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EXPRESSÕES E Experiências

Cidadania construída ao redor


Projeto estimula crianças e adolescentes a conhecerem
fragilidades e potencialidades do bairro onde vivem
Saiba mais
Projeto Cultura e história
do meu bairro Adriano De Lavor lugares e compartilha conhecimentos”, conta ela,

C
informando que as impressões colhidas pela pes-
www.institutoagronelli.org.
onhecer, compreender e valorizar o espaço quisa são relatadas pelos estudantes em diversos
br/projeto.
em que se vive é condição essencial para formatos (desenhos, pinturas, poemas, paródias)
o exercício pleno da cidadania. É a partir escolhidos por seus autores. “Quem comanda o
desse princípio que se estrutura o projeto processo são os alunos”, diz.
Cultura e história do meu bairro, parceria entre Os relatos são diagramados e organizados
o Instituto Agronelli de Desenvolvimento Social em livros, editados com o título Meu bairro tem
(Iades) e o Arquivo Público de Uberaba (APU), em história, eu tenho futuro (já foram lançados seis
Minas Gerais, que promove o despertar de crian- volumes, desde o início do projeto, em 2008). Cada
ças e adolescentes de escolas públicas para o seu publicação reúne histórias de sete ou oito bairros
entorno, a partir do conhecimento da história do de Uberaba. Para seu lançamento, são organizadas
bairro em que vivem e das relações que estabelecem noites de autógrafos nas comunidades, quando os
entre essas memórias e suas vidas. livros são distribuídos gratuitamente e seus alunos-
O projeto se inicia com a visita de professores -escritores organizam apresentações culturais.
ao Arquivo Público, onde são resgatados docu- Até hoje, o projeto já alcançou cerca de 1,2 mil
mentos referentes à história do bairro e avaliadas crianças e adolescentes do ensino fundamental e
suas potencialidades e fragilidades; passo seguinte médio e 50 professores (que recebem formação de
é a elaboração de um roteiro de pesquisa, em con- multiplicadores); 40 bairros tiveram suas histórias
junto com os alunos, com questões que servirão resgatadas. São elegíveis para o projeto escolas
de guia para a entrevista de um antigo morador públicas e instituições comunitárias, mas também
do local. Com as informações fornecidas pelo escolas particulares, sob a condição de contra-
entrevistado, fotos e documentos em mãos, pro- partida em relação ao transporte dos alunos e os
fessores e estudantes partem para uma pesquisa custos dos livros.
de campo, na qual comparam a realidade atual Lilia avalia que o projeto promove o exercício da
com o passado registrado. cidadania, ao sensibilizar crianças e os adolescentes
Nesse processo, eles se deparam com a histó- para as carências e potencialidades do espaço onde
ria dos monumentos, a evolução das ruas, avenidas vivem e capacitá-las como participantes da vida em
e prédios, a vida de personagens e as mudanças na comum e também responsáveis pelo destino do
gestão da cidade, e têm oportunidade de relacionar ambiente em que vivem. “O projeto aumenta nas
Estudantes fazem pesquisa
de campo no bairro e
esses elementos com sua autobiografia, explica a crianças e nos adolescentes a percepção do que é
conferem o trabalho pronto tecnóloga em Desenvolvimento Social Lilia Coelho, preciso melhorar e ajuda a formá-los como sujeitos
na noite de autógrafos: coordenadora do projeto. “A gente passa pelos de transformação do espaço”, avalia Lilia.
protagonismo e cidadania fotos: divulgação/iades

[ 2 ] Radis 148 • jan / 2015


Nº 148
editorial jan. 2015

A face da resistência Expressões e Experiências


• Cidadania construída ao redor 2

Q uem percorre a Estrada Real, no trecho


entre as cidades mineiras de Ouro Preto
e Diamantina, se emociona com a beleza de
Ambiente (Sibsa), realizado em outubro de
2014, em Belo Horizonte, integrantes de
movimentos que lutam contra os impactos
Editorial
• A face da resistência 3
trilhas de barro ou fina areia branca no alto ambientais e sociais de grandes projetos se uni-
de montanhas com vegetação de cerrado e ram a pesquisadores da Associação Brasileira Cartum 3
tingidas por um pôr do sol absoluto. Atrás da de Saúde Coletiva (Abrasco). Os grupos mais
cortina de eucaliptos reflorestados à margem atingidos, segundo o presidente do Sibsa e Voz do leitor 4
da estrada, porém, há quilômetros de impres- diretor da Ensp/Fiocruz, Hermano Castro, são
sionante devastação. Máquinas gigantescas também os mais vulneráveis, como indígenas, Súmula 5
roem as montanhas, deixando em seu lugar afrodescendentes, comunidades tradicionais,
Radis Adverte 8
grandes poças, um solo irreconhecível. Sob camponeses, trabalhadores de baixa renda,
uma nuvem ferruginosa que cobre o céu e moradores de zonas de sacrifício no campo,
Toques da Redação 9
o que resta de mata, a noite cai mais cedo. nas florestas, nas águas e nas cidades.
Mas uma muralha de holofotes em torres de Para Jean Pierre Leroy, da Rede Brasileira Capa / 2º Simpósiio Brasileiro de Saúde
transmissão mantém por 24 horas a extração de Justiça Ambiental (RBJA), as maiores amea- e Ambiente
de minério numa área que atravessa dezenas ças são a agricultura industrial, os latifúndios
• A s caras da injustiça ambiental 10
de municípios. No caminho da destruição, o monocultores e os grandes empreendimen-
• Ameaça à Serra do Gandarela 14
ambiente natural, as cidades, as pessoas. tos, que avançam pelo país, gerando desterri-
Em Conceição do Mato Dentro (MG), torialização física e simbólica. “Quando povos • A dor da resistência em Conceição do Mato
Dentro 15
município que abriga a cachoeira do Tabuleiro, são expulsos de seus territórios, eles perdem
uma das mais belas do país, a construção de mais do que a posse da terra, perdem o que • Nuvem cinza em Açailândia 16
um mineroduto de 529 quilômetros até São têm de mais profundo: suas raízes”. • Carta Política 17
João da Barra (RJ) transformou a cidade numa Em carta aberta, a Abrasco adverte
fronteira coberta de partículas de minério, que “estas desigualdades e injustiças am- 1º Seminário de tecnologias sociais
com ruas entupidas por veículos das minera- bientais compõem a determinação social do • A s vozes das comunidades tradicionais 18
doras e alojamentos com milhares de traba- processo saúde-doença, que se manifesta
lhadores. Há registros de trabalho escravo e o em perda da soberania e segurança alimen- Democratização da comunicação
mais alto índice de mães solteiras do estado. tar e hídrica, contaminação da água, do ar • Relação de interesses 22
Patrícia Generoso entrou no movimento e do solo, além de produzir doenças como • Coronelismo em documentos 24
de resistência dos moradores e sentiu-se câncer, malformações congênitas, intoxica-
massacrada. “Chegou à cidade uma palavra ções, agravos pulmonares e neurológicos, Sanitaristas brasileiros
que nunca se falava: inevitável”. O caso de tristeza, depressão, suicídio e assassinatos”. • Eleutério Rodriguez Neto – Um militante
Conceição do Mato Dentro é um exemplo de Espaço de interlocução entre a saúde da Reforma Sanitária 27
injustiça ambiental entre inúmeros gerados coletiva e a sociedade, desde 1982, o Programa
pelo novo ciclo de extrativismo mineral e por Radis catalisa crítica e resistência ao modelo Saúde da mulher e da criança
outros processos predatórios Brasil afora. hegemônico de desenvolvimento e participa • O lugar das enfermeiras e obstetrizes 30
Nossa matéria de capa ouve a voz de algumas do enfrentamento às injustiças ambientais.
Serviço 34
das comunidades que resolveram resistir.
Gente simples e corajosa como Patrícia. Rogério Lannes Rocha Pós-Tudo
No 2º Simpósio Brasileiro de Saúde e Editor-chefe e coordenador do Programa Radis
• Sinédoque da saúde do homem 35

cartum

Foto da capa Manifestação em Piquiá de


Baixo, Açailândia, Maranhão/ Justiça nos
Trilhos
Arte Carolina Niemeyer

RADIS . Jornalismo premiado


pela Opas e pela A s foc-SN

Radis 148 • jan / 2015 [ 3 ]


VOZ DO LEITOR

outros lugares do Rio e do Brasil, já que estarem mais entre nós.


Judicialização o meio ambiente e as pessoas correm • Evaldo Jorge Mendes, Vitória, ES 

B om dia pessoal da Radis, sempre que


posso acompanho a revista para me
manter informada sobre saúde pública. Não
graves riscos com o descarte inadequado
de medicamentos?
• Maria José Resende, São João de Meriti, RJ
Segurança do paciente
sei se já trataram do tema, mas gostaria de
sugerir que fizessem uma matéria sobre a
judicialização no SUS, e o que os estados
Violência
Q uero parabenizar a Radis pelo brilhante
trabalho e dedicação. É informativa,
qualitativa e dinâmica, supera qualquer
e municípios estão fazendo para lidar com
seus efeitos. Aqui no Rio Grande do Norte,
a Defensoria Pública do Estado implantou
P razados da Radis! Antes de tudo, agra-
deço profundamente pelo número 144
da revista. A entrevista da [Maria Cecília]
exemplar online. Gostaria de agradecer
por recebê-la mensalmente, o que tem me
ajudado bastante em minhas pesquisas e es-
o projeto SUS Mediado para resolução das Minayo é maravilhosa. Essa pessoa estu- tudos, e, se possível, sugerir um tema como
demandas ligadas à área da Saúde. Através diosa de violência nós deixa com muita segurança do paciente, para melhor alerta a
da parceria com as secretarias de Saúde do esperança de que é possível alargar o bem todos os profissionais de saúde. Obrigada.
estado e dos municípios os técnicos fazem com nossas pequenas ações no dia a dia! • Antonia Ildener Carmo, Duque de Caxias, RJ
uma triagem dos casos para encontrar • Rosiane Melo, enfermeira, São Paulo, SP
uma solução imediata para as demandas Cara Antonia, sua sugestão foi anota-
dos usuários reclamantes. Questões de
competência da União são encaminhadas
imediatamente para a Defensoria Pública
M uito boa a reportagem [Radis 144], no
momento em que as pessoas estão
saturadas querendo fazer justiça com as
da. Um abraço!

da União, que assume o processo e dá próprias mãos. Quem sabe assim nossos
‘Radis’ também agradece
andamento à sua resolução. O índice de
resolutividade extrajudicial vem sendo de
cerca de 43%. Já está implantado em Natal,
políticos se atentem para isso e façam
alguma coisa para nos ajudar. Socorro!
• Heraclito Alves Lima, Camacan, BA
G ostaria de parabenizar a todos pelas exce-
lentes matérias, principalmente da edição
nº 145, sobre regionalização e sobre a refor-
Caicó, Mossoró e Parnamirim. ma sanitária. Parabéns a à revista Radis, um
• Eufrásia Ribeiro, jornalista, servidora excelente e efetivo meio de comunicação.
pública da Secretaria de Estado de Saúde,
Aleitamento materno • Carine Ferrari, Ijui, RS
Natal, RN

Cara Eufrásia, sua sugestão é muito


O lá, equipe da Radis, fico muito satisfei-
ta em receber todo mês suas edições.
Queria sugerir o assunto aleitamento O lá, como servidor público da Saúde e
cidadão brasileiro, fico feliz em saber
pertinente e foi anotada. Sugerimos materno e os benefícios para mãe e bebê, que notáveis formadores de opinião na área
uma busca no site do Radis de forma doação de leite materno e UTI neonatal. engrossam o grito pela implementação do
que localize o que já abordamos sobre Obrigada pela atenção e muito sucesso. SUS Brasil (Radis 145), como caminho para
o tema. Um abraço! • Josiane e Maria Fernanda Matias,Toledo, PR melhoria nos serviços de saúde. Pena que
essas vozes ainda não encontraram resso-
Cara Josiane, o tema da saúde mater- nância na grande mídia, nem tampouco
Descarte de medicamentos no-infantil vem sendo tratado em algumas seus desdobramentos estão presentes

S ou jornalista, escritora e assinante da


nossa Radis. Por trabalhar numa ONG,
recebo sempre doação de medicamentos
edições da Radis. Deveremos sempre voltar
ao tema. Sugerimos, por ora, as edições
97, 101 e 143. Um abraço!
na pauta dos nossos legisladores. Espero
que num futuro não remoto essa uto-
pia possível se transforme em realidade.
usados, para doações a terceiros, mas, • João José Ferreira, Regeneração, PI
por vários motivos, preciso descartar
parte do que não consigo repassar. Em David e Gilson

P
São João de Meriti, as drogarias NÃO arabenizo a excelente revista pela du- NORMAS PARA CORRESPONDÊNCIA
recebem medicamentos para descarte, pla, oportuna e justa homenagem aos A Radis solicita que a correspondência
como seria de se esperar. Os farmacêuti- dois médicos gigantes da saúde pública no dos leitores para publicação (carta,
cos de plantão não souberam explicar por país: os mestres David Capistrano Filho e e-mail ou facebook) contenha nome,
quê. Ouvi dizer que em Duque de Caxias Gilson Carvalho (Radis nº 143, agosto de endereço e telefone. Por questão de
a Rede Raia de farmácias cuida bem do 2014). Homens desse calibre não podem espaço, o texto pode ser resumido.
descarte. Como mudar a situação em mesmo ser esquecidos. Uma pena não

EXPEDIENTE
www.ensp.fiocruz.br/radis
® é uma publicação impressa e online da
Fundação Oswaldo Cruz, editada pelo Programa Documentação Jorge Ricardo Pereira e Sandra
Benigno /RadisComunicacaoeSaude
Radis de Comunicação e Saúde, da Escola
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp). Administração Fábio Lucas e Natalia Calzavara
Uso da informação • O conteúdo da
Presidente da Fiocruz Paulo Gadelha revista Radis pode ser livremente reproduzido,
Diretor da Ensp Hermano Castro Estágio Supervisionado Diego Azeredo (Arte) acompanhado dos créditos, em consonância com
a política de acesso livre à informação da Ensp/
Editor-chefe e coordenador do Radis Assinatura grátis (sujeita a ampliação de Fiocruz. Solicitamos aos veículos que reproduzirem
Rogério Lannes Rocha cadastro) Periodicidade mensal | Tiragem 82.200 ou citarem nossas publicações que enviem
exemplares | Impressão Ediouro exemplar, referências ou URL.
Subcoordenadora Justa Helena Franco
Ouvidoria Fiocruz • Telefax (21) 3885-1762
Edição Eliane Bardanachvili Fale conosco (para assinatura, sugestões e • www.fiocruz.br/ouvidoria
Reportagem Adriano De Lavor (subedição), críticas) • Tel. (21) 3882-9118 | Fax (21) 3882-9119
Bruno Dominguez (subedição interina), Elisa • E-mail radis@ensp.fiocruz.br
Batalha, Liseane Morosini e Ana Cláudia Peres • Av. Brasil, 4.036, sala 510 — Manguinhos,
Arte Carolina Niemeyer (subedição) e Felipe Rio de Janeiro / RJ • CEP 21040-361
Plauska

[ 4 ] Radis 148 • jan / 2015


SÚMULA

HIV continua avançando entre homens jovens


A epidemia de HIV/aids vem atingindo
com mais intensidade homens jovens
que fazem sexo com homens, indicaram os
preocupação, mas a gravidade da epide-
mia nos jovens gays não teve suficiente
destaque”, afirmou. A pesquisadora, que
Para Valdiléa, os dados referentes à
capital fluminense merecem destaque, já
que há uma discrepância entre as taxas
dados do Boletim Epidemiológico em HIV/ também é consultora do Ministério da de mortalidade dentro da própria Região
Aids de 2014, divulgado pelo Ministério Saúde e integra o Comitê Assessor para Sudeste. “O fato requer mais estudos,
da Saúde em dezembro. De acordo com o a Terapia Antirretroviral em Adultos, vê a mas pode estar relacionado ao tipo de
documento, entre a população masculina expansão da testagem, inclusive fora dos doença associada em cada estado, como
observa-se aumento estatisticamente sig- serviços de saúde, como estratégia impor- por exemplo, a tuberculose, que ocorre
nificativo da taxa de detecção do HIV nas tante para identificar a infecção. “Existem em índices altos no Rio”, afirmou.
faixas etárias entre 15 e 19 anos, 20 e 24 projetos aprovados que envolvem unidades Matéria publicada no Portal Fiocruz
anos e 60 anos ou mais nos últimos dez móveis, em trailers, com participação de (1/12) alerta que o Brasil, apesar de acla-
anos; entre os jovens de 15 a 24 anos, o ongs”, mencionou. mado internacionalmente por seu progra-
aumento foi de 120%, e entre os de 20 a Os dados do boletim também apon- ma de prevenção e tratamento considera-
24, de 75,9%, no período de 2004 a 2013. tam que a mortalidade por aids caiu 13% do progressista e inclusivo, vive momento
A pedido da Radis, a pesquisadora nos últimos dez anos, passando de 6,1 delicado no que se refere à prevenção de
Valdiléa Veloso, integrante do Laboratório caso de mortes por 100 mil habitantes em novos casos. O aumento de incidência de
de Pesquisa Clínica em DST e Aids do 2004, para 5,7 casos em 2013. Do total de casos no Norte e Nordeste é considerado
Instituto Nacional de Infectologia Evandro óbitos por aids ocorridos no país até o ano alarmante. O Norte apresentou aumento
Chagas (INI/Fiocruz) avaliou que os dados passado, 198.534 (71,3%) ocorreram entre de 92,7%; e o Nordeste, de 62,6%, entre
do boletim mostram que “o Brasil continua homens e 79.655 (28,6%), entre mulheres. 2003 e 2012. Por outro lado, as regiões Sul
tendo uma epidemia concentrada na po- Apesar da queda geral, alguns estados têm e Sudeste, que concentram a maior parte
pulação de homens que fazem sexo com mortalidade alta, como o Rio de Janeiro, que dos casos diagnosticados, apresentaram
homens”. Esse dado, segundo ela, desen- apresenta a segunda maior taxa de todo o recuo de 0,3% e 18,6%, respectivamente.
cadeia a necessidade de se desenvolverem país, com 9,1 mortes relacionadas à doença “A epidemia tem dinâmica própria em
estratégias para prevenção específicas para por 100 mil habitantes, perdendo somente cada região: no Norte e no Nordeste a epi-
essa parcela da população. “É uma grande para o Rio Grande do Sul, com 11,2. demia é mais recente”, explicou Valdiléa.

