
máquina”); ou “larvée” (peça-paisagem); a situação de partida tem um
interesse forte ou fraco; as informações são densas ou mínimas; as idéias
e os personagens são pesados ou leves, o espectador é privilegiado ou
não; a cena é dotada de um passado e de um futuro, ou somente existe
o momento presente; existe ficção ou ambigüidade.”4

Ressaltamos que esta abordagem de Vinaver não se limita à análise estrutu-


ral do fragmento. Em seguida, este autor dedica-se a recomendações para
“uma leitura em velocidade normal da obra inteira, verificando-se, comple-
tando-se, ajustando-se e corrigindo-se, se for o caso, os resultados da análi-
se do fragmento.” Ele defende que também seja realizada uma contextuali-
zação do trecho e do texto analisado:

“Até esse momento o exame da obra se fez em suspensão de todo o contex-


to. Finalmente, leva-se em conta os principais dados históricos, sócio-
econômicos, culturais e biográficos, permitindo-se assim situar a obra no seu
ambiente de origem e apreciar alguns de seus outros aspectos, que não tex-
tuais ou dramatúrgicos.” (...) “Nada impede que, neste momento, se faça um
julgamento do valor da peça, medindo-se este valor na correspondência entre
os efeitos provocados, o prazer que nos provoca, a intensidade do interesse
que desperta e sobre os meios que ela põe em ação no final: o pensamento, a
emoção, a carga poética, o riso e a sedução.” 5

4
Grosjean, Bernard e Lulibine, Chantal. Coups de théâtre en classe entière, au college et au
lycée.CRDP, Académie de Créteil, 2004, p.195.
5
Vinaver, op.cit,1993.p.89.

84
Desde a perspectiva desta investigação, esta abordagem de Vinaver não é
um modelo rígido, mas um guia de exploração nos momentos nos quais utili-
zamos o fragmento como ponto de partida de aprendizagem. Sua importân-
cia reside principalmente no fato de ele permitir abordar o texto teatral sem
mediação teórica pré-existente, baseando-se unicamente no material textual.
Salientamos ainda que, diferentemente do mestre francês, nossa intenção
não é a compreensão da obra através do fragmento, nem apenas como in-
trodução da análise do texto na íntegra. A diferença entre nossa abordagem
e a proposta francesa é que utilizamos a análise de diversos fragmentos, um
em cada aula, como forma de viabilizar o contato dos alunos com diversos
temas e tipos de textos. Analisar fragmentos, após um primeiro contato de
experimentação lúdica ou mesmo com ponto de partida de cada encontro, é,
em nosso enfoque, apenas uma fase de preparação para o confronto do gru-
po com um texto na íntegra, na perspectiva do exercício futuro de encena-
ções e/ou de re-escritura de trechos da peça escolhida.

Na avaliação de nossos experimentos em Interlagos, os alunos confirmaram


que a análise e o jogo com fragmentos de autores representantes de diver-
sas formas de rapsodização da narrativa cênica (Oswald de Andrade, Bec-
kett, Brecht, David Iven e H. Müller) comparados a textos baseados no diálo-
go dramático (O palhaço nú de Alcione Araújo e o próprio Hamlet) não só
ampliou o repertório de temas inicialmente apresentado como de interesse
do grupo, como permitiu a apropriação, via leitura, de procedimentos rapsó-
dicos de escritura teatral que, até então, não tinham sido explorados por a-
quele grupo. Procedimentos estes como: presença de coro e narrador, cena
simultânea, procedimentos metalingüísticos, transposição do dramático para
o monólogo, desconstrução do personagem dramático, como o Hamlet-
máquina de Müller ou os macacos que tentam escrever uma obra prima, em
Palavras, Palavras, Palavras de David Iven, dentre outros. Após a leitura e a
criação cênica a partir dos fragmentos de natureza diversa, fase que durou
metade da oficina, o grupo tinha muito mais condições de realizar sua apro-
priação rapsódica do texto escolhido para ser aprofundado.

3.3. A análise do texto teatral na íntegra:

3.3.1. A análise seqüencial das ações

Passada a fase de análise de fragmentos diversos, o foco passa a ser a leitu-


ra das ações de um texto teatral na íntegra. É sabido que existem diferentes
métodos de análise para os diferentes tipos de textos teatrais. No que se re-
fere ao texto dramático, por exemplo, citamos a existência de outros méto-
dos, tais como, a análise dramatúrgica de Yves Lavandier6 , a de Barrientos7 ,

6
Esse autor é uma das bases do trabalho de professores de dramaturgia no Institut del Teatre
de Barcelona como Lluis H. Fors, e Carles Batle. (Cf. Lavandier, Yves. “Análisis de las obras”
La dramaturgia: los mecanismos del relato: cine, ópera, radio, televisión, cómic, Ediciones
Internacionales Universitarias, Madrid, 2003..

85
a de Michel Vinaver, de Rynagert e o de Ubersfeld, dentre outros. Assumi-
mos, portanto, que estaremos adotando o enfoque específico, de um dos di-
versos autores, David Ball, pelo fato de seu texto estar publicado em portu-
guês e termos comprovado sua eficácia com grupos a partir de 16 anos, ini-
ciantes em teatro.

Encontramos no guia para leitura de peças teatrais de Davi Ball,8 “Para Trás
e Para Frente”, uma proposta centrada na leitura seqüencial das ações, de
origem stanislaviskiana, porém, numa linguagem acessível tanto aos profes-
sores em formação quanto aos adolescentes na escola. 9 Salientamos que foi
este linguajar simplificado que levou a profª. Nanci Fernandes a traduzi-lo
para o Português, para ser utilizado na disciplina “Introdução ao teatro” que
ministrava na Escola de Arte Dramática de São Paulo.10 Sendo assim, utili-
zamos esse linguajar como base. Não pretendemos descrever nem adotar o
método de leitura de Ball, de forma absoluta. Partimos da noção deste autor
de que não existe uma única interpretação correta de uma peça; mas, técni-
cas eficazes de leitura contribuem para a apreciação da obra.

A tese central de Ball é que a análise seqüencial de ações é mais vantajosa


quando feita para trás: do fim da peça para o começo. Sua melhor garantia é
compreender porque cada coisa acontece. Uma ação é constituída de dois
eventos, um detonador e um monte. Cada monte se torna um detonador da
ação seguinte, de modo que as ações são como dominós, tombando cada um
sobre o próximo. A análise seqüencial implica seguir a peça do começo ao
fim, dominó por dominó:

“Faça uma experiência: coloque de pé uma peça de dominó; e atrás, coloque


outras. Empurre a primeira peça para diante, e ela, se estiver colocada corre-
tamente, derrubará a segunda. Uma peça se assemelha e uma série de domi-
nós. Um evento detona o segundo e assim por diante. De início, ler uma peça
desse modo é difícil como aprender a desengrenar a primeira marcha de uma
carro. Na realidade, não é nada fácil aprender a sair de primeira.(...) Trabalhe
nele para trás, dominó por dominó, fala por fala, ação por ação, evento tom-
bado por evento tombado. Chegue até o verdadeiro começo de sua a-
ção(...).”11

7
Barrientos, José Luis García. Cómo se comenta una obra de teatro: ensayo de méto-
do.Madrid, Editorial Síntesis, 2003.
8
Ball, David. Para Trás e Para Frente. Um guia para leitura de peças teatrais.(tradução de
Leila Coury). Perspectiva, São Paulo, 1999.

9
c.f. Nanci Fernandes in Ball, p.10.
10
Em função do curso de formação de atores para jovens, de nível escolar médio, fundado por
Alfredo Mesquita, Nanci utilizou sua tradução nos últimos quinze anos de sua carreira de mais
de 40 anos dedicados ao ensino de teatro, na qual perseguiu a questão “É possível ensinar ao
ator a Ver e a Entender teatro?”
11
Ball, op. cit., p.34.

86
Um segundo enfoque de Ball que incorporamos nesta proposta é o de esti-
mular, num primeiro momento, uma análise do funcionamento do texto tea-
tral, antes da discussão sobre os temas. Esta medida evita que uma raciona-
lização sobre a temática termine por nublar as possibilidades de levantamen-
to de imagens geradas pelo confronto direto do aluno com a obra.

“O tema é um conceito abstrato que se torna concreto pela ação da peça. O


tema é um produto, emerge das ações do texto (...). Examine a peça, em
busca do tema, depois que você estiver totalmente familiarizado com os ele-
mentos constitutivos da peça. (...) Um tema de Hamlet é a vingança. Isso
não significa que o objetivo da peça seja estudar, ou examinar, ou explorar a
vingança. Significa, apenas, que a vingança é um conceito abstrato que se
torna concreto com a ação da peça. (...) “Se você simplesmente refletir sobre
as motivações que impelem Hamlet, depois que o fantasma lhe relatou sua
terrível história, no ato 1 cena 5, você não pode ignorar o tema da vingança.
12
Ele emerge por si mesmo.”

Neste sentido, enquanto fazemos a leitura analítica, pedimos aos alunos que
elaborem, cada um, uma lista de temas. Comentamos que algumas peças
têm vários temas, embora nem todos sejam da mesma importância. A lista
será o guia aos conceitos abstratos de que trata a peça. Procuramos evitar
que na análise nos deixemos enredar nos temas e entremos em discussões
abstratas, que fujam de uma leitura das ações que visam, neste momento,
decifrar a dinâmica das ações do texto:

“No afã de chegar ao tema, não provoque um curto circuito na caminhada da


obra de arte, ignorando-lhe a essência para chegar ao tema, verrumando-a
como se ele fosse uma carapaça, uma barreira a ser eliminada entre o público
e a peça encenada. O tema é comunicado pela teatralidade, e não a despeito
13
dela.”

Sendo assim, do método de Ball adotamos os seus termos técnicos e a sua


noção de leitura do texto como forma de demarcar a seqüência dos detona-
dores das ações. Também nos interessa a proposta de redação de uma lista-
gem das ações e dos temas de forma paralela à leitura, a ser feita pelo alu-
no. Pensamos também que seu livro disponibiliza uma excelente fonte de
citações, de linguagem simples e direta, e útil, – tanto na formação do pro-
fessor, como com iniciantes a partir de 16 anos – conforme tratamos em ofi-
cina, em Interlagos.

3.3.2. A teoria e a criação de imagens durante a leitura

Nossa abordagem se diferencia do enfoque de Ball na medida em que pro-


pomos não apenas um exercício da leitura convencional, com os alunos sen-
tados e imaginando as ações, mas pretendemos integrar a esta leitura a cria-
ção de imagens pelos corpos de parte dos alunos que assumem o papel de

12
Ball, op. cit., p.34.

13
Ball, idem, ibidem.

87
atores, em sistema rodízio, trocando sempre de grupos que representam as
imagens. Trata-se de buscar a fisicalização das ações que podem ser perce-
bidas a partir da leitura.

Valorizamos neste momento, que recortes de textos sobre teatro que tratam
de questões de metodologia da leitura sejam lidos em sala de aula e comen-
tados pelo professor. Como complemento da leitura, esses textos críticos po-
dem esclarecer conceitos relativos à natureza das ações dramáticas, tais co-
mo, a dupla natureza da ação, a noção de “detonador” e de “monte”, de “es-
tase” e “intrusão”, a analogia do roteiro de ações com uma fileira de domi-
nós. Estas noções relacionadas a aspectos concretos examinados na peça em
foco, são apresentadas pelo professor para que o aluno se aproprie também
dos conceitos e características dos procedimentos de decupagem de um tex-
to teatral. Por exemplo, podemos ler o Capítulo 1 do livro de Ball em conjun-
to, cada membro do grupo lê um parágrafo dedicado ao conceito de “Ação”,
citada como uma “entidade muito especial” na análise:

“A ação ocorre, quando ocorre algo que faz com que, ou permite que, uma
outra coisa aconteça. A ação são duas coisas acontecendo, uma conduzindo à
outra; alguma coisa causa a ação e permite que a outra coisa aconteça. Se eu
disser como vai? É metade de uma ação. A outra metade é a sua fala. ”Bem,
obrigado”. A primeira metade conduz à segunda; as duas compõem uma a-
ção.“14

A intenção é que os alunos descubram por conta própria a existência desses


elementos no texto, e não pela transmissão da informação pelo professor.
Portanto, é desejável que não seja o professor quem determina a decupagem
do texto, como acontece com um diretor tradicional, mas que os alunos des-
cobram as divisões entre os movimentos cênicos. Intentamos a construção
do conhecimento pelo aluno, através das tentativas de acerto e erro. O pro-
fessor interfere para questionar os erros evidentes e apontar as possibilida-
des de separação das ações, evidenciar que o grupo poderia dividir nesta ou
noutra parte a ação, dependendo do ponto de vista da encenação imaginária
de cada um. E ajudar o grupo a decidir-se por uma forma de dividir. São os
alunos que tentam sempre responder aos problemas, tais como descobrir
onde começa uma ação e onde se inicia a outra.

A leitura do texto em classe pode se transformar em um jogo cujo foco é:


como dividir o texto em ações? Como tecer uma seqüência de imagens que
configurem as ações propostas pelo autor? Como traçar uma roteiro de focos
para futuros jogos teatrais? Como decidir coletivamente as mudanças entre
uma ação e outra? A instrução pode ser: “Vamos ler em conjunto, na se-
qüência. Quando alguém perceber que mudou a ação, levanta a mão”. No
momento da interrupção, o coordenador destaca quantos alunos concorda-
ram e quantos discordaram desta divisão. Em que momento detectamos um
detonador da nova ação, em que momento da fala o personagem decidiu fa-
zer outra coisa, ou mudou de idéia?” O professor relativiza o fato que não

14
Ball, op. cit.,p.35.

88
existe uma precisão absoluta a ser encontrada, mas que tudo depende da
escolha das ferramentas que nos auxiliam na tarefa de divisão do texto. Ca-
da aluno é estimulado a complementar sua leitura fora da sala de aula, sem-
pre com instruções que remetem o aluno para a listagem das ações contidas
no texto. Após a divisão coletiva, todos possuem a mesma seqüência de a-
ções, que será o norteador da redação da fábula, que abordaremos posteri-
ormente.

Uma possibilidade de trabalho a partir desta listagem que denominamos ro-


teiro de ações é o seguinte: Cada subgrupo gera diferentes imagens. O dire-
tor lê o título da ação; cada vez um dos atores propõe uma imagem, assu-
mindo no espaço uma posição fixa que deixe claro quem é e o que está fa-
zendo. O ator proponente vai ao espaço, assume uma posição e paralisa a
imagem. Os outros vão em seguida, um a um, complementando o quadro. O
dramaturgo propõe a sua versão, por último, o aluno que joga o papel do
diretor molda a sua versão. O subgrupo discute as imagens surgidas e assu-
me uma posição diante do material.

Como sintetizar a leitura do texto em poucas imagens? Cada grupo, após a


leitura integral do texto, pode realizar uma seqüência de imagens cênicas. A
intenção é ter uma noção dos grandes movimentos que compõem a obra,
configurar as principais imagens cênicas que o grupo deduziu. Avaliamos a
maneira como o grupo decidiu configurar cada parte da obra, o recorte ado-
tado. ”Por que escolheram esta imagem? Porque para vocês estas imagens
sintetizam o acontecimento mais interessante desta parte?” O coordenador
estimula a comparação das diferenças de percepção e de interesse em cada
um.

3.3.3. O debate das atitudes e das relações dos personagens: o jogo


em torno das questões éticas e políticas

Um outro princípio é o de que abordagens lúdicas promovem o levantamento


de informações contidas no texto e, principalmente, das questões éticas, po-
líticas e existências presentes na peça. O coordenador pode criar jogos onde
os alunos interpretem papéis que precisam dominar as questões do texto. As
temáticas inerentes ao texto, em vez de serem tratadas sob a forma de ex-
planação do professor ou via seminários, podem ser apropriadas pelo aluno
através de jogos. Envolvido com seu papel no jogo, o aluno volta a ler o tex-
to pra encontrar as informações de que necessita para cumprir sua tarefa.

A leitura de textos sobre história, informações sobre a cultura de determina-


do contexto de uma peça, para subsidiar a defesa e o ataque de personagens
protagonistas de textos clássicos, como Antígona, Medéia, Hamlet, Galileu
Galilei, em jogos da análise dramatúrgica dos objetivos, conflitos e questões
éticas dos personagens conforme procedimentos desenvolvidos com sucesso
com adolescentes, em escola secundária de Barcelona, pelo professor Hansen
Fors, os quais adaptamos e sistematizamos a seguir.

89
Todos os alunos são convidados a ler texto em casa (por exemplo, Antígona).
O professor na aula seguinte introduz o jogo que denominamos de Julgamen-
to dos protagonistas, anunciando: ”Vamos fazer um julgamento do persona-
gem Antígona e outro de Creonte.” A turma é dividida em quatro grupos. No
primeiro dia de jogo os grupos se reúnem para criar argumentos de ataque e
defesa de dois personagens antagônicos em uma peça teatral; argumentos
que contenham o embate entre dois personagens contraditórios e complexos
e que apresentem justificativas para suas atitudes.

Na primeira rodada do jogo, no segundo dia, o grupo A apresenta a defesa


do personagem escolhido e o grupo B se encarregará de atacá-lo. Nesta pri-
meira versão os grupos C e D fazem o papel dos jurados. Julga-se um perso-
nagem como Creonte. Na terceira aula, dedicada ao julgamento de Antígona,
acontece outra rodada do jogo, desta vez trocando os papéis. O grupo C de-
fende, o grupo D ataca, enquanto A e B fazem o papel de jurados.15 Fors
destaca que “é melhor fazer primeiro o julgamento mais fácil, dos persona-
gens menos contraditórios, para o grupo se acostumar com o procedimento”.
No caso da peça em foco, recomenda-se iniciar pelo julgamento de Creonte.

Ao analisar o procedimento de Fors, identificamos como um princípio interes-


sante o fato de o professor assumir o papel do juiz, como um mediador atu-
ando dentro do jogo. Na adaptação desse procedimento utilizamos aberta-
mente a noção de coringa, desenvolvida por Augusto Boal em sua proposta
de Teatro-Fórum, procedimento este que pode ser estudado pelo professor
interessado na adaptação de jogos a partir de julgamentos. No papel do juiz,
impõe um ritmo ao jogo, determina o tempo de duração das falas, permitin-
do que todos participem de forma equânime. Vale salientar que ele possui
mais informações sobre o texto que os alunos e, portanto, o juiz pode inter-
vir, aceitando ou não os argumentos da acusação e da defesa.

Toda a sala de aula se transforma num tribunal, com a divisão explícita dos
quatro grupos. Desenvolve-se o ritual de entrada, convocação de advogado,
réu e defesa, o professor assume o papel, uma atitude física, tom de voz e
estimula a ação sempre com perguntas que provocam: “Antígona é uma ma-
nipuladora? Porque ir contra as leis? Creonte tem que ser responsável depois
de uma guerra civil? Antígona agiu corretamente? Creonte foi justo?” Os alu-
nos podem ler também outras obras teatrais clássicas. Neste tipo de jogo,
voltado para a análise do texto, os argumentos somente podem vir do autor,
no caso Sófocles.Trata-se de um julgamento legal e ético. Os grupos devem
pensar não somente na preparação de seus argumentos, como também pre-
ver os dos outros grupos e como atacá-los. No enfoque de Fors, eles têm que
analisar, sem a ajuda de professores eruditos, as matrizes e a complexidade
da obra, descobrir numa frase, ou mesmo numa palavra, que aquilo pode ser
a chave para uma defesa, a chave de um momento de possibilidade de juízo.
Todos os participantes dos grupos de ataque e de defesa têm que intervir
pelo menos uma vez. O professor introduz a sessão: “Cidadãos de Tebas,

15
Hansen, em entrevista ao autor (Barcelona, 8 de fevereiro de 2006).

90
estamos aqui para julgar, depois deste terrível acontecimento, se Creonte
agiu bem ou mal. Por favor, o presidente dos jurados recolha os votos contra
e a favor.” Após anos de prática deste jogo com iniciantes em teatro, Fors
observa que nunca houve um julgamento unânime, o que é um dado interes-
sante, demonstrando a riqueza de argumentação que aflora neste clima de
jogo e que envolve emocionalmente a todos: “Quando o jogo funciona, em
geral, os alunos, enquanto discutem seus argumentos chegam a subir nas
cadeiras, de tão empolgados que ficam com a situação do jogo“. Esse profes-
sor observa que o envolvimento dos alunos, em geral, gera a descoberta de
informações importantes no texto. Na seção que citamos como exemplo, dos
quinze alunos que julgaram, dez condenaram e cinco aceitaram seus atos.

Antes do início da seção, os jurados votam, seguindo o que pensam do acu-


sado, a partir de sua leitura individual. O juiz guarda os papéis com os votos.
O juiz cede a palavra ao ataque e à defesa. Ele sempre recoloca o fato para
que o ataque e a defesa se dirijam aos jurados. Os grupos podem preparar a
apresentação de testemunhas, representadas por alunos do mesmo grupo,
que neste momento assumem a voz do outro personagem. Os argumentos
não podem ser inventados; devem ser fiéis à lógica apontada pelo texto. Ao
final do julgamento se comparam os votos do júri, antes e depois, avaliando
se houve alguma mudança. O professor anuncia: “depois desta uma hora de
juízo, farei a mesma pergunta ao júri, para ver se somente com o que se
passou aqui neste julgamento vossa opinião foi alterada.” Com a diferença
dos votos se observa se ganhou a defesa ou a acusação.

Este procedimento estimula os alunos a manter uma discussão mais apurada


sobre as questões éticas presentes no texto e torna atrativa a leitura da
dramaturgia extra-classe. Neste sentido, ele é extremamente válido como
forma de superar os entraves normalmente presentes no exercício da leitura.

3.4. A redação da fábula

A apropriação pelos alunos da seqüência narrativa inerente ao texto teatral


escolhido é imprescindível nesta abordagem, pois viabiliza a comparação fu-
tura dos diferentes procedimentos de rapsodização que a fábula sofrerá no
tratamento dado por outros dramaturgos e encenadores. Encontramos no
procedimento de redação da fábula, desenvolvido por Richard Monod,16 e re-
tomado por autores como Grosjean e Dulibine17 uma forma de estimular a
aprendizagem de diferentes opções de tratamento teatral de uma estória.
Trata-se de isolar o material narrativo do seu agenciamento dramático, se-
guindo as seis regras de constituição e redação de uma fábula que foram es-
tabelecidas por Monod:

16
Monod, Richard. Les textes de théâtre, Cedic, Paris, 1977.
17
Grosjean e Lulibine, op cit., 2004.

91
“- Precisar as durações, datas, lugares, deslocamentos ind icados pelo texto e
enunciar todos os acontecimentos e as ações (a distinguir dos sentimentos e
dos discursos: assim, ser ciumento não pode ser levado em conta, a não ser
que o ciúme provoque as ações)”.

- Enunciar, da forma mais neutra possível, as ações sucessivas dos persona-


gens (...); evitar todo efeito de estilo, todo comentário ou julgamento, perma-
necer o mais neutro e o menos interpretativo possível.

- Para autenticar os enunciados, indicar entre parênteses a referência precisa,


por exemplo, número de cena ou de verso dentro da peça mencionada ou das
menções (se a informação é reiterada) desta ou daquela ação.

- Reconstituir absolutamente a ordem cronológica; distinguir a fábula anterior,


da ação durante a peça (“E eis o que aconteceu...”); evitar a conjugação do
verbo no pretérito mais que perfeito para manter uma cronologia es trita; es-
crever nos tempos convencionais da narrativa: pretérito perfeito e impe rfeito.

- Marcar com um sinal gráfico (cor, itálico) o que está em cena (ações repre-
sentadas sob os olhos do espectador) e o fora de cena (ações contadas pelos
personagens ou pelo mensageiro).

- Não confundir fábula e resumo, sendo este muitas vezes entulhado de peripé-
cias ou silenciando sobre elementos narrativos julgados secund ários.” 18

Esse procedimento permite fazer mais facilmente a leitura da peça na sua


integralidade pelos alunos, por que eles são colocados numa postura ativa.
Afirmando logo no início seu caráter parcelado e sua estrutura de quebra-
cabeça, torna-se um enigma a resolver, com seus múltiplos índices: a leitura
se transforma em um jogo de investigação. Pedindo aos alunos para se cen-
tralizarem nas informações concretas, tais como elas são destiladas no texto;
nós os conduzimos na construção do conceito de ação (distinguindo-o do
conceito de discurso ou de sentimento), precisando os dados espaciais e
temporais (o quadro da narrativa), distinguindo o que se passa dentro e fora
de cena.

Os alunos tomam consciência da estratégia de dramatização do autor, distin-


guindo os momentos da fábula que ele escolheu para dramatizar sob a forma
de cenas desenvolvidas, a escolha dos momentos onde ele insere os dados
dentro do texto das falas e então, dos efeitos que extrai daquilo, espetacula-
res, reiterados ou discretos. Assim, somos levados a ver concretamente em
quais momentos o leitor-espectador está em vantagem em relação aos per-
sonagens; porque ele detém uma informação que os personagens ainda não
têm, o que lhe garante, por exemplo, a eficácia da ironia trágica.

Quais ações reter? No estabelecimento da fábula são inúmeras as dificulda-


des, mas abrem perspectivas de atuação por parte do professor, pois os tex-

18
Monod, Richard. “Les six règles de constitution et de rédaction de la fable”, Op.cit.p.110.

92
tos produzidos pelos alunos constituem interessante objeto de reflexão e de
debate. O texto necessita em geral de um comentário paralelo daqueles que
o redigem.

Estabelecer a fábula mostra aos alunos que a questão da verdade é constan-


te no teatro, através das mentiras, das manipulações, mas também, sim-
plesmente, pela coexistência dos pontos de vista dos humanos. Em caso de
incerteza flagrante, Monod e Grosjean-Dulibine recomendam inserir pontos
de interrogação na redação da fábula: eles manifestam a destreza do autor
para “esvaziar” seu texto e para oferecer várias possibilidades de encenação.
A redação da fábula provoca perguntas que suscitam a interpretação e a re-
presentação. Somos tentados a escrever a fábula para estabelecer ligações
entre os acontecimentos, tentando dar, a todo custo, explicações lógicas ar-
riscando fechar o sentido, onde ele deveria abrir as possibilidades para uma
encenação eventual.

Quando os alunos redigem a fábula, a instruções centrais podem ser: escre-


ver integralmente a fábula do texto ou de um personagem de sua escolha,
respeitando as regras dadas. Anotar, numa folha à parte, as dificuldades en-
contradas e as dúvidas. Complementar redigindo um comentário sobre o que
esse exercício permitiu descobrir na peça.

Os critérios de avaliação que sintetizamos são:

a) quantidade e qualidade das informações (respeito à cronologia, sem


maiores esquecimentos);

b) qualidade da redação;

c) intensidade da reflexão levada em paralelo (análise das dificuldades


da tarefa);

d) inventário das descobertas feitas sobre a obra.

