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Embora nascida a partir de uma funda raiz africana, a arte afro-brasileira teve um longo percurso de
séculos que lhe possibilitou, não só uma visível autonomia, como uma criatividade própria. Ela percorreu
uma trajetória de trocas, sobretudo com os europeus, no seio de um mundo escravocrata e católico que
lhe acarretou perdas e ganhos, continuidade e mudança, sem contudo ter havido uma ruptura.
Essa arte permaneceu realimentada pela seiva africana que lhe inspira uma visão de mundo herdada do
continente negro, mas sujeita a uma dinâmica proveniente da evolução da sociedade brasileira. Participou
de tal modo na construção e desenvolvimento dessa sociedade que, pioneiramente, Gilberto Freyre
considerou o negro como “um co-colonizador, apesar da sua condição de escravo”. Após a Abolição ele
continuou sofrendo uma enredada, mas pertinaz discriminação racial.
A arte africana, presente nas sociedades predominantemente rurais, não tem o propósito de ser uma
reprodução literal da realidade ou um objeto de pura contemplação, embora o seja também de deleite
espiritual e estético.
A sua função primordial é a de produzir valores emocionais para as comunidades às quais pertence e que
possuem um saber cultural já estabelecido. Por via disso, as pessoas dessas comunidades têm uma
capacidade de compreendê-la que antecede qualquer reflexão. São apreciadas não pelo que apresentam,
mas sim pelo que representam.
A também chamada “arte negra” acompanha a vida da comunidade, é instrumento da sua relação com o
espiritual, participando dos ritos e rituais da vida doméstica desde o nascimento, os ritos de passagem,
passando pela morte e continuando na perene ligação com a ancestralidade.
Essa arte africana não tem compromisso com o retrato da realidade. Ela se apresenta sem a simetria e a
proporção que poderíamos esperar. Quase sempre a cabeça é demasiado grande, pois ela representa a
personalidade, o saber, sobretudo quando é a de um “Mais Velho” da comunidade; a língua, por vezes
ultrapassa a cavidade da boca: ela expressa a fala, que é a chave da tradição oral; a barriga e os seios
femininos representam a fertilidade; os pés, normalmente grandes, são bem fixados na terra.
Tais representações são expressões culturais, sujeitas a diversidades étnicas, mas todas provenientes do
sopro do Criador, que emite uma força vital (axé, no Brasil dos orixás, vindos do oeste nigeriano e leste
do Benim). Essa força vital circula por todos os reinos do universo: o humano e o animal, o vegetal e até o
mineral, e é passível de ser manipulada, e assim transferida entre todos os seres, através da intervenção
dos ancestrais, tendo como intermediários-intérpretes os sacerdotes.
Essa arte africana, de base rural-comunitária, que feria os cânones europeus até quase o final do século
XIX, atraiu, com o seu “expressionismo”, pintores como Picasso e Braque, quando eles enveredaram pelo
cubismo. Entretanto, por essa mesma época, os europeus também reagiram com espanto a um outro tipo
de arte africana: foram trazidos para a Europa, após a conquista colonial, os “bronzes de Benim”. O crítico
alemão F. von Luncham escreveu, em 1901: “Estes trabalhos de Benim (elaborados com a secular
técnica da ‘cera perdida’) estão no patamar mais elevado da técnica de fundição da Europa. Cellini, e
ninguém antes nem depois dele, poderia tê-los fundido melhor”. Essas cabeças e estátuas em bronze
eram já assim produzidas pelos iorubás desde o século XVI, conforme testemunharam os portugueses
quando ali aportaram no tempo das navegações.
Não é propósito deste texto tratar da arte africana contemporânea, produzida sobretudo no período pós-
colonial. Esta, seja figurativa ou abstrata, carrega a tradição mas tem propósitos semelhantes ao de
qualquer arte contemporânea de caráter internacional.
Entretanto, artistas e artesãos continuam produzindo a arte tradicional, quer para uso comunitário, quer
para deleite dos turistas. Parte dela, de qualidade bem menor, é chamada de “arte de aeroporto”.