Dia Mundial de Luta Contra a Aids: conquistas e desafios


N o período do Dia Mundial de Luta 2020. A meta é testar 90% da população
reprodução

contra a Aids, o Ministério da Saúde e, das pessoas que apresentarem resulta-


procurou reforçar as notícias positivas do positivo, tratar 90%. Como resultado,
sobre o tema. Em matéria publicada no conseguir que 90% das pessoas tratadas
Portal da Saúde (1/12), lê-se que o Brasil apresentem carga viral indetectável, situa-
terminou 2014 com aumento de 29% no ção em que a pessoa não transmite o vírus.
número de pessoas em tratamento com O ativista Marcio Villard, coordena-
antirretrovirais pelo SUS, na comparação dor geral do Grupo Pela Vidda, do Rio de
com 2013. De janeiro a outubro de 2013, Janeiro, declarou para à Radis que ainda é
47.506 pessoas começaram a usar a medi- fora de contexto a ideia de comemoração
cação, enquanto nesse mesmo período de em torno do Dia Mundial de Luta contra a
2014 foram 61.221. No total acumulado, Aids. “Vivemos um momento crítico em re-
quase 400 mil pessoas estavam em terapia lação à epidemia. Para quem está iniciando
até 2014. De acordo com o último boletim hoje a vida sexual, a doença é vista muitas
epidemiológico, estima-se que 734 mil pes- vezes de forma banalizada. Na realidade,
soas vivam com HIV e aids no país. Desse é uma doença grave, que impacta muito
total, 80% (589 mil) foram diagnosticadas. a qualidade de vida”. Ele aponta a falta
Desde os anos 80, foram notificados 757 de especialistas no SUS, as dificuldades
mil casos de aids. Segundo a publicação, de assistência e adesão ao tratamento e o
a epidemia no Brasil está estabilizada, com estigma das pessoas vivendo com HIV/aids
taxa de detecção em torno de 20,4 casos, como as principais dificuldades enfrentadas
a cada 100 mil habitantes. Isso representa no combate à epidemia.
cerca de 39 mil casos de aids novos ao ano. A campanha publicitária de preven-
Em julho de 2014, a revista britânica desde dezembro de 2013, que recomenda ção ao HIV/aids lançada em 1º de dezem-
The Lancet, importante publicação cien- não ser mais necessário que a imunidade bro de 2014 (fotos), Dia Mundial de Luta
tíficas, divulgou estudo mostrando que esteja baixa para se iniciar o tratamento contra a Aids, tem como público-alvo os
o tratamento para aids no Brasil é mais antirretroviral. “O objetivo é preservar a jovens e enfatiza a estratégia de prevenir,
eficiente que a média global. Segundo o imunidade, e, dessa forma, a transmissão testar e tratar. Há também material seg-
estudo, as mortes em decorrência do vírus fica reduzida”, esclarece. mentado para a população jovem gay e
HIV no país caíram a uma taxa anual de O Ministério da Saúde pretende cum- travestis. A campanha apresenta jovens
2,3% entre 2000 e 2013, maior do que prir a meta estabelecida pelo Programa experimentando novas situações na vida
os 1,5% registrados globalmente. Sobre o Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/ com a palavra “testar”. O teste reforça o
tratamento, Valdiléa Veloso do INI/Fiocruz Aids (Unaids) e pela Organização Mundial slogan final usando a gíria “#partiu teste”,
destaca como avanço o protocolo vigente da Saúde, conhecida como 90-90-90, até linguagem típica da faixa etária prioritária.

Radis 148 • jan / 2015 [ 5 ]


Número recorde de jovens no mundo Incentivo aos
pequenos agricultores
R elatório do Fundo das Nações Unidas
para a População (UNFPA) traçou retra-
to da juventude no mundo, que soma 1,8
em meninas a partir dos 12 anos, nos paí-
ses mais pobres, agravam-se por conta de
costumes tradicionais, como o casamento
bilhão de pessoas, um número sem prece- infantil – a cada dia, cerca de 39 mil crian-
dentes. A faixa da população, entre 10 e 24 ças tornam-se noivas. Em relação à educa-
anos de idade, alvo do estudo, corresponde ção sexual, os jovens têm acesso limitado
a 25% dos habitantes do planeta, conside- a informação, recursos e serviços, e, em
rado um recorde histórico. A tendência é
de crescimento: em 2050, serão 2 bilhões.
Os jovens, mostrou o relatório, passam por
muitos países, a lei dificulta a chegada de
preservativos. Entre os rapazes, o proble-
ma maior é a violência: em 2012, cerca de
O Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA) está formulando para
2015 o Plano Nacional de Agroecologia e
problemas, ao mesmo tempo em que car- 1,3 milhão de adolescentes morreram em Produção Orgânica (Planapo), que reúne
regam a responsabilidade de garantir um conflitos, 97%, em países pobres. uma série de medidas para facilitar a pro-
futuro sustentável para o planeta, informou Em relação à educação, cerca de dução agrícola dos pequenos agricultores
O Globo (18/11). Noventa por cento estão 175 milhões de pessoas não conseguem ao oferecer linhas de créditos e cadastro
nos países em desenvolvimento, confir- ler uma frase completa. Dados da Unesco mais simples da produção como orgânica,
mando a tendência ao envelhecimento das mostram que a falta de recursos básicos faz informou o site jornalístico Opera Mundi
sociedades mais ricas. os alunos deixarem a escola sem qualquer (13/11). “A ideia é consolidar a agricultura
Embora numerosos, os jovens são aprendizado. Brasil e México são citados orgânica no âmbito da agricultura fami-
os menos contemplados por políticas entre os países que, com programas de liar”, informou o secretário nacional de
públicas, faltando investimentos em pro- transferência de renda, aumentaram o Agricultura Familiar, Valter Bianchini.
gramas de qualidade de vida, educação e nível de escolaridade dos jovens e acesso A secretaria tem como proposta
oportunidades de emprego, indicou ainda a saúde. “A educação de qualidade tem mostrar que é possível fazer a transição do
o estudo, que apontou como consequên- ligação direta com a economia”, observou modelo único da agricultura mais intensiva
cias vulnerabilidade a violência, drogas, o nigeriano Babatunde Osotimehin, diretor- em insumos, com uso de agrotóxicos,
depressão e gravidez na adolescência. Em -executivo da UNFPA. para uma agricultura mais sustentável,
2012, cerca de 1,3 milhão de adolescentes O alto número de jovens detectado seguindo os preceitos da agroecologia,
morreram de doenças preveníveis ou tra- no levantamento tem aspecto positivo que consiste em técnicas de cultivo susten-
táveis, segundo a Organização Mundial da também. Durante um certo período, táveis, sem desmatamento de áreas verdes
Saúde (OMS) e pelo menos 160 milhões variável em cada nação, há mais pessoas originais, com uso racional de água e terra
de jovens estão desnutridos; o HIV é a em idade ativa (de 15 a 64 anos) do que e abolição de agrotóxico e transgênicos.
segunda maior causa de morte entre os dependentes (crianças de até dez anos e Segundo Bianchini, o plano pro-
jovens, e, entre as meninas, o suicídio. idosos com 65 anos ou mais). É o momen- moverá a certificação de milhares de
Os transtornos mentais, observados to ideal para o crescimento econômico. propriedades relacionadas ao cultivo or-
gânico. Hoje há, segundo o Ministério da
Agricultura, 6,7 mil produtores orgânicos
Menos trabalhadores domésticos regularizados, e é possível chegar a 150
mil. De acordo com o secretário, o agro-
D.A. em alta em todos os setores, muitas do- negócio, que muitas vezes se apresenta
mésticas decidiram mudar de profissão, como principal via moderna e rentável
como a confeiteira Maria Luiza Souza Goes, da agricultura, não pode ser conside-
que veio da Bahia para São Paulo com 17 rado a única solução para as questões
anos, encontrando como única opção de que envolvem a segurança alimentar. “O
trabalho a casa de família, até considerar termo agronegócio se referia ao volume
que era hora de mudar de vida. de recursos que movimenta a agricultura
Quem não mudou de profissão tam- e a agroindústria. Como setores conser-
bém está ganhando, mostrou o estudo. vadores começaram a usar o termo para
Enquanto o salário médio dos trabalhado- agregar importância à prática, ela acabou

A Pesquisa Mensal de Emprego, do IBGE,


divulgada em novembro, mostrou que,
entre outubro de 2004 e outubro de 2014,
res da Grande São Paulo caiu 0,5%, entre
2012 e 2013, o das domésticas subiu 10%.
Para o professor Hélio Zylberstajn, da
se designando como o único modelo de
agricultura”.
Se a produtividade dos orgânicos
o número de pessoas que trabalham como Universidade de São Paulo, o mercado de ainda é muito distante da do agronegó-
domésticas caiu 10% e o total de pessoas trabalho está passando por uma moder- cio, como aponta Bianchini, a agricultura
ocupadas aumentou 20%. De acordo com nização. “Com a expansão do emprego familiar tem grande importância para o
a pesquisa, realizada em seis regiões metro- em geral, as moças que são empregadas abastecimentos dos mercados brasileiros.
politanas (Recife, Salvador, Belo Horizonte, domésticas passaram a ter outras opor- Ocupando aproximadamente 25% da área
Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), o tunidades em abundância”, considerou, agricultável do país, o modelo familiar
setor dos domésticos apresentou a menor vendo nos índices encontrados uma opor- ainda corresponde a 38% da produção ge-
taxa de desocupação em outubro: 1,5%, tunidade histórica para mudar também rada no Brasil. De 5,1 milhões de proprie-
enquanto o índice geral foi de 4,7%, infor- o comportamento da sociedade, depen- dade rurais, 4,3 milhões são de agricultura
mou o portal de notícias G1 (26/11). dente desses empregados. “Ela tem que familiar, com 12 milhões de trabalhadores.
“Se elas são dispensadas, em menos se organizar, o marido tem que começar a O secretário também alertou para os riscos
de um mês, já arrumam serviço”, disse ajudar, as crianças têm que arrumar as suas do modelo agroexportador, que enfatiza a
a advogada do Sindomésticas Daniela camas, porque esse é o mundo que está monocultura. “Não podemos depender de
Ferreira da Silva. Com a oferta de emprego chegando aqui. Finalmente”, considerou. duas, três variedades na agricultura”, disse.

[ 6 ] Radis 148 • jan / 2015


IDH: avanço nas regiões metropolitanas, desigualdade entre municípios
A s disparidades entre as regiões me-
tropolitanas brasileiras diminuíram,
no espaço de uma década, entre os anos
ritmo de crescimento entre as regiões não
ter sido o mesmo. As que possuíam os
menores indicadores cresceram de forma
intrarregionais, em especial, no caso da
escolaridade da população adulta: a va-
riação ficou entre 91% a 96%, nos índices
2000 e 2010. A informação é do Atlas mais acelerada do que as que já estavam mais altos, e 21% a 37%, nos mais baixos.
do Desenvolvimento Humano, produzido em patamares mais altos de desenvolvi- O estudo alertou também que as
pelo Programa das Nações Unidas pelo mento humano, o que contribuiu para a desigualdades dentro de cada região
Desenvolvimento (Pnud), pelo Instituto redução do hiato entre elas. Na década metropolitana são, muitas vezes, mas-
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e estudada, a diferença entre a região me- caradas pelos índices médios, que dão a
pela Fundação João Pinheiro. Divulgado tropolitana de IDHM mais elevado (São falsa impressão de que os municípios são
em 25/11, o atlas apresenta o resultado da Paulo) e a índice mais baixo (Manaus) caiu homogêneos. Mesmo em regiões metro-
pesquisa realizada em 16 regiões metro- de 22,1% para 10,3%, um quadro menos politanas mais carentes, como Manaus e
politanas (Belém, Belo Horizonte, Cuiabá, desigual do que o apresentado em 2000. Belém, há bolsões com desenvolvimento
Curitiba, Distrito Federal, Fortaleza, Apesar da reconhecida melhora e da humano muito alto. Da mesma forma, re-
Goiânia, Manaus, Natal, Porto Alegre, redução das disparidades, a desigualdade giões como São Paulo apresentam baixos
Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São dentro dos municípios ainda é um fator níveis de renda e educação.
Luís, São Paulo e Vitória), nas quais foi marcante, indicou o atlas. Em uma mesma Em comparação com o ano 2000, as
verificado o Índice de Desenvolvimento região metropolitana é possível renda do- regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e
Humano Municipal (IDHM). Todas as miciliar per capita mensal de quase R$ 7,9 de Porto Alegre deixaram de figurar entre
regiões pesquisadas mostraram-se na mil e de menos que R$ 170. A esperança as cinco com maior IDH, dando lugar à
faixa de alto desenvolvimento humano, de vida ao nascer varia, em média, 12 anos Região Integrada de Desenvolvimento do
com IDHM acima de 0,7 – o índice vai de dentro das regiões. Distrito Federal e Entorno (Ride/DF) e à
0 a 1: quanto mais próximo de zero, pior A dimensão da educação foi a que Grande Vitória (ES).
o desenvolvimento humano, quanto mais mais avançou, em comparação com as O atlas pode ser baixado na íntegra
próximo de um, melhor. dimensões de longevidade e renda, em- no site do Pnud (www.pnud.org.br) ou em
O resultado se deve ao fato de o bora também reproduza as disparidades http://goo.gl/zH9DES

Trabalho decente: OIT Brasil lança sistema com dados por município

O escritório da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) no
Brasil lançou(28/11) sistema de indica-
municipais estão organizados em dez
áreas, que correspondem às dez di-
mensões de mediç ão do trabalho
Curitiba (4,7%) e Florianópolis (4,9%), e
os maiores, em Salvador (12,9%) e Recife
(12,5%). A desocupação é maior entre
dores municipais, reunindo dados que decente:oportunidades de emprego; as mulheres e a população negra. Há,
possibilitam identificar oportunidades rendimentos adequados e trabalho ainda, informações sobre trabalho infantil
e desafios relacionados à promoção do produtivo; jornada de trabalho decente; (das 888,4 mil crianças e adolescentes
trabalho decente, em cada um dos 5.565 conciliação entre o trabalho, vida pes- de 14 ou 15 anos que trabalhavam,
municípios do país, informou o site da soal e familiar; trabalho a ser abolido; apenas 2,7% faziam isso na condição de
organização. Trata-se de um trabalho iné- estabilidade e segurança no trabalho; aprendiz); jovens (um de cada cinco não
dito no mundo, de acordo com a diretora igualdade de oportunidades e de trata- trabalhava nem estudava em 2010); inclu-
da OIT no Brasil, Laís Abramo, com infor- mento no emprego; ambiente de traba- são de pessoas com deficiência no mer-
mações completas e específicas. Segundo lho seguro; seguridade social; e diálogo cado formal de trabalho (inexistentes em
ela, as informações reveladas por esse social e representação de trabalhadores 31,5% dos municípios); e educação (em
sistema constituem recurso estratégico e empregadores. 81% dos municípios mais da metade da
para implementação da Agenda e do O sistema revelou, entre outras população de 15 anos de idade ou mais
Plano Nacional de Emprego e Trabalho informações, que um grupo de apenas não tinha instrução ou tinha o ensino
Decente, bem como das agendas esta- 24 municípios abrigava 6,8 milhões de fundamental incompleto), entre outras.
duais e municipais de trabalho decente pessoas ocupadas em trabalhos infor- As informações do sistema podem
e de programas de âmbito federal como mais, o correspondente a 20,5% do total ser acessadas e baixadas, por município,
Brasil Sem Miséria e Pronatec. nacional (33,2 milhões), apontando que em http://simtd.oit.org.br.
Baseado no Censo de 2010 e em ou- um esforço concentrado nesses locais
tros dados do IBGE, além de estatísticas pode reduzir significativamente o nú- D.A.
dos ministérios do Trabalho e Emprego, mero de trabalhadores e trabalhadoras
Previdência Social e do Desenvolvimento em situação de informalidade no país.
Social e Combate à Fome, entre ou- Metade dos municípios com taxa de in-
tras fontes, o Sistema de Indicadores formalidade acima de 50% localizava-se
Municipais de Trabalho Decente permite na região Nordeste.
análise integrada das dinâmicas laboral, Foi observado, ainda, nos dados
espacial, econômica e social de cada que, ao final de 2013, todos os municípios
município. O conceito de trabalho de- brasileiros contavam com trabalhadores e
cente relaciona-se à promoção de opor- trabalhadoras formalizados na condição
tunidades para que homens e mulheres de microempreendedor individual, o que
obtenham um trabalho produtivo e de contribuiu expressivamente para a redu-
qualidade, em condições de liberdade, ção da informalidade laboral.
equidade, segurança e dignidade. Os menores índices de desocupação
Os dados do sistema de indicadores entre as capitais foram registrados em

Radis 148 • jan / 2015 [ 7 ]