As peças consideradas nesta abordagem como clássicos do drama moderno


apresentam outras questões ao trabalho de mediação do professor. Muitas
vezes elas embaralham a cronologia ou elas impedem o estabelecimento de
uma causalidade clara, o funcionamento de uma racionalidade. Nelas, então,
achamos mais fábulas embrionárias, micro-fábulas escondidas atrás do atri-
to, do acidental e do derrisório. Nestes casos, bem antes de ser um produto
perfeito e acabado, a fábula representa antes de tudo um estado de interro-
gação, até de vigilância frente a um texto. A partir daí, pouco importa se pa-
rece impossível fazer a fábula desde que se guarde, em relação à peça, este
estado de espírito, de procura à luz do texto que objetiva, finalmente, domi-
nar nele o maior número de elementos.

Nossos experimentos mostraram que quando a forma da escritura teatral


sustenta claramente um projeto ideológico, como acontece com os textos de

93
Brecht, percebemos a necessidade de propor a redação de duas fábulas.
Quando as cenas descrevem concomitantemente duas narrativas que se dife-
renciam entre si, de acordo com o ponto de vista do papel social de quem
narra, a redação de duas fábulas comprovou-se um procedimento eficaz.

Na abordagem de textos como A peça didática de Baden, Baden ou O acordo


e Mãe Coragem, também comprovamos que o estabelecimento da fábula im-
põe, para a compreensão dessa pequena estória, que se faça uma lembrança
inicial da grande História, contextualizando a narrativa cênica. Nos textos
épicos, o microcosmo se refere incessantemente aos dados do macrocosmo
que deveria ser conhecido ou revelado.

No que se refere à análise dos textos que não se sustentam pela fábula, per-
cebemos nesta pesquisa a importância de o professor se basear na tradição
dos estudos teatrais acerca das teatralidades contemporâneas. O enfoque da
dramaturgia da imagem de Sánchez19 , a descrição da cena – seqüência de
moléculas de ação, de Silvia Fernandes para a cena de Thomas, a análise de
estruturas rizomáticas em Müller, por Toro e R. Hohl, a sistematização de
Cohen para seus próprios roteiros, são alguns exemplos de estudos que auxi-
liam o professor de teatro a encontrar instrumentos para analisar este tipo
de texto cuja fábula escapa da ordenação lógica. Os principais pesquisadores
do texto teatral contemporâneo não se voltam mais para as operações de
representação de uma fábula, mas buscam a descrição dos eventos em ter-
mos de seqüências de ações isoladas ou justapostas, na redação dos elemen-
tos que formam as estruturas rizomáticas inerentes aos blocos de textos co-
mo os de Müller, ou mesmo de uma evolução dramatúrgica das imagens que
só pode ser transcrita em termos de roteiros de ação (story-boards).

Portanto, para dar conta do texto que foge do modelo dramático nos experi-
mentos desta pesquisa, testamos de forma produtiva dois procedimentos: a
elaboração de listagens de ações cênicas e a confecção de roteiros. Nestes
roteiros, os alunos são convidados a conectar seus desenhos com o resumo
de ações ou a citação de textos mais importantes, promovendo a visualiza-
ção da cena. Os experimentos demonstraram que a construção de imagens
propostas nos textos como Hamlet-Máquina, Palavras, palavras de David I-
ven, através da corporalidade dos atores, são excelente estímulo para a vi-
sualização e a compreensão do texto não-dramático.

Percebemos nesta pesquisa que a criação de imagens, a lista de aconteci-


mentos e a confecção de roteiros cênicos, enriquecem a capacidade do aluno
de entender as operações realizadas pelo escritor, em relação à narrativa
escolhida. O professor pode ressaltar as opções adotadas, se preferiu contar
a estória em desenvolvimento linear, se a fragmentou, se alterou de lugar os
acontecimentos através do uso de ‘flash-backs’. Constatamos ainda que os
alunos sentem um real prazer de descobrir e sintetizar as fábulas, conscien-

19
Sánchez, José A. Dramaturgias de la imagen. Cuenca,Ediciones de la Universidad de Castil-
la-La Mancha,2002.

94
tes de terem desvendado, por si mesmos, um caminho de compreensão da
obra.

O estabelecimento da fábula é, em nossa proposta, fundamental para o exer-


cício de comparação das soluções cênicas que abordaremos no Cap. 4.
Quando analisamos o texto de Hamlet, por exemplo, destacamos uma per-
gunta que gerou polêmica quando debatemos as fábulas produzidas pelos
alunos: “Deve-se acreditar no espectro que conta para Hamlet horrores sobre
sua mãe e sobre o seu amante? E o espectro existe, além do inconsciente de
Hamlet? Vamos mostrar um fantasma ou ele é irrepresentável? Essas per-
guntas são determinantes para a encenação deste texto”. Somente tendo-se
apropriado da linha narrativa adotada no texto teatral em foco, é que o aluno
poderá detectar as transformações realizadas pelos encenadores.

3.5. Análise do texto teatral no modelo narrativo de justaposi-


ção

Como vimos no capítulo 1, o estudo do texto dramático em nossa proposta,


visa servir de base à sua comparação com os textos contemporâneos e como
preparação para o exercício comparativo de diferentes possibilidades de en-
cenação, que abordaremos no próximo capítulo. Sendo assim, após a análise
do texto-base escolhido como eixo do experimento, propomos que o grupo
seja confrontado com um texto que exemplifique uma versão dramatúrgica
diametralmente oposta àquela do primeiro texto.

O fato do texto teatral pertencente ao modelo narrativo de justaposição não


dispor de uma fábula evidente que possa ser traduzida em um roteiro de a-
ções que se desenvolvem linearmente – ou através de quadros independen-
tes, como nos textos brechtianos – torna sem sentido a abordagem da reda-
ção da fábula e da listagem de ações dramáticas. Nossa meta pode ser, nes-
tes casos, não mais a decupagem de ações dramáticas, mas a configuração
de um roteiro das situações e das imagens por blocos de movimentos cêni-
cos, muitas vezes isolados entre si e sem conexão aparente.

Portanto, após a primeira abordagem lúdica de apropriação de fragmentos,


percebemos em nossos experimentos com iniciantes e professores em for-
mação, que a análise deste tipo de textualidade é mais eficiente do ponto de
vista didático quando o professor adota, após a apropriação lúdica de frag-
mentos do aluno com a peça, a leitura de análises críticas daquele autor es-
pecífico como suporte da leitura de mesa e da criação de imagens. Percebe-
mos que é imprescindível, quando pensamos no trabalho com iniciantes, que
a contextualização histórica e estética do texto possa servir de ferramenta de
compreensão da leitura.

3.5.1. Um experimento a partir de Hamlet-Máquina de Heiner Müller

No caso do experimento a partir de Hamlet realizado nesta pesquisa, a leitu-


ra e a decupagem das ações e seus respectivos detonadores, presentes no

95
texto de Shakespeare, nos moldes orientados por David Ball, permitiu ao
grupo traçar uma linha narrativa dramática modelar. Para estudar, via leitura
do texto, os principais procedimentos rapsódicos utilizados na cena contem-
porânea, escolhemos como contraponto à peça dramática inglesa, o texto
Hamlet-Máquina, de Heiner Müller. Esta escolha é coerente com nosso crité-
rio de seleção que visa trazer para a sala de aula textos contemporâneos cu-
jos autores não perderam o interesse de provocar o “espanto” que pode g e-
rar uma reflexão filosófica e política no público, considerados pós-modernos
de resistência20 . São textos que abdicam do desejo de “esclarecimento” polí-
tico do público, mas que não abrem mão de provocar a reflexão sobre as re-
lações sociais, as relações entre a micro e a macro História. Do ponto de vis-
ta estrutural a análise deste texto permite que os alunos possam comparar,
por exemplo, o diálogo dramático tradicional com blocos de monólogos que
revelam uma montagem de fragmentos provenientes do desmembramento
de textos de origens e gêneros os mais variados.

O debate sobre os objetivos dramatúrgicos

Nesta proposta de análise, após os jogos de apropriação e da primeira leitura


coletiva do texto, é aconselhável que o professor já possa introduzir o debate
sobre as metas do dramaturgo em relação ao público. Após um primeiro le-
vantamento dos objetivos, detectados pelos alunos, o professor apresenta
recortes de textos sobre teatro que os elucidam.

Por exemplo, na introdução do autor Heiner Müller em nosso experimento,


iniciamos propondo um debate que interessava muito ao poeta e encenador
alemão: o que seria um fazer teatro politicamente influente hoje em dia? Al-
guns responderam afirmando seu interesse de fazer um espetáculo que pu-
desse “esclarecer politicamente o público”. Este desejo foi questionado por
outros, que afirmaram que o verdadeiro ato político seria a ação de criar em
conjunto, a tentativa de formar um novo grupo, de terem uma organização
própria, de poder continuar sem a coordenação do professor das oficinas e
não o conteúdo da peça escolhida, mas o fato de conseguirem apresentar
sua versão pessoal do Hamlet, apontando para a possibilidade de formação
de um novo grupo no bairro.

Neste momento, com a intenção de aprofundar o debate sobre a poética do


autor, é aconselhável apresentar dois tipos diferentes de recortes: os escritos
de estudiosos que situam o autor numa perspectiva histórica e política, e as

20
Utilizamos este termo na perspectiva de autores como Johannes Birringer, destacada por
Röhl: “Mesmo Birringer, embora condene o pós-moderno, ao falar em “trocas vazias” (...)
ainda assim vê com bons olhos experimentos cênicos e ‘energias transgressivas da perfor-
mance pós-moderna’ que exijam co-produção do espectador. Por isso Birringer defende um
pós-moderno de resistência, que vê atualizado por Beuys, Fassbinder,Pina Bauch e ¨Müller,
artistas que em sua opinião mostram as contradições da cultura tecnológica e abrem a consci-
ência do espectador para mudanças sociais.” (Cf. Röhl, 1997, pp.162-163 e Birringer, Johan-
nes. Theatre, theory, postmodernism. Bloomington and Indianápolis, Indiana University Press,
1991).

96
declarações do próprio autor, retiradas de entrevistas, prólogos, publicados
nas edições do texto ou na Internet. Por exemplo, na oficina em foco selecio-
namos, para situar Müller, um artigo de Lehmann, pois tínhamos a intenção
de questionar aquele grupo com um outro tipo de visão sobre a eficácia de
um teatro político hoje:

(...) O teatro tem pouca chance de ter, de fato, um efeito político simples-
mente a partir da utilização dessa informação cotidiana, diária, sobre o políti-
co. Acreditamos que a coisa mais importante é como trabalhar essas informa-
ções. Política é o modo de como você trabalha a percepção dessas questões.
E são essas várias formas de percepção do político que variam. A questão já
era, para Brecht, para Heiner Müller e para todos que trabalharam com o tea-
tro político: como você muda a forma das percepções das questões políticas,
e influi nessa forma de percepção? “Para o teatro, o que é importante é a
forma de mudar essa percepção, a forma como se vai conseguir alterar essas
21
fórmulas de percepção que estão dadas.”

Um exercício que gerou fértil debate sobre o uso do recurso de historicização


em Müller foi a leitura e a decupagem de ações, imagens e recursos cênicos.
Salientamos que as ações, neste tipo de texto, podem ser provenientes dos
corpos e das vozes dos atores, da luz, do som, dos movimentos de cenogra-
fia, das palavras e imagens projetadas. Apresentamos a seguir um exemplo
desta decupagem em ações cênicas de texto não-dramático em um fragmen-
to no qual Müller concentra alguns dos elementos característicos de sua poé-
tica:
“INTÉRPRETE DE HAMLET

Não sou Hamlet. Não represento mais nenhum papel. Minhas palavras já não
me dizem mais nada. Atrás de mim monta-se a cena. (...) Não entro mais (os
contra-regras, sem que o intérprete de Hamlet se aperceba, instalam uma ge-
ladeira e três aparelhos de televisão. Ruído de frigorífico. Três programas sem
22
som).”

O professor interrompe a leitura e pergunta sobre qual recurso foi usado pelo
autor no trecho. Após o pronunciamento dos alunos, estimulados por novas
perguntas do professor, este destaca o recurso da desconstrução do perso-
nagem dramático que elucide o procedimento. A leitura é retomada:

“A montagem cênica é um monumento. Representa em grandiloqüência cên-


tupla, um homem que fez história. (...) O monumento jaz no chão, (...) A pe-
dra é habitada. Nos espaçosos orifícios do nariz e das orelhas, nas dobras da
pele e do uniforme da estátua, aninha-se a população miserável da metrópo-
23
le.”

21
Lehmann, Hans-thyes. “Teatro pós-dramático e teatro político” (tradução de Raquel Imani-
shi) in Revista Sala Preta N.3. ECA-USP, São Paulo, 2003, p.14.
22
Müller, Heiner. “Hamlet-Máquina”. in Müller, 1987, p.29.
23
Müller, Heiner. “Hamlet-Máquina”.in Müller, 1987, p.29.

97
Segunda pausa na leitura. Destacamos o recurso da imagem dialética: con-
ceito descrito em citação de Ruth Röhl. Retomada da criação de imagens.
Voltamos a ler o texto:

“À derrubada do monumento segue-se, depois de um tempo apropriado, a re-


belião. O meu drama se ainda tivesse lugar, realizar-se-ia na época da revol-
ta. A rebelião começa como um passeio. (...) aqui e ali um carro é virado.
(...) quando o cortejo se aproxima da sede do governo, é barrado por um
cordão de policiais. Formam-se grupos, de onde emergem oradores. Na saca-
da de um edifício governamental, aparece um homem com um fraque mal ta-
lhado e começa igualmente a discursar. Mal a primeira pedra o acerta, tam-
bém ele se esconde atrás da porta de dois batentes de vidro blindado. O apelo
por mais liberdade transforma-se por um grito pela derrubada do governo.
Começa-se a desarmar os policiais, toma-se de assalto dois ou três edifícios,
uma prisão, uma delegacia de polícia, uma agência da polícia secreta, pendu-
ram-se pelos pés uma dúzia de homens fortes do poder, o governo põe tropas
na rua, ta nques.”24

Novo debate sobre o recurso utilizado. O professor pode apresentar o verbe-


te citação de Pavis(1999), assim como texto histórico que situa os alunos em
relação ao período da escritura, 1977, no auge da guerra fria, com a ditadura
comunista instaurada na Alemanha Oriental. Comentamos o corte abrupto
provocado pela inserção da imagem de revolta contemporânea, narrada pelo
ator que até pouco tempo atrás havia encarnado e “desconstruído” Hamlet.

Outro fragmento de texto teórico ampliou o debate sobre a importância que


Müller atribui ao princípio de atualidade definido por Roubine25:

“Quando Hamletmaschine foi representada em Nova York, em 1986, na


Universidade de Columbia, foi interessante para mim, na encenação de Robert
Wilson, a ligação direta de teatro com realidade, como na época de Shakes-
peare, e isso pelo simples fato de muitas pessoas chegarem de metrô, o que
trouxe algumas vezes problemas. Giordano Bruno descreve o caminho para o
Globe Theater através da Londres escura. Como se é assaltado em cada se-
gunda esquina, como se cai num buraco de obra em cada terceira, e assim
por diante. Uma situação muito parecida com a de New York na época e com
a situação de hoje em Berlim. Neste sentido o teatro tem uma grande oportu-
26
nidade.”

Continuando a leitura, os alunos destacam a maneira como a imagem realis-


ta narrada pelo Hamlet “desmontado” por Müller começa a ser invadida por
elementos da linguagem do sonho, até que a fala se torna uma mescla de
comentário racional e delírio:

24
Müller, Heiner. “Hamlet-Máquina”.in Müller, 1987, pp.29-30.
25
Roubine, op. cit, 2003.
26
Müller, op.cit, 1997, p.195-196.

98
“O meu lugar, caso o meu drama se tivesse realizado, seria dos dois lados da
frente, entre as frentes, acima delas. Encontro-me no cheiro de suor das mul-
tidões e jogo pedras em policiais, soldados, ta nques, vidros à prova de bala.
(...) Agitado pelo medo e pelo desprezo, vejo -me na multidão que se aprox i-
ma, minha boca espumando, agitando o meu punho contra mim mesmo. Pen-
duro pelos pés minha carne uniformizada. Sou o soldado na torre blindada,
minha cabeça está vazia debaixo do elmo, o grito sufocado pelas correntes.
Sou a máquina de escrever. Apronto o laço quando os líderes forem enforc a-
dos, puxo o banquinho de apoio, quebro o meu pescoço. Sou o meu prisionei-
ro. Alimento com os meus dados o computador. Os meus papéis são saliva e
escarrador, faca e ferida, dente e garganta, pescoço e corda. Sou o banco de
dados sangrando na multidão.“ 27

Às declarações do autor, quanto às adaptações de textos clássicos, podemos


contrapor recortes de textos da análise literária, como por exemplo, os frag-
mentos que utilizamos em classe, de alguns comentários de Ruth Röhl, ex-
tremamente úteis para ampliar o entendimento do texto, por exemplo:

“Na peça Hamletmaschine pode-se pensar apenas em três personagens -


Hamlet, Ofélia e o ator que interpreta Hamlet - e, num coletivo, coro (cena
2), uma vez que todos os personagens referidos na cena 1 são frutos da lem-
brança de Hamlet, assumindo a leitura emotiva deste: assassino (Cláudio) e
viúva (Gertrudes), fantasma do pai, Horácio, Polônio, Ofélia sensual, Horácio,
Polônio, Ofélia amiga. Nas demais cenas, as atuações de outros personagens
estão indicadas apenas nas didascálias. Não se pode, portanto, falar de Dra-
matis personae no sentido clássico de representação e expressão do conflito
dramático via diálogo: o conflito é revivido através da memória de Hamlet e
28
de uma Ofélia lúcida, que toma para si o destino secular da mulher (...)”

Algumas observações de análises críticas podem ser simplificadas pelo pro-


fessor. Utilizamos em geral a citação do texto original, e em seguida expla-
namos uma síntese, escrita no quadro em frases e expressões-chave. Em
Interlagos, por exemplo, como mote para o debate, utilizamos algumas idéi-
as retiradas do estudo de Ruth Röhl, em que essa estudiosa destaca o traba-
lho de redução do modelo operado por Müller, na medida em que mostra em
sua versão, “apenas o esqueleto da peça de Shakespeare”. Enfatizamos que
a redução do modelo ao seu esqueleto, segundo Röhl, dá ao público especta-
dor instrumentos para a leitura, para que possa refletir sobre o modelo de
realidade apresentado.

Sobre a prática de deixar em aberto a conclusão do texto, ou seja, a opção


clara pela ambigüidade e o choque de manter dois finais opostos que convi-
vem na mesma imagem, uma forte intenção política presente na versão de
Müller, lemos e debatemos também este fragmento:

27
Müller, op. cit, p. 30.
28
Röhl, Ruth. O teatro de Heiner Müller. Perspectiva, São Paulo,1997, p.58.

99
“A questão é verificar como é vazada a intenção política. Através dos perso-
nagens Hamlet e Ofélia. Hamlet-machine oferece dois modelos de realidade
em coexistência tensa: um deles retoma a solução barroca da história-
destino, o autor resiste pela voz (de Electra) que se faz ouvir sem ser articu-
lada por Ofélia. A opção por dois modelos indica renúncia a um modelo único
ou à síntese enquanto modelo global de adoção do sentido, ou seja, renúncia
a uma mensagem ideológica clara e diretamente vazada.” 29

A observação seguinte de Röhl suscitou uma reflexão interessante pois o


grupo questionou se vale a pena fragmentar e rechear de citações em dema-
sia a narrativa de Hamlet, tendo em vista que o seu público-alvo, a comuni-
dade de Interlagos, em sua maioria, não conhecia o modelo de Shakespea-
re, ou seja, a teoria nos leva a questionar os seus objetivos em relação ao
público:

“Todavia, a intenção codificadora precisa ser reconhecida pelo receptor. No


caso de Hamlet-Maschine, para que se possa atualizar a implicação política, é
preciso que o receptor tenha conhecimento do código original da peça e per-
ceba a forma original da peça (Hamlet) e a forma paródica da representa-
30
ção.”

No que se refere às relações do texto com a História, situamos que a partir


de 1979 a peça teve várias montagens na República Federal da Alemanha,
mas, além da supracitada encenação de Robert Wilson, destacamos a ence-
nação realizada pelo autor, logo após a abertura do muro de Berlim, em
março de 1990, na qual Müller insere a montagem de seu texto dentro da
encenação integral do original de Shakespeare. Comentamos que a monta-
gem foi a resposta do dramaturgo aos acontecimentos políticos de então e
causou certa polêmica, pois configurava Hamlet como a metáfora da incapa-
cidade de ação dos intelectuais de esquerda na época, diante da unificação
alemã.

Ao ler em sala de aula o texto intitulado “Hamletmaschine, 1977”, de Müller,


explicamos ao grupo um pouco da situação política a que o autor se refere.
Com esse debate, nosso objetivo foi compartilhar a idéia de que o tema de
Hamlet interessou esse autor como metáfora de acontecimentos e pessoas
reais. Chamamos a atenção do grupo para a proposta mülleriana de adaptar
os textos clássicos estripando-os, traindo-os, apresentando esqueletos das
narrativas e enxertando-os de citações de imagens e textos contemporâneos,
que se referem ao mundo em que vive o público, ao seu tempo histórico.

Também chamamos a atenção para a opção formal de Müller, de não escre-


ver diálogos, motivado por uma sensação de falta de diálogo no campo da
vida política, no momento de sua escritura. O trecho do texto teórico nos le-

29
Röhl, Ruth.O teatro de Heiner Müller.Perspectiva, São Paulo,1997, p.86.
30
Röhl, Ruth. op.cit, 1997, p.87.

100
vou a discutir as relações da forma, da estrutura da peça, feita de “blocos de
monólogos”, com os objetivos políticos do autor :

“Não havia mais diálogo. Queria incluir diálogos, não era possível. Não havia
diálogo. Apenas blocos de monólogos. E o todo encolheu, ficou reduzido a esse
texto. Também o tema Budapeste 1956 não resultou mais em di álogo (...)” 31

Nossa análise dramatúrgica também chamou a atenção para a maneira como


esse autor, na tentativa de relacionar o texto clássico com a vida contempo-
rânea, busca criar ruídos na percepção da platéia, enxertando sua versão de
Hamlet com frases retiradas de outros contextos, incluindo, por exemplo,
frases retiradas da leitura de uma revista semanal, no caso, a revista Life:

“(...) A frase final (da peça) é de Susan Atkins, membro da sua “family”, uma
das assassinas de Sharon Stone, famosa por seus ‘scaring phone calls’, telefo-
nemas aterrorizantes. Um deles foi citado na Life. Este eu tinha lido por acaso
na Bulgária. Na Bulgária eu dependia mesmo do acaso, no que se referia à lei-
tura. A frase era: ‘quando eu andar com facas de açougueiro pelos seus dorm i-
32
tórios, vocês saberão a verdade’. “

Ao preparar o dossiê de textos sobre teatro, o coordenador escolhe, lendo as


análises dos especialistas nos textos, quais os instrumentos cênicos narrati-
vos são os mais significativos naquele autor, e seleciona aqueles que consi-
dera imprescindíveis para serem debatidos e experimentados com seus alu-
nos. Em nosso experimento, a análise dos principais instrumentos cênico-
narrativos iniciou-se pelo recurso da citação. Ao lermos a análise que Ruth
Röhl faz da peça, destacamos duas espécies de citação: a de textos e a de
imagens contemporâneas, que são inseridas na narrativa, sem nenhuma
preparação, criando uma ruptura nos acontecimentos anteriores, com as i-
magens que se referem aos personagens, algumas ações e mesmo algum
resquício do texto de Shakespeare. Comentamos como a citação na escritura
de Müller é posta sem ajuste, cortando a imagem anterior sem explicações
ou causalidade.

Após a leitura do texto, perguntamos ao grupo: “Qual foi a cena que evocou
uma imagem que você considera como sendo uma imagem forte e pertinen-
te, que pudesse estar em uma versão do texto a ser encenada pelo grupo?.”
Nessa abordagem, não pedimos aos alunos justificativas pela seleção de de-
terminada imagem. Não é necessário que o aluno tenha que racionalizar de
imediato a sua escolha. A imagem é considerada como um material poético,
que pode estimular novos experimentos no futuro, sendo por isso registrada
em fichas que compõem o banco de dados coletivo.

31
Müller, op.cit.p.214.
32
Müller, op.cit., 214-215.

101
3.5.2. A criação de imagens durante a leitura

Comprovamos que o procedimento de criação de imagens durante a leitura


deste tipo de texto é imprescindível, quando trabalhamos com alunos que
não estão acostumados a textualidades desta natureza. Valorizamos, portan-
to o procedimento similar ao que utilizamos com a configuração no espaço
das ações dos textos que se alicerçam na fábula. A diferença é que a divisão
da leitura em segmentos tem como foco não mais a mudança das ações que
percebemos nas falas dos personagens (diálogos, narrações), mas, nestes
casos, o foco pode ser a mudança na configuração das imagens e/ou das si-
tuações cênicas. Durante a leitura dos blocos de monólogos de Müller, feita
pelos alunos que se revezam, um outro grupo de alunos pode tentar configu-
rar as cenas no espaço da sala leitura do texto. Como neste caso o texto não
discrimina o que é fala do que é narrado ou tem indicação cênica, os atores
se colocam no espaço em imagens fixas.

A criação gradual de imagens cênicas estáticas na medida em que os alunos


que revezam o papel de narradores dizem o texto, demonstrou ser um recur-
so importante para que a potência do resultado teatral na justaposição de
elementos contraditórios dentro de uma mesma situação não se perdesse na
leitura convencional. Consideramos importante que para uma mesma se-
qüência do texto sejam efetivadas diferentes formas de configuração no es-
paço. Juntamente com o professor, os alunos avaliam em que medida as i-
magens podem ser retocadas para tentar configurar em cena, o mais próxi-
mo possível, as descrições identificadas no texto.

Por exemplo, uma questão levantada foi: com quais imagens cênicas Müller
encerra o seu texto? Após a criação dessas imagens por dois subgrupos dife-
rentes, o grupo percebeu que no final proposto existem duas imagens fortes
descritas no texto. A penúltima é quando o ator veste o costume e a máscara
de Hamlet, entra na armadura, racha com a machadinha as cabeças de Marx,
Lênin, Mao Tse Tung, cabeças estas pertencentes aos corpos de três mulhe-
res nuas, seguido da queda de neve. Na última rubrica que indica o espaço
do mar profundo, com peixes, cadáveres e ruínas passando, Müller encerra
seu texto através da voz feminina:

“OFÉLIA

(Enquanto dois homens, com batas de médico, a enrolam de baixo para cima,
na cadeira de rodas, em faixas de gaze)

“Aqui fala Electra. No coração das trevas. Sob o sol da tortura. Para as me-
trópoles do mundo. Em nome das vítimas rejeito todo o sangue que recebi.
Transformo o leite dos meus peitos em veneno mortal. Renego o mundo que
pari. (...) Abaixo a felicidade da submissão. Viva o ódio, o desprezo, a insur-
reição, a morte. Quando ela atravessar os vossos dormitórios com facas de
carniceiro, conhecereis a verdade”.