2. A RECRIAÇÃO AFRO-BRASILEIRA
Analisando a fraca presença do negro brasileiro nas artes visuais contemporâneas, em flagrante contraste
com o período do barroco, quando eram dominantes, Clarival do Prado Valadares, num texto de 1988,
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menciona que essa presença passou a traduzir-se, quase que exclusivamente no que se convencionou
chamar de “arte primitiva”. E explicava que essa arte, aceitavelmente dócil, era o que se esperava do
negro. Enfim, uma arte adequada ao lugar que era permitido ao negro na sociedade brasileira.
Compreende-se melhor isso ao consultar uma publicação do Ministério das Relações Exteriores, em
1966, intitulada Quem é Quem nas Artes e Letras do Brasil. Nela estão listadas 298 fichas biográficas de
artistas brasileiros. Dessa lista, somente 16 eram negros. O mesmo Itamaraty, numa edição, em francês,
do seu Anuário de 1966 (p. 227) assinala que, no que respeita à cor: “a maioria da população brasileira é
constituída de brancos; a percentagem de mestiços é fraca”.
Hoje, não só desapareceu dos Anuários do Itamaraty essa “distração” étnica quanto progrediu a
participação dos negros nas artes nacionais. No entanto, em tempo algum os negros constituíram uma
elite nas nossas artes como aconteceu na época do barroco.
O barroco brasileiro, com epicentro em Minas Gerais, mas com núcleos importantes em Pernambuco,
Bahia e Rio de Janeiro, beneficiou-se economicamente do Ciclo do Ouro das décadas de 1729 a 1750.
Além de terra das pedras preciosas, Minas Gerais era o maior centro mundial de produção do ouro na
primeira metade do século XVIII. Apesar das restrições da Metrópole, preocupada quase que
exclusivamente com a arrecadação do metal para cunhagem de moedas, Vila Rica, atual Ouro Preto, era
uma das mais faustosas cidades do mundo dessa época. No entanto, o auge do barroco só viria a ocorrer
um pouco depois, na segunda metade do século XVIII.
Sua inspiração é européia, sobretudo italiana e francesa (estilo rococó). O barroco foi uma tentativa de
resposta ideológica e artística da Contra-Reforma, à expansão das doutrinas ditas protestantes da
Reforma e também à herança humanista da Renascença. Isso ajuda a explicar a extrema religiosidade do
barroco; ele pretendia o triunfo da sensibilidade teatral sobre o intelectual.
Foi do período barroco que resultaram os mais belos monumentos religiosos do Brasil, no dizer de
Fernando Azevedo, que acrescenta ter sido o setecentos o “século do Aleijadinho”.
Este foi o gênio que deu aos “centros urbanos de Minas Gerais algumas das igrejas rococó mais belas do
mundo”. É natural, portanto, que muitos críticos considerem que é com o estilo barroco que se inicia, de
fato, a história das artes no Brasil.
Além do ouro e das pedras preciosas, o barroco mineiro foi beneficiado por outras circunstâncias. Uma
delas relaciona-se com as associações laicas chefiadas por patronos abastados e a outra foi o
enfraquecimento das ordens religiosas, provocado pela política laica e centralizadora do Marquês de
Pombal, primeiro-ministro do rei D. José I, de Portugal. Essas ordens religiosas, além de exclusivistas do
ponto de vista racial, não toleravam a participação de quem não provasse ter “sangue puro” (judeus, por
exemplo).
Outro fator benéfico foram as Irmandades, a quem estavam ligadas as corporações de ofícios. Estas
eram separadas pela cor dos seus membros: brancos, pardos (ou mulatos) e pretos, que competiam entre
si. Contudo, não era uma competição muito excludente já que, com freqüência, o talento era priorizado.
Dois exemplos: foi a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos quem patrocinou a publicação, em
Lisboa, do livro Testemunho Eucarístico de o Aleijadinho, assim como ele foi o escolhido pela Irmandade
de São Francisco, de brancos, para fazer a planta e construir as suas duas mais belas igrejas, em Vila
Rica e em São João d’El Rei.