Comissão da Verdade: relatório
responsabiliza 377 por crimes e violações
A Comissão Nacional da como indicam os autores,

foto: agência brasil


Verdade (CNV) entregou e “reverenciam as vítimas
(10/12) à presidenta Dilma de crimes cometidos pelo
Rousseff o relatório final do tra- Estado brasileiro e por suas
balho realizado por dois anos Forças Armadas”.
e sete meses, de investigação Os 377 agentes apon-
sobre crimes e violações de tados como responsáveis
direitos humanos ocorridos en- pelos crimes foram divididos
tre 1946 e 1988, com foco na em três categorias, de acor-
ditadura militar (1964-1985), do com sua participação. Na
informou o portal UOL (10/12). categoria responsabilidade
O relatório responsabiliza e político-institucional, que
nomeia 377 pessoas, inclusive reúne agentes do Estado
generais que se tornaram pre- com função de criar, planejar
sidentes no período e faz 29 e decidir políticas de per-
recomendações ao governo, seguição e repressão, sem
entre elas a desmilitarização do Estado, configurando crimes contra a participação direta nos cri-
das polícias, o reconhecimento pelas Forças humanidade”. O documento tem 4.328 mes, estão cinco ex-presidentes (Castello
Armadas da sua responsabilidade pelas páginas e está dividido em três volumes. De Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici,
violações de direitos humanos e a responsa- acordo com o site da CNV, o primeiro vo- Ernesto Geisel e João Figueiredo). Na
bilização criminal de torturadores e agentes lume enumera as atividades realizadas pela categoria responsabilidade pela gestão
públicos, hoje resguardados pela Lei de comissão na busca pela verdade, descreve de estruturas e procedimentos, foram
Anistia, de 1979, informou O Globo (11/12). os fatos examinados e apresenta conclusões listados agentes que, mesmo sem terem
“Nós que acreditamos na verdade e recomendações dos integrantes para que cometido crimes diretamente, permitiram
esperamos que esse relatório contribua para os fatos descritos não se repitam. São apre- que violações aos direitos ocorressem em
que fantasmas de um passado doloroso sentadas as estruturas repressivas e seus unidades do Estado sob sua administra-
e triste não possam mais se proteger nas procedimentos e conceituados métodos ção, como comandantes de unidades das
sombras do silêncio e da omissão”, disse e práticas, com explicações sobre como Forças Armadas, chefes de departamentos
a presidenta, que se emocionou e chorou cada uma delas foi aplicada no período e delegacias da Polícia Civil, chefes de
durante a cerimônia. A presidenta rece- ditatorial. Um capítulo é dedicado à autoria institutos médicos legais, diplomatas e
beu o relatório em audiência com os seis das violações, indicando nomes dos 377 comandantes das polícias Federal e militar.
membros da CNV: José Carlos Dias, José agentes públicos e pessoas a serviço do Entre os nomes da lista está o do coronel
Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Estado envolvidas. Nesse capítulo também é Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do
Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa analisado o papel do Judiciário na ditadura. DOI-Codi do II Exército, em São Paulo.
Cardoso (foto). O relatório foi entregue no O segundo volume traz nove textos A terceira categoria é a de respon-
Dia Mundial dos Direitos Humanos. produzidos por integrantes da comissão, sáveis diretos pelos crimes e lista militares
A comissão foi instalada em maio de resultantes de atividades realizadas em gru- e agentes envolvidos em mortes, desapa-
2012, por Dilma, pela Lei 12.528/2011, para pos de trabalho que reuniram vítimas, fa- recimentos forçados e torturas de opo-
apurar e esclarecer circunstâncias e autoria miliares, pesquisadores e interessados nos sitores ao regime. O documento aponta
das violações, “com o objetivo de efetivar temas investigados. Sete textos mostram que esses agentes estavam lotados em
o direito à memória e a verdade histórica e como militares, trabalhadores organizados, gabinetes de ministros, no comando das
promover a reconciliação nacional”, como camponeses, igrejas, indígenas, homosse- Forças Armadas, nos DOI-Codi, batalhões
informa em seu site. Durante os trabalhos, xuais e a universidade foram afetados pela e unidades militares e delegacias e de-
foram colhidos 1.121 depoimentos e reali- ditadura e a repressão e o papel desses partamentos de polícia. Um dos nomes
zadas 80 audiências e sessões públicas pelo grupos na resistência. É abordada, ainda, listados nessa categoria do relatório é o
país. Entre novembro de 2013 e outubro de a relação da sociedade civil com a ditadura, do coronel Paulo Malhães, morto em 2014,
2014, acompanhada de peritos e vítimas da seja apoiando, em especial no caso dos que admitiu ter participado de torturas e
repressão, a comissão visitou sete unidades empresários, seja resistindo. mortes durante o regime militar. A íntegra
militares e locais utilizados pelas Forças O terceiro volume é dedicado às do relatório da Comissão Nacional da
Armadas para a prática de tortura e outras vítimas. São apresentadas a vida e as cir- Verdade está em www.cnv.gov.br.
violações de direitos humanos. cunstâncias da morte ou desaparecimento
De acordo com o coordenador da de 434 pessoas, bem como o andamento
SÚMULA é produzida a partir do acompanha-
comissão, Pedro Dallari, o trabalho permitiu das investigações em cada caso. Os rela-
mento crítico do que é divulgado na mídia
concluir que as violações foram “resultado tos “expõem cenários de horror pouco
impressa e eletrônica.
de uma ação generalizada e sistemática conhecidos por milhões de brasileiros”,

Radis Adverte

Valorizar conhecimentos tradicionais é estratégia de promoção da saúde


[ 8 ] Radis 148 • jan / 2015
TOQUES DA
REDAÇÃO

Insegurança pública Fábrica de alunos


C

reprodução
om tantos direitos ainda por serem asse- mas encontrar “um meio termo” entre o
gurados – água, saneamento, moradia, que a lei determina e o que ele considera
saúde, educação –, o deputado Cláudio que a população deseja como de direito
Cajado (DEM-BA) resolveu aumentar a lista à defesa de sua segurança (sic). Traduzido
e incluir o direito ao porte de armas, com em números, o meio termo do deputado,
o Projeto de Lei 3722/12, que revoga o no entanto, significava, por exemplo, am-
Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826, de pliar de 50, como está no estatuto, para
2003). Foram muitas as tentativas de votar 5.400 o número de balas a serem adquiri-
o texto na Câmara antes do fim do ano, das por ano pelo cidadão. Como afirmou
uma vez que isso não ocorrendo o projeto o pesquisador Antônio Rangel Bandeira,
seria arquivado. Opositores do projeto e autor do livro Armas de fogo: proteção
defensores da paz e da segurança consegui- ou risco?, por trás do discurso de “direito
ram obstruir as votações. A sociedade civil à defesa do cidadão de bem” propagado
também se mobilizou pelas redes sociais. pelos defensores do projeto, está a ten-
O último cancelamento se deu em 17/12. tativa de aumentar o comércio de armas
Segundo Cajado, sua proposta não e munições no Brasil. Mais um caso em
era revogar o Estatuto do Desarmamento, que o lucro é colocado na frente da vida.

Parceria que compromete


A núncio da Prefeitura do Rio de Janeiro
publicado (1/12) em página inteira no

O rganizações sociais, sindicatos, movi-


mentos sociais, ambientalistas e reli-
giosos, do Brasil, Canadá, Moçambique,
Violações da Vale no Mundo, de 2010, e
no Relatório de InSustentabilidade da Vale,
de 2012, apontam que a empresa “traba-
jornal O Globo comparou com orgulho
a escola a uma fábrica, na qual crianças
fazem parte de uma linha de produção, e
Peru, Chile, Indonésia e Argentina, que lha com um conceito de sustentabilidade revoltou educadores e demais defensores
integram a Articulação Internacional dos que busca o controle do ambiente social da educação como direito à diversidade.
Atingidos pela Vale, divulgaram (14/11) onde os projetos são desenvolvidos". E O anúncio (foto) é ilustrado com alunos
carta ao presidente da Coordenação lembram que, em 2012, a Vale foi eleita sentados em carteiras que rolam sobre
de Aper feiçoamento de Pessoal de a pior empresa do mundo na votação uma esteira movida por engrenagens e
Nível Superior (Capes), Jorge Almeida internacional Public Eye Awards. diz: “Nossa linha de produção é simples:
Guimarães, em protesto contra parceria  A Articulação considera a parceria construímos escolas, formamos cidadãos
estabelecida com a mineradora Vale S.A. da Capes com a Vale “incongruente”, e criamos futuros”. Trazendo à tona a
para a instituição do Prêmio Vale-Capes apontando que a iniciativa “compromete concepção taylorista/fordista do início
de Ciência e Sustentabilidade. O prêmio o papel e legitimidade dessa importante do século 20, orientada pela produção
é voltado a dissertações de mestrado e instituição” ao buscar soluções para ques- em série, a Prefeitura acaba por assumir
teses de doutorado associadas a temas tões socioambientais em parceria com a escola como uma fábrica de formatar
ambientais e socioambientais.  “um dos grandes atores responsáveis por crianças e jovens. “O que pretendem é
Na carta, as organizações signatá- graves conflitos” nesse mesmo setor, no uniformizar o processo pedagógico e
rias, com base no Dossiê dos Impactos e Brasil e no mundo. tirar a alma das escolas. Essa é uma con-
cepção de educação que não nos serve”,
escreveu em sua página no Facebook o
Prêmio Direitos Humanos professor de História Tarcísio Motta, can-
didato ao governo do estado do Rio pelo

A pesquisadora da Escola Nacional de


Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/
Fioruz) e coordenadora científica do
prêmio representa a mais alta condeco-
ração do governo brasileiro a pessoas e
instituições que desenvolvem ações de
PSOL, nas últimas eleições. “Uma escola
na Ilha do Governador é diferente de uma
escola na Pavuna, diferente de uma escola
Centro Latino-Americano de Estudos de destaque nas áreas de promoção e defe- no Méier, no Leblon. Quando a escola
Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), sa dos direitos humanos. Cecília Minayo recebe um projeto de cima para baixo,
Maria Cecília de Souza Minayo, é uma foi premiada na categoria Garantia dos fica engessada e não pode transformar
das 21 personalidades que receberam Direitos da Pessoa Idosa e recebeu o a realidade, porque ela não consegue se
(10/12) o 20º Prêmio Direitos Humanos prêmio da presidenta Dilma Rousseff, em apropriar daquela realidade em seu dia
2014, da Presidência da República. O cerimônia no Palácio do Planalto. a dia escolar”. 

Quem merece ser estuprada?


A o apagar das luzes da legislatura
2011-2014 no Congresso Nacional, o
deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) marcou
de quatro partidos (PT, PCdoB, PSOL e PSB)
entrou (10/12) com representação contra o
deputado no Conselho de Ética e Decoro
A reação dos partidos e da sociedade
civil é pertinente e condizente com a gravi-
dade do ocorrido. No entanto, vale lembrar
presença com sua postura preconceituosa Parlamentar da Câmara pedindo a cassação que Bolsonaro está de volta à Câmara para
e comentários misóginos. O alvo desta vez de seu mandato, acusando-o de quebra de mais quatro anos. Reeleito em outubro
foi a deputada Maria do Rosário (PT-RS). decoro. Nas internet também proliferaram para o sétimo mandato, recebeu 464.418
No plenário na Câmara, Bolsonaro bradou protestos ao parlamentar, e uma petição votos, sendo o parlamentar mais voltado do
(9/12) para quem quisesse ouvir: “Não estu- pela sua cassação havia reunido mais de Estado do Rio de Janeiro. Votos de quem,
pro você, porque não merece”. Uma frente 75 mil assinaturas em dois dias. com certeza, pensa como ele.

Radis 148 • jan / 2015 [ 9 ]


2º SIMPÓSIO BRASILEIRO DE SAÚDE E AMBIENTE

As caras da
injustiça
ambiental
Evento destaca populações
atingidas por conflitos territoriais
como sujeitos de resistência, não
como objetos de pesquisa
Bruno Dominguez

A
injustiça ambiental tem cara. A de Antônio Filho, morador do bairro
de Piquiá de Baixo, em Açailândia, Maranhão, destruído a partir da Mobilização por direitos:
instalação de indústrias siderúrgicas ao redor das casas da comu- injustiça ambiental e
nidade. Ou a de Patrícia Generoso, de Conceição do Mato Dentro, suas consequências pela
em Minas Gerais, por onde passa um mineroduto de 525 quilômetros. Ou as ótica dos que vivem
de tantos outros atingidos por projetos que opõem desenvolvimento, justiça nos territórios
ambiental e saúde (ver relatos na pág. 14). Essas caras foram apresentadas
no 2º Simpósio Brasileiro de Saúde e Ambiente (Sibsa), organizado pela
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em outubro, em Belo
Horizonte. O encontro teve como marca a articulação da academia com os
movimentos sociais, reconhecendo os envolvidos em conflitos territoriais não
como objetos de pesquisa, mas como sujeitos de resistência.
Da abertura do simpósio à aprovação da Carta de Belo Horizonte (ver box
na pág. 17), a interação entre ciência e saber popular foi destaque. O presidente
do 2º Sibsa, Hermano Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
foto: marcelo cruz

Arouca (Ensp/Fiocruz), ressaltou que essa articulação é fundamental para se


ter “um só corpo na defesa intransigente da vida, especialmente em um país
em que o capital avança sobre a natureza, os bens naturais são precificados
e retirados das populações e a sustentabilidade dos ecossistemas sucumbe”.

Inovação e necessidade
Os movimentos sociais não participaram do evento somente como
convidados falando em mesas-redondas, mas também na organização e na
comissão científica. “É uma inovação, um sonho e uma necessidade para
entendermos integralmente o processo de desenvolvimento social com as
populações que são sujeitos dele”, ressaltou Hermano.
O diretor da Ensp apontou as implicações do atual modelo para a saúde:
interfere na determinação saúde/doença, levando a adoecimento e morte,
especialmente de grupos mais vulneráveis — indígenas, afrodescendentes,
comunidades tradicionais, camponeses e camponesas, trabalhadores e

[10] Radis 148 • jan / 2015


fotos: divulgação / abrasco
Hermano (E): articulação
entre academia e
movimentos sociais
é fundamental na “defesa
intransigente da vida”;
Leroy: “grito” para que
ninguém se encontre na
condição de atingido

trabalhadoras de baixa renda, moradores e morado- e os grandes empreendimentos, que avançam pelo
ras das zonas de sacrifício no campo, nas florestas, país, gerando desterritorialização e desapropria-
nas águas e nas cidades. ção, com respaldo governamental, em nome do
O presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, refor- crescimento econômico.
çou que saúde e ambiente são temas simbióticos. Na reflexão do filósofo, a desterritorializa-
“Não se pode pensar saúde e ambiente como ção não é apenas física, mas também simbólica.
questões desconectadas, pois ambos sofrem as “Quando povos são expulsos de seus territórios,
consequências perversas do modelo de desenvolvi- eles perdem mais do que a posse da terra; perdem
mento e do processo de organização da produção o que têm de mais profundo: suas raízes”, disse,
e do trabalho”, disse. indicando como exemplo a destruição de uma
Daí surge a necessidade de se colocar a saúde cachoeira sagrada para os Munduruku com vistas
no centro do modelo, tarefa que a Fiocruz tem a se construir uma barragem no rio Tapajós.
levado à frente, como ele apontou, especialmente “Quando se fala em desterritorialização de
nos debates da Conferência das Nações Unidas povos tradicionais, alguns dizem: ‘são apenas dez
sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20 famílias atingidas aqui e dez ali; o que representam
(Radis 118 e 121), e na formulação dos Objetivos diante do tamanho das nossas cidades?’ Porém, ao
de Desenvolvimento Sustentável (Radis 113, 121, cortar raízes, corta-se junto a possibilidade de con-
127 e 147). “Os indicadores da saúde qualificam tinuar um projeto de vida de integração profunda
a medição de um desenvolvimento sustentável com a natureza”, argumentou. Essas vidas perdem o
e trazem no seu bojo as noções de direito e de sentido: passam a ser “vidas em suspenso” ou “vidas
políticas sociais”. não reconhecidas”, na definição do pesquisador.