102
(Os homens saem. Ofélia permanece em cena, imóvel nas ataduras).”33

Somente após a narração do texto concomitante com as imagens configura-


das pelos atores o grupo pode perceber a dimensão cênica do texto em foco,
especialmente o procedimento de Müller em deixar o seu final em aberto,
justapondo duas cenas que não se complementam diretamente, tornando o
seu final muito mais ambíguo do que parecia a todos, antes da realização das
imagens.

3.6. Análise de outras obras do mesmo autor

A comparação da peça em foco com outras obras do mesmo autor é uma re-
comendação dos principais autores que sistematizaram modalidades de in-
trodução à análise dramatúrgica, tais como Vinaver (1993), Grosjean, Dulibi-
ne (2004), David Ball (1999), e Lavandier (1997).

O que nos diferencia desses autores é que valorizamos uma forma de olhar
esses textos que complementam a leitura principal. Não se trata apenas de
ampliar a compreensão do texto-base, conforme propõem os estudiosos su-
pracitados. Valorizamos a construção de um enfoque rapsódico, do montador
(bricoleur), que recorta o texto em função de uma futura montagem, que
pode - ou não - vir a utilizar este material textual. Nessa proposta é preciso
estimular a análise dramatúrgica dos alunos numa atitude de apropriação
antropofágica, como mencionamos no capítulo 1. Este olhar canibal, que po-
de decompor para recompor qualquer material textual, deve ser estimulado
pelo professor durante toda a fase de análise.

No caso da análise de textos que não se sustentam no desenvolvimento de


uma intriga no sentido tradicional, percebemos nesta investigação que a aná-
lise de outras obras do mesmo autor é fundamental quando se trata de a-
prendizagem da literatura teatral por alunos que não tiveram contato anteri-
or com a escritura cênica inerente ao modelo narrativo de justaposição. Des-
ta forma, no contexto da formação de professores, valorizamos a evolução
da capacidade de seleção e mediação, por análise comparativa, da natureza
dos recursos de escritura empregados. O contato com o mesmo recurso sen-
do empregado em imagens e situações diferentes demonstrou ser um proce-
dimento que amplia e agiliza sobremaneira a compreensão do texto.

Defendemos também a leitura de análises modelares de outras obras do au-


tor que está sendo enfocado. Conforme salientamos no cap. 1 é interessante
que o professor possa contar com um banco de textos com comentários mo-
delares e declarações do autor sobre os procedimentos, pois esses recortes
iluminam a compreensão da peça.

33
Müller. Heiner. ”Hamlet-Máquina”. O Teatro de Heiner Müller, 1987, p.32.

103
Os critérios de escolha destes textos paralelos são três:

a). Que o outro texto ou fragmento possa servir de exemplo da poética do


dramaturgo, possibilitando o exame de, pelo menos, um instrumento cênico-
narrativo utilizado, o que em nossa abordagem significa dizer que o referido
fragmento deve preferencialmente ter uma análise teórica de fácil acesso,
que ajude o professor a mediar a aprendizagem do recurso em foco;

b). A presença de temas correlatos ao texto analisado;

c). A proximidade do tema com a realidade contemporânea e, se possível,


com um dos temas aflorados nas improvisações do grupo.

O professor pode buscar comentários sobre outros textos do mesmo drama-


turgo que esclarecem recursos cênicos importantes. É o caso da utilização de
“protocolos de sonho” como material de escritura em Müller. Por exemplo,
para contextualizar Hamletmaschine, escolhemos o fragmento que denomi-
namos “Monólogo do elevador” extraído da peça A Missão, juntamente com
uma entrevista do autor e uma análise da referida peça feita por Röhl.

Valorizamos a leitura de recortes de análises que abordam a maneira de


construção do texto. Na medida em que a dramaturgia que foge o modo
dramático não pode ser esquadrinhada por um modelo analítico absoluto,
consideramos importante que o professor em formação possa se acostumar
com esta prática de destacar, na fala dos autores e nos comentários dos crí-
ticos, os termos que se referem aos procedimentos de escritura do texto. Por
exemplo, Müller assume a necessidade de vivenciar determinadas experiên-
cias, para encontrar a forma ideal de materialização de uma idéia. Na escri-
tura de A Missão esse dramaturgo aproveitou o registro de um sonho:

“Só pude escrever a peça depois de uma estada no México e em Porto Rico.
Antes eu não tinha a dramaturgia necessária. No México achei a forma. A se-
gunda parte do texto do elevador na peça é o protocolo de um sonho, o sonho
resultante de uma caminhada noturna de uma aldeia afastada até a rodovia
principal em direção à cidade do México, passando por um caminho rural en-
tre campos de cactáceas, sem lua, nenhum táxi. Às vezes surgiam vultos co-
mo nos quadros de Goya, que passavam por nós, algumas vezes com lanter-
nas de pilha, também com velas. Uma viagem do medo pelo Terceiro Mun-
34
do”.

Neste momento, valeu a pena apresentar ao grupo o recorte do texto abor-


dado, onde destacamos as passagens que possuem relação com o comentá-
rio no texto teórico, passagens estas que concentram um exemplo interes-
sante. Além de poder comentar a visão paranóica de um intelectual alemão
perdido em alguma aldeia no terceiro mundo, presente no recorte, podemos
pedir que os alunos destaquem aquelas passagens nas quais o leitor pode

34
Müller, 1997, p.217.

104
aferir os conteúdos anotados no sonho do autor após a referida vivência no
interior do Peru:

“Como explicar a minha presença nessa terra de ninguém. (...) a única coisa
que se move é um cachorro que remexe um monte de lixo fumegante. Hesitei
muito tempo. Os homens se afastam da parede de cartazes e atravessam a
rua em diagonal, na minha direção, a princípio sem olhar par mim. Vejo o
rosto deles perto de mim, um deles preto, olhos brancos, olhar indefinido: os
olhos não têm pupilas. A cabeça do outro é de prata cinzenta. Um longo,
tranqüilo olhar”. “Olhos cuja cor não consigo determinar; um vermelho cintila
neles. Pelos dedos da mão direita, que pende pesada e que igualmente parece
ser de prata, corre um tremor, as veias brilham através do metal. Depois o
prateado passa por trás de mim, seguido do preto. Meu medo se dissipa e ce-
de lugar à decepção: não mereço nem mesmo uma facada, nem ser estrangu-
lado com mãos de metal.”35

A leitura ilustra o procedimento de inserção do “protocolo de um sonho”, em


um texto que até o presente momento tratava de personagens relacionados
ao fato histórico do envio de revolucionários franceses que pretendiam liber-
tar o Haiti, no século XVIII. Ou seja, o pesadelo que começa com a entrada
do personagem em um elevador moderno efetua um corte abrupto no uni-
verso fictício apresentado até então. Este salto no tempo tem a ver com uma
textualidade de característica onírica, que Roubine aborda como uma das
tendências da cena, e que pode ser comentada pelo professor como uma das
vertentes mais significativas da cena atual, a partir de outra declaração do
dramaturgo:

“A estrutura narrativa dos sonhos sempre me interessou, essa falta de cone-


xão, o abandono das relações causais. Os contrastes criam velocidade. Todo o
esforço de escrever pretende alcançar a qualidade dos nossos próprios so-
nhos, também a independência da interpretação.”

Nesta fase de comparação com outros textos, valorizamos também o exame


das coincidências. Por exemplo, abordamos o fato de “A missão”, assim como
a peça sobre Hamlet, ser uma adaptação de narrativas de outro autor, no
caso, um conto de Ana Seghers.

Nas oficinas percebemos que os procedimentos analisados em outros textos


do mesmo autor podem ser de grande utilidade na fase seguinte dedicada à
encenação. Após cada encontro, é recomendável que o professor faça um
levantamento dos temas e recursos mais interessantes. Quais os procedi-
mentos que poderíamos utilizar em uma adaptação do texto? Os alunos que
jogam o papel de dramaturgos, naquele momento, anotam as soluções con-
sideradas relevantes para serem testadas posteriormente. Em Interlagos os
participantes discutiram, por exemplo, que este “monólogo do elevador”, po-
deria inspirar uma cena a ser explorada pelo grupo. Uma das idéias configu-

35
Müller, Heiner. ”A Missão”. O Teatro de Heiner Müller, 1987, p.49-50.

105
rou um pesadelo do personagem Hamlet, na periferia de uma metrópole lati-
no-americana.

Consideramos que a abordagem intertextual da cena, presente em muitos


encenadores contemporâneos, pode ser assumida desde o início. Para com-
plementar a busca de procedimentos, o professor propõe também que o gru-
po possa ler os textos prestando atenção aos recortes possíveis que poderi-
am ser citados em sua adaptação posterior. Neste caso, ao final dos encon-
tros, os participantes podem propor frases, fragmentos, ou mesmo cenas
inteiras que poderiam ser contempladas através, por exemplo, de inserção
de cena metateatral, que introduzisse uma célula narrativa alheia ao univer-
so ficcional do texto-base. Nessa perspectiva intertextual, os subgrupos deci-
dem, por consenso, as sugestões que são anotadas nas fichas pelos alunos-
dramaturgos.

3.7. A análise de textos de outros autores referentes ao mesmo


assunto ou enredo do texto-base

A comparação entre diferentes tratamentos cênicos dados à mesma persona-


gem ou situação dramática presentes nos textos teatrais, foi um procedimen-
to elaborado em função dos problemas da pesquisa. Seus resultados foram
bastante positivos no que se refere ao aprendizado de dramaturgia.

Quando dois textos teatrais diferentes se valem da mesma fábula, um dos


aspectos a ser comparado é a atitude do dramaturgo na adaptação cultural.
Por exemplo, após decidir por Medéia, tendo em vista a pertinência de sua
temática e/ou de sua forma dramatúrgica – e/ou quando pretendemos estu-
dar instrumentos epicizantes de escritura como o Coro, por exemplo, - po-
demos examinar também algumas adaptações que operaram o abrasileira-
mento de forma radical, como Gota d´Água de Chico Buarque e Medeamate-
rial, a versão não dramática de Müller.

Para debater diferentes possibilidades de textos nos quais a música possui


importante papel estruturante, por exemplo, são várias as opções de peças
que retomam estórias e temas de espetáculos bem sucedidos. Em nosso
banco didático escolhemos obras como a Ópera dos Mendigos (The Beggar’s
Opera, 1728) de John Gay, pelo fato de podermos compará-la com a Ópera
dos Três Vinténs (Die Dreigroschenoper, 1928) de Brecht, com seus três fi-
nais diferentes, considerada um modelo de teatro épico. Sempre que possí-
vel, é oportuno encontrar um exemplo nacional de apropriação da mesma
fábula. Neste caso, escolhemos a Ópera do Malandro (1978), de Chico Buar-
que, que transpôs a estória contada por Brecht para o submundo do crime do
Rio de Janeiro. A leitura de análises críticas como o trabalho de Sartigen36
sobre a recepção da obra de Brecht no Brasil fornece informações importan-
tes para embasar este tipo de exercício comparativo.

36
Sartigen, Kathrin. Brecht no Teatro Brasileiro.(Tradução de José Pedro Antunes).São Paulo,
Hucitec, 1998.

106
Quando enfocamos Hamlet, após a apropriação da dramaturgia elizabetana,
propusemos a comparação com as seguintes peças:

Saxo Grammaticus: O primitivo Hamlet (“Historia Danica”, latim, 1200, versão


francesa por Belleforest em “Histoires Tragiques” de 1576)

Heiner Müller: Hamlet-máquina, Berlim, 1977.

Brecht : “Hamlet e o barqueiro” (cena de “A Compra do Cobre” e trechos do “Diá-


rio de Trabalho”37)

Tom Stoppard: “Guildenstern e Rosencratz estão mortos” (1968) (Comédia)

Steve Berkoff: “Mal secreto: a vida amorosa de Ofélia” (cartas entre Hamlet e
sua amada)

Cia do Latão: Última versão do texto de “Ensaio para o Latão”, SP (inédito)

IVES, David. “Palavras, Palavras, Palavras” in Tudo no Timing: sete comédias em


um ato, Rio de Janeiro, 7 Letras, 1999. (pp.7-18)”

Nessa oficina, privilegiamos a comparação de três modalidades de escritura:


cenas baseadas no diálogo dramático entre Ofélia e Hamlet; a sucessão de
monólogos (cartas imaginárias entre os personagens) de Steve Berkoff; com
os materiais textuais em blocos independentes de Müller, nos quais não se
distinguem com exatidão as didascálias das falas. A maioria dos participantes
avaliou que o exercício tinha sido de grande valia para esclarecer as relações
entre a forma adotada nos textos e o efeito produzido no leitor, bem como
apresentou diferentes atitudes relativas à mesma fábula. Nas avaliações, o
grupo revelou que a leitura de novas formas de redação abriu o leque de op-
ções para imaginar diferentes adaptações da estória.

O texto Palavras, Palavras, Palavras, por exemplo, foi um bom exemplo de


peça-paisagem, na definição de Vinaver (1993), ou seja, de texto que não
desenvolve as ações, mas apresenta uma situação metafórica que questiona
o público de forma aberta, sem fechar o sentido, sem apresentar mensagens
ou mesmo questões unívocas. Neste momento, iniciamos pelo jogo teatral a
partir da leitura do texto teórico que resumia a imagem cênica central da pe-
ça:
“(...) um pesquisador da Universidade de Columbia, está determinado a pro-
var que três macacos trancafiados numa jaula com máquinas de escrever são
capazes de produzir, cedo ou tarde, Hamlet. (...) Entre uma banana e outra,
Milton, Swift e Kafka especulam sobre as dificuldades da criação literária, so-

37
Brecht, Bertolt. “Diário de trabalho, volume I:1938-1941”; org. de Werner Hecht; RJ, Roc-
co, 2002.

107
bre o pós-modernismo e capitalismo, citando, sem que se dêem conta de tre-
38
chos de clássicos da literatura.”

Pudemos comentar o fato de esta peça citar de forma irônica o tema Hamlet,
mas não possuir mais nenhuma relação com o modelo escrito por Shakespe-
are. Os jogos teatrais que realizamos a partir desta situação proposta por
Ives e de seus fragmentos, resultaram em um quadro cênico que chegou a
ser apresentado diversas vezes, mas que depois foi descartado quando o
grupo definiu as cenas que realmente fariam parte do roteiro final. Segundo
a avaliação dos participantes desta oficina, a análise, a criação de imagens e
de jogos a partir de diferentes dramaturgias em torno de foi essencial para
ampliar as possibilidades de adaptação do texto-base, inspirando, conforme
veremos no próximo capítulo, o uso de instrumentos cênicos que eram des-
conhecidos para o grupo até então.

3.8. Uma abordagem para a análise dramatúrgica em sala de


aula: leitura, contextualização e jogo com o texto.

Após a análise dramatúrgica podemos apresentar e discutir com os alunos, o


resumo das fases da primeira etapa desta abordagem metodológica. Os alu-
nos podem anotar as metas em seus cadernos, como um roteiro geral das
fases percorridas até aquele momento. Neste nosso enfoque, o planejamento
de um experimento em torno de um texto teatral deve ser discutido com to-
dos, fazendo do aluno um parceiro na investigação, consciente das fases do
processo. O resumo da fase dedicada à análise dos textos é o seguinte:

1. Avaliação diagnóstica: procedimentos de jogo e debate que revelem quais


os temas, personagens e maneiras de encenar dos grupos

2. Ampliação do repertório: exploração de fragmentos diversos

3. Seleção de texto teatral que servirá de eixo para a segunda fase do expe-
rimento.

4. Análise dramatúrgica e experimentação lúdica do texto teatral seleciona-


do.

5. Leitura, análise e experimentação de textos teatrais com mesmo tema ou


narrativa.

Após a conclusão da análise dramatúrgica do texto teatral escolhido, os ex-


perimentos realizados nos levam a recomendar que o professor revele sem-
pre que possível o seu planejamento, colocando-o em questão, ouvindo su-
gestões dos alunos, aceitando-as ou não, dependendo dos seus objetivos
pedagógicos.

38
Ana Bernsteisn, in Ives, David, Tudo no Timing, 7 comedias em 1 ato. Viveiros de Castro
RJ,1999.

108
Capítulo 4: Experimentos a partir da análise de dossiês
de encenação modelares

De quantas formas podemos encenar o texto teatral? Na aula de Teatro, como


os alunos podem se apropriar das contribuições dos principais encenadores pa-
ra se desenvolverem dentro desta linguagem artística?

Para que os alunos possam ampliar seu repertório formal, e visando comple-
mentar a análise e o jogo de textos que abordamos nos capítulos 2 e 3, pro-
pomos duas práticas em torno de dossiês que reúnam materiais referentes a
encenações modelares: a análise de registros e reflexões sobre espetáculos e a
experimentação dos procedimentos de adaptação e montagem do texto utiliza-
dos por diretores cujas poéticas cênicas sirvam de referência para o cidadão se
relacionar com a diversidade teatral contemporânea.

Apresentamos neste capítulo os princípios relativos à fase de nossa proposta


que parte da experimentação dos procedimentos de criação, provenientes da
análise de dossiês de encenações modelares. Interessa-nos como conteúdo
inerente da disciplina Teatro, a contribuição artística dos grandes diretores, no
que diz respeito à formulação de atitudes político-estéticas e à invenção de ins-
trumentos cênico-narrativos.

Reiteramos que nossa intenção não é apresentar receitas, mas sistematizar os


princípios que norteiam a formulação e a abordagem lúdica de dossiês de ence-
nações modelares, como outra forma de ampliar o repertório teatral dos educan-
dos. Os exemplos utilizados para ilustrar os princípios metodológicos dizem
respeito ao experimento que realizamos tendo Hamlet como ponto de partida na
oficina com iniciantes em São Paulo, já enfocado no capitulo anterior, quando
nos referimos à analise de Hamlet máquina.

Iniciamos por situar os objetivos e os critérios de seleção para a formulação de


dossiês de encenações modelares. Tendo em vista a realização de experimen-
tos de encenação com fragmentos do texto teatral analisado, em seguida, são
abordadas diferentes entradas para a utilização didática desses dossiês, a sa-
ber:

- Poéticas cênicas modelares: o ponto de partida pode ser a leitura de textos


sobre teatro que descrevam os objetivos e procedimentos de criação referentes
a poéticas cênicas distintas, como as de Robert Wilson e Brecht;

- Registros e análises de uma encenação do texto: o ponto de partida pode ser


a experimentação de procedimentos assim como a análise de fotos, vídeos e
textos da teoria e crítica referente a uma encenação modelar realizada a partir
do texto teatral que estiver sendo estudado pelo grupo. Como exemplo, desta-
camos alguns dos exercícios que podem ser formulados a partir da leitura de
materiais sobre o espetáculo Ham-let, do grupo Oficina.

109
- Multiplicidade de óticas de um mesmo procedimento: o ponto de partida pode
ser a análise comparativa de fotografias e registros em vídeo de espetáculos,
assim como a leitura de declarações de diretores, que ilustrem distintas formas
de utilização de um mesmo procedimento de criação cênica. Como exemplo,
apresentamos uma síntese do enfoque que utilizamos com o recurso projeção
de imagens.

O capítulo se encerra com nossos comentários sobre a fase final desta proposta
na qual após os grupos terem ampliado o repertório teatral deles - através do
exame e do jogo com textos teatrais, assim como os procedimentos com os
materiais retirados dos dossiês - decidem quais princípios e procedimentos ex-
perimentados serão utilizados no desenvolvimento dos quadros cênicos que
serão apresentados em público.

4.1. A criação de banco de dados sobre encenações modelares

Na medida em que objetivamos a aprendizagem da escritura cênica na escola,


através de jogos com textos teatrais, consideramos que não faria sentido exa-
minar em sala de aula somente os materiais textuais, tendo em vista que a a-
prendizagem da dramaturgia, se assumirmos o ponto de vista de Pavis e de
outros autores1, não está dissociada de sua representação concreta no palco:

“Nesta acepção, a dramaturgia abrange tanto o texto de origem quanto os me i-


os cênicos empregados pela encenação. Estudar a dramaturgia de um espetácu-
lo é, portanto, descrever a sua fábula ’em relevo’, isto é, na sua representação
concreta, especificar o modo teatral de mostrar e narrar um acontecimento.” 2

A montagem de textos e ações (gestuais, vocais, sonoras, cenográficas) em


dramaturgia é reconhecida como “a força produtiva que recorta e espaça o tex-
to pelos autores que apostam no espaçamento dos quadros”. Sarrazac salienta
que os defensores do organicismo, do vitalismo e do fluxo dramático, como
Luckacs, podem definir a montagem como mutilação e a dramaturgia em qua-
dros como um sistema descosido e estático. No entanto, contrapõe-se a esta
crítica um exemplo que poderia servir de ponto de partida para a reflexão em
sala de aula: a possibilidade de se encenar um texto através da montagem de
quadros.3 Ele propõe que se pense na relação dinâmica entre os quadros que
compõem a via crucis como uma lição de montagem:

“Algumas peças atuais, — onde é notável a influência do Stationendrama ex-


pressionista ou, recuando mais no tempo do teatro medieval — têm, aliás, al-
guma relação com uma dramaturgia em estações: caminho da cruz, Paixão, pe-

1
Ubersfeld, Roubine, Lehmann, Fernandes, Cohen, Ramos.
2
Pavis, 1999, p.113.

3
Este exemplo já nos foi útil durante o experimento de encenação analisado na pesquisa de
mestrado (C.F. Martins, 2004).

110
regrinação ou cruzada. Estas formas são ainda habitadas de forma ímpia, tal
4
como no Ulisses de Joyce se reconhece a estrutura da missa.”

Nesta proposta é desejável que inicialmente o professor pergunte aos alunos


qual poderia ser a atitude do grupo diante do texto que adotamos como ponto
de partida do experimento, ou seja, qual seria a opção ou as opções de monta-
gem a partir desse material.

Se concordarmos com Hegel que a forma é um reservatório de conteúdo e as


formas antigas deixam transpirar as velhas ideologias, essa premissa pode nor-
tear esta fase de análise das encenações de um mesmo texto. O enfoque histó-
rico das categorias estéticas, como defendeu Brecht, faz-nos perceber que em
teatro não basta dizer coisas novas. É preciso, também, dizê-las de outra for-
ma. Parafraseando o mestre alemão, ser contemporâneo na escrita e na ence-
nação não é contentar-se em registrar as mudanças na sociedade, é também
intervir na conversão das formas.

Este raciocínio do conteúdo contido na forma nos leva a formular a seguinte


instrução: de quantas formas podemos converter este texto? Quais seriam as
concepções cênicas e adaptações dramatúrgicas do grupo? Como cada aluno
encenaria? Utilizando quais partes do texto em foco? Para responder a esta
questão utilizamos, em ordem que dependerá de cada grupo, os seguintes pro-
cedimentos de criação cênica que apresentamos no capítulo dois: criação de
imagens improvisadas pelos atores, jogos teatrais, redação de estruturas gerais
de roteiros, roteiros cênicos (story-boards), preparação e apresentação de
workshops (performances individuais dos atores), desenho e fisicalização de
imagens cênicas dos alunos diretores.

Neste sentido, a análise comparativa de encenações modelares de um mesmo


texto é uma das formas de estimular a ampliação do repertório de instrumentos
cênicos do educando. Nossos experimentos comprovaram que estudar a forma
como diferentes artistas operam sobre um mesmo material, seja ele um texto
clássico – da Antigüidade, ou da Modernidade - ou contemporâneo, estimula o
educando a estabelecer comparações entre as diferentes versões cênicas, am-
pliando sua capacidade de leitura, seu potencial como espectador crítico e de
criador da cena.

”(...) quando vê representar uma peça contemporânea, o espectador já não se


contenta em reconhecer um estilo e reter uma história; ele entra, também, na
5
inteligência da montagem.”

Como desenvolver a capacidade de perceber esta inteligência da montagem?


Deste ponto de vista, após os alunos terem analisado e experimentado ludica-

4
Sarrazac, op.cit, 1981. p.80.

5
Sarrazac, idem, p.76.

111
mente o texto teatral selecionado, apropriando-se da fábula e do modo de es-
truturação original (ou, no caso de texto não-dramático, do roteiro de situa-
ções, imagens ou acontecimentos), consideramos importante conhecer alguns
dos principais procedimentos de encenação do teatro contemporâneo. Neste
enfoque, o desenvolvimento da capacidade de análise e de criação dramatúrgi-
ca do educando é incrementado toda vez que este se apropria de uma premissa
ou procedimento desenvolvido pelos grandes diretores.

Após o levantamento de imagens cênicas, de concepções, de jogos teatrais


que o grupo propõe a partir do texto em estudo, conforme vimos no capitulo 2
no exemplo de recriação de cenas de Esperando Godot, assim como dos co-
nhecimentos e referências cênicas (teatro, televisão, dança, cinema, vídeo-
arte) que o professor percebeu como parte do repertório teatral do grupo, de-
fendemos a apresentação, pelo professor, de outras referências. Sendo assim,
é recomendável que ele selecione princípios e procedimentos de encenação
que poderiam ser apresentados para ampliar o leque de opções dos grupos.

A questão em foco neste momento é: Quais os princípios artísticos e procedi-


mentos cênicos importantes para a compreensão do teatro contemporâneo que
não surgiram na adaptação cênica do texto em foco realizada espontaneamen-
te pelo grupo? A resposta pode nortear a seleção das encenações modelares,
que servirão de modelo a ser apropriado e recriado pelos alunos.

Na criação de banco de dados didáticos defendemos a formatação de dossiês


contendo análises agrupadas em torno de algumas encenações modelares de
espetáculos – referências históricas sobre outras encenações – monografias,
análises, diferentes registros: fotos, roteiros, planos de direção e vídeos, como
exemplos de encenações que podem servir de referência histórica e estética
para cada grupo e contexto.

Quais seriam então os critérios para a seleção dentre os múltiplos processos


de criação da história recente? O que podemos levantar como princípio geral
de escolha dos exemplos a serem confrontados com os alunos?

Em primeiro lugar, a diversidade de formas, temas e processos. Parece mais


interessante poder utilizar uma encenação de cada tipo, para ilustrar a diversi-
dade, do que apresentar muitos exemplos de um mesmo tipo, sem revelar a
opção da tipologia adotada, ou a divisão por categorias de leitura. Não nos in-
teressa nesta fase o aprofundamento em uma determinada forma de encenar,
mas a configuração de um leque de opções, isto é, a apropriação crítica, por
parte do grupo, do maior número possível de ferramentas de criação e leitura
da cena.

Tendo em vista estimular a ampliação do repertório teatral dos educandos e o


debate de diferentes visões de mundo, esta proposta de realização de jogos
de encenação com recortes de textos tem como critério de seleção das ence-
nações o enfoque nos procedimentos de encenação.

