You are on page 1of 2
CANDIDO, Antonio, "A vida ao rés-do-chto", In: Para gostar de ler: erdnicas. Volume 5.80 Paulo: Atica, 2003. pp. 89-99, Avida 20 és do-chio ‘A cronica ndo é um "gtnero maioe”. Nao se imagina um literatura feta de grandes eronistas, que Ihe dessem 0 brilho universal dos grandes romancistas,dramaturgos ¢ poctas. Nem se pensiria em aribur o Prémio Nobel a um cronst, por melhor que fosse.Portnto, parece mesmo que a ernica & tum género menor. "Gages « Deus’, seria o caso de dizer, porque sendo asim cla fica perto de nés.E para muitos pode servir de caminho nao apenas para vide, que ela serve de pero, mas para literatura, como dizem os quatro cronistas deste livro na linda inttoduglo 90 prime volume da série. Por meio dos assuntos, da composigdoaparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajuste& sensibilidade de todo o dia Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de pero ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretenso, humanize; cesta humanizagdo Ihe permite, ‘como compensaglo sortcira, recuperar cOm & ouira mio uma ceria profundidade de significado ¢ um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreia candidata& pericilo. E © que o leitor veri em muitas que compoem este volume © 05 que © precederam na mesma série. Mas antes de chegar nels, vamos pensat um pouco na_prépria ernica como genero. Lembr, por exemplo, que o fo de fica th peto do dita ‘ia age como quebra do monumental © da éniase. NBo que esta coisas sejam necessariamente ruins. Hé estlos roncantes mas eficientes, ¢ muita ‘gandilogGncia consegue nfo s6 arepiar, mas nos deixar honestamente admirados. O problema é que a magnitude do. assunto © a pompa da Tinguagem podem atuar como disfarce da realidade ¢ mesmo da verdade. A literatura corte com freqdéacia est risc, cujo resultado € quebrar no leitor a possbilidade de ver as cosas com retidso € pensar em conseqAncia disto. Or, a crOnica esti sempre ajudando a esabelecer ou restabelecer a dimensio ‘as coisas © das pessoas. Em lugar de ofercer um cendrio excelso, numa revoada de adjetivos © periodos candentes, pega 0 middo © mostra nele tuna grandeza, uma beleza ou uma singulardade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais direias ¢ também nas suas formas mais fantéstcas,-sobretudo porque quase sempre utiliza © humor. Isto acontece porque nto tem pretensdes dura uma ver que ¢fiha do jomal da era da méquina, onde tudo acaba ito deprssa. Ela nfo fo fein crigiariamente para o ivro, mas para essa publicagto efEmera que so compra num dia eno dia seguinte¢ usada para embralhar um par de saputos ou far o chto da cozinha. Por se. abrigar neste veiculo trasitério,o seu intuto nlo é o dos escritores que pensam em "fear, iso é permanecer na Jembranga e na admiragao da postridade; a sua perspectiva nfo € a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples és-do-chio. Por isso ‘mesmo consegue quase sem querer transformar a literatura em algo immo com relago & vida de cada ur, e quando passa do joral go lvro, nés Yetiicamos meio espantados que a in dirabilidade pode ser maior do que cla prpria pensava. Como no preceto evangélico, o que quer slvar-se acaba or perder-s: © 0. que nfo teme perderse acaba por se selvar. No caso da exdnica,talver como prémio por ser tio despretensiosa, insinuante€ reveladora. E também porque ensina a conviver intimaments com a palavr,fazendo que ela. ndo se dissolva de todo ou depressa demais no contexto, mas. ganhe -elevo,permitindo que oleitorasinta na fora dos seus valores proprio. Retifieando 0 que ficou dito aris, ela no nasceu propriamente com 0 jornel, mas 36 quando este se tomou quotiiano, de tiragem reativamente grande e ter accessive, isto ¢, hd uns cent e cingdenta anos mais ou menos. No Brasil ela tem wma boa hstia, © até se poderia dizer que sob varios tpectos & um género brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui ¢ a originslidade com que aqui se desenvolveu. Antes de ser cOaica propriamente dita foi lhetim’, ow seja, um artigo de rodapé sobre as questes do dia,~ polities, sociais, artistica, litres. Assim cram os da Seeqio "Ao correr da pena", titulo significaivo a cua sombra José de Alencar escrevia semanalmente para o Correio Mercantil, de 1854 a 185S. Aos ppoucos 0 “flhetim” foi encurtando ¢ ganhando ceta gafuidade, certo ar de quem esté escrevendo a to, sem dar muita importéncia. Depos, erou Francamente pelo tom ligeiroe encolheu de tamanho, até chegtr ao que & hoje. ‘Ao longo deste percurso, foi largando cada vex mais infeng0 de informar © comentar (deixade «outros tipos de jommlismo), para ficar sobretudo com a de divert. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada ¢(fato decisivo) se afastou da Wigica argbmentative ou da critica politica, pare penetra poesisadentro. Creio que fGrmula mosema, onde entra um flo miido e€ um toque humeristico, com © seu quantum sas de Poesia, represena o amadurecimento €0 enconito mais puro da crénica consigo mesma. ‘No século passado, em José de Alencar, Francisco Otaviano e mesmo Machado de Assis, ainda se notava mas o core de artigo leve. Em Franga Jniorj¢nitida uma redugdo de escala nos temas, ligada ao incremento do humor e o certo toque de gratuidade. Olavo Bile, mestre da extnicaleve, ‘garda um pouco do comentrio antigo mas amplia a dose pottica, quanto Jato do Rio se incl para © humor o sarcasm, que contrabalangam um ouco atara do esnobismo, Eles ¢ muitos outros, maiores e menores, de Carmen Dolores ¢ Jodo Ls até 0s nossos dias, conribuiram para fazer do [nero este produto sui generis do joralismo litertio brasileiro que ee € hoje. "A leitara de Bila ¢instrutiva para mostrar como a crtnica jaestava brasicira, gratuita © meio lirico-humorstica, a ponto de obrgi-o a amainar 4 linguagem, a descascila. dos adjtivos mais retumbantes ¢ das construgbes mais raras, como 25. qve_ocorrem 1a. sua poesia na prosa das suas ‘onfertncias © discursos. Mas que encolhem nas crénicas. & que nelas parece nfo caber a sintaxe rebuscada, com inversdes frequentes; nem 0 ‘ocebulério'epulento", como se dizi, para signifcar que er variado, modulando sinOnimos palavras to raras quanto bem soantes, Num pais como ‘0 Brasil, onde se_costumava identifcarsuperoridade intelectual eliteriria com grandiloqdéncia ¢ equinte gramatical, a crbnica operou milagres de Simplificagdo e naturalidade, que aingram © ponto maximo nos nossos ias, como se pode ver nas deste ivr. ‘0 seu grande presigio tual é um bom sintom do processo de busca de oralidade na escrita, isto é de quebra do artfcio ¢ aproximagto com ‘que hi de mais natural no modo de ser do nosso tempo. E sto € humanizagto de melhor. Quando vejo que os prfessores de agora fizem os alunos leem ada ver mais as ctnicas, fio pensando nas leturs do. mau tompo de secundério. Fico comparando © vendo a importincia deste agente de uma ‘isto mais modem na sue simplicidade reveladora penetrant, "No meu tempo, enre as letras preferidas para a sala. de aula estavam os discursos: exérdio do sermilo de Sto Pedro de Alcdntara, de Monte [Alveme; trecho do Sermo da Sexagesima, de_Vieirs; Oragdo da Corea, de Deméstenes, na tradugio de Latino Coelho; Ruy Barbosa sobre o jogo, 0 Chico, missto dos mogos. Um sinal ds tempos ¢ essa pessagem do discurso, com a sua inflagdo verbal, para a crnica, com o scu tom menor de cosa familiar “Acho que foi no desénio de 1930 que a crénica moderna se definiu ¢ eonsolidou no Brasil como género bem nos, cultivado por um niimero crescome de escritores © jomalistas, com os seus rotineirs ¢ os seus meses. Nos anos 30 se afimaram Mério de Andrade, Manuel Bandera, Carlos Drummond de Andrede &apareceu aqucle que de certo modo seria 0 cronista,voltado de mancirapraticamente exclusiva para este gnero: Rubem Braga. “Tanto em Drummond quanto neleobservamos um trgo que no éraro ne configuraso da moderna crnica brasileira: no esl, a confluéneia de tradigto.digames cléssica, com a prosa modemist. Essa formula foi bem manipalada em Minas (onde Rubem Braga viveu alguns anos decsivos da vida) {dela sc benefilaram os gue surgiram nos anos 40 ¢ 50, como Femando Sabino ¢ Paulo Mendes Campos. E como se (imaginemos) a linguagem Seen limpida de Manoel Bandeia, coloqual ¢ corretissima, se misturesse 20 ritmo falado de Mario de Andrade, com ume pitada do arcalsme rogramado pelos mineiros [eles todos, e alguns outros que nilo esto aqui, como por exemplo Rachel de Queiroz, hé um tra comum: deixando de ser comentirio mais ot rmenes argumentativo e expositive para virar conversa aparentemente finda, foi como se a crfnica pusesse de lado qualquer seriedade nos problemas. Mas observem bem as deste vo. £ curios como elas mantém oar despreocupado, de quem esti falando coisas scm maior conseqdéncia; ene

You might also like