O grito da justiça ambiental ‘Neoextrativismo’


Sobre a desterritorialização gerada pelos ca- Jean Pierre lamentou que o extrativismo seja
sos de injustiça ambiental, falou o filósofo francês a sina do Brasil. Ele classificou o período atual de
Jean Pierre Leroy, integrante da Rede Brasileira de neoextrativista, traduzido como o mesmo de outrora
Justiça Ambiental (RBJA) e assessor da Federação com a diferença de ter sido apropriado pelo Estado
de Órgãos para Assistência Social e Educacional com o objetivo de servir ao capital. “Um Congresso
(Fase), na conferência Direitos, justiça ambiental dominado pelo agronegócio quer concentrar o poder
e políticas públicas. Nas palavras dele, justiça de decidir onde indígenas podem ficar”, observou.
ambiental deve ser encarada mais do que como O filósofo fez ressalvas: essas práticas não
uma definição conceitual: “É um grito”. são de um governo ou de outro, e sim práticas de
Trata-se da afirmação de algo que interpela Estado, inseridas em um contexto internacional. “O
toda a sociedade: não se pode pensar um futuro capital financeiro não conhece fronteiras e não está
sem que o meio ambiente seja parte da vida. “É submetido a nenhum tipo de controle democráti-
um grito, uma luta travada para que ninguém se co”, avaliou, defendendo um projeto com saúde
encaixe na condição de atingido, partindo dos que ambiental em dimensão global.
não aceitam ser eliminados e silenciados pelo in- O desafio, indicou, é que esse projeto seja
justo modelo de desenvolvimento do capitalismo. assumido pelos cidadãos das cidades, que muitas
É um clamor daqueles que sabem que seus modos vezes perdem de vista que suas vidas têm ligação
de viver e de se relacionar com o ambiente não são com o que acontece no campo. Um projeto não
parte do problema, mas da solução”. dos bens comuns, mas dos comuns, que escapa das
Jean Pierre tratou os territórios como espaços noções de lucro, bens e mercado e prioriza a sinto-
das tradições, onde se pode encontrar esperança nia da população com a natureza.O que emperra
para um futuro sustentável, dada a ligação profun- a transformação é o que o médico equatoriano
da dos povos com a natureza. As ameaças são a Jaime Breilh chamou de “economia da morte”, na
agricultura industrial, os latifúndios monocultores conferência A função social da ciência, ecologia

[12] Radis 148 • jan / 2015


de saberes e outras experiências de produção funciona como elemento chave na geração das
compartilhada de conhecimentos. A economia injustiças. Relatora da Plataforma Brasileira de
da morte baseia-se, segundo ele, na convergência Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais
de capitais para fomentar o uso produtivista das e Ambientais (Dhesca), Cristiane Faustino apontou
tecnologias, na desapropriação e nos processos de que o poder público opera criando consenso social
pilhagem, e no que a jornalista canadense Naomi da importância de projetos de desenvolvimento.
Klein classificou como shock: o aproveitamento de “Os grandes empreendimentos demandam
crises e eventos adversos, como o furacão Katrina, territórios, biodiversidade e água, mas não ocupam
para fazer reformas impopulares. territórios vazios. Os territórios são habitados por
Para além dos agrotóxicos e do uso insalubre da pessoas de carne, osso e sentimento. E a vida ali
nanotecnologia, Breilh indicou que novas tecnologias instituída tem relação com o que no lugar existe”,
de comunicação e informação geram novas toxicida- observou. O mais violento, na avaliação dela, é jus-
des: “A comunicação contribui para modificar o es- tamente o poder de decidir com quem fica a posse
paço social onde se operam os impactos do sistema, de um território, por alguns poucos sujeitos, com
com toxicidade cibernética, que leva a conflitos sobre maior poder político e econômico, acostumados
identidade, subjetividade, privacidade, sociabilidade a ditar as regras do jogo. “Os conflitos não estão
e desenvolvimento neurocomportamental”. Assim, descolados da estrutura patriarcal, racista, adul-
defendeu que as iniquidades não se dão somente tocêntrica, sexista, heteronormativa”, enumerou.
pelos modos de produção, mas por uma organização Firpo reforçou que os conflitos têm relação
material da vida calcada na acumulação, que gera direta com o modelo de desenvolvimento hege-
solidão para perpetuar o consumismo. mônico, baseado em poderio de transnacionais,
mercantilização da vida e da natureza, produti-
vismo e consumismo, o que alguns chamam de
Construção de resistências
crescimentismo. Ele apontou, no entanto, um
Pesquisador do Centro de Estudos da Saúde aspecto positivo: a construção de resistências
do Trabalhador (Cesteh), da Ensp, e coordenador e alternativas. “Os conflitos ambientais têm
do Mapa da Injustiça Ambiental, Marcelo Firpo potencial dinâmico, revelador, emancipatório,
explicou que os conflitos ambientais são expressão na medida em que permitem a emergência e a
da disputa por territórios e diferentes cosmovisões articulação para o enfrentamento desse modelo
de economia, trabalho, natureza, vida e saúde. Eles Índios Munduruku e a
hegemônico”. Cristiane fez importante ressalva:
luta contra barragem
envolvem comunidades atingidas, movimentos “Mesmo quando não há resistência explícita à no rio Tapajós:
sociais, organizações solidárias, os produtores desterritorialização, há conflito. Pode ficar no nível desterritorialização
dessas violências e o Estado — que, segundo ele, do não dito, mas há conflito”. de povos tradicionais e
“vidas em suspenso”

foto: marcelo cruz


Ameaça à Serra do Gandarela
M aria Teresa, a Teca, mudou-se para Caeté, na
região metropolitana de Belo Horizonte, para
levar uma “vida alternativa”, à beira de um santuário
Pedra no sapato

“Em contraponto, os aliados da mineração,


natural, a Serra do Gandarela. (MG) Mas, em 2006, como o então secretário de Meio Ambiente de Minas
leu nos jornais as primeiras notícias de que sua cidade Gerais, Adriano Magalhães, já tinha preparado um
Saiba Mais abrigaria a maior mina a céu aberto do país. mosaico de unidades de conservação no entorno, que
Integrante do Conselho Municipal de Meio excluía a Gandarela”, relatou Teca. Ainda segundo
Águas do Gandarela
Ambiente, Teca logo buscou mais informações ela, a Vale quis explodir uma cava usada como toca
aguasdogandarela.org sobre o projeto na Fundação Estadual de Meio por animais já extintos para testar minério e destruir
Ambiente e encontrou diversas tentativas de em- o valor histórico do local. “Era para tirar da frente o
presas de conseguir autorizações ambientais de que poderia ser uma pedra no sapato”, apontou.
funcionamento para mineração de ferro no local. Depois de uma série de consultas públicas,
Uma luta até então individual se tornou coleti- em 13 de outubro de 2014, foi publicado decreto
va quando ela se uniu a outras pessoas igualmente presidencial criando o Parque Nacional da Serra do
preocupadas com a possível destruição da região, Gandarela, como unidade de conservação federal.
que guarda a segunda maior área contínua de Mata Boa notícia? Não, na avaliação dos moradores: os
Atlântica de Minas Gerais e um grande reservatório 31 mil hectares de parque e 1.712 pontos de pre-
natural de água. Em 2009, moradores de Caeté, servação não protegem a serra, deixam fora grande
Raposos, Santa Bárbara, Rio Acima e Belo Horizonte parte do patrimônio, especialmente em relação à
fundaram o Movimento pela Preservação da Serra água, e abrem espaço para a instalação das minas
do Gandarela. Apolo e Baú, conforme relatam.
As metas eram, primeiro, evitar a instalação da “O processo desconsiderou nossa caminhada
mina Apolo e, depois, proteger os recursos naturais de sete anos e levou a esse monstrengo”, lamentou
por meio da criação de um Parque Nacional, que Teca. “O que tem nos mantido firmes é a certeza
abriga cavernas com vestígios de sítios arqueológi- que vem da alma”. Segundo Teca, a luta continua
cos. Um ano depois, o Instituto Chico Mendes de para ter um parque nacional tal qual a comunidade
Conservação da Biodiversidade (ICMBio) oficializou exigiu e evitar que tamanho patrimônio se trans-
Abraço à Serra do
Gandarela: defesa a proposta do parque, englobando parte dos mu- forme na nova Carajás, referindo-se àquela que é
de um santuário nicípios mineiros de Barão de Cocais, Caeté, Santa considerada a maior mina de ferro a céu aberto do
natural sob a mira Bárbara, Rio Acima, Raposos, Itabirito e Ouro Preto. mundo,no Pará. (B.D.)
da mineração de ferro
foto: maurtílio nogueira
A dor da resistência em
Conceição do Mato Dentro
"E u não sou atingida, eu sou massacrada”. É
assim que a advogada Patrícia Generoso se
define, diante da resistência inglória ao Projeto Rio-
o nome dos municípios por onde passaria, quanto
mais o das pessoas que seriam atingidas”, relata.
Saiba Mais

Vídeo – 'Conceição:
Minas, que incluiu a construção de uma tubulação guarde nos olhos'
Processo de violência
de 529 quilômetros ligando a mina da sua cidade, www.youtube.com/
Conceição do Mato Dentro (MG), ao Porto do Açu, “Para aplacar a resistência, chegou à cidade watch?v=kLxQjBsvQdo
em São João da Barra (RJ). O que é hoje o maior uma palavra que nunca se falava: inevitável”, conta
mineroduto do mundo, usado para o transporte de Patrícia. E não se conseguiu evitar: seu Ary passou
minério de ferro, atravessa 33 municípios mineiros a viver ao lado de um alojamento com 5 mil traba-
e fluminenses. A cidade de Patrícia, com 18 mil lhadores; dona Vilma deixou de pegar água e lavar
habitantes e a 167 quilômetros de Belo Horizonte, roupas no córrego que passava perto de sua casa
estava no começo do caminho. — a água ficou com aspecto enlameado. Mais de
“A empresa responsável explicou que mine- 30 famílias precisaram conviver com o risco de morar
roduto era um canozinho. As pessoas na cidade abaixo de uma barragem de rejeitos ambientais de 85
achavam que seria da espessura de uma mangueira metros de altura. A empresa de engenharia diz que é
até que chegaram as máquinas para passar canos seguro, mas a comunidade tem medo de que desabe.
enormes”, relatou ela, que logo se engajou na Conceição do Mato Dentro, que segundo ela
luta contra a destruição do lugar. “Não tínhamos não tem sequer escola, hoje é a cidade com mais
experiência de resistência, porque morávamos alto índice de mães solteiras do estado. A obra do
no paraíso”. mineroduto trouxe também sucessivos registros de
Era 2008 quando a Anglo American Brasil trabalho escravo. Os que resistiram foram crimina-
conseguiu financiamento para a obra com o Banco lizados e processados, incluindo a própria Patrícia.
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social “Ninguém avalia o risco de não se ter mais
(BNDES), antes mesmo de obter licenças e quando boas perspectivas de vida, que consome a gente
a mina ainda estava em fase de estudos — “porque de uma forma que eu não consigo entender que
era interesse dos governos”, na opinião de Patrícia. seja possível”, observou ela, emocionada. “É um
Os grossos canos que
A licença acabou saindo, apenas com coordenadas processo de violência, do qual não se sai inteira. compõem o mineroduto:
geográficas do trajeto, impossibilitando que se com- Mas se eu não tivesse me dedicado a essa luta, não projeto foi anunciado
preendesse totalmente o projeto. “Não dizia nem teria entendido a imoralidade disso tudo”. (B.D.) à população como
um 'canozinho'

foto: observatório do pré-sal

Radis 148 • jan / 2015 [15]


Nuvem cinza em Açailândia
E m Piquiá de Baixo, bairro de Açailândia, no
Maranhão, poluído desde a instalação de
usinas de ferro gusa em uma área residencial, em
o britador. “Concluímos que não era possível a con-
vivência de pessoas naquele local, mesmo sem se
ter mais fuligem”, relatou Antônio, referindo-se ao
Saiba mais meados dos anos 1980, a resistência de quase uma barulho das termelétricas e a um trem de carga que
Justiça nos Trilhos década está prestes a ter um resultado final. Os passa pelo bairro a cada 40 minutos com buzinaço.
1.115 moradores serão em breve reassentados em
www.piquiadebaixo.
um novo bairro, longe da nuvem de pó de ferro
justicanostrilhos.org Nova localidade
que sai de 14 altos-fornos. “Em dez anos, tivemos
mortes e doenças por poluição, fuligem, que con- Em 2008, a associação de moradores consul-
tamina a vida das pessoas”, contou Antônio Filho. tou a comunidade e 95% optaram pelo reassenta-
Em 2007, a comunidade se mobilizou e come- mento coletivo em uma nova localidade, livre da
çou a luta para proteger sua saúde. “O discurso da contaminação. Em 2011, o município se responsa-
indústria era de que ali funcionava um polo indus- bilizou por efetuar a desapropriação de um terreno
trial e portanto não deveria haver pessoas morando no qual deverá ser construído o novo bairro e as
no entorno. Mas as pessoas chegaram antes”. As empresas siderúrgicas, pela indenização do terreno
empresas se negavam a negociar até que houve desapropriado, em um Termo de Compromisso de
ampla divulgação do caso de Piquiá. Organizações Conduta (TCC).
de defesa dos direitos humanos, como a Federação O Programa Minha Casa Minha Vida está
Internacional dos Direitos Humanos, a Rede Justiça garantindo 62% do total necessário para a obra, a
nos Trilhos e a Justiça Global, publicaram relatório Fundação Vale, 16%, e o Sindicato das Indústrias
denunciando os impactos sofridos. de Ferro Gusa do Maranhão (Sifema), 5%. O projeto
Resistência em Piquiá
de Baixo, Açailândia:
No processo, pensou-se em soluções palia- urbanístico já está pronto, formulado com a partici-
após dez anos, 1.115 tivas: permanecer no bairro e instalar filtros para pação da comunidade. Mas ainda faltam recursos
moradores serão diminuir a nuvem cinza que sai das usinas ou fechar para que finalmente possam respirar. (B.D.)
assentados em novo bairro

foto: marcelo cruz


Carta Política
O 2º Simpósio Brasileiro de Saúde e
Ambiente, reunido em Belo Horizonte,
Minas Gerais, entre 19 e 22 de outu-
ambientais compõem a determinação
social do processo saúde-doença que se
manifesta em perda da soberania e segu-
cultural e por parcerias com movimentos
como a justiça ambiental, a agroecologia,
a economia solidária, soberania alimentar,
bro de 2014, teve como tema central rança alimentar e hídrica, contaminação os direitos humanos e o feminismo.
Desenvolvimento, conflitos territoriais e da água, do ar e do solo, além de produzir Esse processo possibilita instigar
saúde: ciência e movimentos sociais para doenças como câncer, malformações pesquisadores, professores, militantes
a justiça ambiental nas políticas públicas. congênitas, intoxicações, agravos pulmo- sociais e profissionais de saúde a ado-
Foram cerca de 477 participantes, com a nares e neurológicos, tristeza, depressão, tarem novas práticas de produção de
apresentação de 363 trabalhos entre re- suicídio e assassinatos. conhecimento e de vigilância em saúde,
latos de experiências e estudos científicos. Estas questões trazem elementos fortalecendo as lutas associadas aos
Reconhecendo a importância do diálogo para a crítica aos paradigmas e raciona- conflitos ambientais.
entre diferentes saberes, a Associação lidades hegemônicos da biomedicina, da O Estado brasileiro não tem formu-
Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), biotecnologia e da epidemiologia clássica, lado políticas públicas que respondam às
convidou importantes movimentos sociais, e o resgate e atualização do debate teórico necessidades decorrentes desse cenário.
inseridos na luta pela justiça ambiental, e político que fundou a Medicina Social Deste modo, podemos identificar os se-
como parceiros dessa construção. Latino Americana e a Saúde Coletiva. Neste guintes problemas: insuficiência dos inves-
Avaliamos que a violação dos direitos sentido, a Saúde & Ambiente vem tendo timentos que garantam serviços públicos
à vida digna tem sido acelerada e apro- um rico diálogo com vários campos de co- de qualidade; baixa qualidade da oferta e
fundada pela inserção subordinada do nhecimentos e práticas, e avança tanto na falta de acesso aos serviços públicos básicos
Brasil na ordem capitalista internacional, compreensão do modelo hegemônico de de forma universal e intersetorial; serviços
na medida em que ecossistemas e territó- desenvolvimento econômico como de alter- prestados por trabalhadores em sistema de
rios de vida das populações são abertos nativas de produção de conhecimentos que vínculos precários e alianças com a iniciativa
para a espoliação dos bens comuns, da incorporem as populações e movimentos privada expressa nos diversos modos da
biodiversidade e do trabalho por grandes sociais como sujeitos coletivos, com seus privatização dos serviços públicos.
corporações nacionais e transnacionais, saberes e projetos de sociedade. O contexto da acumulação por es-
produtoras de commodities agrícolas e O 2º Sibsa constituiu-se num espaço poliação e seus impactos, ocultado sob
minerais. O Estado se volta para dispo- importante de experimentação do diálo- o manto do mito do desenvolvimento, se
nibilizar financiamentos e infraestrutura go entre os saberes de pesquisadores e caracteriza pela desigualdade na distribui-
para o lucro desses empreendimentos, profissionais da Saúde & Ambiente e os ção do bônus e ônus do progresso.
além da modificação e flexibilização de dos sujeitos dos territórios afetados por O 2° Sibsa reafirma que a ciência
legislações ambientais e territoriais como conflitos ambientais e movimentos sociais. emancipatória exige estreita articulação
o Código Florestal, a demarcação de terras Essa pedagogia, alimentada também por entre os saberes produzidos na academia
indígenas (PEC 215), o marco regulatório experiências como o III Encontro Nacional e aqueles oriundos nos diversos grupos e
da mineração e o licenciamento ambiental. de Agroecologia, está ancorada numa movimentos sociais. Convocamos todos
Mais ainda, o Estado assegura a legitima- práxis que articula representantes de mo- a se organizarem em resistência a esse
ção simbólica deste modelo de desenvol- vimentos sociais na comissão científica e modelo e em defesa de políticas públicas
vimento, pretensamente justificado pelo na comissão organizadora, e no instigante que garantam direitos humanos e a vida.
progresso e pela geração de empregos. Fórum de Diálogos de Saberes. Lógica
Nesse contexto, expande-se a pro- que passou também pela programação Belo Horizonte, 22 de outubro de 2014
dução de soja, agrocombustíveis, carnes,
celulose, frutas, minério de ferro e aço,
foto:observatório do campo, floresta e águas

entre outros produtos de baixo valor


agregado, que demanda energia de várias
fontes, tais como hidro e termoelétrica,
nuclear, eólica e de petróleo. Estes proces-
sos produtivos geram grandes impactos
que atingem especialmente comunida-
des tradicionais e etnias, como também
grupo urbanos, produzindo numerosos
e violentos conflitos territoriais em torno
do acesso, do uso e apropriação da terra
e bens da natureza, ameaçando suas
diversas formas de reprodução da vida.
Como agravante, o privilégio atri-
buído aos direitos de propriedade em de-
trimento da vida e dos direitos humanos,
ao invisibilizar comunidades, territórios,
culturas e valores que se contrapõem aos
interesses do mercado, compromete as
possibilidades de soberania dos povos e
de emancipação social.
Estas desigualdades e injustiças Reunião de planejamento do 2º Sibsa: movimentos sociais participam da organização e comissão científica

Radis 148 • jan / 2015 [17]


1º seminario de tecnologias sociais

As vozes das comun


Evento discute biodiversidade, inovação e saúde
e sua relação com populações negligenciadas