112
Nesta perspectiva, além das formas rapsódicas ou épicas da encenação, valo-
rizamos nesta proposta a aprendizagem da cena não-dramática, na visão de
Hans-Thyes Lehmann (2002), que pode ser visto como equivalente ao modelo
narrativo da justaposição. Para autores como Sílvia Fernandes (1996), o mo-
delo da justaposição se caracteriza por uma escritura que possui outra narra-
tividade, apoiada não mais no contar ou apresentar uma estória para o públi-
co, seja de forma linear ou não, mas sim, nas associações, nas justaposições,
conexões em rede, na não-causalidade que altera o paradigma aristotélico das
ações, da fabulação, de linha dramática, influenciado pelas novas formas nar-
rativas e tecnológicas como o cinema e a vídeo-arte, nas quais se operaciona-
liza o fragmento, a colagem, a simultaneidade. Renato Cohen por sua vez co-
menta que a cena teatral hoje, pode incorporar a não-seqüencialidade, a es-
critura disjuntiva, numa cena de simultaneidades, sincronias, superposições,
enfatizando ainda a natureza híbrida dos procedimentos utilizados na elabora-
ção deste tipo de cena:

“O contemporâneo contempla o múltiplo, a fusão, a diluição de gêneros: trági-


co, lírico, épico, dramático; epifania, crueldade e paródia convivem na mesma
cena. Bob Wilson, Thomas, Enrique Diaz alinham, sem medo, os diversos pr o-
6
cedimentos cênico-narrativos.”

Como vimos no capítulo anterior, consideramos que este enfoque do teatro


pós-dramático7 de Lehmann pode ser uma modalidade de análise muito útil,
quando analisamos os procedimentos de encenação, na perspectiva de se va-
lorizar a potência de ação política da forma teatral. Trata-se de adoção de
formas novas para chamar a atenção e alterar a percepção do público:

“É claro que no teatro pós-dramático também aparecem conflitos, os caracte-


res, as idéias e os conflitos de idéias, a colisão enfim. Esses elementos, cont u-
do, ocorrem de uma outra forma, que não a que era articulada pelo drama.
(...) o teatro se constituiu a partir dessa série de elementos que são: pessoas,
espaço e tempo. (...) o que aconteceu com a modernidade foi que essa forma
de teatro, ou todos esses elementos que estavam relacionados, explodiu. “Essa
série de elementos que formava o teatro ganhou uma autonomia”. (...) “Uma
série de formas teatrais que a gente costumava ver como coisas muito experi-
mentais, são compostas por elementos tradicionais, coisas que já existiam no
teatro. Ou seja, o teatro pós-dramático não é a destruição do teatro, mas uma
nova etapa que, com esse distanciamento, pode ser percebido como uma etapa
8
dentro da história do teatro, que tem um desenvolvimento.”

A expressão pós-moderno de resistência, já destacada no capitulo 3, é uma


outra forma de denominar a cena não-dramática que consideramos fundamen-
tal na formação do professor. Deste ponto de vista é interessante garantir que

6
Cohen, 1998, p. XXVII

7
Outros textos modelares para discutir esta forma narrativa: “Urubu-Rei” “O Arquiteto e o Im-
perador da Assíria”, “Cemitério de Automóveis” “O Balcão”.

8
Lehmann, Hans-Thyes. “Teatro pós-dramático e teatro político” (tradução de Raquel Imanishi)
in Revista Sala Preta N.3. ECA-USP, São Paulo, 2003, p.11.

113
o aprendizado de recursos como a justaposição dos elementos cênicos, por
exemplo, possa ser exemplificado não apenas como exercício da cena que a-
bre mão de uma visão crítica sobre as relações humanas, mesmo que a inter-
pretação do sentido seja feita de forma distinta por cada espectador. Portanto,
recomendamos que o professor em formação não abra mão de experimentar a
elaboração de cenas que provoquem o espanto no público, através de ima-
gens dialéticas (Röhl,1997), que pretende o impacto sensorial proposto por
Artaud e as intenções do estranhamento em Brecht.

Outra abordagem destaca o “teatro da memória”, expressão de Peter Iden


para o teatro que estabelece um diálogo crítico com a história e a literatura;
que “aguça os sentidos e o intelecto para as paroxias que caracterizam o nos-
so mundo”; que “aja contra o esquecimento e a perda da história (...) e reco-
nheça que sua produção teatral sofre irrevogavelmente a pressão da mídia e
do pensamento normativo, ditado por interesses econômicos” 9

Nesta perspectiva, quando nos dedicamos ao estudo dos recursos cênicos


não-dramáticos podemos adotar esta atitude de liberdade no uso, sem limites,
dos mais diversos instrumentos. Portanto, podemos enfocar os principais ins-
trumentos cênico-narrativos do novo teatro, segundo Lehmann: fragmentos
sintéticos, imagens dialéticas, números de teatro-dança, acontecimentos, per-
formances. Percebemos nas avaliações dos participantes que este tipo de fazer
teatral traz novas perspectivas para o debate sobre a relação do indivíduo com
a história e a sociedade.

De forma didática, sem pretender estabelecer categorias absolutas – apenas


para dar o exemplo de uma das formas possíveis do professor situar os proce-
dimentos com seus alunos – apresentamos a seguir a síntese das modalidades
de procedimentos enfocados nas oficinas realizadas:

- Procedimentos dramáticos quando a encenação visa a identificação do es-


pectador com a representação, através da narração de fábulas com início,
meio e fim, mesmo que não necessariamente nessa ordem. Um exemplo utili-
zado no supracitado experimento foi The Tragedy of Hamlet de Peter Brook.

- Procedimentos rapsódicos: quando a fábula é revelada através da narração,


do uso de coro (ou personagens imbuídos de alto teor de coralidade -
“coralité”, segundo análise dos elementos do drama moderno de Sarrazac10,
narradores, solilóquios, sem abrir mão do fenômeno identificação do especta-
dor. Ex: Mahbarata e Tierno Bokar de Peter Brook; Gilgamesh e Medéia de
Antunes Filho.

- Procedimentos dialéticos-brechtianos: quando a encenação narra a fábula de


forma épica, porém com o objetivo de provocar o estranhamento, o distanci-

9
Iden cit. in Rohl, 1977, cit, p.163.

10
Sarrazac (2001).

114
amento crítico do espectador, em função de um olhar novo sobre as relações
entre os homens. Os recursos rapsódicos utilizados de forma brechtiana visam
o choque e o espanto, provocam ruídos e introduzem comentários na narração
da fábula e provocam o efeito da ambigüidade, deixando, por exemplo, o final
da estória para a conclusão do público; estimulam o espectador a tomar uma
atitude crítica, na posição de co-autor na definição da fábula.

- Procedimentos pós-dramáticos: quando a encenação deseja provocar a emo-


ção e a imaginação do espectador, mas não visa a narração – identificada ou
estranhada – de uma fábula. Ela não se propõe a contar nenhuma estória, não
quer atingir a sensibilidade do espectador para as formas abstratas, as ima-
gens do inconsciente humano, da imaginação dos poetas. O espectador não
recebe um discurso fechado; trata-se de uma obra aberta que recusa conclu-
sões, dizer uma mensagem, mesmo o discurso dialético e ambíguo. Estimula
no público a sua ação criadora de sentidos, a capacidade de abstração, a fru i-
ção de formas simbólicas e não de formas miméticas. Trata-se por exemplo da
cena simbolista de R. Wilson, Kantor, a performance de Günter Brus, Renato
Cohen e Marcelo Gabriel, a cena pós-moderna de resistência de H. Müller e
Pina Bausch. A cena híbrida, centrada na colagem de diferentes tipos de cenas
ou eventos que pertencem a modelos cênico-narrativos diversos. Trata-se da
mescla de cenas épicas, dramáticas, líricas, musicais, coreográficas, perfor-
mance, ritual, jogo dramático popular, como acontece nos últimos trabalhos
do grupo Oficina. Também diz respeito aos acontecimentos11 nos quais o es-
pectador não assiste a obra, mas encontra-se dentro de uma ambiência, de
um espaço teatral, integrando um ritual cênico que pode ser alterado confor-
me sua participação. Outros exemplos de encenação pós-dramática são: Ha-
mlet as monologue de Robert Wilson, M.O.R.T.E. de Thomas, Elsinor de Robert
Lepage e acontecimentos como OBS do La Fura Del Baus, que utilizoua recor-
tes da peça Macbeth.

Respeitamos a premissa de que não existem modelos fixos para a formatação


deste tipo de banco de dados e cada coordenador pode selecionar dados sobre
as encenações que julgar importantes para auxiliar a compreensão do educan-
do acerca da tradição teatral que está por trás das formas cênicas atuais, de-
pendendo de seu contexto.

Do ponto de vista do produto, ou seja, de escolha das encenações-referência


destacamos o critério da qualidade em todas as três linhas de força da narrati-
va contemporânea: um material textual com qualidade literária autônoma;
uma sonoplastia criativa, original; uma cenografia que “não envelheceu”, e
que ainda seja referência. De preferência, que tenha sido inédita no país, ou
que tenha tido influência em alguma mudança no contexto teatral, mesmo que
muitos anos depois de criada.

11
“Algumas formas atuais de teatro (o happening, a festa popular, o teatro invisível
de Boal(...), a performance buscam a versão mais pura da realidade ligada ao
acontecimento(...).” (Pavis, 1999, p.7).

115
Por exemplo, no experimento com o tema Hamlet, estudamos as diferentes
modalidades de procedimentos utilizados por alguns dos principais encenado-
res sobre o texto de Shakespeare. Nesta fase o foco central foi a exploração
dos temas a partir do confronto do grupo com o “Material Hamlet”, o dossiê
que passamos a organizar juntos. Visamos a experimentação com diferentes
tipos de textos e abordagens cênicas. Esta exploração teve como ponto de
partida o banco de dados criado pelo coordenador e pelos alunos, denominado
de “Material Hamlet”, que pode ser ampliado gradualmente pelas contribuições
dos professores e participantes das oficinas.

Consideramos fundamental que os exemplos destaquem o trabalho de encena-


dores que sejam influentes no teatro ocidental, e, principalmente, no teatro
brasileiro. Sempre que possível, priorizamos textos que possuam encenações
cujas formas sejam provenientes do nosso contexto cultural. No experimento
em Interlagos, selecionamos de início o espetáculo Ham-let do Teatro Oficina.
Em seguida, escolhemos uma encenação que visa a identificação do especta-
dor com a ação representada - e que ainda seja reconhecida como válida, nes-
te caso, o Hamlet que Peter Brook montou em 2000. As abordagens do espa-
ço, da relação com espectadores, do uso da música e das formas de atuação
devem ser, por princípio, diversos entre si. Neste experimento, selecionamos
desde as encenações que se valem da historicização do texto clássico, como a
de Michel Bogdanov, até as versões pós-dramáticas que se afastam quase por
completo do original, como as de Robert Wilson e Gerald Thomas.

Através da pesquisa na Internet, em livros de História do Teatro e periódicos,


o professor seleciona textos, imagens e material áudio-visual, articulando o
banco de dados que é o ponto de partida do experimento e será ampliado pela
investigação dos alunos. Deste estudo inicial, o professor, auxiliado pelo traba-
lho dos analistas, formula procedimentos que possam ilustrar os recursos cêni-
cos utilizados pelos grandes poetas da cena contemporânea.

A proposta de organização de um dossiê pelo professor, que será ampliado


posteriormente pelos alunos, nos faz pensar, inicialmente, em dois problemas:
o perigo de o material selecionado ser tratado numa abordagem “intelectualis-
ta”, “conteudista”, que supervaloriza a aquisição de informações em detrimento
da prática de criação cênica do aluno, assim como a possibilidade de direcio-
namento político-estético e metodológico do professor. Essa preocupação nos
remete às questões: Em que momento seria ideal apresentar o material ao
grupo? Como não fazer das referências, na história da encenação, instrumentos
de manipulação e indução estética?

Nos experimentos realizados testamos duas formas básicas de apresentação


do material selecionado: antes e depois do exercício de criação do grupo. A a-
nálise nos conduziu a um princípio pedagógico importante nesta proposta. É
desejável que a experimentação dos procedimentos cênico-narrativos aconte-
ça, em primeiro momento, antes do contato dos alunos com o material selecio-
nado. Após esta etapa, podemos propor uma nova etapa com a instrução:
“Vamos investigar outros procedimentos cênicos que já foram adotados por

116
artistas diante deste mesmo texto? ”O grupo analisa o material artístico e re-
toma seu próprio exercício, considerando as imagens e soluções cênicas dos
artistas em foco como indutores de criação de imagens, jogos teatrais, concep-
ções cênicas, re-escritura de textos.

Para não direcionar a criação, para não fazer do material selecionado um vetor
de tomada de partido estético pelos dos alunos, antes de tudo, o material deve
servir para ampliar o repertório, para os alunos perceberem como os artistas
resolveram problemas de configuração cênica que já foram examinados por
eles na prática de criação de imagens, concepção e redação de cenas ou de
jogos teatrais. Antes de o grupo entrar em contato com os registros – fotogra-
fias, textos, roteiros, análises críticas, vídeo - de uma encenação considerada
modelar pelo professor, consideramos importante que experimente o(s) proce-
dimento(s) destacado(s). Sem a influência das imagens que demonstram as
soluções cênicas encontradas pelo diretor, os alunos podem descobrir por si
mesmos a forma como o grupo reage ao texto e ao procedimento, de acordo
com seus próprios interesses específicos.

A coleta e a conexão das informações

O primeiro passo é selecionar os textos sobre teatro. Encontrar um texto críti-


co (e/ou um programa em vídeo?) ou registro (programas, sites) que possua
um mínimo de comentários sobre o evento cênico para nortear a proposição
de procedimentos. O professor procura pelo título do texto em foco na Inter-
net, em sites de jornais, dos principais grupos, sociedades de autores, grupos
de estudos em teatro, enciclopédias virtuais sobre teatro brasileiro e universal,
páginas dedicadas ao espetáculo, aos textos, aos encenadores. Também na
biblioteca, nos cadernos de cultura e seções de teatro dos jornais e revistas. A
seleção de, pelo menos, uma análise critica que sirva de modelo.

O segundo momento é a decupagem do texto(s) crítico(s) ou de registro - a


divisão em trechos enumerados e nomeados - que passam a compor fichas
teóricas. Cada procedimento destacado vai inspirar a seleção ou a criação de
procedimentos de dramaturgia e encenação.

Consideramos como princípio norteador da seqüência dos procedimentos, o


sentido do simples para o complexo, do mínimo de informações para o máxi-
mo de informações. Portanto, uma que consideramos desejável de apresenta-
ção dos indutores ao grupo, neste enfoque, é a seguinte:

A partir da narração dos procedimentos de criação cênica pelo professor ocor-


re a criação de novas possibilidades de encenação de fragmentos selecionados
A experimentação do grupo pode se dar antes ou depois da leitura de recortes
teóricos da Crítica, História, Filosofia, Estética, Antropologia, que descrevem e
defendem o procedimento.

Após experimentar sua abordagem dos procedimentos, os alunos entram em


contato com diferentes formas de registro da encenação selecionada: Audição

117
de trilha sonora; Análise de imagens cênicas (fotografias, desenhos cenográfi-
cos) de trechos descrevendo ações, imagens (fotos), cenas em vídeo. Os alu-
nos recriam as cenas analisadas.

Na perspectiva de exemplificar uma estruturação possível dos bancos de da-


dos, apresentamos a seguir um esboço geral que elaboramos, composto das
seguintes partes:

1. Banco de Dados Poéticos: Seleção de fragmentos de textos da peça


de Samuel Beckett em fichas que podem servir de ponto de partida para
novos jogos teatrais. Seleção de fotografias e imagens relacionadas ao
universo da obra.

2. Banco de textos sobre teatro: Seleção de artigos e estudos literários,


da história e da teoria do espetáculo.

3. Registros de Encenações: Fotografias de diferentes espetáculos, tex-


tos da recepção crítica das diferentes montagens da peça, protocolos de
alunos.

4. Banco de Procedimentos: Seleção de pequenos textos que descrevem


os procedimentos utilizados nos experimentos, destacando as instruções
que permitem a participação dos atores na elaboração do texto cênico.

5. Conexões: Seleção de endereços eletrônicos e lista bibliográfica cujo


acesso pode ampliar a compreensão do texto.

A vantagem do professor em organizar o material em fichários ou pastas é a


perspectiva hipertextual deste formato, no sentido de dispor os materiais de
forma não linear, sem uma seqüência de ordenação rígida dos elementos qe o
compoem. Os fichários reúnem o material em um único espaço, dividido por
seções – textos manipulação, temos uma noção do todo do material. Em nos-
sos experimentos, levamos para sala de aula os fichários em os textos estão
sempre disponíveis; mesmo os que foram utilizados em aulas passadas, po-
dem ser retomados, etc....

Levamos em consideração que numa fase posterior, após o grupo exercitar o


procedimento cênico selecionado pelo professor, a pesquisa revelou o interesse
pedagógico de que o dossiê poético e teórico sobre as encenações fosse alimen-
tado e compartilhado por todos os participantes e não organizado somente pelo
professor. O grupo pode realizar sua pesquisa na Internet sobre as encenações
modelares; o banco de dados iniciado pelo professor passa a ser ampliado pelo
grupo. Os encontros focalizam encenações especificas, com cronograma acessível
a todos. Em cada aula se situam os procedimentos cênicos e o encenador em
questão. Utilizamos a versão do banco de dados em fichário e, se possível, uma
versão hipertextual na Internet.

118
4.2. Poéticas cênicas como ponto de partida: investigando os ob-
jetivos possíveis da encenação.

Analisar registros e críticas sobre a obra de encenadores importantes é uma


das formas de utilização possível dos dossiês didáticos que estamos propondo
como ponto de partida para a retomada de jogos e concepções cêni-
cas.Valorizamos assim o uso de recortes de textos sobre teatro que sintetizem
a concepção cênica e a reflexão de encenadores, historiadores e críticos.

No capítulo anterior abordamos o uso de recortes de textos sobre teatro que


representam correntes significativas do pensamento teatral contemporâneo
(citações de dramaturgos, encenadores e pesquisadores) como forma de auxi-
liar a análise dramatúrgica. Naquela fase os recortes são lidos pelo grupo após
um primeiro contato com a obra.

Nesta fase da proposta a leitura das declarações de artistas e estudiosos de


teatro pode ser feita antes do contato com os registros de encenações. As ci-
tações servem como estímulo para que os grupos tentem descobrir diferentes
formas de encenar os fragmentos que eles escolheram do texto teatral. É im-
portante que novas possibilidades de configuração possam ser encontradas
por conta própria. Este pressuposto evita que o contato prematuro com esse
material possa induzir a concepção cênica dos grupos.

Em seguida, quando o grupo estiver analisando fotografias ou registros em


vídeo das soluções encontradas pelos artistas, novos textos sobre teatro serão
buscados pelos alunos ou apresentados pelo professor.

Para ilustrar duas das principais modalidades de encenação de um texto tea-


tral que abordamos em nossos experimentos, apresentaremos a seguir um
resumo do uso que fizemos deste tipo de material referente ao enfoque de
historização de Brecht e da abordagem de Robert Wilson e Gerald Thomas.

4.2.1. Objetivos na encenação rapsódica: a historicização em Brecht

Uma das questões que se apresentam diante do desafio de encenar é a deci-


são do grupo entre o enfoque atemporal e a historicização do texto. Conside-
ramos a historicização como uma abordagem do texto indispensável na forma-
ção do professor, por ser ainda uma abordagem recorrente na cena contempo-
rânea, e por permitir aos alunos diferentes questionamentos do ponto de vista
social, histórico e ético.

Para Brecht, historicizar é mostrar os acontecimentos e os homens sob seu


aspecto histórico, efêmero. Para estudar esta abordagem, podemos utilizar
registros e análises de montagens que mantêm a fábula do texto original, re-
significando-a através da inserção de elementos cênicos que historicizam o
texto. Esta categoria da historicização, utilizada por Brecht é retomada por
Pavis em sua classificação sobre a encenação dos clássicos. Estes dois autores
podem fornecer recortes teóricos a serem lidos em classe:

119
“Historicizar implica julgar um determinado sistema social do ponto de vista de
outro sistema social. Os pontos de vista em questão resultam do desenvolvi-
12
mento da sociedade.”

“Historicização: Levar em conta a defasagem entre a época da ficção represe n-


tada, aquela de sua composição, e a nossa; acentuar essa defasagem e indicar
as razões históricas nos três níveis de leitura, isto é, historicizar. Este tipo de
encenação restaura, mais ou menos explicitamente, os pressupostos ideológi-
cos ocultados, não receia desvendar os mecanismos da construção estética do
13
texto e de sua representação.

Para Brecht, é necessário resgatar o frescor original da obra clássica, o caráter


que possuía outrora, “surpreendente, novo e criador e que era uma de suas
características essenciais”14. Neste enfoque, a recuperação do “espírito comba-
tivo dos clássicos” não significa a imposição formalista de efeitos cênicos “no-
vos e sensacionais, até então nunca vistos” no texto. Do artigo “A obra clássi-
ca intimida” podemos destacar outros recortes nos quais, este autor defende
uma atitude contrária ao “respeito hipócrita servil e falso” em relação aos tex-
tos considerados clássicos:

“Temos de objetivar o conteúdo ideológico original da obra e aprender o seu


significado nacional e, simultaneamente, internacional; para isso, há que est u-
dar não só a conjuntura histórica em que a obra se insere, como também a ati-
tude e as particularidades características do autor clássico em questão. (...) A
grandeza das obras clássicas reside na sua grandeza humana, e não numa
grandeza de fachada. No domínio da representação, a tradição por muito tem-
po ‘cultivada’ dos teatros da corte, afastou-se, nos teatros desta nova burgue-
sia decadente, cada vez mais, de uma autêntica grandeza humana, e as expe-
riências dos formalistas apenas contribuíram para tal afastamento (...) Criou -se
uma falsa grandeza que era apenas um vazio. (...) Se nos deixarmos intimidar
por uma concepção falsa, superficial, decadente e tacanha do classicismo, não
15
lograremos jamais uma representação viva e humana das grandes obras.”

Após a leitura da descrição acima, podemos exercitar a criação de cenas pelos


alunos, seja através da redação de rubricas, do desenho de concepções, da
criação de imagens ou de jogos teatrais que tragam elementos cênicos que
configurem a historicização do texto-base de cada experimento. A instrução
pode ser: “como poderíamos utilizar recortes da peça para ambientá-la de tal
forma que a platéia possa sentir a sua atualização histórica?”

12
Brecht, “Segundo apêndice à teoria do Messingkauf”. In Diário de Trabalho. Rocco, Rio de
Janeiro, 2002. p. 99.

13
“Tipologia das encenações: a encenação dos clássicos”, Pavis 1999, p.126.
14
Brecht, Bertolt. “A obra clássica intimida”. In Escritos sobre o Teatro, (s/d), pp.154.
15
Brecht, Bertolt. “A obra clássica intimida”. In Escritos sobre o Teatro, pp.154-156.

120
Após o debate sobre os objetivos de uma abordagem brechtiana e tendo em
vista uma apresentação de exemplos de atualização do texto clássico através
da encenação, o professor apresenta algumas montagens modelares. Um dos
eixos que Roubine apresenta para entendermos a cena contemporânea, o
princípio de atualidade, pode servir de introdução aos exemplos:

“O princípio de atualidade talvez seja em primeiro lugar a necessidade de mos-


trar, com os recursos do teatro, o encadeamento das causas e efeitos chama-
dos História, mas também sua repercussão na vida mais cotidiana e mais anô-
16
nima.”

Após a apresentação das idéias geradas entre os alunos, o professor apresen-


ta o texto descritivo supracitado. O debate é seguido da instrução que gera
imagens, novos jogos e adaptações do textos: “Além de incluir ou adaptar ex-
pressões utilizadas pelo escritor, de quantas formas podemos sobrepor ações,
objetos, sons e imagens ao texto original, como forma de efetivar sua histori-
cização?”

4.2.2. Objetivos na encenação: a abordagem do texto por Robert Wil-


son e Gerald Thomas

Quando pensamos na formação do cidadão e do professor de teatro, se levar-


mos em conta a preparação do aluno como espectador da cena contemporâ-
nea, consideramos fundamental o estudo do enfoque de Robert Wilson, artista
extremamente influente na cena ocidental a partir da década de 1970, consi-
derado um dos autores mais importantes da cena contemporânea. Por exem-
plo, tendo Hamlet como base Wilson realizou um monólogo no qual fragmen-
tou o texto de Shakespeare para compor um solo que ilustra bem a modalida-
de da cena não-dramática.

Após assistirmos um recorte de cinco minutos do registro em vídeo de um es-


petáculo modelar do diretor, como por exemplo, Einstein on the beach, inicia-
mos o debate das intenções da poética cênica de Wilson, a partir de questões
como: “Qual o desejo de Bob Wilson em relação ao espectador?” e “Que recur-
sos cênicos utiliza em relação ao texto teatral?” A análise das encenações po-
de ser incrementada a partir da leitura de recortes de pesquisadores como
Roubine:

“A descoberta da memória, ou antes, de todas as memórias, constituiu prova-


velmente um dos traços marcantes do modelo contemporâneo. (...) Mas a
memória do teatro contemporâneo não é apenas um trabalho em cima de prá-
ticas esquecidas ou exóticas. Mobiliza também as lembranças vividas-sonhadas
pelo indivíduo. (...) Reminiscências do diretor que, a exemplo do escritor, “faz
teatro” de seu passado mais secreto.(...) Essa memória individual não é her-
mética nem fechada sobre si mesma. É impregnada de uma memória coletiva.
Existe aí, potencialmente, espaço para um encontro e uma fusão entre o palco

16
Roubine, 2003, p.190.

121
e o público, a memória do ator e do diretor é também sob certos aspectos, a
17
minha, a sua....”

Complementando a leitura de estudos, podemos selecionar fragmentos de de-


clarações de Wilson que apontam sua postura e seguem defendendo a eman-
cipação do espaço, dos movimentos, da luz e do som em relação ao texto:

“(...) em teatro todos os elementos têm igual importância. Uma c adeira pode
fazer o papel de um ator; a luz pode, igualmente, encarregar-se do papel do
ator; se convertem em ativos co-intérpretes em uma representação cênica: são
“atores”. O que se vê em teatro, pode ajudar ao público a escutar. Isto é, em
resumo, o mais importante em teatro: poder escutar. Com isto não quero dizer
‘escutar o texto’, senão que os intérpretes se escutem uns aos outros no palco,
e o diretor aos intérpretes. As pessoas, por certo, não ouvem somente com os
ouvidos, senão que, acima de tudo, ouvem com os olhos, com as mãos, os pés,
18
com o corpo.”

Outros fragmentos de declarações em entrevistas podem ser utilizados como


ilustração dos objetivos centrais da poética cênica de Wilson, poética esta, e-
xaminada através de leituras, vídeos, fotos e exercícios de redação de textos e
criação cênica, servindo como tema norteador das aulas de teatro. Quando
Wilson comenta a influência sofrida pelo teatro oriental, ressalta o fato de que,
por exemplo, o público já conhece as estórias; o que fascina é o modo de con-
tá-las e não a novidade no enredo ou a mensagem do que se narra:

“(...) não importa tanto que estas estórias (do teatro Nô japonês) sejam narra-
das, porém como são narradas; por tal razão, cabe estar horas inteiras olhando
um desses velhos e famosos atores, mesmo quando por acaso se limita a ficar
sentado e cantando ou, simplesmente, cruze o palco com muita lentidão. A es-
tória narrada está em seu corpo, em sua voz, em sua expressão gestual. Esc u-
tando-se uns aos outros, esses atores ajudam o público a ver. (...) Minhas re-
presentações teatrais devem produzir-se na mente do espectador; por isso eu
não pretendo gerar interpretações de textos, mas sim, um material icônico (vi-
sual e acústico), que opera contra a ilustração do texto , e oferece ao especta-
19
dor a possibilidade de descobrir suas próprias associações.”