Adriano de Lavor deles – situação que nem caracteriza os zoológicos

B
e nem as monoculturas, por exemplo. Ela explicou
iodiversidade, inovação e saúde foram ainda que o ambiente da biodiversidade também
os temas que nortearam as discussões exige variedade genética, já que o código genético
propostas pelo 1º Seminário Tecnologias das espécies pode se modificar a partir da sua in-
Sociais, promovido pelo Centro de Pesquisa teração com o contexto. “Deveríamos ouvir mais a
Gonçalo Moniz (CPqGM/Fiocruz Bahia), em par- antropologia e menos a hereditariedade” orientou.
ceria com a Secretaria estadual de Promoção da “A quem pertence a biodiversidade e o uso
Igualdade Racial (Sepromi), que aconteceu em sobre ela? Ao Estado? Às multinacionais farmacêu-
Salvador entre 4 e 6 de novembro. O objetivo do ticas e de cosméticos? ou aos povos tradicionais
evento era ampliar a interação e o debate social que a conservaram ao longo da história?”, ques-
em torno das tecnologias sociais, reunindo repre- tionou Ângela, lembrando que alta biodiversidade
sentantes da sociedade civil, gestores públicos e será sempre garantia de equilíbrio do ambiente, o
especialistas, em uma programação que combinou que por sua vez é sinônimo de baixa incidência de
conferências, debates e relatos de experiências, doenças. É que a variedade de espécies confere ao
e que situou a temática dentro do contexto das sistema maior resistência às “pequenas perturba-
comunidades tradicionais. ções”, além de maior capacidade para se renovar
O seminário dialogou com outros eventos e se regenerar sem a ajuda do homem, explicou.
da 8ª edição do chamado Novembro negro no A pesquisadora criticou a visão que considera
estado, movimento que homenageia a memória de “mato” qualquer ambiente natural que não tenha
Zumbi dos Palmares, e teve sua relevância destaca- sido planejado pelo homem, e que é resultante de
da por Manoel Barral, diretor da Fiocruz Bahia, que vários fatores: da cultura antropocêntrica e civili-
destacou a importância em centralizar os debates zatória europeia, segundo a qual a natureza teria
nas questões relacionadas às populações tradicio- como função exclusiva servir ao homem; da ciência,
nais, normalmente negligenciadas do ponto de que explica o mundo em partes, separando homem
vista das políticas públicas. Maria Teresa Gomes e natureza; da ideologia capitalista, que enxerga a
do Espírito Santo, coordenadora executiva de natureza como mercadoria; e da crença na globa-
Políticas para as Comunidades Tradicionais (CPCT) lização, que almeja a criação de seres vivos iguais,
da Sepromi, ressaltou que é possível promover a negando complexidade genética e divisão histórica,
inclusão destas populações através da articulação dentre outros fatores – como a negação de outras
de vários setores da sociedade, apontando como matrizes culturais e a defesa de que aquilo que é
essencial discutir as questões propostas pelo limpo e moderno está ligado necessariamente ao
Projeto de Lei 7735/2014, que regulamenta a cimento e ao asfalto, destacou Ângela.
Convenção sobre Diversidade Biológica e dispõe “A biodiversidade é uma questão política”,
sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção defendeu. Segundo ela, está em curso uma neoco-
e o acesso ao conhecimento tradicional associado, lonização que se legitima com práticas de “sequestro
além da repartição de benefícios para conservação do saber” – apropriação científica de conhecimentos
e uso sustentável da biodiversidade. tradicionais – discursos promotores das biotecnolo-
gias e investimento em um tipo de agricultura quí-
mica, onde “seres vivos têm sido manipulados para
mais do que variedade
que algumas espécies sobrevivam sozinhas”, criticou.
Boa parte destes temas foi aprofundada pela
engenheira florestal Ângela Maria da Silva Gomes,
Crise ecológica racista
doutora em geografia e integrante do Conselho
Nacional de Política de Igualdade Racial, na confe- Ela salientou que discursos coloniais sem-
rência “Biodiversidade e ecoafricanidade: saberes e pre se apoiaram nas ciências, citando como os
tecnologias sociais”. A pesquisadora criticou o uso colonizadores portugueses se apropriaram, no
que se dá ao conceito “biodiversidade”, consideran- Brasil, de saberes que vieram da África e investi-
do que a ciência moderna o faz de modo incom- ram na nomeação de espécies, em um processo
pleto, equiparando-o à ideia de homogeneidade. que definiu como “taxonomia do poder”. Ângela
Para haver biodiversidade, esclareceu, é necessário, advertiu que também é possível encontrar traços
além de variabilidade de seres vivos, boa quantidade de racismo na definição das causas da chamada

[18] Radis 148 • jan / 2015


nidades tradicionais
Nos quintais, os saberes
tradicionais valorizados:
Estado deve considerar
as comunidades como
sujeitos de direito
Foto: fabiola melca

Radis 148 • jan / 2015 [19]


“crise ecológica” dos anos 1980, que respon- patentes”, ressaltou. Neste contexto, o Brasil aparece
sabilizava os pobres, quando na verdade eram como detentor de 13% da biodiversidade mundial,
resultado de modelos tecnológicos de consumo também rico pelo grande número de comunidades
e de desenvolvimento irresponsável. tradicionais e povos indígenas.
Um dos reflexos desta realidade, apontou Beatriz citou alguns marcos legais na área: a
Ângela, é a transformação da agricultura em Convenção da Diversidade Biológica (CDB), estabele-
campo artificial de consumo de agrotóxicos, tra- cida durante a Conferência das Nações Unidas sobre
tores e tecnologias, sob a alegação do aumento Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92) e assi-
da produção de alimentos e combate à fome. “De nada por mais de 160 países, que se estrutura sobre
fato, a produção de alimentos aumentou; mas e três bases principais: a conservação da diversidade
por que a fome continua?” Ela afirmou que os biológica, o uso sustentável da biodiversidade e a
alimentos deixaram de ser fonte de energia para repartição justa e equitativa dos benefícios prove-
se transformarem em fontes de especulação e de- nientes da utilização dos recursos genéticos; além
fendeu a necessidade de se promover uma visão disso, determina que haja consentimento prévio da
sistêmica da realidade: “Os problemas sociais não parte provedora dos recursos e que a exploração
se separam dos problemas ambientais”, afirmou. deve ser negociada por ambas as partes.
Ela também citou o Protocolo de Nagóia, assi-
nado em 2010, mas que continua sem a ratificação

Fotos: Amanda Magalhães


do Brasil (já que seu texto permanece em tramitação
no Congresso Nacional, onde é criticado pela ban-
cada da agricultura) e o projeto de lei 7735/2014,
também em tramitação, que simplifica as regras para
pesquisa e exploração do patrimônio genético de
plantas e animais nativos e para o uso dos conhe-
cimentos indígenas ou tradicionais sobre eles. Ela
explicou que atualmente o acesso é regulado pela
medida provisória 2.186/2001, que determina que o
Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen) é
responsável pela autorização prévia para o início das
pesquisas. A pesquisadora destacou a necessidade
de desburocratização do sistema, permitindo haver
um maior estímulo à pesquisa no país.

Diversidade distante
Ângela considera que
biodiversidade é uma Neste contexto, a pesquisadora chamou aten- Sobre o assunto, o advogado Júlio Rocha,
questão política e denunciou ção para as contribuições de matriz africana, como professor de Direito Ambiental no Mestrado em
o 'sequestro de saberes' das as práticas de etnomedicina e demais sistemas de Geografia da Universidade Federal da Bahia, decla-
comunidades tradicionais cura, agroecologia e cosmovisão. Ela disse acreditar rou que o governo brasileiro não sabe lidar com a
que a biodiversidade está relacionada aos espa- diversidade étnica a social. Ele defendeu que traba-
ços de referência identitária onde são cultivados lhar a repartição de responsabilidades é trabalhar a
sistemas vivos, como os quintais de vilas e favelas equidade, e questionou: “Quem são os injustiçados
e as roças de candomblé. “É preciso reconhecer e vulneráveis de hoje?” Para o pesquisador, são as
estas tecnologias sociais de matriz ecoafricanas vítimas das injustiças ambientais.
como saberes urbanos migrantes de revegetação O cacique tupinambá Ramon Souza Santos,
ecológica”, acentuou. Nestes espaços (os quintais representante do Conselho Estadual dos Povos
e as roças), explicou, há aproveitamento de solo Indígenas, defendeu o direito de estas populações
e valorização e conservação de variadas espécies permanecerem nos territórios tradicionais de
nativas, construindo um verdadeiro sistema de manguezais e praias, para continuar mantendo a
biodiversidade urbana. biodiversidade e a qualidade de vida do ecossistema
local. Ele citou a importância da preservação dos
conhecimentos tradicionais e criticou a “curiosidade
potencial
invasiva” e a especulação imobiliária em torno do
A discussão sobre acesso ao patrimônio ge- território onde seu povo vive – na região de Ilhéus,
nético, aos conhecimentos tradicionais e repartição litoral Sul baiano. “Eles vêm devastando a mãe terra
de benefícios foi abordada pela bióloga Beatriz com autorização dos municípios e sem consulta dos
de Bulhões Mossri, da Sociedade Brasileira para o povos”, denunciou.
Progresso da Ciência (SBPC). Doutoranda em Política Ramon reclamou que as comunidades só têm
Científica e Tecnológica na Universidade Estadual o poder consultivo, mas nunca com autoridade de
de Campinas (Unicamp), ela chamou atenção para embargar obras ou desmatamentos. Além disso,
a grande diversidade representada por mais de 2 segundo ele os índios nunca são convidados a
milhões de espécies no planeta – das quais cerca de participar da elaboração de leis. “Quando a gente
20 mil ainda não são conhecidas – e seu potencial vai saber, já está tudo pronto”. O cacique informou
na produção de substâncias para uso farmacêuti- que eles somente são escutados quando promovem
co, têxtil, alimentar, biotecnológico, entre outros manifestações e reclamou do processo de criminali-
usos. “Toda essa riqueza representa potencial para zação das lideranças, além de cobrar maior empenho
pesquisa, desenvolvimento de tecnologias e de para que se valorize a medicina tradicional indígena.

[20] Radis 148 • jan / 2015


Rubens Gomes, Beatriz
Mossri e Cacique Ramon
Professor universitário e músico, Rubens Rio de Janeiro – apresentadas pelo seu coordena- discutiram a relação entre
Gomes, presidente do Grupo de Trabalho Amazônico dor, José Leonídio Madureira – além das ações de diversidade biológica e
(Rede GTA), que opera em casos de quebras de pa- combate ao racismo institucional em rede protago- patrimônio genético
tentes com a finalidade de proteção ao conhecimento nizadas pela Rede Kôdya, representada no evento
das comunidades na região, destacou a dificuldade por sua coordenadora nacional, Ana Placidino, e
que o país enfrenta em implementar os acordos in- de comunicação, que contou com apresentação
ternacionais de proteção à biodiversidade. Para ele, as da experiência da revista Radis.
empresas sempre têm pressa ao defender seus pontos
de vista, já que as decisões nessa área repercutem
Sem comunicação, sem saúde
nos lucros. “Como movimento social, precisamos
nos proteger”, afirmou, destacando que a estratégia A sessão dedicada às experiências institucio-
desses grupos é preparar as comunidades para o nais de comunicação reuniu a enfermeira Emanuelle
comércio e não para a preservação. “Nossa relação Góes, o cineasta Pola Ribeiro e o jornalista Adriano
com o mercado é necessária, mas não é prioridade; De Lavor. Integrante do Instituto Odara (que
nossa prioridade é a proteção do território”, declarou. trabalha com questões relacionadas a gênero e
Rubens defendeu que o Estado precisa considerar as raça, direitos sexuais e reprodutivos, entre outras
comunidades como sujeitos de direito de fato, res- questões), Emanuelle relatou a experiência de pro-
peitando o princípio de consentimento livre, prévio e dução de conteúdo no blog População Negra e
informado, sugerindo a criação de comitês gestores Saúde, espaço que desde 2011 já atraiu a visita de
dos protocolos comunitários, para que as pessoas mais de 30 mil internautas e que oferece material
possam ser escutadas e interferir nos processos. diversificado como notícias, denúncias, além de
monitoramento e fiscalização de políticas públicas.
Pola Ribeiro defendeu a importância da regu-
Experiências
lação da Comunicação Social no país, destacando
O seminário também contou com um espaço a Saúde como o setor que melhor compreende a
de compartilhamento de experiências institucionais necessidade dessa regulação. Ele reivindicou o uso
em tecnologias sociais, que reuniu trabalhos na área melhor orientado das TVs públicas para as políticas
de desenvolvimento social, economia solidária, coo- sociais, declarando que o Estado brasileiro não se
peração social, gestão de redes e comunicação. A comunica, apenas faz propaganda, e criticando o
tecnóloga em desenvolvimento social Lilian Cristina uso que hoje se faz destes espaços: “Hoje as TVs
Coelho apresentou as ações desenvolvidas pelo pro- públicas nem são da sociedade, nem são do Estado.
jeto Meu bairro tem história e eu tenho futuro em São híbridas, por terem que concorrer com as TVs
Uberaba (MG), capitaneado pelo Instituto Agronelli comerciais”, opinou. Subeditor da Revista Radis,
e que trata de formação cidadã e construção da Adriano De Lavor reafirmou o compromisso da
cidadania (ver matéria na pág. 2); Ananias Viana, publicação com a consolidação do SUS, destacando
agente de desenvolvimento em economia solidária não ser possível assegurar o direito constitucional
da região do Recôncavo Baiano, enfatizou, em sua à saúde universal, equânime e integral sem o con-
apresentação, o crescimento do turismo étnico na curso e a garantia da comunicação. Além disso,
região, que valoriza a cultura dos povos tradicionais, defendeu o diálogo e a visibilidade como questões
e promove a sustentabilidade dos habitantes locais. fundamentais para a comunicação: “Quem não é
Também foram apresentadas experiências rea- visto e não é escutado não é levado em considera-
lizadas pela Coordenadoria de Cooperação Social ção, seja na condução das políticas públicas, seja
da Fiocruz na região de Manguinhos, na cidade do na proposição de demandas”, afirmou.

Radis 148 • jan / 2015 [21]


democratização da comunicação

Relação de
Marca do sistema de radiodifusão brasileiro,
coronelismo eletrônico expõe elos entre
políticos e a mídia nacional que emperram o
processo democrático
Liseane Morosini Arthur de Lima, da Universidade de Brasília (UnB),

A
que vê a atualidade do fenômeno dentro de um
relação visceral de clientelismo entre contexto maior. “O coronelismo eletrônico faz parte
políticos e os meios de comunicação da constituição da cultura e da prática política, da
esteve no centro do debate Coronelismo nossa história social e econômica. Ele parte do
Eletrônico: teoria e prática política no pressuposto que a mídia, com seu controle, desem-
Brasil, ocorrido em novembro de 2014, na Casa da penha papel preponderante no processo político.
Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro Como o espaço público é dominado pela mídia,
(UFRJ). A expressão, criada por acadêmicos no final não há nenhum interesse em qualquer mudança
da década de 1970, descreve prática anterior a esta na situação. Esse ciclo vicioso reproduz a situação
data e procura explicar o vínculo existente entre anterior a cada novo Congresso que é eleito”, disse,
os grupos familiares das elites políticas locais ou lembrando que o artigo 54 da Constituição Federal
regionais, os meios de comunicação e os diversos proíbe que deputados e senadores sejam diretores
interesses político-partidários. Longe de ter ficado ou tenham cargos remunerados em empresa con-
no passado, o fenômeno ainda hoje se faz presente cessionária de serviço público, caso das rádios e
– e se manifestou fortemente nas últimas eleições. televisões, e o artigo 55 pune com a perda do man-
“Ele permanece porque o sistema privado de mídia dato quem descumprir o artigo anterior. Contudo,
no Brasil é controlado e tem várias distorções que nenhum dos dois artigos têm tido efeito na prática.
são antidemocráticas”, explicou o professor Venício Suzy dos Santos, professora do Grupo de

[22] Radis 148 • jan / 2015


arte: diego azeredo
interesses
Pesquisas Políticas em Economia da Informação e anos 1980, a escolha de Antonio Carlos Magalhães
Comunicação, da Universidade Federal do Rio de como o primeiro ministro das Comunicações do pe-
Janeiro (PEIC/UFRJ), afirmou que as concessões ríodo democrático é um marco, por ter sido oficial-
de radiodifusão sempre foram uma forma de pre- mente pautada pelo então presidente José Sarney
sentear ou compensar o bom comportamento do [1985-1990] e pelo próprio Roberto Marinho, das
mercado. Segundo ela, este mecanismo de atuação Organizações Globo. É a primeira vez que um em-
pode ser demonstrado por meio de uma carta da presário de comunicação tem esse poder todo e
Rádio Mayrink Veiga, enviada ao então ministro da pode indicar um ministro”, declarou a professora.
Viação e Obras Públicas Amaral Peixoto, em 1959. Por outro lado, Suzy entende que o novo ce-
A carta informava que a rádio estaria a serviço da nário apresenta atores concorrenciais muito fortes
campanha eleitoral da presidência da república, com a privatização das telecomunicações, a TV a
de forma “espontânea e desinteressada”, por de- cabo, a internet e a entrada de atores internacionais,
terminação do presidente da emissora. Segundo que levaram a um certo enfraquecimento da mídia
a professora, mesmo que a relação de compadrio tradicional. “No período autoritário eram só os ami-
estivesse presente desde o nascimento da radio- gos do rei e o rei mandava em tudo. O presidente
difusão brasileira, o mercado de comunicações, tinha um poder muito grande. Agora não mais”,
especialmente até o final da década de 1970, era avalia. Segundo Suzy, a partir da Constituição de
ainda muito incipiente. E isso fez toda a diferença na 1988, as outorgas passaram a ser dadas por meio
forma como o coronelismo eletrônico era exercido: de negociações com o Congresso Nacional.
um modo de operar do sistema de radiodifusão, Para o pesquisador Daniel Fonsêca, da UFRJ,
baseado num sistema de trocas entre figuras e havia uma interdependência, um sistema de re-
grupos oligárquicos. O governo Figueiredo (1979- troalimentação, mas o Estado tinha o poder de
1985), por exemplo, foi um praticante do método ascendência sobre o mercado e os empresários
ao utilizar as concessões como moeda de barganha dependiam muito mais do poder executivo. Era
política. um sistema de favorecimento no qual o setor
“Economicamente, era um mercado bastante tinha que apoiar Vargas porque senão perdia o
rico e que se fortaleceu muito nos anos 1970. Nos apoio estatal, exemplificou. Hoje há uma relação

Radis 148 • jan / 2015 [23]


bidirecional – tanto o governo depende dessas exemplos do sistema clientelista centrado em oligo-
lideranças quanto estas, para obter e renovar as pólios. “É um prejuízo à liberdade de expressão e ao
concessões, dependem das lideranças regionais e direito dos cidadãos à comunicação”, disse o jorna-
do governo federal. Atualmente, ele observa que lista Luiz Felipe Ferreira Stevanim, para quem, desde
houve a fragilização do poder desses líderes e do a década de 1980, com Sarney e Collor de Mello,
sistema televisão, devido a emergência de novos o coronelismo eletrônico não se mostrava tão pró-
serviços, hábitos de consumo e mídias. “Esse ximo da presidência da República quanto na cam-
movimento não alterou de todo a centralidade da panha eleitoral, em 2014. “Neto de um tradicional
rádio e da TV no Brasil, que ainda continuam sendo político, o candidato Aécio Neves possui ligações
os principais meios para práticas políticas e para o com três rádios, uma emissora de TV e um jornal”,
acesso à informação, que é um direito fundamental disse. Pesquisador da UFRJ, Luiz Felipe informou
da população brasileira”, observou. que Minas Gerais é o estado com o maior número
de concessões de TV educativa (27,08%) e segun-
do em número de instituições de ensino superior
Poder local
privadas. “Há uma convivência de novos negócios,
Para Venício, a partir de meados dos anos na radiodifusão e na economia do conhecimento,
1990, o coronelismo eletrônico passa a ocorrer, com empresas que possuem faculdades privadas”,
sobretudo, por meio de autorizações para rádios comentou. O pesquisador comentou também que
comunitárias e para emissoras de rádio FM, que são há forte vinculação entre políticos mineiros e TVs
locais. “Aí já se nota a barganha direta da União, educativas: em 2011, das 52 emissoras, 30 tinham
que é o poder concedente, para o poder local. E a ligação com políticos. O pesquisador afirmou ainda
intermediação desta barganha é feita pelos antigos que dos oito deputados federais eleitos por Minas,
coronéis, eles não desaparecem”. Segundo ele, em em 2014, seis são vinculados a empresas de rádio
nível local, na região e no município, faz diferença e TV e dois se inserem como líderes religiosos ou
ter ou não vínculo com emissoras de rádio, espe- midiáticos. “Em Minas, há um vínculo com a base
cialmente depois que os municípios se aproximaram eleitoral. Todas as concessões estão baseadas na
da União por meio da municipalização promovida cidade de origem, exceto por apenas um caso. E
pela nova Constituição. “Acho que o erro dos o coronel atua como um mediador entre a esfera
movimentos sociais que lutam pela democratização pública e a população, promovendo o acesso e
dos meios é não insistir nos conselhos estaduais a garantia de direitos”, disse ele. Além da família
de comunicação. Questões como as apresentadas Neves, em São João Del Rey, há a família Andrada,
aqui não têm um fórum para discussão. É assus- com base local em Barbacena; os Coelho, da cidade
tador ver o que acontece nos estados”, resumiu o de Ubá; e Varella, de Muriaé.
professor, depois do painel que abordou A Prática A pesquisadora Pâmela Pinto, da Universidade
do Coronelismo Eletrônico. Federal Fluminense (UFF), apresentou exemplos clás-
Nomes e sobrenomes como Antonio Carlos sicos de como a mídia se estruturou no Brasil a partir
Magalhães, na Bahia, Sarney, no Maranhão, Collor da centralidade absoluta da TV e a forma como ela
de Mello, em Alagoas, Jereissati, no Ceará, e Neves, chega a esses locais mais periféricos. “São parceiros
em Minas, além de Marinho, no Rio de Janeiro, e locais, regionais, que muitas vezes têm vínculos com
Sirotsky, em Porto Alegre, foram lembrados como políticos ou muitas vezes eles mesmos são políticos”.

Coronelismo
em documentos
O seminário organizou, em paralelo, uma exposição
de imagens de documentos que comprovam a
prática do coronelismo eletrônico — reproduções de
cartas, denúncias e investigações realizadas pelo Serviço
Nacional de Informações (SNI) que mostram como a
política de barganhas e o tráfico de influências fundou a
construção de muitos meios de comunicação no Brasil.

[1] Carta do diretor da Rádio Mayrink Veiga, Gilson Amado,


colocando a emissora à disposição de Cristiano Machado (PSD),
candidato à presidência da República (1950); [2] Denúncia contra o
governador Júlio José de Campos (PSD/MT) que pretenderia assumir
o controle político-econômico da TV Educativa de Mato Grosso
(1984); [3] Tráfico de influência no governo Iris Rezende (PMDB/GO)
privilegiando a Organização Jaime Câmara para obter, inclusive,
dividendos políticos (1984)
[1]
[24] Radis 148 • jan / 2015
Segundo ela, no Maranhão, com exceção da Rede Eu acredito que os dados deixam muito claros que
TV!, todas as emissoras pertencem a políticos. A não é uma realidade regional, ou localizada, mas é
pesquisadora informou que a família Sarney, por algo que compõe a estrutura midiática brasileira na
exemplo, possui o jornal O Estado do Maranhão, as sua totalidade, dos grandes aos pequenos meios,
rádios Mirante AM e FM, a TV Mirante, afiliada da TV nas relações de propriedade, regionais também, e
Globo a partir de 1991, além do Portal G1 Maranhão. na relação que os grandes centros vão estabelecer
Já a família Lobão é detentora de 84 outorgas entre com os menores e assim por diante”.
rádios e TVs, com cobertura em 143 cidades, e Um exemplo dessa prática coronelista foi dado
ainda é proprietária de uma emissora afiliada ao pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em
SBT. A pesquisadora citou ainda a ligação da família almoço na capital paulista, em 15 de novembro de
do senador Roberto Rocha (PSB) com a TV Cidade, 2014, e noticiado pela Folha de São Paulo. Ao ser
afiliada da Record, da família Ribeiro, que embora questionado sobre a necessidade de se diversificar
afastada da política, já frequentou os palanques e os meios de comunicação no Brasil, e se isto não
hoje possui uma emissora afiliada da Band. envolveria “quebrar alguns grupos econômicos”, FHC
A jornalista Janaine Aires, do PEIC/UFRJ, trouxe teria arrancado risos da plateia. O ex-presidente se
à discussão outro aspecto: os comunicadores que esquivou de responder e brincou, declarando: “Eu
ingressaram ou tentaram ingressar na política usando não falo de amigos”. Nos governos Lula e Dilma
a TV como palanque, entre eles Celso Russomano, não houve mudança no panorama das concessões.
ex-repórter de rádio e TV eleito deputado federal
pelo PRB de São Paulo em 2014, e do empresário e
Internet e democratização
apresentador Carlos Massa, o Ratinho, que depois
de se eleger vereador e deputado federal em Curitiba A internet seria uma saída para a maior demo-
fundou a Rede Massa, que abriga emissoras de TV cratização e acesso aos meios de comunicação? Na
afiliadas do SBT e de rádios FM. visão dos pesquisadores, mesmo o ambiente virtual
Janaine lembrou que Ratinho usou sua popu- apresenta limitações, como especificou Pâmela,
laridade nas eleições de 2014 para pedir votos para aproximando a discussão da realidade brasileira.
seu filho, Ratinho Júnior, quando concorria ao cargo “A internet, nos países desenvolvidos, se constitui
de deputado estadual, pelo PSC, também no Paraná como uma alternativa. Mas, o Maranhão, estado
[O filho do apresentador foi eleito com votação com alto índice de analfabetismo, o acesso aos bens
recorde de 300 mil votos]. “Há uma política dos ra- é difícil”, afirmou. Segundo ela, houve uma grande
diodifusores e consequentemente das elites políticas aposta do governador eleito na comunicação pelas
brasileiras. Essa relação gera impactos significativos redes sociais e em visitas que começaram dois anos
na mídia no contexto cultural e essa estrutura vai antes da eleição. “Ele estava preso em situação que
refletir no processo de produção e no conteúdo que não tinha como crescer. A articulação política entre
a gente vê no dia a dia”, afirmou. Questionada se interiorização e novas tecnologias talvez possa ter
esse seria um fenômeno mais centrado no Nordeste levado o candidato a ganhar a eleição”.
brasileiro, Janaine afirmou que não é possível restrin- O pesquisador, Marcos Dantas, da UFRJ,
gir o coronelismo a uma localidade ou região. “O lembrou que a internet revela assimetria entre o
coronelismo eletrônico reforça o preconceito ao ser acesso e a falta de democratização dos meios.
ligado a um fenômeno exclusivamente nordestino. “Corremos o risco de daqui a algum tempo termos

Acervo FGV/CPDOC

[2] [3]
Radis 148 • jan / 2015 [25]
fotos: caroline leite
PâmPâmela (E): exemplos de
como a mídia se estruturou
a partir da TV; André: figura uma divisão entre os que têm acesso à internet patologia existente no sistema de mídia no país”,
do coronel como alterego e à TV por assinatura e os que permanecem se diagnosticou Daniel.
da sociedade brasileira; Suzy: alimentando com a TV aberta, controlada pelos
concessões para premiar bom coronéis. Se a hipótese se confirmar, teremos
comportamento do mercado Coronel, coronéis
uma sociedade dividida”, alertou. Segundo ele, o
coronelismo eletrônico “não é apenas uma ques- O termo coronelismo eletrônico foi criado por
tão de o governo dizer isso ou aquilo, mas é todo militantes pela democratização da comunicação e
um conjunto de relações sociais que se cria, se acadêmicos, baseado no estudo de Victor Nunes Leal
sustenta e se retroalimenta”. O professor Edgard que publicou, em 1949, o livro Coronelismo, Enxada
Rebouças complementou: “A comunicação não é e Voto, que se debruça sobre o principal sustentáculo
só uma atividade econômica, é uma construção. político da República Velha (1889-1930) e mostra
Tem implicações no processo democrático”. como sucessivos governos estaduais e federais se ele-
Daniel Fonsêca concorda que não houve al- geram com os “votos de cabresto” dos grotões. Para
teração no panorama da radiodifusão. “A internet, Suzy dos Santos, a dimensão simbólica do coronel na
a telefonia e mesmo os novos serviços, como o mídia, na política e na identidade nacional deve ainda
whatsapp [aplicativo de mensagens instantâneas ser estudada. A professora questionou, inclusive, se,
para smartphones], não acabam com a influência em vez de coronelismo eletrônico, o mais adequado
do rádio e da TV ou rompem com os grupos que não seria utilizar o termo “coronelismo em tempos
controlam essa produção de conteúdo. Tanto que eletrônicos”, e ressaltou a particularidade do uso da
os principais portais de informação na internet patente: “O fato de alguém ser proprietário de um
são vinculados aos grandes grupos de mídia”. canal de televisão não faz dele um coronel”.
O que de fato vai ocorrer, segundo ele, e tende Na opinião de André Ricardo Heráclio do
a gerar um efeito mais impactante no mercado Rêgo, pesquisador da Universidade de Paris Ouest
de mídia no país, é o crescimento dos grupos de Nanterre-Arch de la Défense, na França, a figura do
telecomunicações, sobretudo os transnacionais, coronel talvez seja o alterego da sociedade brasi-
que vêm concorrer com o mercado de radiodifu- leira, desde a sua formação até os dias de hoje. “É
são brasileiro. “A sociedade civil tentava intervir líder, chefe, guerreiro, presente desde o começo da
nesta relação promíscua entre o parlamento e colonização. Esse fenômeno existe em todo o Brasil
os empresários de radiodifusão; hoje a grande e também fora dele, mas com outros nomes. E a
disputa é entre os grupos de telecomunicações e imagem desse coronel depende da competência
o grupo de radiodifusão”, disse. de quem a projeta”, afirmou o pesquisador, autor
Mas a questão não é só de mercado, salien- de livro no qual apresenta o coronelismo a partir
tou. Atualmente, mais do que o voto de cabresto, da investigação de um dos mais famosos coronéis
o que está em jogo é a produção de sentidos, brasileiros: o pernambucano Chico Heráclio, seu
ou seja, a forma como a mídia tenta promover e tio-avô. Para André Ricardo, o coronel é uma figura
manter seu poder de influência junto à socieda- ambígua, multivalente e, na maior parte das re-
de. Ele identifica que as mídias sociais ainda são giões, autoritária. Ele narrou o caso do major Cosme
pautadas por temas propostos pela televisão, de Farias, que era um benemérito: amava os pobres
mas que também já acontece o reverso: as TVs e era reconhecido por isso, e ressaltou que coronel
serem pautadas pelas mídias sociais, o que ele não se autoproclama. “Por mais que tenha o título
considera “retroalimentação de mídias”. “Este é da Guarda Nacional e patentes militares, quem dá
um país que depende muito desse sistema, que o título é o outro, é o povo. O coronel nunca se
nunca passou por reforma legislativa”, afirmou, chamava coronel por causa dele. Quem legitima o
lembrando que as leis datam do período em que coronel são seus correligionários e eleitores – ou
a TV era um meio precário, em preto e branco, e seus adversários. E isso vale para o bem e para o
não funcionava em rede nacional. “O coronelismo mal. Ou era intitulado coronel pelo lado positivo,
eletrônico é só um dos sintomas de uma grande ou pelo aspecto negativo”, resumiu.

[26] Radis 148 • jan / 2015


SANITARISTAS BRASILEIROS

Um dos idealizadores
do SUS, o sanitarista
participou ativamente de
movimentos políticos que
resultaram no desenho do
sistema público de saúde

foto: acervo coc/fiocruz


Eleutério Rodriguez Neto
UM MILITANTE Da
reforma sanitária
Ana Cláudia Peres revista Divulgação em Saúde para Debate, editada pelo

E
Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), foi inteira-
le já foi chamado de “pescador de utopias”. Mas mente dedicado a sua vida e obra. Na ocasião, o sanitarista
também era conhecido como “o mais pragmático e ex-presidente da Fiocruz, Sérgio Arouca, escreveu uma
dos pragmáticos”. Talvez para embarcar de corpo e carta emocionada ao seu “irmão, camarada”, lembrando
alma na luta pela Reforma Sanitária Brasileira fosse da participação de Eleutério na 8ª Conferência Nacional
preciso ser um pouco as duas coisas. Eleutério Rodriguez de Saúde (CNS).
Neto era assim. Defensor obstinado da saúde pública no Arouca dizia: “Estamos organizando a 12ª CNS, e você
Brasil e um dos idealizadores do SUS, costumava dizer que vai fazer uma falta danada na Comissão Organizadora. Na
lutava pelo sistema único possível naquele momento – eram Oitava, você deixou sua marca – deu o maior apoio como
meados da década de 1980, o país ainda vivia a transição secretário geral do Ministério da Saúde, fazendo o meio de
para uma democracia, mas ele não media esforços para campo com o ministro, escrevendo o texto preparatório para
tentar assegurar o direito universal à saúde em um sistema a discussão do tema Reformulação do Sistema Nacional de
democrático, descentralizado e participativo. Saúde, fechando o relatório final e também, nós sabemos
Há pouco mais de um ano, em dezembro de 2013, quanto, no discurso de abertura do presidente José Sarney”.
quando morreu vítima da Doença de Pick, Eleutério acu- Dono de uma retórica singular, Eleutério escreveu – e o então
mulava histórias em nome desse projeto de transformação presidente leu – o texto de boas vindas do evento, que aca-
social. Dez anos antes, em 2003, enquanto a doença neuro- bou se transformando em um marco para a saúde coletiva
-degenerativa já afetava seu comportamento causando fazendo com que a discussão sobre a saúde passasse a ser
esquecimento e alterações de humor, o número 28 da assumida pela sociedade de maneira mais ampla.