O seguinte trecho, no qual Robert Wilson cita outro exercício de sua professo-
ra, serviu de base para formularmos o procedimento “criação de imagem cêni-
ca central”:

“Ela entrava em classe e dizia: ‘alunos, vocês têm agora três minutos para pro-
jetar uma cidade. Prontos? Já!’ E eu me via obrigado a fazer que me ocorresse
uma grande idéia, uma idéia fundamental. Creio que isto vale também para o

17
Roubine, 2003, p. 193.

18
Wilson, Robert. “Oír com el cuerpo, hablar com el cuerpo”.(entrevista à Holger Teschke), Re-
vista de la Asociación de Directores de Escena de Espana, pp. 70-71, Madrid, outubro de 1998,
p. 265. (tradução do autor).
19
Wilson, op.cit. p. 66.

122
teatro: primeiro faz falta ter uma idéia básica... e logo podem somar-se um mi-
20
lhão de idéias que comentam ou questionam, ou o que seja.”

A leitura em classe do relato de Robert Wilson sobre escolha de uma imagem


central e o método de livre associação de imagens pode complementar o su-
pracitado procedimento:

“Assim começam a surgir as imagens e eu não sei em que direção se desenvol-


ve isso. Não quero sabê-lo com antecipação; quero ver como surge. Quando
tento adiantar o final, previamente, então eu me bloqueio por mim mesmo; e n-
tão não sai nada de novo. E o que eu tento é não interpretar. Essa não é a mi-
nha missão. Da mesma forma que a definitiva representação cênica surge na
mente do espectador, este deve buscar sua própria interpr etação.”

O comentário de textos críticos e a análise de fotos do espetáculo criado por


Robert Wilson21 podem nos levar ao debate de recursos interessantes quando
pensamos as possibilidades de operações rapsódicas sobre um texto dramáti-
co. A montagem operada por Wilson e o dramaturgo Wolfgang Wiens sobre o
texto de Hamlet está centrada na transposição da forma dialógica para a voz
rapsódica do monólogo.

Wilson utiliza reiteradamente neste espetáculo o recurso de flash back 22, o que
nos estimula à discussão sobre esta possibilidade: fragmentar o texto, esco-
lher quadros independentes e transformá-los, do plano mimético da narrativa
para o do livre campo da memória, ou seja, misturando-os sem obedecer uma
lógica linear.

Conforme sublinha Schmitt, o monólogo começa pela situação da última cena


do texto dramático, “alguns segundos antes da morte de Hamlet e nos restitui
uma vida, de emoções, um destino em flash-back, os tempos da obra nos
tempos do espetáculo.” Para Balaudé, o encenador consegue isolar Hamlet “à
maneira de Mallarmé”, no interior de um mundo que não será mais que a pro-
jeção de sua memória. A cena traduz a concepção na imagem de um artista
sozinho sobre o palco, que joga obsessivamente com as palavras e os gestos
surgidos da memória de Hamlet, agitando os fantasmas da alteridade”.23 Os
dois críticos citados concordam que a dramaturgia não pretende transmitir a
estória, com objetivo de totalização, de unidade narrativa.

Outro recurso potente que caracteriza o estilo cênico de Wilson é o uso da


amplificação eletrônica da voz do ator, por vezes manipulada, ou emitida fora
de cena, confrontando a voz ao vivo com a voz previamente gravada. O mi-

20
Wilson, op. cit., p. 266. (tradução do autor).
21
Criado em Houston, 1995.
22
Schmitt, Olivier. “Wilson dialogue au sommet”. Le monde, 14 de setembro de 1995.

23
Balaudé, In Shakespeare, La Scène et ses miroirs. Théâtre Aujourd´hui N. 6,CNDP,
1998,.p.142. (tradução do autor)

123
crofone em cena permite todas as variações melódicas e rítmicas, todas as
modulações entre o sussurro e o grito, amplia sobremaneira a interferência
das ações vocais sobre o público. Podemos exercitar a concepção e redação de
cenas nas quais os alunos imaginem a emissão das palavras (ou o canto) dos
atores nesta perspectiva do texto como base de uma partitura sonora.

Um procedimento inspirado na poética de Wilson que utilizamos em nossa ofi-


cina, foi pedir ao ator que jogava o papel de Hamlet para “dizer seus textos ao
microfone, procurando brincar, não levar a sério demais, não torná-lo sisudo,
mostrar que está jogando o papel, quase que narrando o papel, sem se envol-
ver dramaticamente. Um dos participantes de nosso experimento, por exem-
plo, pensou a gravação do monólogo “ser ou não ser” como um rap. Propuse-
mos que este poderia ser sussurrado, no microfone, “à maneira de Bob Wil-
son”, como os participantes brincavam. Este recurso acabou sendo usado no
espetáculo, com “Hamlet” dizendo os monólogos diante um microfone, ao lado
da cena, tocando contra-baixo em conjunto com o piano executado ao vivo
pelo “Narrador/Horácio”.

O modelo de desempenho do ator no teatro de Bob Wilson, é famoso por sua


abordagem anti-psicológica:

“(...) jamais eu disse a um ator alguma coisa sobre psicologia, digo direções, tons,
musicalidades, deslocamento, ima gens, atitudes, não me preocupo com o que o
personagem pensa, o público deve ter a liberdade de imaginar e pensar.” 24

O critico teatral Oliver Schmitt elogiou o desempenho brincalhão de R. Wilson,


numa atuação “que joga com as tradições, os papéis, os sexos e as idades da
vida.” Sobre a iluminação, que para este diretor discípulo de Craig, é parte
significativa de sua criação, o critico observa que esta decupava não só o es-
paço da cena como também o corpo do ator, criando atmosferas por vezes
“fantasmagóricas e oníricas”.

Um procedimento a partir do estudo da encenação de R. Wilson possível é a-


quele no qual os alunos imaginam a transformação de cenas dramáticas em
monólogos, seja escrevendo ou desenhando concepções cênicas, criando ima-
gens com os atores. Nessa operação, chamamos a atenção dos grupos para o
fato da adoção de um ponto de vista único, quando no texto original existe a
preocupação com a ótica dos outros personagens.Sendo assim, os alunos po-
dem escrever suas versões de texto e/ou seu roteiro cênico do ponto de vista
de um único personagem.

Procedimento de monólogo da memória pessoal. A partir da instrução: “esco-


lha um personagem, imagine quais as cenas que passam pela sua cabeça dele
nos últimos momentos de vida”. Do texto dramático, quais você manteria co-
mo cenas desse ato da memória? Poderia haver alguma cena que não foi mos-
trada por Shakespeare? Quais seriam? Por quê? Podemos trazer cópias ou pe-

24
Wilson. op.cit., p.267.

124
dir aos alunos que selecionem cenas do texto, copiar, numerar e recortar as
falas, dispondo-as de várias formas sobre sua mesa de estudo, embaralhando-
as, lendo-as em ordens distintas da de Shakespeare, percebendo quais as
mudanças em nossa percepção.

Que novas imagens surgem desse choque inusitado de falas provenientes de


cenas diversas que se cruzam? Quais imagens esse efeito provoca na leitura?
Diferentes respostas são analisadas, até que o aluno decida pela seqüência
que achar mais interessante. Ele pode colar os fragmentos sobre uma folha de
papel e preencher o espaço entre os fragmentos com outros textos, rubricas
de Shakespeare, ou mesmo de outro autor, como se fosse a memória do per-
sonagem que o aluno escolheu destacar, sem limites nem lógica pré-
estabelecida. Transformando o texto em um fluxo de pensamento, no livre
curso dos saltos da memória humana, buscando o ritmo às vezes desconexo,
às vezes com fragmentos dramáticos, reconhecíveis, às vezes apenas com i-
magens e sons.

Os textos produzidos são lidos enquanto os atores criam imagens, inicialmen-


te, sem planejamento prévio, operando com o acaso, com a noção de “obra do
acaso total” defendida por Gerald Thomas, depois com planejamento coletivo,
escolhendo, sintetizando imagens, formulando uma partitura. Em seguida, o
diretor e o dramaturgo moldam os atores na seqüência de suas propostas de
imagens. O preenchimento do espaço, ou o espaçamento do texto dramático,
como prefere Sarrazac, pode ser feito também por indicações de músicas,
movimentos cenográficos, efeitos de luz, projeção de imagens, projeção de
textos.

As propostas individuais são apresentadas em cada subgrupo; todos decidem


quais versões irão apresentar, em leitura ou leitura com criação de imagens,
para os demais grupos. Se for o espectador quem reorganiza a fábula que foi
decomposta e remontada, quais são as impressões da platéia? Esse foco na
avaliação, não sobre o que entendemos daquilo que foi mostrado, mas sobre o
que foi percebido formas, o ritmo, as luzes, os desenhos na movimentação
dos corpos sobre a cena, nos parece muito importante, tendo em vista debate
sobre a existência da cena teatral pós-dramática.

Um outro pressuposto é a valorização da competência do aluno em relacionar


um tipo de poética cênica pertencente a um diretor estrangeiro com exemplos
nacionais. Por exemplo, a formulação de Silvia Fernandes comprova as rela-
ções entre o trabalho de Thomas e a estética de Robert Wilson. Um recorte
teórico de Bernard Dort, inserido na referida análise, pode complementar a
observação de fotos e, quando possível, de vídeos de espetáculo:

“O mais importante é que Bob Wilson seja contra a interpretação. Todos os e-


lementos de seu teatro são iguais. O texto, a luz, a coreografia, tudo tem a
mesma importância (...) com Bob Wilson, a interpretação é um trabalho que o
espectador deve fazer.” 25

25
Dort, Bernard, cit. in Fernandes, op.cit., p.294-295.

125
Fernandes salienta que Bernard Dort, ao aproximar Wilson de Brecht, revela
um aspecto da encenação contemporânea geralmente negligenciado, que é a
ação política da desconstrução dos textos e a subversão das convenções cêni-
cas consideradas clássicas:

“Trata-se exatamente da desconstrução dos códigos ideológicos, feita através


de vários mecanismos. A repetição, a progressão, a variação ou o contraste, a
eliminação do contexto original dos eventos, o exame minucioso dos compo-
nentes da imagem através da câmera lenta, a decodificação do gesto em par-
tes menores, todas essas experiências perceptivas se relacionam à desintegra-
ção do discurso ideológico, atacado em sua coerência totalitária”.

(...) quando o encenador alemão pregava o distanciamento das situações fami-


liares através do famoso efeito V, o que pretendia era, exatamente, que o es-
pectador estranhasse realidades dadas como naturais, e as enxergasse como
construções ideológicas, destinadas a manter determinado status quo. O que
Brecht colocava sobre o foco de seu teatro épico era o discurso social coletivo e
objetivo. Ora, o que se pode ver com clareza, e que Heiner Müller enfatiza em
seus comentários sobre Robert Wilson, é que a desconstrução do imaginário de
uma época também é uma tarefa política. E é isso que o teatro de Thomas se
aplica em fazer: contrariar as formas do imaginário de sua época revelando a-
través de associações de imagens e idéias, novas possibilidades de leitura des-
se imaginário.(...).O teatro de Thomas interroga sua época pela invenção de
discursos paralelos ao imaginário social, alternativas de leitura da realidade.” 26

Podemos comentar com os alunos o uso do procedimento da fragmentação,


não exatamente como Brecht queria, pois na maioria de suas peças27 ele acre-
ditava no poder da fábula, fragmentada, estranhada. Concordando com Leh-
mann, podemos afirmar que o teatro brechtiano ainda se encontra no modelo
narrativo da unidade.28 Como Brecht, Thomas esfacela a narrativa em qua-
dros, mas não se importa mais com a unidade, nem acredita na força das es-
tórias, mas na forma renovada e própria de contá-las. De todo modo, o resul-
tado é um espectador que não somente assimila a narrativa dada, mas que
tem que ter trabalho intelectual: dar sentido a cenas por vezes ambíguas, de
significado aberto, em quadros ou “moléculas” que não se complementam:

“A desintegração da cena em moléculas permite que o espetáculo incorpore a


crítica à própria escritura. (...) O meio que a encenação encontra para demolir

26
Fernandes, op. cit., pp. 295-296.(grifos nossos).
27
Exceto em algumas de suas peças didáticas, como por exemplo, Fatzer. (C.f. Koudela, 1996).

28
Segundo Lehmann, a teoria de Brecht contém uma tese “fundamentalmente tradicionalista”,
na medida em que este dramaturgo não abre mão da estória a ser contada: “a partir da fábula,
é impossível compreender a parte mais significativa do novo teatro dos anos 1960-1990, nem
mesmo a forma textual assumida pela literatura teatral (Beckett, Handke,Strauss, Müller).O
teatro pós-dramático é um teatro pós-brechtiano. (...) o novo teatro abandona o estilo político,
a tendência dogmática e a ênfase do racional no teatro de Brecht.” (Lehmann, H. T. Le théâtre
postdramatique. L´Arche, Paris, 2002, p.44.)

126
a ideologia é atacar, em primeiro lugar, a si própria, demonstrando seu meca-
nismo construtivo e mostrando, com isso, que toda linguagem, mesmo aquelas
que se pretendem totalizadoras, são apenas linguagens, construções imaginá-
29
rias que camuflam seus processos construtivos.”

O recorte acima é apresentado em conjunto com o desenvolvimento do racio-


cínio de Fernandes, que resume nas duas passagens abaixo a poética cênica
de Thomas:

“Sem território fixo, com o espaço que se subleva à intenção da luz, com a mú-
sica impactante que norteia os sentidos, com os retalhos de personagens arras-
tados pelo ator, com o narrador que é também encenador e, como ele, se rec u-
sa à narrativa, com os corpos de leitmotive seccionando a cena em minúsculas
veias de sentido, com o movimento construtivo em progresso, que leva o espe-
táculo seguinte a negar o anterior, a encenação de Thomas transforma o es-
pectador em parceiro de um jogo libertário, feito sem regras fixas. Compõe um
anteparo subversivo ao desejo, demasiado humano, de totalização.” 30

Deste estudo de Fernandes o professor pode também selecionar algumas des-


crições de cenas e fotografias. Na página oficial de Thomas, na rede mundial
de computadores,31 é possível escolher e assistir um vídeo de quatro minutos,
no qual podemos nos basear para comentar as opções não realistas do cená-
rio, concebido como um espaço de sonho e não como reprodução da vida ex-
terior. A audição das músicas no referido vídeo é outra informação importante,
em termos de aproximação sensorial com a obra do encenador. Vários exercí-
cios de análise e de criação cênica podem ser formulados pelo professor a par-
tir das músicas ou das fotografias publicadas.

Em outro recorte dessa análise, encontramos uma observação que sintetiza a


atitude geral de Thomas em relação ao texto de Shakespeare. Para Fernandes,
o teatro de Thomas interroga sua época pela invenção de discursos paralelos
ao imaginário social, alternativas de leitura da realidade, a encenação pedindo
emprestado ao dramaturgo “fios narrativos ou conjunto de leitmotive”, justa-
pondo a eles comentários críticos, mordazes ou poéticos, como se exibisse ao
espectador “um mecanismo de pensar o mundo e, principalmente, um impulso
de liberdade”. 32

Podemos utilizar uma descrição de cena inserida no texto teórico como ponto
de partida para a criação de imagens e jogos teatrais. Por exemplo, para de-
bater sobre o procedimento cênico de justaposição de comentário ao que se
passa em cena, podemos utilizar a descrição do quadro denominado “Samba”,
que conclui o referido espetáculo de Thomas. Nele, o diretor e dramaturgo in-

29
Fernandes, op. cit., p. 296.

30
Fernandes, op. cit., p.297. (grifos nossos)
31
www.geraldthomas.uol.com.br
32
Fernandes, op. cit., p. 296.

127
seriu um manifesto deslocado, sem conexão direta com as cenas anteriores.
Podemos usar também esta descrição de cena para chamar a atenção sobre o
recurso de quebra da relação entre platéia e palco:

“Samba

“Você repete várias vezes:

“- Estou cego de verdade.”

A luz baixa lentamente para concentrar-se no arco da ponte. À medida que fa-
la, a palavra verdade vai recebendo uma entonação aguda, sincopada, ritmada
como um repique de tamborim. A voz sambando no armário funciona como um
sinal para a entrada de percussão forte de bateria, que invade o espaço sonoro,
leva ‘Você’ até o proscênio e cadencia seu texto/manifesto:

“- Estou cego de verdade, estou cego de verdade, estou cego de verdade.


Quem faria isto comigo? Os de cima? Os de baixo? (...) Nossa obra, a obra do
acaso total. Clamo. Que me acordem se eu estiver dormindo. Concordo! Minha
angústia, meu espírito. (...) Convoco! Uma nova geração de criadores. Que (...)
ouçam os lamentos das cidades. Que se estrangulem mas achem a geometria
de um parangolé brasileiro. Que chova sobre nossa poesia! As palavras são a-
bafadas pelo som crescente da bateria que invade o palco e devolve “Você” à
33
platéia.”

Se possível, após assistir e analisar o vídeo “baixado” da Internet, podemos


iniciar pela escuta da música, para dar uma idéia da atmosfera onírica provo-
cada pelo efeito de repetição em sua estrutura rítmica e preparar a leitura do
texto, mostrando a quebra que significa a entrada da bateria do samba no fi-
nal do espetáculo. O corte brusco e o efeito de brasilidade e vitalidade realiza-
do pela inesperada entrada dos percussionistas com o samba, justapõem uma
energia vibrante e animadora ao texto de natureza intelectual, de visão frag-
mentada e pessimista. Um final com ambigüidade, característica que pode ser
delimitada como eixo norteador da aula de teatro. Um recorte da conclusão
deste estudo de Fernandes pode ser apresentado como indutor de novos de-
bates:

“(...) a encenação responde ao desejo dos espectadores de fantasmar livre-


mente e coloca a sua disposição ”imagens de qualidade”. O espaço que se mo-
ve impedindo a estabilidade discursiva, o corpo que ostenta o estereótipo e a
desconstrução, os enunciadores múltiplos que se distribuem no palco, todos
impedem o fechamento da interpretação.” 34

Neste sentido, um procedimento possível é a criação de imagem cênica ambí-


gua. Como na cena supracitada, que mistura música animada ao texto pessi-
mista, o grupo deve criar uma cena que parodie uma cena especifica do texto

33
Fernandes, op. cit., p.245.
34
Fernandes, op. cit. (checar página).

128
base, de Shakespeare, cujo texto cênico seja ambíguo. Cabe ao espectador
decidir o sentido e reconstruí-lo em sua imaginação.

Em seguida, o professor pode apresentar outro recorte do registro da encena-


ção de M.O.R.T.E., ou um trecho da filmagem do espetáculo, para que os alu-
nos possam confrontar os resultados de sua criação com os encontrados pelo
artista.

Quando pesquisamos sobre a paródia de Hamlet efetuada por Thomas, por


exemplo, encontramos trechos que contextualizam historicamente um proce-
dimento muito valorizado na cena atual, a “disjunção”, caracterizado pela e-
missão de vozes separadas dos corpos dos atores, a dublagem, dentre outros.
A criação de imagens a partir da teoria é o procedimento que formulamos a
seguir:

Criação de imagens complementares

A intenção é discutirmos na avaliação das concepções cênicas e jogos realiza-


dos pelos alunos que uma das possibilidades de encenação do texto teatral
seria a utilização do princípio que muitos autores denominam de disjunção35
entre texto e cena. Podemos iniciar pedindo aos grupos que escolham um tre-
cho do texto e dividindo os atores em dois grupos. Acrescentamos a instrução
referente ao primeiro nível de disjunção: “Enquanto a metade dos atores lê o
texto fora do espaço de jogo, os demais criam imagens complementares.”

Disjunção através de imagens não complementares

Podemos experimentar depois, com o mesmo texto, a criação de imagens pa-


ródicas (que parodiam o texto), opostas (que mostram o contrário do que o
texto diz) e, numa quarta versão, a criação de imagens desconexas (que ca-
minham de forma paralela ao texto, sem ilustrá-lo).

Após os jogos, poderíamos utilizar como complemento da avaliação, um texto


teórico, a ser lido preferencialmente pelos alunos, como por exemplo, este
trecho de Flora Sussekind que, citando Peter Szondi 36, situa a origem histórica
da disjunção na prática cênica:

“(...) é possível tomar como paradigmática a tentativa de Lugné-Poe ao dirigir


“La Gardienne”, de Henri Régnier, em 1894, de separar a movimentação cênica
das vozes dos intérpretes. Procurando, para isso, esconder do público, no fosso
da orquestra, os atores que diziam o texto de Régnier e, ao mesmo tempo,
deixar à mostra no palco, apenas um outro grupo que, por trás de uma cortina
37
transparente, se dedicava exclusivamente a uma pantomima muda.”

35
Cf. Fernandes, Coehn, Ramos, Lehman.
36
Szondi, Peter. “Sept Leçons sur Hérodiade”, in Poésies et poétiques de la modernité, Presses
Universitaires de Lille, 1982, pp.130.

129
Após a contextualização histórica da origem do recurso da disjunção no movi-
mento simbolista do século XIX, o segundo passo de nossa abordagem é situ-
ar o recurso no âmbito da encenação brasileira. Nesse sentido podemos utili-
zar um outro trecho do mesmo artigo de Sussekind:

“A disjunção – não é difícil perceber – é um dos princípios básicos do método


teatral de Gerald Thomas. De que são exemplos evidentes, o coração arranca-
do de “Ela” (Fernanda Montenegro) — e devorado em seguida, por sua duplic a-
ta mais jovem — e a cabeça separada do corpo da “jovem ela” (Fernanda Tor-
res), em The Flash and the Crash Days; ou a mesa, sobre a qual se esperaria
que Carmem dançasse, colocada, todavia, acima de sua cabeça, suspensa no
ar, enquanto ela dança em Carmem com Filtro; (...).”38

A utilização de fotos das cenas referidas para ilustrar o texto teórico é ideal,
sejam elas conseguidas através da publicação de Silvia Fernandes “Gerald
Thomas em cena”, ou na página de Gerald Thomas na Internet.

O professor, inspirado por esta leitura da teoria do teatro, pode estimular em


suas instruções seguintes, por exemplo, a “separação entre voz e corpo, fala e
emissão, entre o som ou o ritmo da voz e a figura que parece produzi-los.”39

Percebemos que, experimentar a criação de diferentes imagens a partir do


texto dito fora da área de jogo (em off), com foco na dissociação entre a ação
cênica e a palavra, abre caminho para o debate sobre as possibilidades de a-
propriação pós-moderna ou pós-dramática do texto teatral.

Com Hamlet, por exemplo, após o debate sobre as imagens citadas, foram
levantadas hipóteses distintas de se utilizar o recurso da disjunção. Pensamos
por exemplo, num quadro onde o texto do monólogo conhecido como “ser ou
não ser” seria dito de forma tranqüila, em gravação “em off”, para que o texto
pudesse ser entendido em sua plenitude. Enquanto isso, o ator que joga o pa-
pel do príncipe giraria no ar, pendurado por uma corda na vara de cenário do
teatro, de cabeça para baixo, girando sobre o público, que estaria sentado em
um círculo de cadeiras sobre o palco.

No jogo de encenações imaginárias, um dos participantes propôs que iniciás-


semos o referido monólogo narrado fora de cena, justaposto à imagem da ca-
beça de Hamlet numa bandeja, posta sobre a mesa no centro da roda formada
pelo público, criando uma moldura cênica aos quadros que seriam apresenta-
dos. Em seguida, parodiando assim, explicitamente, várias imagens conheci-
das, seja a cena de Gerald Thomas supracitada ou, como observou um dos

37
Süssekind, Flora. “A imaginação monológica” in Fernandes, Silvia; Guinsburg, J. Um encena-
dor de si mesmo: Gerald Thomas. Perspectiva, SP, 1996.
38
Sussekind, “A imaginação monológica” in Fernandes, S. Guinsburg. Um encenador de si
mesmo: Gerald Thomas 1996, p.284.
39
Sussekind, in Fernandes, op.cit., p.285.

130
participantes, a foto da capa de um disco do grupo “Secos e Molhados” na dé-
cada de 1970.

4.3. A análises de encenações modelares do texto em foco

4.3.1.Questões norteadoras para a seleção e análise do material

Apresentamos neste tópico as questões norteadoras que formulamos a partir


de um questionário de análise de espetáculos de Pavis40 , para a análise de re-
gistros de encenações modelares do texto em foco. Este questionário foi tes-
tado no decorrer desta pesquisa com professores em formação e alunos inici-
antes a partir dos 16 anos, e pode ser adaptado pelos professores em forma-
ção, de acordo com seus grupos. O questionário pode ser aplicado na leitura e
decupagem de textos críticos, programas do espetáculo, fotografias e cenas
registradas em vídeo.

As questões norteadoras da análise de dossiês são suficientemente amplas e


abertas e constituem as matrizes dos procedimentos que sistematizamos para
o levantamento das propostas de adaptação cênica do texto.

-Qual o efeito da cena na percepção do público: identificação, diversão, estra-


nhamento, espanto, incompreensão? Nesta primeira aproximação com o ma-
terial, apenas com o impacto da imagem, podemos propor um exercício de
imaginação de superobjetivos para aquela montagem. O professor pergunta e
os alunos escrevem ou dizem: Na sua opinião, porque a encenação concreti-
zou esta imagem?

-Qual a atitude em relação ao texto, do ponto de vista cultural: representação


mimética da cultura alheia (outro período histórico, temas e personagens de
outra cultura), “neutralização”, regionalização, ou apropriação críti-
ca/antropofágica? Reconhece-se a sua nacionalidade? Qual a relação da ima-
gem com os elementos culturais brasileiros? A cena imita uma cultura estran-
geira de forma respeitosa e mimética, faz uma paródia, toma uma postura
crítica em relação ao mundo estrangeiro ou adapta um conteúdo estrangeiro
ao contexto brasileiro?

-Arquitetura e relação cena/público: cena frontal, semi-arena, arena total, es-


petáculo processional, teatro ambiental ou espetáculo em espaço específico?
Onde está situado o público neste acontecimento teatral? Qual a relação espa-
cial entre o público e a cena? A platéia vê a cena de frente, em torno dela ou
no mesmo espaço dos atores? Ocupa-se um espaço teatral, a praça pública ou

40
Pavis, 1999, pp. 317-318.

131
um espaço social ou natural específico? Ela se situa fisicamente estável, no
mesmo lugar ou precisa se deslocar para ver as cenas?

-Qual a relação ficcional entre o texto e a cena? Existe uma “quarta parede”
entre os atores e o público? Os espectadores estão dispostos em locais espa-
lhados no meio do espaço cênico? Quais são os ângulos de visão do público? O
posicionamento espacial obriga os espectadores, não apenas a assistir, mas, a
estarem envolvidos, dentro da ação?