Radis 148 • jan / 2015 [27]


Redator da saúde quase dois anos de idas e vindas, relatou Arouca,
para conquistar o direito à saúde e a unificação do
“Faço votos de que esta Conferência, pela sistema no SUS e as diretrizes de descentralização,
abrangência de seus temas, pela profundidade de integralidade e participação popular. “Foi uma bela
seus debates, pelo clima de devotamento que está batalha – a sua – no seio da plenária de Saúde, que
presidindo as suas discussões, há de representar a ia desde as articulações políticas macro até ter que
pré-Constituinte da saúde no Brasil”. O sociólogo decidir, em cima do lance, como gosta de contar
Arlindo Fábio Gómez de Sousa, atual superinten- a Sonia Fleury, se num determinado parágrafo do
dente do Canal Saúde, da Fiocruz, amigo e compa- artigo x, inciso z, era e ou vírgula. Questões polí-
nheiro de jornada de Eleutério, lembra exatamente ticas candentes decididas na redação dos textos”,
essas palavras proferidas por José Sarney, cuja escreveu Arouca a Eleutério.
autoria podia ser reconhecida pelos ouvidos mais
atentos. “Se fôssemos uma torcida mais solta do
Em nome de Eleutério
que a que éramos naquele 1986, teríamos gritado
a plenos pulmões: Leleco! Leleco! Leleco!”, recorda Passadas mais de duas décadas, a sanitarista
Arlindo, fazendo referência ao apelido carinhoso Sonia Fleury, professora da Escola Brasileira de
dado ao gigante carismático. Arlindo diz que, Administração Pública e de Empresas da Fundação
depois disso, durante toda a Assembleia Nacional Getúlio Vargas (EBAPE/FGV) e amiga de Eleutério,
Constituinte, Eleutério continuou como “um pen- diz à Radis que ele teve papel inestimável no proces-
sador e ghost-writer de muitos dos autores de so de elaboração da luta pela Reforma Sanitária e
propostas sobre a Saúde”. também no desenho do SUS. “Inclusive o nome SUS
É que, para a Constituinte de 1987, os sanita- foi ferrenhamente defendido pelo Eleutério, pois
ristas levaram o acúmulo das discussões e debates havia outras pessoas que não concordavam com o
amadurecidos no movimento da Reforma Sanitária. Único, já que havia um setor privado suplementar
Como assessor legislativo nos 20 meses de duração já desenvolvido”, recorda. “Mas o Eleutério nos
da Constituinte, Eleutério se debruçou sobre os ter- convenceu que a noção de Único era imprescindível
mos e expressões necessários para dar forma final para definir o caráter político unitário de um sistema
ao conteúdo que vinha sendo elaborado a muitas público, que não poderia ser confundido com um
mãos, entre eles, a emenda popular que diz que sistema misto”.
“a saúde é um direito do cidadão e um dever do A professora afirma ainda que, hoje, quando
Estado”, como acabou sendo garantido no artigo o setor privado insiste em criar o Sistema Nacional
196 da Constituição Federal. de Saúde, em substituição ao SUS, para melhor
A pena de Eleutério ia, portanto, do discur- se beneficiar dos recursos públicos, fica claro que
so do presidente ao texto final de Saúde para a o argumento de Eleutério “era e será” sempre
Em um momento de lazer, Constituição. Na carta que escreveu para a publi- pertinente. “O SUS é um sistema único porque é
Eric Jenner Rosas, Sergio cação do Cebes, Arouca fez questão de rememorar público, não é nem deverá ser um sistema misto
Arouca e Eleutério tomam o trabalho que acabou virando o xodó de Eleutério de saúde, pois seria sua morte a incorporação da
mojitos em frente à famosa
Bodeguita Del Medio, em
na Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS): mercantilização da saúde no interior do público”,
Havana, Cuba: Companheiros “redigir, debater, negociar, reformular, articular reflete. “É contra essa incorporação subreptícia
de luta e de defesa da sobre o texto da Saúde para a Constituição”. Foram que vem sendo processada e também contra sua
saúde como direito

foto: christina tavares


foto: acervo radis

Reunião de sanitaristas:
Hésio Cordeiro (E),
oficialização, desejada pelo setor suplementar, que do Cebes todas as segundas-feiras, à noite; o mo- Sebastião Loureiro, Luiz
os defensores do SUS devem lutar, como sempre vimento sanitário; as Diretas Já; a Nova República; Humberto, Eleutério
fizemos ao lado do Eleutério”. a legalização do PCB; a 8ª Conferência Nacional Rodriguez e Lúcia Souto
de Saúde; a Constituinte; a Lei do Sangue e a Lei
Orgânica da Saúde. Em cada um desses momentos,
Militante e revolucionário
uma causa que ele abraçava, uma nova concorrente
Nascido em Campinas, em 21 de julho de para dividir a atenção do papai. Dentro do possível,
1946, Eleutério Rodriguez Neto foi aluno de uma comungávamos destes movimentos, com ele e,
das primeiras turmas do curso de Medicina da desta forma, estávamos mais próximos”
Universidade de Brasília (UnB). Depois de participar
SAIBA MAIS
de expedições pela região amazônica, abandonou a
Ações Integradas de Saúde
residência em Clínica Médica, que cursava na UnB, Divulgação em Saúde
para fazer mestrado em Medicina Preventiva, na Numa outra época, no início dos anos para Debate – Caderno
CEBES em homenagem a
Universidade de São Paulo (USP). É lá que mergulha 1980, Eleutério também ocupou funções no
Eleutério Rodriguez Neto
na chamada medicina social, em sua abordagem antigo Instituto Nacional de Assistência Médica http://goo.gl/0QMb0N
sobre os problemas médico-sanitários, e nunca da Previdência Social (Inamps), onde estruturou
mais abandona o campo. Eleutério foi professor da as Ações Integradas de Saúde (AIS). Amigo de
Documentário: 'Histórias
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Eleutério, o ex-ministro da Saúde José Gomes
do SUS – Eleutério
Departamento de Saúde Coletiva da UnB, onde fun- Temporão dividiu com ele essa experiência. Rodriguez Neto'
dou o Núcleo de Estudos em Saúde Pública (NESP). “Embora as AIS não trouxessem em si nenhuma http://goo.gl/t7lSuI
Foi também um dos criadores do Cebes, inovação, elas rompiam com a visão de atenção
presidindo a entidade por duas gestões distintas, primária como espaço de construção de modelos
ocupando ainda a vice-presidência de 1994 a 1996. alternativos, propondo-se a pensar toda a rede, o
“Ele entendia que era importante ter uma entida- setor privado, a incorporação tecnológica”, conta
de que agregasse e difundisse o pensamento da Temporão em artigo para a revista Divulgação.
Reforma Sanitária”, disse Ana Maria Costa, atual Segundo ele, o grupo de jovens sanitaristas
presidente do Cebes, no documentário Histórias convidados por Eleutério a fazer história dentro de
do SUS, realizado pelos integrantes do NESP/UnB uma instituição como o Inamps baseava sua ação
para relembrar a trajetória de Eleutério. No mesmo no ideário do que viria a ser, anos depois, a Reforma
vídeo, o professor Mourad Ibrahim Belaciano, do Sanitária. “Eleutério foi o cérebro por trás de todo o
Departamento de Saúde Coletiva da UnB, diz que processo”, diz. “Com sua liderança, capacidade de
Eleutério é a personificação de um revolucioná- análise e de coordenação, mantinha em níveis ele-
rio. “Ele realmente revolucionava onde quer que vados a motivação da equipe. Conjugava alto senso
estivesse, nas instituições ou movimentos sociais, de responsabilidade, carisma e bom humor”. Com
propondo reformulações que pudessem atingir à Eleutério, Temporão compartilhou ainda almoços
pessoa humana”, sugere o professor. “Sua ideia era e jantares oferecidos pelo amigo que não hesitava
criar espaços políticos institucionais para trabalhar em exibir seus dotes culinários, o gosto por bons
as tensões que havia no campo da saúde, buscando charutos, inúmeras confraternizações.
sempre as alternativas, as mudanças”. Se o SUS ainda não é uma experiência pronta
Militante 24 horas por dia, Eleutério teve dois e acabada, mas um projeto sempre em constru-
filhos com a companheira da vida inteira, Lúcia ção, Eleutério segue sendo uma referência. Talvez
Ypiranga. Em relato para a publicação do Cebes, a por isso, Arouca finalizou assim a carta que fez
filha Sylvia, que também é médica, dava conta da ao amigo: “Eu queria te escrever uma carta para
rotina em família, desde a época das reuniões clan- lhe dizer que toda a briga que você brigou, que o
destinas do Partidão: “Depois, veio o movimento trabalho que você investiu, que o projeto que você
pela Anistia ‘ampla geral e irrestrita’; as reuniões participou, deu certo!”

Radis 148 • jan / 2015 [29]


Saúde da mulher e da criança

O lugar das enfermeiras


e obstetrizes
Estudos apontam centralidade dessas
profissionais na melhoria da qualidade do
atendimento a gestantes e recém-nascidos

Elisa Batalha identificação e tratamento de patologias, para uma

A
abordagem sistêmica que forneça cuidados como
edição especial da revista científica inglesa um todo. Isso requer trabalho de equipe multidis-
The Lancet, de junho de 2014, é taxativa ciplinar e integração entre hospital e comunidade.
ao afirmar a importância e a eficácia da A Midwifery é definida nessa série como
assistência prestada a mulheres e bebês cuidado qualificado e contínuo ao longo da pré-
pela figura da midwife, em português, a obstetriz -concepção, gravidez, parto, pós-parto e nas
ou parteira com formação profissional. Segundo primeiras semanas de vida do recém-nascido, ba-
a publicação, elaborada por 35 especialistas em seado no conhecimento e empatia com gestantes,
um grupo multidisciplinar, a assistência ao pré- recém-nascidos e famílias. “Em alguns países, esse
-natal, parto e pós-parto – conceito que em in- cuidado integral é limitado por barreiras culturais
glês é condensado na palavra midwifery – é vital e existem sobreposições de papéis entre médicos
para enfrentar os desafios de fornecer cuidados obstetras, médicos de família, enfermeiras, parteiras
materno-infantis de alta qualidade a todas as mu- tradicionais, obstetrizes, agentes comunitários de
lheres e recém-nascidos, em todos os países. Para saúde e enfermeiras obstetras”, diz o texto.
os autores do estudo, investir nesse profissional
especialista no manejo do parto tem retorno tão
Redução de cesarianas
eficaz quanto o investimento em vacinação. “Desde
1990, os 21 países que foram mais bem sucedidos No Brasil, os estudos mostram que a presença
em reduzir as taxas de mortalidade materna, fize- de enfermeiras obstetras reduz o excesso de cesaria-
ram isso facilitando o parto através do emprego nas desnecessárias. Em maternidades onde os par-
de midwives”, afirmam. tos são assistidos por enfermeiros ou obstetrizes, a
As conclusões da publicação apoiam a mu- taxa de cesariana é 78% menor quando comparada
dança de uma assistência que atualmente é, na aos hospitais onde não há presença desse profis-
maior parte dos países, fragmentada, focada na sional no momento do parto, conforme apontou a
pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública
foto: bel junqueira

Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Silvana Granado, na


Conferência Internacional Ecos da 9th International
Research Conference – Normal é natural: da pes-
quisa à ação, realizada de 14 a 16 de outubro, no
Rio de Janeiro. Apenas 16% dos partos no país são
assistidos por enfermeiras obstetras, em sua maioria
pelo SUS, revelou Silvana, que participou do estudo
Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e
Nascimento (Radis 143), coordenado pela Fiocruz.
“A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece
que os enfermeiros obstetras e obstetrizes desem-
penham mais adequadamente e com menor custo
a assistência aos partos normais”, afirmou.
A pesquisadora relembrou que, desde 1986,
é assegurada aos enfermeiros e obstetrizes a tarefa
de assistir a parturiente e o parto normal, identificar
Esther Vilela defende a Rede
distócias (dificuldades encontradas na evolução de
Cegonha como alternativa ao
modelo centrado no hospital
um trabalho de parto) e tomar providências caso
e no médico: “Precisamos haja alguma complicação até a chegada do médico.
colocar o cenário do bom O Ministério da Saúde prevê na tabela do SUS, des-
parto para reduzir a cesárea” de 1998, o pagamento de parto normal, realizado

[30] Radis 148 • jan / 2015


foto:Salim Fadhley / Flickr
Obstetriz inglesa em ação,
no Reino Unido: prática
por enfermeiro obstétrico, com maior satisfação das explicou na conferência o médico obstetra Marcos é vital na garantia
mulheres e sem prejuízos nos desfechos maternos Dias, do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da do cuidado a mulheres
e pré-natais. Criança e do Adolescente Fernandes Figueiras (IFF/ e recém-nascidos
Fiocruz), em palestra sobre a formação do médico
obstetra no Brasil.
Casa de parto normal
No mesmo evento, foram discutidas pesquisas
No hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte, recentes no ramo de epigenética, mostrando que o
as gestantes de baixo risco são atendidas por en- tipo de parto faz diferença no desenvolvimento do
fermeiras obstetras em casa de parto normal (Radis sistema imunológico da criança, por ela ser exposta
117), e só são removidas para a maternidade se às bactérias do corpo da mãe antes de entrar em
desejarem anestesia, ou caso haja algum tipo de contato com o ambiente externo; e apontando tam-
complicação, quando passam a ser atendidas por bém que as alterações hormonais fisiológicas que
obstetras. Ali, o número de episiotomias – corte ocorrem durante o parto normal são determinantes
feito entre a região do ânus e da vagina durante o em muitos aspectos e a alteração do mecanismo
parto normal – foi reduzido drasticamente e hoje natural pode ter consequências evolutivas.
só é feito em 4% dos partos.
Nos anos 90, as episiotomias eram praticadas
‘Cultura do hospital’
ali em 60% dos nascimentos por parto normal. “Os
dados mostram que a queda mais drástica ocorreu “Para a medicina se apropriar do cuidado
entre os anos de 1998 e 1999 quando colocamos das mulheres foi preciso desnaturalizar o parto e
enfermeiras em todos os plantões. Caímos para a gestação, e criar a cultura do hospital”, explicou
10%”, explicou o diretor clínico do hospital, João Marcos. “O modelo atual é o modelo tecnocrático
Batista Marinho de Castro Lima ao Blog Maternar, do parto, em que o corpo feminino é visto como
publicado pela Folha de S. Paulo. Segundo ele, uma máquina defeituosa, sobre a qual o médico
após a prática deixar de ser rotineira, as lacerações tem o poder de normatizar”. O médico contou
que acontecem provocam uma lesão mais simples que, a partir do início dos anos 2000, começou a
do que a própria episiotomia, que é uma cirurgia e haver uma inflexão nessa visão do parto no Brasil,
leva a uma laceração de, no mínimo, segundo grau. embora o número de cesarianas hoje supere o de
“Quando me formei, há 31 anos, a cesariana nascimentos pela via natural. “Os residentes hoje
era vista como um ‘ato de bondade’, para ‘diminuir já viram e acompanham muitos partos normais.
o sofrimento da mulher’ e a episiotomia era vista Refiz minha formação para não ficar para trás”,
como um procedimento para proteger o períneo”, disse Marcos, que foi diretor da maternidade Leila

Radis 148 • jan / 2015 [31]


Diniz, no Rio de Janeiro. construção e reformas, temos 115 projetos em
“Pelo modelo centrado no hospital e no mé- andamento”, anunciou. O site do ministério dispõe
dico, estamos longe de ter enfermeiras vinculadas de projeto de Centros de Parto Normal, com plantas
desde o pré-natal à gestante. De um lado tem a e maquetes para baixar (ver Saiba mais).
cesárea, de outro, o parto conduzido de manei-
ra inadequada, com práticas desaconselhadas.
Currículo integrado
Precisamos mudar esse cenário para que a mulher
tenha acesso ao bom parto”, afirmou Esther Vilela, Segundo Carlos Maciel, diretor do IFF/ Fiocruz,
coordenadora do programa Rede Cegonha, do “a lei dá possibilidade, mas no dia a dia tem sido
Ministério da Saúde, no evento. “O Ministério da muito difícil o enfermeiro atuar no parto”. Ele revelou
Saúde está induzindo que os hospitais tenham que o projeto do novo hospital que será construído
enfermeiras obstetras. Manaus, por exemplo, já para o Instituto na região de São Cristóvão, no Rio de
contratou para todas as maternidades”, disse Esther. Janeiro prevê um centro de parto normal anexo. As
No entanto, para ela, é importante que toda aten- mudanças incluem também a formação profissional,
ção ao parto seja redesenhada, um dos objetivos durante o internato (estágio) e residência “Haverá
do Rede Cegonha. “Não adianta levar enfermeiras um internato conjunto, e residências conjuntas para
obstetras para incorporar um modelo antigo”. médicos e enfermeiras”, contou.
Segundo Holly Powell Kennedy, do American
College of Nurse-Midwives (Faculdade de
Cenário do bom parto
Enfermagem Obstétrica, localizada em Maryland,
“A Rede Cegonha vem justamente qualificar as EUA), o trabalho colaborativo na equipe profissional
práticas de cuidado ao parto e nascimento e ao pré- é fundamental. A enfermeira, que atuou no exército
-natal. Queremos superar esse modelo tecnocrático, dos Estados Unidos por mais de 30 anos, afirmou
mecanicista, centrado no hospital e somente na que a tendência é a adoção do currículo integrado
figura do médico, que resultou em 53% de cesa- e universal. “Está aumentando o número de enfer-
rianas. Precisamos colocar o cenário do bom parto meiras obstétricas atuando na formação médica”,
para reduzir a cesárea”, declarou a coordenadora, declarou, reforçando que a colaboração entre as
lembrando as normativas da Agência Nacional de profissões é necessária e benéfica para as mulheres.
Saúde Suplementar (ANS), que foram postas em “Somos membros de equipes interdisciplinares,
consulta pública em outubro de 2014, com medidas mas fomos educados e socializados nas nossas
que obrigam o hospital e o profissional a informar profissões. Há falhas na comunicação e competição
as taxas de cesarianas praticadas. Medidas previstas entre as categorias”, observou. A plateia, em sua
incluem ainda a recomendação de acompanhamen- maior parte formada por enfermeiras, reagiu posi-
to do andamento da evolução do trabalho de parto tivamente e quis saber da palestrante como mudar
pelo partograma (reprodução gráfica da evolução a visão de que o enfermeiro é um médico frustrado.
do trabalho de parto) e proibição de cesariana “O desrespeito entre profissões existe em outros
eletiva antes das 36 semanas de gestação. A ANS países também, mas isso pode mudar”, disse Holly,
determinou também em novembro que seja dis- acrescentando que “não adianta ir embora para a
tribuído para as usuárias de operadoras de planos casa chorando ao presenciar práticas inadequadas
de saúde a Caderneta da Gestante (semelhante à ou após uma discussão com um colega de equipe”.
utilizada no SUS), contendo a Carta de Informação A Universidade de São Paulo (USP) oferece, des-
a Gestante. O documento é um instrumento de de 2005, um curso de graduação em Obstetrícia, que
registro das consultas de pré-natal que contém os pertence à Escola de Artes, Ciências e Humanidades
principais dados de acompanhamento da gestação, (EACH). Localizado no campus Leste, na capital pau-
devendo permanecer em posse da paciente e ser lista, o curso forma bacharéis em Obstetrícia, com
apresentado na maternidade quando for admitida entrada direta. De acordo com a coordenadora do
em trabalho de parto. curso, Nádia Zanon, as egressas são registradas e
Para ampliar a inserção da enfermagem obs- têm encontrado espaço para atuar no mercado de
tétrica e a melhoria da qualidade da assistência trabalho. Durante o estágio no Hospital Universitário
ao parto, Esther afirma que é preciso investir em da USP, no entanto, conforme contou Nádia, as
formação profissional e em espaços adequados. alunas se deparam com um cenário no qual as
Segundo ela, existe carência de profissionais. práticas não se respaldam em evidências – como
“Estamos investindo em dois eixos. Um é a forma- uso de fórceps de rotina e episiotomia em todas as
ção de enfermeiras obstetras, pois temos muito primíparas (grávidas que vão dar à luz o primeiro
poucas”, contou ela. O Reino Unido, por exemplo, filho), nos partos assistidos por médicos obstetras e
tem cerca de 100 milhões de habitantes e 40 mil residentes. Segundo ela, para mudar esse cenário
midwives registradas, enquanto que o Brasil, com violento, “o Brasil precisa de obstetrizes”.
população de 190 milhões, conta com apenas 5 mil
profissionais registrados na Associação Brasileira
Parteiras pelo mundo
de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo).
“Entre cursos de aprimoramento, especialização Leslie Page, presidente do Royal College of
e residência, estamos abrindo um total de 1.154 Midwives – instituição corporativa britânica que
vagas”, contou. “Algumas profissionais precisarão se regula a profissão de obstetriz - compareceu ao
atualizar, pois nunca puderam atuar efetivamente”. evento no Rio de Janeiro e contou que, no Reino
O outro eixo é a construção de centros de parto Unido, “nem todas as grávidas e parturientes são
normal, onde a assistência ao parto natural é feita acompanhadas por médicos, mas todas passam por
integralmente pela enfermeira obstetra. “Entre uma midwife”. O ofício é regulado e tem formação