- Modo narrativo: Qual a leitura do texto por essa encenação? Que escolhas
dramatúrgicas são feitas? Qual a organização da fábula ou como se estrutura
o evento cênico? A cena mostra uma única situação ou existem ações simultâ-
neas?

- Tempo: Qual é a dimensão temporal da cena? A temporalidade, atualização,


ou outros períodos históricos? Convivência elementos pertencentes a diferen-
tes períodos históricos? reconstituição histórica, atualização, ou cruzamentos
temporais?

- Espaço: Qual é a opção tomada em relação ao espaço e visualidade: espaço


vazio, cenografia de espetáculos, instalação cênica ou vinculação a espaços
específicos? Qual é a tratamento dado ao espaço e à composição da visualida-
de – o conjunto formado pela cenografia, os figurinos, a iluminação, os adere-
ços e os objetos? O que vemos em cena é a reprodução ou estilização de um
espaço real, trata-se de um lugar onírico (de aspecto irreal, de sonho) ou mis-
turam-se diferentes tipos de espaços? Quais as opções cenográficas adotadas?

- Desempenho dos atores: representação dramática, atuação rapsódica, estili-


zação (gestualidade extra-cotidiana), Representação, performatividade, ou
ecletismo? A atuação parece ser realista, épica (alguém está narrando dentro
ou fora de cena? Existe coro? Trata-se de um quadro musical, coreográfico? O
ator se dirige ao público diretamente, quebra-se a quarta parede?

- A palavra: a dimensão literária do evento cênico: unidade, montagem de


quadros cênicos ou justaposição? Qual o tratamento dado à palavra? Ela está
presente também visualmente em cena (letreiros, equipamentos eletrônicos,
cartazes, impressos)? Quando é emitida, é por atores em cena, voz em off, ao
vivo, amplificada por microfones? Ela é emitida de forma natural, estilizada,
cantada, descontraída ou incompreensível?

- A musicalidade: a estrutura de sons e silêncios. Qual a musicalidade adota-


da? Há música presente? Se há, ela é gravada, ao vivo, fora ou dentro de ce-

132
na? Qual a sua relação com a fábula e com a dicção dos atores? Em que mo-
mento a música interage com a ação dos atores, da luz, dos objetos? Optou-
se pelo uso amplificado de ruídos urbanos ou naturais?

- Ritmo: qual o ritmo das cenas? Ele é contínuo ou descontínuo? Qual o ritmo
da troca de diálogos, a relação entre a duração real e a duração vivenciada?

Como o objetivo de debater as diferentes possibilidades de adaptação tempo-


ral, por exemplo, pedimos aos diretores, dramaturgos e atores que respondam
através da formulação de concepções, imagens e/ou jogos teatrais, a seguinte
instrução: Escolha cada grupo uma cena ou uma conjunção de diferentes tre-
chos de cenas ou mesmo frases, que possam ser montadas em uma mesma
situação cênica que possa ser transposta para outro tempo que não aquele
descrito pelo autor do texto. Cada grupo analisa diferentes imagens, debate e
opta por uma determinada hipótese de adaptação do texto.

Reiteramos a importância que damos ao fato de o professor estimular a atitu-


de de investigador da cena, como propõe Brook e Brecht, a pergunta -“De
quantas formas podemos configurar a encenação de um ou mais fragmentos
desse texto?”, cerne da proposta em tela, pode ter no questionário sintetizado
acima um ponto de partida para a adaptação de cada professor ao seu contex-
to específico.

Após a proposição de cenas, textos e jogos a partir das questões, o grupo en-
tra em contato com diferentes indutores – recortes de textos sobre tea-
tro,imagens, registros em vídeos - que indicam as opções adotadas em ence-
nações modelares, clássicos da modernidade cênica. Após a análise, o grupo
experimenta os procedimentos enfocados e, em seguida, retoma sua escritura
cênica.
Este movimento pendular entre o jogo do grupo com recortes do texto e a
descoberta de diferentes formas adotadas pelos diretores para resolver os
mesmos problemas de configuração cênica é uma premissa fundamental nesta
proposta.

4.3.2. Uma encenação modelar do texto como ponto de partida: um ex-


perimento com o material sobre Ham-let do Teatro Oficina

Do ponto de vista didático, consideramos fundamental a seleção, para compor


o dossiê didático, de pelo menos um acontecimento cênico referente ao texto
escolhido que configure uma referência nacional significativa para a cena con-
temporânea. Esta investigação comprovou que, ao enfocar uma apropriação
nacional do texto teatral em foco, os alunos podem comparar, dentre outros
aspectos, a influência dos diferentes contextos culturais e históricos. A intenção

133
é não perder de vista o debate em sala de aula sobre a necessidade – ou não -
de adaptarmos o texto teatral para o universo cultural brasileiro.

Qual encenação nacional escolher? Dois critérios foram considerados: a impor-


tância histórica e o uso de procedimentos não-dramáticos. Em nosso experi-
mento com Hamlet, de todas as montagens do texto as quais tivemos acesso -
desde a protagonizada por Sérgio Cardoso, ou a encenação de Márcio Aurélio
com cenografia de J. C. Serroni, até aquela dirigida por Ulisses Cruz recente-
mente, com Diogo Vilela no papel-título – a realizada por José Celso Martinez
Correa se destacou por sua importância histórica, pois marca o renascimento
de um dos mais importantes conjuntos teatrais brasileiros, incluindo a reaber-
tura de seu espaço, e influenciou, direta ou indiretamente, muitos grupos de
teatro. A força do espetáculo Ham-let, como obra de arte cênica, foi reconheci-
da por diversos críticos (Labaki, Sá, Garcia, Fernandes, Ramos) como uma en-
cenação de grande envergadura artística.

Ao analisarmos as opções de escritura cênica adotadas na versão de Hamlet do


Teatro Oficina, iniciamos pelo acesso à Enciclopédia de Teatro Brasileiro na
Internet. No verbete “Ham-let” descobrimos a referência a uma análise crítica
deste espetáculo realizada por Silvana Garcia. A análise de alguns dos princi-
pais instrumentos cênicos utilizados pelo grupo, o que nos levou a tomá-lo co-
mo texto-base que fundamentaria a seleção e invenção de procedimentos a
serem experimentados pelos alunos. Qualidades como linguagem acessível e
capacidade de descrição de imagem podem servir de parâmetro na escolha de
análises do espetáculo pelo professor. De início, podemos fragmentar o texto
crítico em recortes divididos por temas, que se transformam em recortes utili-
zados em sala de aula, complementando a avaliação das cenas produzidas p e-
los alunos.

A seguir, apresentaremos exemplos dos recortes que fizemos desta análise de


Silvana Garcia, seguidos dos respectivos procedimentos utilizados no experi-
mento realizado em Interlagos.A seleção dos recortes da referida análise foi
inspirada nas questões do tópico anterior.Destacaremso a seguir, a título de
exemplo, alguns destes recortes e a utilização que fizemos em sala de aula.

Quando analisamos o programa do espetáculo iniciamos pela fotografia de


Ham-let na capa. Olhando apenas a metade superior da imagem vemos um
ator compenetrado lendo um livro, símbolo do respeito ao clássico. Quando o-
lhamos a parte de baixo percebemos que este Hamlet com as calças arriadas, o
que torna a imagem ambígua e que, de certa forma, sintetiza a dupla atitude
do grupo em relação a Shakespeare: respeito e deboche. Esta imagem de Ha-
mlet foge completamente ao modelo dramático configurado pelo cinema anglo-
saxônico, traz à tona uma atitude complexa, revela a dupla operação de atuali-
zação do texto, épica e irreverente.

134
Procedimentos metalingüísitcos

Recorte:

“Faz-se tênue, assim, a moldura ficcional, abrindo passo para os procedimentos


metalingüísticos: quando Hamlet, recusando-se a falar com a mãe, sai pela por-
ta do teatro, o ator que faz Cláudio insta a platéia, convocando o ator que faz
Hamlet a retomar a peça, ao comando de "Fica! Fica"; quando o príncipe fala de
um céu estrelado, aponta para o alto e o teto se abre efetivamente mostrando o
céu; durante o relato da morte de Ofélia, um ator abre a torneira e faz jorrar
uma cascata sobre o tanque, no qual a jovem mergulha para a morte.”

Um procedimento possível é grado pela seguinte instrução: De quantas formas


e com quais intenções em relação aos espectadores podemos sair da moldura
ficcional proposta pelo autor? De quantas formas podemos sair da linha narrati-
va da fábula? Teste com os recursos épicos: comentários através da inserção
de narrador(es) ou coro, criação de “apartes”, ou recursos pós-dramáticos, co-
mo o jogo cênico popular com participação da platéia.

A musicalização da cena dramática

Outra característica do modelo de encenação em foco é a inserção de música


como comentário ou contraponto, a criação de “songs” (no sentido brechtiano
do termo), a transformação de diálogos em números musicais.

Recorte:

“Nas cinco horas do espetáculo que se seguem, mantém-se esse mesmo ritmo.
Música e canto fazem a pontuação da ação podendo comentá-la, contrapor-se a
ela, sugerir relações entre texto e personagens, dar ritmo e criar clima. Essa
variedade de funções é facilitada pela conjugação de trilha gravada com música
ao vivo e pela enorme gama de estilos e ritmos empregados: cantos indígenas,
canto lírico, blues, bossa-nova, samba, rock, rap, etc.”

“(...) O canto também se insere estruturalmente na cena, conduzindo o espetá-


culo em direção à opereta: inúmeros trechos do texto são transformados em á-
rias.” 41

Procedimentos:

- Musicalização do texto-base: o grupo é convidado a escolher trechos do texto


que poderiam ser transformados em números musicais. O aluno pode trazer
música que poderia funcionar como trilha sonora. Improvisação com texto em
mãos, com ou sem instrumentos acompanhando. Leitura rítmica, jogo alteran-
do possibilidades de emissão vocal, criação de base rítmica para declamação do
texto sobre a música; criação de melodia para trechos do texto.

41
Garcia. Silvana.op.cit.

135
- Citação de música como base da cena, como base de nova música, paródia.
Um grupo cria musicalidade para um trecho, enquanto outro grupo corporifica
imagens para cada passagem.

Citações: de outros textos, de imagens, intertextualidade explícita

O recorte do texto crítico é o comentário sobre o uso de citação de uma grava-


ção de uma transmissão radiofônica, como aquela efetuada pelo grupo na cena
metateatral presente no texto de Shakespeare: “(...) É ao som do relato do
massacre do Carandiru que os atores ambulantes encenam a pantomima trági-
ca.” Citação de poesia de Oswald de Andrade: “tupy or not tupy”.

Podemos questionar com os alunos: Como podemos utilizar uma cena do texto
de Shakespeare para, através da citação de outro elemento (áudio, vídeo, ce-
na, som cores simultâneas, coro, ação cenográfica, justaposição de música),
dizer alguma coisa sobre o país em que vivemos, como se respondêssemos a
pergunta o que falar do Brasil, hoje? O que nos estimula o pensamento acerca
desta nação?

Procedimento: cada aluno seleciona fragmentos em textos literários, teóricos e


filosóficos que correspondam aos desejos de expressão pessoal. A instrução
pode ser: “O que vocês gostariam de dizer ao público, mas que não está no
texto base? Tragam propostas de textos...” os recortes podem servir de ponto
de partida pra musicalização do poema (“da música à coreografia”) números
musicais podem ser inseridos em cena improvisada, no meio do texto, podem
ser projetados, como texto, podem ser ditos em off ...

A ênfase no Gestus Social

Redução da complexidade dramática: ênfase nos papéis sociais, na caricatura:

“As personagens, por sua vez, são aparadas em seus volumes e tornam-se pla-
nas, caricaturas de folhetim. A Rainha ostenta uma leveza quase infantil —
“Fragilidade, teu nome é mulher!”;

(...) Pintadas em seus traços mais caricaturais, mas confrontadas com um texto
de alta poesia e transcendência, as personagens parecem debater-se em des-
conforto. O efeito é de marcado estranhamento,(...).42

Procedimento: Criação do gestus de personagens: leitura de verbete gestus em


Pavis. Aquecimento, roda de espelho, trocando de guia, cada um apresenta um
gestus de um personagem que escolheu. Escolhe uma frase para justapor ao
gestus, aquela que revele atitude social do papel. Todos imitam o guia. Em se-
guida, cada subgrupo escolhe os personagens que podem transformar em pa-
péis sociais, discutem internamente, testam a criação de gestus, apresentando,
em seguida, a síntese elaborada aos demais grupos.

42
Garcia, op. cit.

136
Avaliação: “quem eles mostraram”? Do ponto de vista dos papéis sociais, quais
os personagens que nos interessam? Por exemplo, em Interlagos destacamos o
rei Cláudio, Polônio, a Ofélia frágil e acuada como possibilidade de ser confron-
tada com uma concepção contemporânea de mulher. Também se discutiu muito
a possibilidade de explorarmos a figura de Fortimbrás como representante do
chefe militar imperialista.

Redimensionamento de personagens

Recortes:

“A expansão do tempo-espaço da fábula também libera as personagens no que


concerne a suas entradas em cena”. Ofélia, por exemplo, invade a área de jogo
mesmo quando não está prevista a sua presença - junto ao cadáver ainda quen-
te do pai - ou permanece nela quando, a rigor, já não mais deveria estar ali,
como seus passeios entre os protagonistas, após sua própria morte; uma estra-
nha figura de preto acompanha o enterro de Ofélia e misteriosamente desapare-
ce da cena e da peça.”

43
“(...) Hamlet perde seu caráter melancólico e ganha cinismo e agressividade.”

Procedimento: “Que personagens vocês gostariam de ressaltar, ampliar, redi-


mensionar, tendo em vista a complexidade da vida de hoje?” Em Interlagos, a
personagem da Ofélia também foi alvo de inúmeras críticas (não havia condi-
ções, segundo o grupo, de mostrar as vozes femininas da forma clássica, por
isso, eles inventaram a presença de duas Ofélias, que seguem até o fim do es-
petáculo, como presenças, espectros, e a inclusão de uma cena baseada em
Heiner Müller, que mostrasse Ofélia revoltada, forte, uma imagem que fosse
além daquela Ofélia frágil, passiva e obediente. A opção de Zé Celso de ressus-
citar Ofélia no final de seu espetáculo, numa cena de parto, simbolizando a re-
novação da vida, seguida de um ritual com chocalhos com o público, cria em
“Ham-let” um final diametralmente oposto ao de Shakespeare, com sua mon-
tanha de corpos e a entrada de um soldado, a apoteose militar do som dos ca-
nhões para o enterro dos nobres. Nessa oficina, o grupo resolveu terminar com
um “grito de guerra”, assumindo-se como “moldura narrativa” e propõe a cele-
bração com o público.

Quando o professor inicia seu trabalho em classe pela análise de um banco de


dados de uma encenação modelar, o término da leitura dos pontos destacados
pelo professor no material selecionado nos remete à seguinte questão: Quais
os procedimentos de encenação que não foram abordados nesta análise, mas
que poderiam ser experimentados para ampliar o repertório teatral do grupo?
Esta situação é o momento apropriado para acessarmos outras montagens que
partiram do mesmo texto, do banco de encenações modelares que propomos.

No caso dos experimentos com o texto de Hamlet, além da encenação de José


Celso, selecionamos e traduzimos textos e imagens. Neste exemplo, podería-

43
idem

137
mos complementar esta análise com o exame de outras encenações modelares
do mesmo texto, tais como as versões de Robert Wilson (Hamlet as monolo-
gue) e Gerald Thomas (M.O.R.T.E), já citadas, assim como as de Lioubimov
(1977), Heiner Müller (1990), Peter Brook (2000),) e Patrice Cheréau (1989) e
Robert Lepage (1995), dentre outros.

4.4. Multiplicidade de óticas de um mesmo procedimento

A abordagem do uso do vídeo pelo grupo Oficina nos estimulou a propor a in-
vestigação da pertinência - ou não - do uso de recursos tecnológicos que in-
crementassem algum quadro cênico, ou mesmo, todos eles, configurando uma
unidade formal à montagem de cenas distintas. O professor pode propor a se-
guinte questão aos alunos: de quantas formas poderíamos utilizar a projeção
de imagens em nossa encenação do texto? Podemos situar a noção de projeção
de imagens através de sombras chinesas, fotos, vídeo (monitores de televisão
com vídeo-cassete ou DVD player, ou mesmo data-show) para a encenação de
uma cena do texto de Shakespeare?

Após o exame coletivo das propostas dos alunos, todos pesquisam outras en-
cenações que tenham se utilizado deste recurso. Todos podem trazer para a
leitura em sala de aula, trechos de entrevista de diretores importantes que
utilizem a projeção de imagens, que esclarecem as diferentes motivações para
este uso.

Consideramos fundamental que o professor possa situar a origem histórica dos


recursos cênicos analisados. O uso de imagens projetadas em telas, por e-
xemplo, pode ter sua origem situada historicamente na montagem de Piscator,
diretor que nos anos 1920 ambicionava dotar a cena de uma “qualidade do-
cumental”. A reflexão sobre as intenções de Piscator de vencer os estreitos
limites da ação no cenário e do destino individual mostrando as massas e os
progressos históricos, aprofunda a análise em foco. Neste enfoque, vale a pe-
na discutir com os alunos que, para Piscator, a imagem amplificava a intimi-
dade de uma situação dramática com um enxerto de história, trazendo ao pal-
co recortes do mundo em transformação. O uso rapsódico do cinema e da fo-
tografia na cena teatral pode ser ilustrado por fotos e pelo seguinte trecho de
“A Função do Filme”:

“O filme-comentário acompanha a ação como um coro. Diebold o compara pr e-


cisamente com o antigo coro. Dirige-se diretamente ao espectador, lhe fala
(“por favor não nos levem a mal, sempre começamos pelo princípio”, prelúdio).
Chama a atenção do espectador sobre algumas mudanças importantes da ação
(“o Czar se coloca à frente de seus exércitos”). Crítica, acusa, traz dados im-
portantes, sim, às vezes provoca diretamente a agitação. (...). O filme permite
a condensação da cena até um grau de concentração real, mostrando (ao es-
pectador) o futuro das pessoas implicadas na ação, o filme condensa as cenas

138
em seu conteúdo real. (fuzilamento da família do Czar em filme na cena da
44
conjuração).”

Outras encenações modelares podem ser evocadas para ampliar o estudo do


recurso em foco. Por exemplo, a encenação de “Mercador de Veneza” por Pe-
ter Sellars45. A análise da imagem pode ser complementada pela leitura do
depoimento deste encenador sobre a função coral proporcionada pelo uso de
vídeo e de microfones:

“O sentido de que nossas experiências são profundamente mediadas deve ser


mostrado, usado e criticado, tudo ao mesmo tempo”. (...) A mídia é quem co n-
trola o voto na América. Isto é o que devemos atingir – como o que devemos
lidar agora. Em muitas de minhas produções, estou conscientemente dizendo:
“Espera um minuto, qual é a posição da mídia em sua vida”? Quantas informa-
ções diretas você está recebendo? E quantas vezes você está recebendo de um
ponto de vista diferente? (...) Desde o primeiro instante do espetáculo a platéia
tem de perceber que estão vendo atores, mas que também estão vendo atores
de um outro ponto de vista. Logo, devemos nos dar conta de que a todo o
momento neste mundo nós estamos na presença de pontos de vistas múltiplos,
e falar continuamente a respeito do assunto partindo de um só ponto de vista é
46
inadequado.”

Quando analisamos imagens do espetáculo Elsinor47, um solo com trechos do


Hamlet encenado por Robert Lepage em 1995, informamos aos alunos que o
encenador canadense acredita no valor da tecnologia utilizada como possibili-
dade lúdica e não como instrumento de ilusão. Para o encenador canadense, o
teatro não deve perder a noção de que deve ser, antes de tudo, prazeroso, um
divertimento para a inteligência e o espírito do ser humano. A tecnologia, nes-
te enfoque, é usada sem pretensões ilusionistas, nem espetaculares, mas co-
mo um elemento poético:

“Le feu, c'est de la technologie... Le théâtre, c'est du feu et de la noirceur. Avec


les feux de la rampe, on crée des ombres. Le projet, c'est d'entretenir le feu sur
scène. La technologie n'est pas là pour refroidir l'artiste, mais pour lui ouvrir de
nouvelles possibilités. L'intérêt de la technologie, c'est que ça permet ou empê-
che une forme d'art de se métisser. La frontière entre le spectacle vivant et l'art
en conserve (film, vidéo) est de plus en plus étroite. La télé s'en va vers une
théâtralité, vers un sens du direct que la technologie est amenée à transformer
en poésie.” 48

44
Piscator, E. “Nuevas tecnologias em la escena”. In Revista ADE, Madrid, 1999.(tradução do
autor).
45
Maurin, Fréderic (org.). Peter Sellars. CNRS, Paris, 2003, p.360.

46
Sellars, Peter. In Delgado, Maria; Heritage, Paul.(orgs.) Diálogos no palco. Rio de Janeiro,
Francisco Alves, 1999, pp. 440-441.
47
Fouquet, Ludovic. Robert Lepage, l´horizon en images. Québec, L´instant même, 2005.

48
Lepage, Robert. “Le créateur se penche sur I'avenir du théâtre” (entrevista feita por Jean St-
Hilaire) Le Soleil, Québec, 22 de janeiro de 2000.

139
O questionamento do grupo em relação à possibilidade de usar esse recurso
em nosso experimento gerou diferentes propostas, escritas ou debatidas. Após
o comentário a partir de fotografias 49 sobre a projeção de imagens em vídeo
pré-gravado e ao vivo dentro do espetáculo Elsinor, ampliou a discussão.

Após o debate com textos sobre teatro e a análise das imagens de diferentes
abordagens multimídia de textos, o grupo é convidado a conceber cenas que
se utilizem da projeção de imagens. Se tivéssemos acesso ao equipamento
necessário, qual seria sua proposta para a inserção de imagens – pré-
gravadas, ao vivo, ou ambas? - e para o uso de microfones? Se houver dispo-
nibilidade técnica, podemos realizar experimentos com os equipamentos. Em
nossa oficina com Hamlet, na fase de elaboração de roteiros, foram discutidas
diferentes propostas tendo em vista que a abordagem multimídia interessou
ao grupo. Percebemos a importância do questionamento constante do motivo
da utilização de determinado recurso, alertando o grupo sempre para o perigo
da utilização aleatória que não contribui para a encenação. Ao final de nossa
montagem, os alunos decidiram utilizar o recurso do vídeo como forma de
projetar a imagem ao vivo do “Horácio/narrador” e dos solilóquios do protago-
nista, assim como possibilitou a projeção da cena do afogamento de “Ofélia”.

4.5. O desenvolvimento de quadros cênicos e os encontros com o


público

Após a experimentação de diferentes procedimentos cênicos, realiza-se uma


“oficina de super-objetivo e roteiro”. A partir de perguntas-chave, o grupo dis-
cute as diretrizes e objetivos da encenação: O que queremos do teatro? O que
nos interessa como artistas, pensando no público? O que queremos destacar
dos bancos de dados? Da mesma forma, revendo as concepções de cenas já
levantadas até agora, como cada um pensa um roteiro cênico? Depois da pro-
posição individual de roteiros, da exposição e da discussão, o grupo é convida-
do a chegar a um roteiro, não pela democracia da maioria de votos, mas, pela
argumentação e recriação até alcançar um consenso.

Após o debate de diferentes roteiros, o grupo formula a primeira versão de um


roteiro, em conjunto. O objetivo não é alcançar uma unidade de estilo. A regra
do nosso jogo é que este primeiro roteiro seja considerado um ponto de partida
a ser modificado, pois esta deve ser apenas a primeira proposta do grupo. Todo
roteiro passa por diferentes versões; trata-se do processo natural de concep-
ção, teste em cena, revisão, novos testes.

A noção de fase das apresentações50, a nosso ver, substitui a idéia de apresen-


tação final de oficina, na medida em que parte do princípio de que a estréia é o

49
Lepage In Irvin, Polly.(org.) Directing for the stage, Rotovision, London,2003. pp.60- 71.

140
início de uma nova etapa que deve ser desenvolvida, pois o roteiro da encena-
ção deve, em princípio, ser reavaliado conforme o posicionamento e as reações
do público. Reiteramos, sempre que possível, que podem ser seguidas de deba-
tes com o público, após cada evento, para aqueles interessados. Em Interlagos,
o grupo alterou bastante a escritura cênica dos quadros, após a análise da ob-
servação da platéia.

Assumido por todos como uma criação cênica em processo - work-in-progress51


- o espetáculo é sempre alterado a partir das avaliações advindas dos encon-
tros e reações do público. Após diversos encontros dedicados à experimenta-
ção, é recomendável que se realize uma nova oficina de roteiro, que possa ge-
rar uma atualização das escolhas dramatúrgicas.

Nestes experimentos percebemos como é importante que o aluno possa se e-


xercitar na leitura de textos não-dramáticos e na analise de material sobre a
cena contemporânea para que ele saiba, ao menos, compreender a existência
deste tipo de teatro, no sentido da educação do espectador. No segundo mo-
mento, se, depois de experimentar, ele realmente não se interessar mais, aí
sim, será uma escolha com maior grau de consciência e de autonomia na lin-
guagem teatral.

A organização de dossiês em torno de encenações modelares de um mesmo


texto revelou um caminho de aprendizagem contínua para o coordenador, que
ao pesquisar seu material didático amplia sua visão do teatro. Salientamos o
fato de que o professor não detém o conhecimento prévio que será transmiti-
do aos participantes, ele investiga junto com os alunos... Sendo assim, na
mediação dos iniciantes o professor deve se apropriar das descobertas intelec-
tuais dos pesquisadores.

A experimentação de diferentes formas de concretizar uma mesma cena a


partir de modelos de encenação comprovou ser interessante caminho de am-
pliação do repertório de objetivos e procedimentos.

Consideramos fundamental que o professor em formação possa transpor para


o papel e sistematizar a adaptação dramatúrgica que ele produz individual-
mente, assim como sua participação na busca pelo consenso acerca de um
texto assinado por todos os membros do subgrupo. Este registro do resultado
dos jogos e das concepções do grupo revela a diferença entre a adaptação do
grupo e o texto que serviu de base para a experimentação. Percebemos nas
avaliações dos participantes que o fato de ter que registrar no papel a cena
criada, gera um novo debate acerca de sua estruturação e estimula a consci-
ência do educando em relação à natureza da adaptação dramatúrgica.

50
Em nossa experimentação a partir de ”Hamlet” houve uma temporada de apresentações no
teatro do “CEU-Centro de Educação Unificado - Cidade Dutra”, na zona sul de São Paulo, entre
início de novembro e dezembro de 2004.
51
Na perspectiva de Cohen (1998).

141
Portanto, propomos variações em torno do seguinte exercício: todos são con-
vocados como dramaturgos para redigir sua versão da cena e trazer uma pri-
meira versão para a aula seguinte. As proposições individuais são lidas em
cada subgrupo, que elabora coletivamente uma versão que resultou do con-
senso. As versões individuais são anexadas ao seu relatório da disciplina, pro-
tocolo no qual ele relaciona leituras da teoria com o que fizeram na prática.