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foto: bel junqueira

Leslie Page, presidente do


Royal College of Midwives,
específica, explicou Leslie, lembrando que existem “Há casos de mulheres que se sentiram ‘evisceradas’ no Reino Unido, elogiou
também homens entre os profissionais. A parteira e não tiveram respeitadas suas decisões”. Hanna iniciativa brasileira: respeito
veterana, que administrou diversos serviços no defendeu que não se deve “julgar essas mulheres, pela mulher aumenta
Reino Unido e no Canadá, elogiou os esforços achando que elas não se importam com a saúde segurança nos partos
brasileiros em modificar o modelo de atenção. “O dos seus bebês”, uma vez que têm sido observados
Brasil está fazendo muito. Por estudos, sabemos que melhores desfechos de saúde física e mental em
no mundo todo, quando a assistência é privada, as partos domiciliares naquele país. “Se o parto no Saiba mais
taxas de cesariana são altas. O tipo de mudança hospital não respeitar a mulher, vamos empurrá-la
Projeto de Centros de
que queremos é de visão, e a equipe é importante. para situações perigosas. A orientação é de que se a Parto Normal disponíveis
Aumentar o respeito entre os profissionais e pela mulher diz não, é não. Acabou a história. Temos que no site do Ministério da
mulher aumenta a segurança dos partos”. oferecer um serviço que as mulheres aceitem, e não Saúde (com plantas e
Leslie também apresentou números de es- o contrário. O maior órgão envolvido no nascimento maquetes)
tudos internacionais que trazem evidências dos é o cérebro”, concluiu. http://migre.me/nlz34
benefícios das parteiras. “O parto é mais seguro, No Brasil, algumas mulheres optam por ter
tem menos intervenções, menos prematuridade, seus filhos em casa, sob supervisão de médico(a)
O que faz uma obstetriz?
menos morte fetal”, resumiu. No mundo todo, obstetra ou de enfermeiro(a), mas esse tipo de http://www.each.usp.br/
apontou Leslie, existem grandes contrastes entre assistência não está prevista pelo SUS. Waldecyr obstetricia/perguntas.htm
mulheres desassistidas e o excesso de interven- Herdy, presidente da Associação Brasileira de
ções. “O apoio humano é o mais importante, é Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo)
algo crucial para qualquer sociedade civilizada. defende que o assunto seja discutido. “Devemos
É preciso também ajudar a melhorar o status da pensar no parto domiciliar como processo político
mulher na sociedade para salvar vidas. Existem de saúde pública”, afirmou na mesa de abertura
lugares onde as parteiras são ameaçadas de morte. da conferência. Sobre o assunto, Esther Vilella res-
É difícil trabalhar eficazmente sob opressão e invisi- pondeu com cautela. “Temos que olhar com muito
bilidade”, defendeu Leslie, para quem é importante cuidado para essa questão, porque a discussão so-
ainda não deixar de lado o aspecto psicológico, da bre o modelo de parto ainda não tem maturidade.
satisfação da mulher com a assistência e o apoio O parto domiciliar é de domínio da vida privada.
obtidos na gestação e no parto. “Em muitos países Eu não vejo condições políticas e técnicas neste
o suicídio é a principal causa de morte materna. A momento. Estamos avançando cuidadosamente
saúde mental é crucial”, declarou. para não haver retrocesso, e para não por em risco
Hanna Dahlen, docente em obstetrícia na a vida e a autonomia das mulheres”.
University of Western Sydney, na Austrália, contou Para Waldecyr, é importante “não perder a
que em seu país o medo dos maus-tratos durante possibilidade de inclusão da enfermagem obstétrica
o parto tem levado mulheres a realizarem parto e construir a rede de mudanças em trabalho coletivo
desassistido, ou seja, sem acompanhamento de com gestores, para garantir a inserção da enfermeira
nenhum profissional de saúde. “Muitas mulheres obstétrica e da obstetriz”. Ele lembrou que mais de
têm se recusado a ir para hospitais terem seus filhos. 20% das internações pelo SUS são por razão de
Isso é uma espécie de termômetro, que mostra que trabalho de parto, parto e puerpério: “Precisamos
a atenção ao parto não é satisfatória”. Ela afirmou mudar a qualidade dos partos, que hoje são violen-
ainda que o que motiva muitas vezes a mulher a tos. O desafio de redesenhar o cuidado é de toda a
evitar os serviços de saúde são traumas anteriores. sociedade brasileira”, ressaltou.

Radis 148 • jan / 2015 [33]


serviço

EVENTOS Periódico e de Fábio Magalhães, conselheiro do


Instituto Vladimir Herzog, que trata sobre
arte e preocupação social no Brasil.
SEMCOM 2015 Alimentos e saúde
A 4ª edição do volume
2 da revista eletrôni- Educação e libras
ca Visa em Debate: Vencedor da categoria educação do prê-
Sociedade, Ciência mio Jabuti, Tenho um

A 8ª edição do Seminário de Investigação


da A ssociação Latinoamericana
de Investigadores da Comunicação
& Tecnologia discu-
te os impasses, os desafios e as perspec-
tivas da relação entre vigilância sanitária
aluno surdo, e agora?
Introdução à Libras
e educação de sur-
( SEM CO M /A l ai c ) te r á co m o te m a e a promoção da alimentação adequada dos (EdUFSCar), organiza-
Comunicação, cultura e desafios da e saudável, propondo contribuições para do pelas fonoaudiólogas
contemporaneidade e será organizado o debate que envolve alimentos e saúde Cristina Broglia Feitosa de
pela Alaic, em parceria com a Associação coletiva. A publicação reúne uma seleção Lacerda e Lara F. Santos,
Portorriquenha de Programas Acadêmicos de 15 contribuições de pesquisadores de reúne textos que se pro-
de Comunicação (Appac) e Universidade diversas regiões do Brasil, que abordam põem como material de introdução à edu-
Metropolitana, que sediará os encontros. temas como comida de rua, patógenos cação de surdos, levantando questões sobre
O seminário recebe resumos até 30 de ja- emergentes, agricultura familiar, produção a abordagem bilíngue e Libras, e fornecendo
neiro, que devem ter relação com os subte- artesanal de alimentos, vigilância alimen- subsídios para os professores de ensino fun-
mas propostos: Redes e conectividades no tar e nutricional, conflitos de interesses damental que têm alunos com deficiência
espaço ibero-americano de comunicação; entre governos e setores privados, os auditiva e precisam compreender melhor os
economia do conhecimento e investigação embates da regulação, além da impor- desafios à sua volta.
em comunicação; desafios e caminhos da tância dos processos comunicacionais. A
investigação em comunicação contempo- publicação pode ser acessada em www.
rânea; tecnologias e plataformas e narra- visaemdebate.incqs.fiocruz.br/index.php/ Informação, educação e saúde
tivas e formações discursivas emergentes visaemdebate/issue/view/13 Informar e educar em Saúde: análises
da comunicação. e experiências organi-
Data 25 a 27 de maio de 2015 LIVROS zado por Ana Cristina de
Local Universidade Metropolitana, San S. Mandarino, Edmundo
Juan, Porto Rico Gallo e Estélio Gomberg
Informações www.seminarioalaic2015.
Avaliação política
(Editora Fiocruz/Edufba)
com e semcom2015@suagm.edu O rganiz a d o p e l o s p rofe s s o re s da integra informação, edu-
Univer sidade Federal cação, comunicação e
de Pernambuco (UFPE) saúde em abordagem
19º Simpósio Internacional Vilde Menezes, do de- multidisciplinar e discute estratégias para
de Atualização em Psiquiatria partamento de Educação implementar ações em prol da saúde. São
Geriátrica Física, e Petrônio Martelli, 13 textos que trazem temas como a utili-
do depar t amento de zação do conhecimento científico na ges-
Medicina Social, Estudos tão da saúde; repositórios institucionais
sobre políticas públi- das universidades como ferramentas de
cas em saúde em Recife 2000-2012: acesso aberto à informação; dificuldades

P romovido pelo Programa Terceira


Idade (Proter) e pelo Instituto e
Departamento de Psiquiatria do Hospital
Reflexões, críticas e legados (Editora
UFPE) é uma coletânea de pesquisas sobre
políticas públicas de saúde realizadas na
na comunicação de riscos; jornalismo em
saúde, bioética; e meio ambiente.

das Clínicas da Faculdade de Medicina da cidade do Recife nas três últimas gestões
Universidade de São Paulo (HC/FMUSP), do Partido dos Trabalhadores, tendo como
o evento discutirá temas como dor e objeto de análise ciência, ética e política.
transtornos psiquiátricos no idoso e in- E ndereços
tervenções para cuidadores de pacientes
idosos, em mesas-redondas, e terá a
Direitos humanos Editora UFPE
participação do conferencista Aartjan T.F. Parceria entre Ministério da (81) 2126.8397 e (81) 2126.8930
Beekman, do Departamento de Psiquiatria Cultura, Governo Federal, www.ufpe.br/edufpe
da Universidade de Amsterdã (Holanda). Caixa Econômica Federal livraria@edufpe.com.br
Destinado a clínicos gerais, geriatras, e Editora Instituto Vladimir Editora Instituto Vladimir Herzog
neurologistas, psiquiatras, gerontólogos, Herzog, Declaração (11) 2894.6650
psicólogos, neuropsiquiatras, terapeutas Universal dos Direitos http://vladimirherzog.org/vlado-editora
ocupacionais, enfermeiros e demais profis- Humanos – 30 artigos contato@vladimirherzog.org
sionais da área de saúde, recebe resumos ilustrados por artistas EdUFSCar
até 10 de março. tem design gráfico assinado por Chico (16) 3351-9621 e (16) 3351.9623
Data 20 e 21 de março de 2015 Homem de Melo e traz cada um dos artigos www.editora.ufscar.br/
Local Anfiteatro do Instituto de Psiquiatria do documento ilustrados por renomados contatos@ufscar.br
HC FMUSP, São Paulo, SP artistas brasileiros. A obra também inclui
Editora Fiocruz
Informações www.blcongressoseventos. textos da jurista Flávia Piovesan, reconheci- (21) 3882-9039 e (21) 3882-9006
com.br, (11) 2046.0314 e (11) 99882.9988 da por sua militância na causa dos direitos editora@fiocruz.br
ou bleventos@uol.com.br e blcongresso- humanos, que escreve sobre a história da www.fiocruz.br/reditora
seventos@gmail.com Declaração da ONU e suas consequências,

[34] Radis 148 • jan / 2015


pós-tudo

Sinédoque
da SAÚDE
do homem
Para ser eleita como rastreável, portanto, essa doença precisa
Bruno Pereira Stelet
ser frequente na população, ter um desfecho grave (causar

O modelo campanhista compõe um espectro de ações governa-


mentais na Saúde Pública no Brasil e data do início do século
passado. Apesar de criticadas pela baixa eficácia no cumprimento
morte ou incapacidades) e haver um tratamento disponível e
acessível. O procedimento de rastreio ofertado deve ser seguro,
confiável e de baixo custo.
de seus objetivos, as campanhas são utilizadas principalmente pela No caso do rastreio do câncer de próstata, as evidências
lógica da prevenção ou da promoção da saúde: campanha para se científicas não sustentam o PSA ou o toque retal como proce-
usar camisinha (e prevenir DST/aids), para promover o aleitamen- dimento efetivo, ou seja, não diminuem a mortalidade e até
to materno (e prevenir o desmame precoce) ou vacinação (para aumentam o número de casos falso-positivos. Várias instituições
prevenir doenças e/ou complicações destas). Pode-se fazer cam- no mundo e no Brasil vêm se posicionando contra o rastreio
panha sobre inúmeras condições ditas evitáveis ou para estimular do câncer de próstata: O U.S. Preventive Services Task Force,
a população a inserir práticas saudáveis no seu cotidiano. em 2012; o Canadian Task Force on Preventive Health Care,
A baixa eficácia das campanhas como ferramenta de em 2014; a Associação Americana de Urologia, em 2014, e o
prevenção não implica deixá-las de lado. Pelo contrário, é pre- próprio Instituto Nacional do Câncer (Inca). Na estimativa que
ciso qualificá-las e melhorá-las de maneira a fazerem sentido e fez para a doença em 2014, o Inca recomendou que: “A orga-
afetarem de fato os sujeitos que se deseja sensibilizar. O papel nização de programas de rastreamento do câncer de próstata
informativo desta estratégia é condição básica para que as pes- não está indicada, pois ainda existe considerável incerteza sobre
soas reflitam, discutam e tomem decisões acerca dos cuidados a existência de benefícios associados a essa prática e, por outro
com a saúde. Campanhas, como toda ação educativa, são mais lado, evidências científicas de boa qualidade demonstram que
uma aposta, e nunca uma garantia. essa intervenção produz danos importantes para a saúde dos
Diz o ditado popular: “prevenir é melhor que remediar”. homens. Portanto, ações de controle da doença devem focar em
Porém, estratégias de prevenção podem ser danosas e iatrogê- outras estratégias, como a prevenção primária e o diagnóstico
nicas. No âmbito da Medicina de Família e Comunidade (MFC), precoce”. Diferentemente do rastreamento (que se ocupa de
no país e no mundo, tem sido debatido o conceito de Prevenção populações saudáveis), o diagnóstico precoce oferece exames
Quaternária, definido como ação para identificar pessoa ou grupo e/ou procedimentos para pacientes que apresentem sintomas
em risco de supermedicalização, protegê-las de uma intervenção (no caso da próstata, seriam principalmente alterações da mic-
médica invasiva e sugerir procedimentos científica e eticamente ção e da ejaculação). Vale lembrar que o câncer de próstata,
aceitáveis. O grupo de trabalho em Prevenção Quaternária da em geral, apresenta crescimento lento e o tratamento permite
Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) boas taxas de cura. Informar e compartilhar as decisões com
tem promovido inúmeros debates em sua página no Facebook. cada paciente parece ser a melhor estratégia até o momento.
É por esta lente que gostaria de comentar a reportagem As campanhas de saúde do homem devem se apoiar na
A língua dos homens (Radis 145) e a campanha mundial PNAISH e no debate sobre violência, acidentes de trânsito, abuso
Novembro Azul, apoiada pelo Ministério da Saúde. A revista de álcool e outras drogas, estímulo à atividade física e alimenta-
publicou um belo artigo sobre a complexidade das políticas de ção saudável, saúde do trabalhador, além das discussões sobre
saúde do homem, cujo foco foi a Política Nacional de Atenção práticas sexuais, sexualidade e paternidade. Há todo um universo
Integral à Saúde do Homem (PNAISH); autocuidado, paterni- masculino que as tais campanhas deixam de lado ao reduzir a
dade e o debate sobre “outras masculinidades” foram pontos saúde do homem à próstata. A cada Novembro azul ou Outubro
fortes listados no texto. Por outro lado, ao falar de prevenção rosa percebo o quanto a Integralidade em Saúde, princípio do
de agravos mais comuns na população masculina, a reporta- SUS, precisa ganhar visibilidade nas campanhas de saúde (ainda)
gem parece reforçar, assim como a campanha Novembro Azul, fragmentadas. A parte pelo todo, sinédoque da saúde do homem,
a questão da prevenção ao câncer de próstata por meio do definitivamente não precisa ser a próstata.
rastreamento. Rastrear uma doença consiste em oferecer um
procedimento médico (exames, por exemplo) a um determinado
grupo da população – a princípio saudável – com objetivo de Professor do Departamento de Medicina de Família e Comunidade
identificar pessoas que possam não saber que estão doentes. – UFRJ e Mestre em Saúde Coletiva

Radis 148 • jan / 2015 [35]

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