Outra possibilidade é que o professor possa conectar os dados que reuniu com
os procedimentos que realizou, - cada aluno poderia contribuir para escrever
os procedimentos utilizados e distinguir as formas de conectar esses dados
teóricos e artísticos sobre encenações modelares de um texto. Esse Banco de
dados poderia servir de ponto de partida de novos experimentos em outros
contextos, como fizemos ao levar o material reunido em Natal para a oficina
de São Paulo.

O Banco de dados que organizamos sobre Esperando Godot, por exemplo,


serviu de ponto de partida para criação de imagens e jogos teatrais na primei-
ra fase do quarto experimento que realizamos, no âmbito de um projeto de
ação cultural no bairro de Interlagos, São Paulo. A revelação da temática e das
personagens que interessavam ao grupo também resultou em uma montagem
de quadros com versões da dupla de Beckett. Desta vez, com um grupo de
participantes que iniciavam no fazer teatral, esta abordagem de jogo com
fragmentos de Esperando Godot se revelou muito eficaz pedagogicamente.

É importante frisar que nesta proposta os diálogos e as narrações são desen-


volvidos através de diversas retomadas de jogo teatral, que ocorrem após ava-
liações isoladas, editadas pelo diretor em novas instruções. A atitude lúdica na
resolução, muitas vezes, com forte influência das intuições advindas do estar
em jogo, é importante que seja mantida, tendo em vista que o professor em
formação deverá ser capaz de conduzir iniciantes e não profissionais. São essas
instruções que comandam a transformação na narrativa cênica de cada sub-
grupo, essa dramaturgia em progressão ocorre durante vários ensaios, portan-
to consideramos ideal quando a disciplina de um semestre é voltada somente
para esta fase de processamento da estrutura dramatúrgica e passa para a fase
seguinte, que é dedicada a ensaios abertos, debates e retomadas de imagens e
jogos.

Podemos ressaltar alguns problemas, como a resistência dos atores à regra


básica que garante a última palavra sobre a edição do texto cênico ao aluno-
diretor. Nem sempre a ida aos locais foi possível, confortável ou produtiva,
mas no final, todos os participantes avaliaram positivamente o método utiliza-
do. Percebemos que é natural um envolvimento mais intenso entre ator e tex-
to e que, às vezes, isso dificulta o abandono de descobertas, sejam elas mo-
vimentações cênicas, ações físicas, textos, canções ou gestos.

O revezamento das funções, pelo fato de alunos-diretores atuarem como ato-


res em outras cenas, foi avaliado positivamente por alguns, na medida em que
esse duplo papel lhes permitia observar o processo através de outro prisma,

142
ampliando assim, sua compreensão das dificuldades do ator desenvolvendo
dessa forma sua habilidade na condução de grupos.

Salientamos que a prática descrita neste capitulo não substitui um projeto de


encenação de um espetáculo, quando o professor possui condições de tempo e
espaço para tal empreitada, constituindo uma fase de preparação, de avalia-
ção diagnóstica e ampliação do repertório teatral.

Discussão do planejamento do experimento

Da mesma forma que na conclusão da primeira parte da proposta metodológica,


nesta segunda parte dedicada à encenação podemos apresentar e discutir com
os alunos, o percurso percorrido:

1. Experimentação de procedimentos do banco de dados sobre encenação


contemporânea.

2. Criação de dossiês de encenações modelares do texto em foco.

3. A recriação dramatúrgica a partir dos dossiês.

4. Definição de quadros cênicos de cada subgrupo.

5. Concepção e debate de roteiro geral para a apresentação dos quadros.

6. Apresentações, novas avaliações e retomadas de jogo.

7. Escritura da dramaturgia individual e coletiva.

O que importa é que este caminho leve necessariamente a um consenso, a um


roteiro que revele uma unidade, um espetáculo no sentido tradicional do ter-
mo. Ao final desta fase, o grupo apresenta seus quadros, testando diferentes
reações do público. Os alunos que jogaram o papel de diretores e dramaturgos
e atores podem perceber como cada caminho adotado levou a relações diver-
sas. Somente após este primeiro teste - encontro com o público - é que o gru-
po poderá optar, por um caminho de encenação ou pela junção de diferentes
abordagens, na constituição de uma dramaturgia de natureza híbrida. O que
se mostrou extremamente válido foi a experimentação de diversidade drama-
túrgica e cênica. Esta prática contribuiu, segundo a avaliação dos alunos que
participaram dos experimentos, para uma visão de teatro que vá além do mo-
delo dramático de representação das ações do homem, modelo este instaura-
do e reiterado diariamente no cotidiano da maioria dos nossos alunos.

O formato hipertextual é interessante porque podemos partir de qualquer um


de seus elementos - textos sobre teatro, registros de encenação, textos tea-
trais, peças clássicas, exemplos de textualidades contemporâneas, recortes de
texto literário, descrição de procedimentos de criação, imagens, trilhas sono-
ras e vídeos – permitindo ao professor e aos alunos a mesma liberdade antro-

143
pofágica de diretores como José Celso, cuja formação artística se funda em
reflexões de artistas de teatro tão distintos quanto Bertolt Brecht, Oswald de
Andrade, Antonin Artaud e o grupo Living Theatre. Podemos lançar mão de
quaisquer componentes desses dossiês didáticos, dependendo da relação que
se estabeleça conforme o planejamento que não abre mão do estudo das poé-
ticas cênicas modelares tais como Brecht, Artaud, Wilson, La Fura, Marcelo
Gabriel, Marina Abramovich – mas também da avaliação do grupo pelo profes-
sor.

Do ponto de vista da formação do professor, o estudo teórico e a criação tea-


tral utilizando os procedimentos de encenação rapsódicos, brechtianos e pós-
dramáticos, constituem práticas fundamentais, se concordamos com a premis-
sa na qual o professor deve ser capaz de mediar a leitura e estimular a criação
dos alunos para além do modo dramático. Nesta pesquisa, os depoimentos
dos participantes ressaltaram a ampliação do repertório efetuada pelo exercí-
cio de um leque de opções de encenação a partir de um mesmo texto, antes
do grupo definir um projeto de encenação do fragmento selecionado. Perce-
bemos que este tipo de prática contribui para a evolução da capacidade de
leitura e criação da cena dos alunos iniciantes e de professores em formação.

Por outro lado, foi perceptível também o alargamento da visão de mundo dos
grupos, estimulada pelos inúmeros debates, ocorridos nas avaliações após os
jogos e das análises dos registros e estudos sobre as encenações modelares.
O contato dos alunos com diferentes posicionamentos éticos, políticos e poéti-
cos dos diretores e grupos estudados mostrou-se um recurso pedagógico efi-
caz no sentido da educação do espectador crítico, mas também de um ser
humano mais aberto ao diálogo, o acostumar-se com o lidar com distintas i-
déias na busca de um consenso, de valores como a diversidade e o respeito ao
pensamento do outro.

144
Considerações finais

Como ensinar a ler e a criar a cena contemporânea que vai além do modelo
dramático? Como desenvolver a aprendizagem da dramaturgia tendo o
texto teatral como ponto de partida de experimentos de aprendizagem e
criação, no âmbito da formação do professor de ensino de teatro na escola?
Como vimos, essas questões permearam toda a nossa investigação.

Iniciamos nosso trabalho pelo estudo de processos colaborativos de criação


na encenação que ocorreu através da revisão bibliográfica e da análise do
acompanhamento do processo de escritura cênica de Os Sertões - o
homem, assim como da análise da participação do autor como assistente
do diretor teatral em Apocalipse 1,11. A partir de diversos experimentos
cênicos com jovens e adolescentes iniciantes em teatro no bairro de
Interlagos, na periferia de São Paulo e em Natal, Rio Grande do Norte,
foram testados diferentes procedimentos. Neles os alunos assumiram os
papéis de dramaturgo e de diretor, analisando e encenando fragmentos de
autores como Shakespeare, Brecht, Oswald de Andrade, Alcione Araújo,
Samuel Beckett e Heiner Müller, dentre outros.

A análise destes experimentos foi ampliada por estágio de observação do


ensino de dramaturgia no Institut Del Teatre de Barcelona, que aprofundou
a sistematização de uma abordagem de natureza colaborativa do jogo
teatral em sala de aula. Nela, além de atuar e ser espectador crítico, o
aluno pode assumir o papel do dramaturgo, para leitura, análise e escritura
de textos teatrais e do diretor, coordenando e editando jogos de
encenação. O revezamento no jogo dos principais papéis colaborativos -
ator, dramaturgo e diretor - permite que cada aluno possa ler e criar cenas
em diferentes perspectivas em relação aos textos.

Como suporte para análise dramatúrgica de textos teatrais antigos e


modernos, assim como das principais referências da textualidade
contemporânea, os experimentos confirmaram a viabilidade da proposta
de abordagem de diversos bancos de dados teóricos provenientes de
diferentes saberes teatrais: história, estética, teoria da encenação, crítica
teatral, filosofia e sociologia do teatro.

A pesquisa não apresenta um modelo fixo de seleção e organização dos


textos teóricos, pois isto depende de cada professor de teatro e de seus
contextos pedagógicos, mas aponta alguns princípios para a seleção e
articulação de dados, tendo em vista um enfoque: a ampliação do
repertório temático, filosófico, dramatúrgico e metodológico do aluno.

O texto teatral, enfocado nesta pesquisa como eixo metodológico para a


compreensão e o exercício da cena, tem seu lugar na formação do
professor e no planejamento da disciplina Teatro na escola fundamental e
média, a partir da 5ª série. Escolhemos textos que tivessem uma fortuna
crítica considerável, de preferência com análises contraditórias entre si.
Neste trabalho o texto é considerado em duas vertentes:

145
1) O texto como objeto literário, histórico, antropológico, que serve de
modelo para a recriação dramatúrgica e estimula a capacidade de
argumentação dialética sobre a natureza das relações humanas: como obra
pertencente ao patrimônio artístico universal e nacional, um produto
cultural, um elemento integrante do acervo literário, como um reservatório
poético e mitológico de uma sociedade. O texto é um objeto cuja leitura
contribui para a apropriação das narrativas fundamentais que compõem o
imaginário, a memória coletiva de uma sociedade.

2) O texto teatral como modelo dramatúrgico, a ser apropriado de forma


crítica e reconstruído, como forma de aprendizagem dos procedimentos
cênicos e dramatúrgicos. Sendo assim, valorizamos nesta abordagem a
poética dos textos teatrais que apresentam recursos dramatúrgicos que
não pertencem ao modelo do drama da tradição aristotélica. Nosso foco é o
aprendizado dos procedimentos rapsódicos (Sarrazac) e dos procedimentos
pós-dramáticos (Lehmann); portanto selecionamos textos em função de
sua capacidade de ilustrar as opções dramatúrgicas do escritor.

Como esta investigação teve como resultado uma proposta pedagógica que
se fundamenta num balanço constante entre a experimentação lúdica e o
acesso a fontes artísticas e teóricas, isto tornou necessário refletir sobre a
ordem em que esses aspectos se sucedem. Esta preocupação se resume na
seguinte pergunta: Como dosar informação e experimentação? Durante os
experimentos tivemos a preocupação de evitar um enfoque “intelectualista”
ou “conteudista” do ensino, que priorizasse a transmissão de informações
em detrimento da invenção cênica do aluno. O ideal é que as soluções
cênicas dos artistas profissionais sejam debatidas depois de os alunos
terem feito suas propostas. Isso é significativo, pois evita os efeitos
nefastos de um acúmulo de informações antes de os alunos se disporem a
experimentar.

Os desafios implícitos nessa proposta dizem respeito, principalmente, à


necessidade de se repensar a formação continuada do professor de teatro.
Nosso objetivo último é contribuir para o professor que está em sala de
aula, mas as avaliações dos professores de teatro com os quais
trabalhamos no decorrer desta pesquisa apontaram que as deficiências dos
currículos das licenciaturas precisam ser resolvidas no que diz respeito à
dramaturgia moderna e contemporânea, e mesmo à encenação
contemporânea, pois o paradigma vigente na mentalidade de quase todos
ainda
é o modelo dramático, a referência cênica majoritária, hegemônica nos
meios de massa como a televisão e o cinema.

Durante a pesquisa, a dificuldade de encontrar textos teatrais pós-


dramáticos publicados nos conduziu à investigação de textos fora da
literatura teatral. Um texto da teoria do teatro, como a tese de doutorado
de Silvia Fernandes, cuja descrição da escritura cênica de M.O.R.T.E. de
Gerald Thomas permitiu-nos citar uma referência brasileira de uma paródia
e uma desconstrução contemporânea de Hamlet constituiu exemplo
valioso.

146
Neste sentido interessa-nos também o texto do registro de encenação, ou o
roteiro cênico (story-board) pós-dramático, que muitas vezes inclui
imagens, (imagem de roteiro de Actions do La Fura del Baus), pois
percebemos em nossos experimentos que, ao se perguntar aos alunos por
roteiros pós-dramáticos, eles não tinham idéia de como seria a forma de
registro no papel de suas concepções, falta de referência esta que
dificultava sua expressão. Percebemos ainda, que ao lidar com roteiros de
Cohen, ou com vídeos e leitura de rubricas do texto de “Apocalipse 1,11”,
por exemplo, discutíamos a noção de teatro processional, de acontecimento
cênico, de teatro ambiental (“Enviroment theather” de Richard Schechner).
A leitura das rubricas em textos teatrais contemporâneos resultantes de
encenações, como “Apocalipse, 1,11”, por exemplo, demonstrou a eficácia
desse tipo de exercício para a ampliação da capacidade de expressão do
educando na linguagem cênica.

Nesta investigação pudemos perceber o valor pedagógico da prática do


professor de ler críticas de teatro publicadas em jornais, objetivando
selecionar recortes que possam ser utilizados em sala de aula, constituindo
material que irá compor as referências contemporâneas em seus bancos de
dados em dramaturgia, de preferência exemplificadas com modelos
extraídos de três universos distintos: dramaturgia universal, brasileira e
local.

Como já dissemos anteriormente, a intenção deste trabalho não é


apresentar receitas, mas sistematizar os procedimentos que serviram a um
grupo específico. Refletimos sobre o fato de cada contexto e grupo
direcionar a formulação de procedimentos diferentes pelo professor. Por
outro lado, um diferencial desta proposta pedagógica em relação à
bibliografia publicada sobre o tema é a defesa da formulação pelo professor
de um banco de dados teóricos e artísticos básico, que reúna material em
diversas modalidades de escritura cênica.

Nossa análise confirma que é desejável que estes bancos de dados possam
estar configurados sob a forma de fichários ou pastas. O professor de
teatro pode decidir por outras classificações diferentes da que adotamos,
pois não se trata de propor um modelo único. Recomendamos que, no
mínimo, duas modalidades distintas de encenação sejam abordadas em
cada experimento, permitindo a análise comparativa das soluções
adotadas.

O fato dos dados teóricos - recortes de entrevistas, livros, artigos, material


da Internet, verbetes de enciclopédias e dicionários, dentre outros – serem
relacionados em sala de aula a imagens e aos procedimentos que compõem
o mesmo fichário e/ou hipertexto digital, foi destacado nas avaliações de
nossos experimentos, pois isto facilita o cotidiano do professor de teatro,
que geralmente enfrenta o desafio de dar conta de inúmeras classes por
semana. A composição desse material didático do professor sob a forma de
hipertexto que conecta os materiais artísticos e os textos teóricos entre si,
em caráter de obra aberta, mutante, sempre renovável que traduza a
diversidade da cena contemporânea, comprovou ser um instrumento
didático eficaz.

147
A tese sugere, como uma das possibilidades de seu desdobramento, a
reflexão mais aprofundada sobre a documentação e o registro das
manifestações do fenômeno teatral. São itens que poderão ser
desenvolvidos em próximos trabalhos: a densidade dos suportes (textos,
vídeos, fotos, gravações sonoras); a divulgação e o acesso a essa
documentação; a importância da organização e da preservação desses
materiais, dentre outros.

A pesquisa valorizou, no que diz respeito ao amplo panorama da cena pós-


dramática, aquela dramaturgia que Birringer denomina de pós-modernos
de resistência, como vimos no terceiro capítulo.

A investigação revelou que as principais conexões entre o fazer, a história e


a teoria do teatro podem ser realizadas através do equilíbrio entre uma
prática cênica - criação de imagens, jogo teatral, redação de textos teatrais
– e da análise dramatúrgica da cena contemporânea (textos teatrais e
dossiês sobre encenações).

Um outro objetivo pedagógico norteador desta pesquisa é aquele que visa o


desenvolvimento de uma atitude de pesquisa do educando, na medida em
que não existe um único modelo de teatro a ser ensinado, mas diversas
possibilidades. Os experimentos comprovaram que mais importante que o
aprendizado de técnicas teatrais específicas, é que o iniciante na arte
teatral possa, através da aprendizagem e do exercício da encenação,
desenvolver o senso crítico e artístico como leitor e também como um
interventor na sua realidade social.

O fato de cada subgrupo organizar os seus próprios bancos de dados


teóricos e poéticos sob a forma de fichários, a nosso ver, também
incrementa o aprendizado. O fichário materializa as conquistas no campo
da teoria (citações de pesquisadores acadêmicos, dramaturgos e
encenadores) que esclarecem premissas e procedimentos e no campo da
dramaturgia (recortes de textos teatrais, registros de encenação).

Ao longo das duas oficinas, a prática do jogo propiciou gradualmente a


integração dos grupos, minimizando as diferenças de experiência de palco
entre os membros. Esta harmonização interna foi importante, na medida
em que tínhamos uma equipe heterogênea. Tendo em vista esta
característica do grupo, procuramos tomar alguns cuidados no sentido de
promover um aumento contínuo e gradativo das dificuldades em nossas
instruções de jogo. De uma forma geral, um grau satisfatório de coerência
foi atingido na formulação das propostas.

Neste percurso foram três as questões que consideramos fundamentais: a)


a aprendizagem dos procedimentos dramatrugicos e de encenação através
de jogo, da análise e da recriação do texto teatral; b) a organização do
discurso artístico – o teor das questões que estaríamos trazendo à tona e
comunicando ao público-; c) a discussão sobre as modalidades de
formulação dessas questões, ou seja, os problemas dos dispositivos
utilizados na encenação. Em nossa prática, estes vetores caminharam ao
mesmo tempo.

148
Tendo em vista o aprendizado da leitura da cena teatral por parte dos
alunos, enfatizamos a recepção do discurso tecido através dos jogos de
encenação ao longo de toda a nossa trajetória. Esta leitura estética teve
como instrumento principal a noção de dramaturgia como sendo a forma de
entrelaçar os principais elementos da linguagem da encenação: o gesto e a
palavra do ator em sua relação com a música, os objetos, o espaço e o
público.

Nas oficinas realizadas com iniciantes, o primeiro momento dos encontros,


ou seja, a fase de preparação, constituiu-se em um trabalho no nível pré-
expressivo, procurando a mobilização do ator para um estado de prontidão
e disponibilidade para o jogo. Havia a necessidade de desarmar os
condicionamentos que determinam formas estereotipadas de atuação. Esta
fase foi mais que um simples aquecimento para o jogo, transformando-se
em uma investigação pessoal e coletiva no nível pré-expressivo do ator.
Com base no experimento, fomos percebendo, aos poucos, que a ênfase na
ação física serve não só para os profissionais do palco, como também para
aqueles que estejam se introduzindo no campo da atuação e não
pretendam se profissionalizar como artistas. Os exercícios voltados para
este nível ampliaram bastante o referencial de imagens e movimentos dos
jogadores, rompendo algumas barreiras expressivas, tanto físicas como
vocais, ampliando o repertório gestual e dando mais elementos para o
jogador utilizar em sua síntese durante o jogo.

A fase de exploração foi conduzida através de instruções que evitavam uma


única resposta correta, estimulando sempre várias tentativas de resolução,
que eram encaradas como possibilidades estéticas. Elas foram formuladas a
partir dos problemas de configuração teatral que surgiam do contato com
os textos teatrais e, posteriormente, com diferentes materiais que
registram encenações. A grande vantagem destas instruções foi a de
oferecer um leque amplo de opções e desenvolver um distanciamento
crítico do aluno com as suas próprias proposições. O procedimento mais
eficaz nesta fase foi a criação de imagens, sendo também bastante
produtivo o cruzamento dos enfoques da complementaridade e do
estranhamento. Este procedimento foi importante pela riqueza de pontos
de partida dos jogos.

Na fase dedicada à síntese, o procedimento primordial foi o jogo teatral a


partir dos textos teatrais. Sempre que foi possível tentamos obter uma
elaboração cênica em cada aula, no sentido de manter a dinâmica do jogo
teatral em permanente exercício. Procuramos não nos acomodar aos
primeiros resultados. A adaptação dramatúrgica que cada subgrupo
realizou com recortes dos textos-base (Godot e Hamlet) só foi definida
após várias retomadas, quando os grupos decidiam os novos focos de jogo,
de acordo com os critérios discutidos coletivamente e editados pelo diretor.

Nos encontros e oficinas que tivemos com os professores em formação em


Natal e no Rio de Janeiro, a abordagem que relaciona analise de textos
teatrais e artísticos ao jogo entre atores, diretores e dramaturgos permitiu
que os alunos se apropriassem da discussão sobre a metodologia utilizada.
Foi importante discutir ao longo das avaliações das cenas exploradas o
nosso enfoque do caráter lúdico do processo teatral, situando-o no campo

149
da encenação e, por outro lado, enquanto continuidade às investigações de
Ingrid Koudela e Maria Lúcia Pupo.

De uma forma geral, os grupos que participaram das oficinas ultrapassaram


os limites de seu próprio universo imaginário, defrontando-se com o
pensamento do outro, através do jogo teatral com fragmentos de textos
teatrais. Os alunos foram convidados a construir sentidos, experimentando
diversas formas de apropriação lúdica e antropofágica da dramaturgia, o
que instigou os participantes a pensarem dimensões menos óbvias da
realidade.

Os textos selecionados apresentaram também importantes problemas de


configuração cênica. Procuramos sempre encarar as soluções encontradas
no jogo como sendo algumas das múltiplas opções de encenação. As
avaliações se detiveram não só na análise da ficção elaborada, mas
examinaram também a forma do que efetivamente podíamos perceber em
cena. Após os experimentos textocentristas, consideramos fundamental
estimular os grupos a formularem outros níveis de enunciação, que se
sobrepusessem aos já existentes no texto original.

O texto teatral e os materiais que registram e analisam encenações


modelares funcionaram como elementos de ruptura com a forma
encontrada pelos grupos, instigando-os a novas elaborações da cena.

Pudemos observar que a prática da adaptação de textos através da


colagem desenvolveu a capacidade de discriminação, de seleção de
informações, da articulação de significados, da compreensão e da
elaboração de metáforas, do poder de transformação simbólica dos
participantes. Dentre as vantagens deste enfoque, pudemos destacar o
aparecimento de várias proposições para a solução dos problemas cênicos,
o envolvimento intenso do aluno com a articulação do discurso produzido
pelo grupo, a ampliação dos enfoques e o crescente distanciamento crítico
do ator em relação ao personagem. Foram significativos os instrumentos de
discussão coletiva da encenação formulados por nós no sentido da
agilização do debate, evitando desvios desnecessários, encurtando
caminhos e situações de constrangimento.

A modalidade de formulação, edição e escritura individual em subgrupos


de roteiro e de cenas teatrais foi uma das vertentes que consideramos
produtiva. O trajeto da experiência - jogos de apropriação, leituras e
análises dos textos, os jogos de encenação até a escritura da adaptação do
texto - foi intercalado com a redação individual de concepções cênicas ou
descrições detalhadas das cenas. Esta prática da redação de textos foi
muito interessante, aproximando o aluno da idéia de concisão como critério
para o recorte.

Os experimentos realizados, conforme havíamos percebido também em


nossa pesquisa anterior, constataram que um dos efeitos negativos
provenientes da participação do aluno na elaboração da dramaturgia é o
sentimento de posse que pode emergir em relação ao papel. Em certos
casos a dimensão de autoria faz com que ele se identifique com a
propriedade do personagem. Após um certo tempo de experimentação,

150
alguns atores podem se incomodar com alguma mudança na distribuição de
papéis, mesmo quando esta evidencia a necessidade estética da troca,
tendo em vista a representação como um todo. Neste momento, é
importante que o professor estimule o posicionamento do aluno enquanto
dramaturgo, no sentido de sua participação como co-autor do texto,
enfoque que exige um maior distanciamento crítico. Em nossa experiência,
quando não havia consenso, a decisão final sobre a distribuição dos papéis
cabia ao aluno que jogava o papel do diretor, e foi importante expor e
discutir os critérios no grupo, para esclarecer dúvidas e evitar mal
entendidos.

Nas oficinas os atores discutiram a encenação e a dramaturgia de forma


entrelaçada através das pequenas formas de montagem. Quando os atores
aceitavam as instruções dos alunos que jogavam o papel dos diretores para
o estabelecimento de novos focos, alterações ou cortes, estavam
substituindo o mito da inspiração imediata e do frescor original da primeira
improvisação, por uma prática sistemática de transformação da versão
inicial. Este enfoque lúdico da cena enquanto texto cênico orgânico, vivo, e
portanto mutável, não foi evidente no início.

Podemos resumir assim as etapas do percurso que propomos para a


realização de experimentos a partir dos textos teatrais:

1. Avaliação diagnóstica: procedimentos de jogo e debate que revelem


quais os temas, personagens e maneiras de encenar dos grupos: Quais são
as referências do grupo sobre textos teatrais? Quais conhecem, ouviram
falar, leram? Aquecimento para leitura: realização de jogos teatrais a partir
da descrição de imagens e, em seguida, de frases destacadas do texto.
Esta fase inicial foi abordada no capitulo dois e retomada na introdução do
capitulo três.

2. Ampliação do repertório: exploração de fragmentos diversos: proposição


pelo professor de recortes de textos teatrais com temáticas e linguagens
diversas daquelas apresentadas pelo grupo. Abordagem que articula a
criação de imagens e jogos teatrais com a análise dramatúrgica de
fragmentos e a leitura de textos da teoria, da história e da crítica. Esta fase
foi descrita no capitulo três, assim como os itens 3, 4 e 5 expostos a
seguir.

3. Seleção de texto teatral que servirá de eixo para a segunda fase do


experimento. Dois são os critérios possíveis para nortear essa redação: o
texto responde aos anseios temáticos e cênicos da maioria do grupo ou,
pelo contrário, confronta-os com temas e técnicas dramatúrgicas que
sejam significativos para a prática pedagógica.

4. Análise dramatúrgica e experimentação lúdica do texto teatral


selecionado. Leitura do texto auxiliada por textos teóricos e históricos.
Criação de imagens e Jogos Teatrais para apropriação do texto. Criação de
imagens buscando configurar no espaço as indicações do autor. Redação da
fábula ou, no caso de textos pós-dramáticos, da seqüência de imagens e
situações propostas pelo autor.

151
5. Leitura, análise e experimentação de textos teatrais com mesmo tema
ou narrativa, que possam exemplificar diferentes adaptações do texto
escolhido como eixo norteador.

6. Experimentos textocentristas de encenação: imagens e jogos teatrais na


busca pela configuração cênica das indicações cênicas escritas pelo autor
de uma ou mais cenas da peça em foco, conforme vimos no capítulo 1.

7. Experimentação de procedimentos do banco de dados sobre encenação


contemporânea. Antes da análise de registros de encenações do mesmo
texto, os alunos adaptam e recriam fragmentos da peça a partir de recortes
teóricos selecionados pelo professor, recortes esses que explicitam
princípios e procedimentos, mas não apresentam soluções cênicas para a
peça que está sendo objeto central de estudo do grupo. Os princípios desta
fase e das seguintes, foram ilustrados no capítulo 4.

8. Criação de dossiês de encenações modelares do texto em foco: Pesquisa


de alunos e professor, tendo em vista a seleção de material que registra e
analisa montagens modelares: textos teóricos (críticas publicadas, texto
históricos, programas, páginas da internet), imagens (fotografias,
concepções cenográficas), registros do espetáculo em vídeo, registro de
cenas por escrito.

9. A recriação dramatúrgica a partir dos dossiês: Retomada da redação de


cenas e dos jogos de encenação, experimentando os instrumentos
observados nos modelos.

10. Definição de quadros cênicos de cada subgrupo: Apresentação interna


de imagens, concepções de personagens, esquemas gerais para o
desenvolvimento de roteiros em processo colaborativo. Os alunos se
revezam nos papéis de atores, diretores e dramaturgos. Cada subgrupo
opta por utilizar um ou por misturar vários procedimentos “canibalizados”
dos encenadores profissionais selecionados previamente pelo professor
como referência da cena não dramática. Textos teatrais são produzidos
pelos dramaturgos, lidos, sofrem avaliação coletiva. Discussão sobre o
roteiro de adaptação dramatúrgica e de criação de cenas que configurem
diferentes abordagens do mesmo texto. Diretor e dramaturgo discutem a
definição final. O diretor, quando não há consenso, define as instruções que
conduzirão a tessituras das ações e do texto no espaço.

11. Concepção e debate de roteiro geral para a apresentação dos quadros.

12. Apresentações, novas avaliações e retomadas de jogo que geram


redefinições na escritura cênica, novas apresentações, avaliação final de
todas as procedimentos experimentados.

13. Escritura da dramaturgia individual e coletiva. Todos são convocados


como dramaturgos para redigir sua versão da cena. As proposições
individuais são lidas em cada subgrupo, que elabora coletivamente uma
versão resultante do consenso. As versões individuais, no caso do professor
em formação, são anexadas ao relatório da disciplina, protocolo no qual ele
relaciona leituras da teoria com o que foi feito na prática.

152
Os experimentos analisados resultaram na elaboração de um esboço de
projeto de hipertexto didático, que se compõe de banco de dados, em
formato digital, por nós denominado Material Hamlet. Este banco de dados
reúne o material selecionado ao longo desta pesquisa, em torno dos textos
e as encenações que tiveram como ponto de partida o Hamlet de
Shakespeare. Os dados selecionados nesta pesquisa bibliográfica e os
procedimentos sistematizados para uma abordagem didática dos textos e
imagens podem ser utilizados como ponto de partida ou de retomada de
jogos teatrais, tanto na formação do professor quanto na sala de aula
escolar, com grupos a partir da adolescência. Para cada modalidade de
encenação estudada relacionamos dados teóricos, poéticos e históricos,
com procedimentos didáticos resultantes da investigação. O hipertexto
pode servir como ponto de partida ou de apoio didático para os professores
interessados e permite o acesso a todas os documentos, inclusive trechos
de cenas de encenações de Hamlet de artistas do porte de Peter Brook e
José Celso.

Avaliamos que uma falha da pesquisa foi não termos aprofundado, durante
as oficinas com iniciantes e os professores em formação, as possibilidades
pedagógicas do uso da Internet como Banco de dados ilimitado sobre
teatro. O diário coletivo - blog - que criamos durante o experimento a partir
de Hamlet, por exemplo, não foi desenvolvido a contento, pois os
participantes da referida oficina não tiveram tempo nem condições de
acesso para incrementá-lo como havíamos pensado inicialmente.
Pretendíamos utilizar o blog como instrumento de democratização das
opiniões de todos sobre a evolução das propostas de roteiro, mas faltaram
tempo e acesso aos equipamentos. Um outro desenvolvimento possível da
investigação é tentar averiguar o uso da Internet como hipertexto didático
na formação do professor e na educação escolar.

Um prolongamento possível desta investigação seria utilizar as imagens dos


diversos DVD’s de espetáculos filmados pelo grupo como eixo do material
didático para disciplinas sobre a encenação contemporânea na formação do
professor. Consideramos o enfoque da abordagem antropofágica do grupo
Oficina como uma das contribuições mais interessantes do teatro brasileiro
para ser usada como modelo em sala de aula. Pretendemos brevemente
sistematizar nos procedimentos didáticos o uso de imagens e de
documentos relacionados com a montagem de clássicos da tradição
dramática (Bacantes, Hamlet), da modernidade brasileira (Boca de Ouro) e
universal (Galileu Galilei, Na selva das cidades, As criadas), assim como
exemplificar uma encenação de dramaturgia contemporânea (pós-moderna
de resistência).

O desenvolvimento de um material didático específico que auxilie o


professor em formação a analisar a coleção de espetáculos gravados em
DVD que está sendo publicada de forma inédita no país parece -nos um
desenvolvimento natural desta pesquisa. Outras poéticas cênicas brasileiras
nos parecem exemplares e poderiam gerar hipertextos didáticos, tais como,
as encenações de Antunes Filho de clássicos da modernidade brasileira (as
peças de Nelson Rodrigues; Vereda da Salvação, de Jorge Andrade), dentre
outros.

153
Comprovou-se que a proposta sistematizada que parte de jogos com texto,
— dando passagem à análise lúdica, experimentos de encenação e re-
escritura dos textos, — é eficaz como fase preparatória, anterior ao
delineamento dos objetivos, dos materiais textuais e das formas cênicas
que será examinada com maior profundidade no contexto da disciplina
“Encenação” na licenciatura, na fase seguinte, quando os grupos
desenvolvem os acontecimentos cênicos que serão levados ao público.

Consideramos que esta fase dedicada ao estudo do texto teatral, na


perspectiva de ampliar o leque de opções dos professores em formação em
relação às modalidades de dramaturgia e de encenação, é uma contribuição
aos estudos metodológicos da Pedagogia do Teatro. Experimentando a
criação de quadros cênicos (no sentido do quadro épico, de cenas
independentes) realizados com diferentes textos e procedimentos, os
alunos ampliam suas possibilidades como autores do discurso cênico,
relativizam a “moldura dramática”, podendo optar depois e não criar
automaticamente cenas dramáticas com “espontaneidade”, numa aparente
liberdade criativa. O confronto com diferentes tipos de textos teatrais
provou ser eficaz para desenvolver a capacidade do educando de
ultrapassar, na sua criação cênica, o modelo dramático veiculado pela
televisão e pelo cinema hegemônico. A comparação entre os diferentes
tratamentos dramatúrgicos dados a uma mesma fábula estimulou a
descoberta dos alunos de novas perspectivas para o seu jogo teatral, e o
aumento do seu vocabulário teatral.

Comprovamos também que a abordagem de diferentes bancos de dados


reais e virtuais é facilitada pela composição de um fichário didático do
professor: uma forma de hipertexto, onde cada ficha de procedimento se
articula com fichas teóricas e obras teatrais. Este instrumento facilita o
planejamento, no qual alunos e professores pesquisam os materiais que
podem ser utilizados em sala de aula, tendo em vista o experimento que
todos pensaram. Nesta proposta, ao planejar cada aula, o professor pode
ter como princípio a contextualização dos experimentos criativos do grupo,
através do debate a partir da leitura de diferentes textos teóricos,
fotografias, vídeos e espetáculos.

Tendo em vista o objetivo de desenvolver a autonomia do educando como


espectador e criador do teatro, numa perspectiva baseada em Paulo Freire,
esta pesquisa confirmou a necessidade do planejamento coletivo das aulas.
Desde o início os alunos têm a noção clara de que, antes de cada subgrupo
definir o tema, as referências dramatúrgicas e de encenação, haverá uma
fase de exploração de um amplo leque de opções, dos textos e das
múltiplas formas de adaptá-los e encená-los. Podemos apresentar e discutir
com os alunos, na conclusão do experimento, o resumo das fases desta
abordagem metodológica, como um roteiro que dá uma idéia geral da
totalidade do experimento. Para que o educando se aproprie da
metodologia adotada, o professor estimula a análise do percurso realizado.
Ao longo do experimento, os participantes podem perceber cada encontro
como parte integrante de um processo maior, quer seja ele composto de
algumas aulas, semanas, ou semestre ou mesmo o ano letivo (ou a
duração da oficina de teatro).

154
O procedimento de divisão dos subgrupos em quatro funções criativas
distintas é uma contribuição aos estudos metodológicos nesta área, pois
amplia as perspectivas do jogo teatral, anteriormente com os papéis de
ator e espectador.

A investigação proporcionou a sistematização de alguns pré-requisitos para


o professor ter condições de realizar esta mediação entre os saberes
teóricos e práticos a respeito da dramaturgia contemporânea.

Os resultados apontam princípios que constituem eixos para formação do


professor. Eles são fruto de anos na tentativa de resolver o problema da
inserção da teoria e da dramaturgia no ensino de encenação. A análise dos
processos de criação e ensino e das oficinas realizadas comprovou a
eficácia desta proposta, tendo em vista aproximar o estudo teórico da
prática.

Nosso experimento com a oficina básica de encenação em Interlagos


permite-nos considerar a proposta em foco defensável para o trabalho com
alunos a partir dos 16 anos. Porém obtivemos relatos de professores do Rio
de Janeiro que estão utilizando de forma positiva os princípios desta
proposta com alunos a partir de 11 e 12 anos. Outro desenvolvimento
possível desta pesquisa seria a aplicação sistemática dos princípios aqui
apresentados no contexto escolar.

Temos uma preocupação específica que é o ensino médio, mas a proposta


que organizamos é um conjunto de princípios de trabalho para se repensar
a estrutura curricular da Licenciatura, revalorizando a presença da
encenação e da dramaturgia e, em especial, as modalidades que não
pertencem ao modelo dramático, tendo em vista que o indivíduo formado
nesta ótica possa ter condição de utilizar esses princípios e procedimentos
de acordo com os desafios de sua tarefa com a faixa etária e as
necessidades de cada grupo.

Os experimentos realizados permitem responder sobre qual momento é


interessante para o grupo ter acesso à informação: antes ou depois de
realizar seu próprio jogo? Esta questão é resolvida nesta proposta através
de um movimento pendular entre a criação teatral do aluno e o confronto
com os materiais artísticos e teóricos. Inicialmente é preciso desvelar as
soluções cênicas do próprio grupo, através do jogo e da criação de
imagens, concepção e redação de roteiros e cenas e, em seguida, o
professor apresenta os textos teatrais que serão o ponto de partida de
jogos de apropriação e recriação destes textos, gerando imagens, jogos
teatrais, adaptações dramatúrgicas e cenas. O novo confronto do grupo
com o material externo é o momento da análise de registros de encenações
modelares, o que vai gerar novo momento de criação de jogos. A avaliação
desta exploração de jogos a partir de textos e de dossiês de encenação
promove um novo momento de criação do grupo que é a redação de
roteiros cênicos e/ou textos nos quais os alunos sintetizam as informações
recebidas e criam sua própria proposta de encenação imaginaria do texto
escolhido, com a frase: ”Esta é a forma como eu encenaria hoje, este
texto”.

155
Nosso propósito inicial era a proposição de uma tipologia modelar para
estruturação dos dossiês de encenação. Intentamos então, utilizar as
principais classificações da análise de espetáculos contemporâneos através
de autores como Roubine, Pavis, Lehmann e Abirached, mas, nenhuma
delas foi satisfatória, uma vez que apresentam tipologias de caráter
distinto. Nem mesmo a coincidência da divisão em 3 principais modalidades
estabelecidas por Lehmann e Abirached e recomendada por Pavis
constituem um modelo eficaz do ponto de vista de uso prático em sala de
aula. Portanto, abandonamos a idéia de propor uma tipologia modelar para
divisão das encenações. Sendo assim, sugerimos que o critério norteador
seja a resposta à seguinte questão: Quais são as encenações modelares do
texto teatral selecionado como eixo do experimento que servem de
exemplo para a aprendizagem dos instrumentos cênico-narrativos
rapsódicos e pós-dramáticos?

Os capítulos 3 e 4 lidam com o mesmo problema: a ampliação do repertório


teatral do aluno. No decorrer da pesquisa as dificuldades encontradas
trouxeram à tona a importância da variedade e da qualidade da
documentação sobre fenômeno teatral e a valorização dos diferentes
suportes do trabalho.

A pesquisa revelou que quando as encenações modelares são o ponto de


partida escolhido, é interessante seguir esta seqüência: no primeiro
momento o grupo experimenta o procedimento extraído da encenação
modelar, sem ter conhecimento da solução utilizada pelo diretor. Num
segundo momento, as soluções encontradas pelo diretor são objeto de
análise e de avaliação que fundamentam o exercício de recriação e
adaptação por parte dos alunos. Essa apropriação das soluções decorrentes
da poética cênica analisada exige que o aluno assuma uma posição, um
ponto de vista. Enfim, que ele saiba dizer quais são os instrumentos
cênicos que lhe interessam, ou seja, que ele possa justificar sua escolha
quanto às opções de encenação do texto. Quando testamos a seqüência
contrária percebemos que existe o risco de se perder o frescor dos jogos
teatrais e as soluções cênicas espontâneas dos alunos, caso as informações
sejam assimiladas pelo aluno antes do tempo.

É importante levar o aluno a cotejar a fonte literária e o texto resultante da


experimentação cênica; cotejamento é interessante desde que ele se dê
antes do confronto com as imagens da encenação em foco. No caso do
texto como “Os Sertões - o homem”, o professor pode acessar no site do
grupo e imprimir trechos que sirvam de ponto de partida de jogos. No
cotejamento entre trechos da adaptação realizada pelo grupo e os
respectivos recortes no texto literário de Euclides da Cunha, percebemos as
diferenças entre o texto literário que lhe deu origem e a solução cênica
encontrada pelos artistas. É estimulante analisar como as rubricas de
movimentação de atores estão misturadas ao corpo do texto e, a poética
de Euclides se mescla aos novos versos citados (de canções indígenas,
paródias de sambas e marchinhas) ou inventados (como no rap “tarja
negra”) por Zé Celso e o grupo, permitindo que os alunos vislumbrem uma
modalidade pós-dramática de dramaturgia.

156
Um outro desdobramento possível desta investigação é a ampliação,
quando possível, das funções a serem exercidas pelos alunos incorporando
os papéis de sonoplasta e o de cenógrafo. O cenógrafo em nosso jogo de
encenação poderia ser o responsável por propor os elementos que
compõem a visualidade (cenário, figurino, objetos, iluminação) e as
relações espaciais entre cena e público. Correspondente, em Cinema, ao
“Diretor de Arte”. O cenógrafo pesquisa imagens que possam servir de
referência para a criação de objetos, adereços e figurinos, cenários, o
desenho da luz. Propõe diferentes utilizações do espaço, das relações cena-
público, assim como, ponto de partida e retomada de jogos: objetos,
ambiências (produz concepções e as registra em desenhos esquemáticos –
não precisa saber desenhar). O aluno que jogar o papel de sonoplasta
ouve as sugestões de todos e concebe a narrativa sonora da cena. Propõe
músicas, ruídos, silêncios, estruturas rítmicas, como ponto de partida ou
retomada das cenas, além das seguintes tarefas:

-Percepção, registro gráfico e proposição da estrutura rítmica das cenas.

-Seleção de músicas e sons para composição de trilha complementar.

-Seleção, adaptação, paródia, composição de músicas para estranhamento


da cena.

-Proposição de songs brechtianos, números musicais.

-Proposição de música como choque pós-dramático: a narrativa sonora


como contraponto não-lógico.

Na medida em que em nossos experimentos trabalhamos com os três


papéis que consideramos básicos - atores, dramaturgo e diretor - os papéis
do sonoplasta e do cenógrafo foram exercidos pelo diretor, que decidia,
após ouvir e debater com o dramaturgo, o encaminhamento do jogo com
os atores. Vale salientar que muitos alunos que, inicialmente, eram
“ouvintes” vinham às oficinas acompanhar os respectivos namorados ou
parentes, terminaram por participar, assumindo outras funções criativas e
técnicas.

A presente tese apresentou argumentos contrários à visão de que o


professor de teatro não precisa necessariamente desenvolver sua
capacidade de encenar e de compreender as opções dramatúrgicas
disponíveis na contemporaneidade. Este trabalho defende que o professor
em formação só será capaz de responder aos desafios da mediação da cena
não-dramática e da ampliação do repertório teatral dos educandos - numa
perspectiva aberta à diversidade da cena contemporânea e não limitada ao
repertório do grupo ou a um tipo de encenação que o professor induz, ao
não contextualizar na tradição da prática cênica os seus procedimentos.

Para compreender a dimensão desta proposta foram significativas as


avaliações realizadas pelos professores que venceram o desafio de
coordenar encenações que se utilizaram de recortes de textos de
reconhecida qualidade literária durante a sua formação. Durante a
investigação, pudemos reencontrar alguns ex-alunos, em sua maioria

157
formados há mais de dois anos, no curso de especialização em ensino de
teatro que ministramos em conjunto com o professor e encenador Antônio
Araújo na UFRN em 2004. Após a experiência de ensinar teatro na escola,
os ex-alunos declararam que o fato de terem jogado os papéis de diretor e
de dramaturgo, de se confrontarem com o desafio de criar sínteses teatrais
após o trabalho com textos modelares e de terem de estudar e debater
textos sobre teatro, estimulou talentos até então não desenvolvidos.
Podemos resumir essas habilidades da seguinte forma: a) competência
para encontrar um grupo de iniciantes fora do contexto universitário e de
propor uma oficina; b) habilidade para reunir e manter um grupo de
pessoas em torno de um projeto de encenação; c) condições de assumir
um posicionamento artístico em relação a um determinado público – e não
simplesmente fazer teatro como uma expressão pessoal e “espontânea”,
desconectada de uma tentativa de comunicação com uma platéia
especifica; d) habilidade para elaborar criticamente o seu discurso teatral,
comprometido com o fazer teatral que questione a natureza das relações
humanas; e) capacidade de situar sua prática cênica na tradição da história
da encenação e da dramaturgia; f) conhecimento dos recursos rapsódicos
de encenação de um texto, ampliando o leque de opções de procedimentos
da escritura cênica.

Nessa avaliação os professores destacaram ainda que sentiram muita


dificuldade no primeiro dos três semestres desta disciplina, devido à falta
de preparação para a condução da encenação nas disciplinas anteriores, na
medida em que só tinham praticado teatro através do jogo no papel de
ator. Por outro lado, eles não estavam acostumados com a prática da
leitura de textos sobre teatro, em função do debate em sala de aula, de
idéias contraditórias sobre o mesmo tema e da confecção de um estudo
monográfico sobre um determinado encenador. Como ponto negativo foi
ressaltado naquele momento, que ainda havia uma forte dicotomia entre a
leitura e o debate destes textos e a elaboração da cena através de jogos.
Neste sentido, a realização da presente pesquisa é um avanço, pois o
problema de como integrar a apropriação desses conteúdos com a prática
cênica encontrou, nas modalidades de uso desses recortes de textos sobre
teatro em moldes lúdicos como indutores de jogos e debates apresentadas
neste trabalho, uma forma possível de solução.

No que diz respeito ao desenvolvimento de práticas no contexto escolar,


esses professores apontaram que, na maioria das vezes, não é possível
realizar experimentos nos moldes vivenciados na formação, tendo em vista
a falta de espaço físico e a restrita carga horária, problemas históricos das
disciplinas artísticas. Se não é possível, no âmbito da disciplina Teatro,
instaurar processos de encenação “ideais”- aulas semanais de no mínimo
três horas de duração em salas-ambiente, etc.- os professores apontaram
que a experiência de ter que encenar e se confrontar com fragmentos de
textos teatrais que tiveram em experimentos como aquele que fizemos com
Esperando Godot de Beckett, deram condições para que eles pudessem
adaptar os princípios da proposta do aluno como diretor e dramaturgo à
criação de quadros cênicos com duração de tempo bastante limitada, como
por exemplo na instrução revelada em um dos relatórios, utilizada com
uma turma da 6ª série do ensino fundamental: “Cada subgrupo tem como
meta desenvolver cinco imagens cênicas fixas, que constituam um quadro

158
cênico a ser desenvolvido na aula seguinte.” Neste exemplo, os subgrupos
desenvolveram cenas ao longo de um ou dois semestres, em torno do
mesmo texto teatral, cujo resultado é apresentado não como um
espetáculo ou produto acabado, mas como uma mostra dos resultados de
uma investigação coletiva sobre o teatro. Muitos desses professores têm
aplicado a noção de retomada de jogo que salientamos no capítulo 2, como
eixo de desenvolvimento gradual de cenas que são redimensionadas a
partir de novos indutores propostos pelo professor e pelos alunos nos
papéis de diretor e dramaturgo.

A experimentação de diversas possibilidades de conexões entre a prática de


criação cênica dos alunos a partir da análise dramatúrgica com a leitura de
textos sobre teatro comprovou ser uma das formas que o professor de
teatro pode se valer para superar a dicotomia entre prática e teoria na sua
formação. Antes desta investigação, com o objetivo de estimular a
aprendizagem da reflexão dos principais encenadores, propúnhamos que os
professores em formação realizassem um estudo monográfico sobre as
idéias centrais e a prática de um determinado diretor - Meyerhold, Brecht,
Brook, Kantor,Antunes Filho, José Celso, Antônio Araújo, Pina Bausch - que
deveria resultar em uma reflexão a ser redigida como parte de sue relatório
final das três disciplinas voltadas para a área de “Encenação 1”. Sendo
assim, ao final das três disciplinas voltadas para encenação do referido
curso, cada aluno deveria coordenar um experimento que resultasse em
acontecimentos cênicos abertos ao público externo da Universidade.

A proposição de uma prática sistemática de coordenação de experimentos


pelos alunos da Licenciatura se contrapõe à noção de que esses educandos
devem, nas disciplinas de encenação, participar de montagens na função de
ator, montagens que, em geral são dirigidas pelo professor das referidas
disciplinas. Da mesma forma, até o presente momento, a proposta em tela
se opõe à reduzida carga horária voltada para o estudo de fundamentos da
encenação e da dramaturgia pelo futuro professor. Vale a pena reiterar
aqui que atualmente, mesmo nas licenciaturas pertencentes a
universidades que se destacam na área da pós-graduação em pedagogia do
teatro, como aquela da Universidade de São Paulo, somente uma única
disciplina nesta área é obrigatória na estrutura curricular. Este é um
exemplo de como ainda é difícil, no âmbito da universidade brasileira, criar
condições que permitam o desenvolvimento deste tipo de aprendizado.

Além de sedimentar a proposta da vivência dos papéis de diretor que


experimentamos no laboratório da UFRN desde 2000, consideramos uma
contribuição significativa à síntese apresentada dos princípios de análise
dramatúrgica para a formação e na escola.

A investigação traz avanços no que diz respeito à reflexão sobre a


possibilidade do professor propor materiais – textos, imagens, fotografias -
que registram e analisam a encenação contemporânea como indutores para
a “canibalização” de reflexões e soluções cênicas dos principais
encenadores, nos moldes antropofágicos descritos no capitulo 1.

Os resultados proporcionaram também o redimensionamento de nossa


visão acerca das fases do processo de ensino-aprendizagem dos

159
fundamentos da linguagem da encenação no âmbito do novo curso de
Licenciatura em Teatro, que substituiu o curso de Licenciatura em Educação
Artística, Habilitação em Artes Cênicas na UFRN e que terá inicio em 2007.

Salientamos que a visão para o redimensionamento do papel da


dramaturgia na formação do professor proporcionada pela pesquisa foi
considerada, em parte, na constituição da estrutura curricular dessa nova
licenciatura.

Neste sentido, o projeto do referido curso incorporou a concepção


defendida nesta tese de que a prática cênica durante a formação do
professor pode ocorrer de forma mais equilibrada entre atuação, encenação
e dramaturgia. A valorização de disciplinas voltadas, não apenas para a
área da encenação, como também para a área da dramaturgia, sem perder
a dimensão da vivência do futuro professor no jogo como ator, é, deste
ponto de vista um avanço em termos de concepção do currículo nessa área
da Universidade. Um resultado concreto dessa discussão se deu no
momento da definição de abertura de vagas para os concursos realizados
no decorrer do presente ano, quando o grupo de professores formadores da
UFRN decidiu pela contratação de novos professores, equilibrando o
número de vagas nas áreas de interpretação e dramaturgia, fato inédito
naquela instituição. Sendo assim, se no curso anterior, por exemplo, o
aluno só se envolvia com experimentos de encenação levados a público nos
últimos semestres e a única preparação referente à área de dramaturgia se
restringia a uma disciplina isolada, com a entrada de um professor
especialista em dramaturgia, está prevista a criação de novas disciplinas
nesta área.

Após essa análise, defendemos uma nova seqüência para a evolução das
práticas em encenação durante a licenciatura. É recomendável que o aluno
possa experimentar práticas de jogos com textos teatrais, com fragmentos
de textos, conforme apontamos no capítulo dois. Uma abordagem lúdica
dos textos teatrais e literários, com ênfase na proposição metodológica de
Koudela, Pupo e Boal, pode servir de eixo para a introdução dessas
práticas. O segundo momento se daria a partir da escolha de um único
texto pelo grupo, que seria objeto de análise e fragmentação, tendo em
vista a elaboração de diferentes quadros cênicos. Nesta fase os alunos
passam a jogar papéis específicos. No terceiro momento, após a
experimentação do leque de opções de encenação, cada subgrupo definiria
quais princípios e procedimentos seriam adotados, constituindo então um
projeto de encenação que seria desenvolvido até o encontro com um
público específico. Na quarta fase, os alunos devem escolher um grupo fora
da universidade, formular e realizar um projeto de oficina de teatro que
deve resultar em um acontecimento cênico que será apresentado também
ao público de alunos e professores do curso. Em todas as três fases, os
experimentos são analisados em relatórios nos quais os alunos devem tecer
relações entre a teoria e a prática.

Sendo assim, os estudos e experimentos serviram para organização de


princípios metodológicos para a aprendizagem dos procedimentos de
criação da cena teatral. Na busca de responder a pergunta inicial,
apresentamos nesta proposta uma opção ao professor: enfocar a

160
aprendizagem da encenação e da dramaturgia através de experimentos
que articulem a análise dramatúrgica com os bancos de dados e a vivência
dos papéis de ator, dramaturgo e diretor em encenações a partir de
fragmentos de textos teatrais.

Consideramos que esta pesquisa cumpriu seus objetivos, sistematizando


alguns princípios metodológicos para a aprendizagem da linguagem cênica
por iniciantes, a partir de obras teatrais utilizadas como ponto de partida
para experimentos de análise, encenação e escritura de textos.

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