Esses dois símbolos da brasilidade nasceram na mesma época, na mesma capitania de Minas Gerais e
morreram com a diferença de um ano. No entanto, não há notícia de que tenham se encontrado. Ambos
eram filhos de pai português e mãe escrava. O primeiro, atuou em Minas Gerais, o segundo, no Rio de
Janeiro. O Aleijadinho, no terreno da arte religiosa, arquitetura e escultura. Mestre Valentim imortalizou-se
no campo do urbanismo e da construção civil.
Por quê os nomes de o Aleijadinho e de Mestre Valentim são tão facilmente reconhecidos por qualquer
brasileiro razoavelmente informado, mesmo que ele nunca tenha lido um livro de arte colonial? Myriam
Ribeiro de Oliveira, num estudo comparativo entre essas duas figuras maiores da arte brasileira, fez essa
pergunta. Segundo ela, a sobrevivência desses dois nomes na memória coletiva brasileira não se explica
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somente pela qualidade de suas obras, e comenta: “Há algo com raízes mais profundas na psicologia do
povo brasileiro que arriscaríamos chamar de uma espécie de identidade nacional com esses dois artistas,
ambos mulatos e, portanto, representantes autênticos da originalidade de uma cultura criada na periferia
do mundo e que apresenta tal força e originalidade”.
Originalidade capaz de manifestar uma força expressionista, de talha geométrica, angulosa, tão próxima
da África como se sente em o Aleijadinho. O mesmo se pode dizer do Mestre Valentim, com os traços
negróides de suas esculturas e pinturas. Quem nos sugeriu o reconhecimento dessa africanidade
presente na arte desses dois mestres – e em tantos outros artistas, menos estudados – foi o crítico
George Nelson Prestan, com a sua teoria do Neoafricanisimo voltada para a evolução da arte da diáspora
africana nas Américas.
Emanel Araújo lembra que Mário de Andrade chamava de racialidade brasileira essa marca deixada pelos
nossos artistas negros. Já Sérgio Buarque de Holanda preferiu o termo mulatismo, que não se limita aos
dois artistas aqui citados. O crítico Augusto de Lima Júnior considera o mulatismo uma marca que se
reconhece em artistas dessa época, muitas vezes anônimos, que também apresentavam traços negróides
nas figuras humanas dos painéis que pintavam.
Era filho de arquiteto português e de mãe escrava. Aprendeu arte com o pai, com quem mais tarde
concorreu para a execução de alguns projetos. Entre as inúmeras igrejas que construiu em Minas Gerais,
a que lhe granjeou mais fama foi a de São Francisco de Assis, de
Ouro Preto, com as inovadoras plantas elípticas e de torres
redondas, quebrando com essa concepção original a uniformidade
do barroco de importação, inspiração do novo barroco de Borromini.
Perto dos 50 anos, uma doença degenerativa consumiu seu corpo, levando-o a ter que trabalhar com os
instrumentos amarrados no coto dos braços e com a ajuda de discípulos, entre eles dois escravos de
origem nigeriana.
Conhecido como Mestre Valentim, era filho de um pequeno fidalgo português, tornado contratador de
diamantes, e de mãe escrava. Viveu parte da sua infância e mocidade em Portugal, onde estudou com
grandes mestres, inclusive Bartolomeu da Costa, autor da estátua do Marquês de Pombal, com quem
aprendeu a torêutica, arte de esculpir ou cinzelar madeira, marfim e metais. De regresso ao Brasil, no final
do século XVIII, tornou-se o maior empresário de obras do que hoje poderíamos chamar de urbanismo
paisagístico e arquitetura de equipamentos urbanos. Exemplos mais conhecidos dessas obras são as
realizadas no Rio de Janeiro no Passeio Público e no chafariz da Praça XV. No Passeio, com os maciços
de árvores em canteiros, estátuas de seres mitológicos e fontes
jorrando em cascata, construiu um espaço “parisiense” adaptado
aos trópicos. Essas obras foram quase todas encomendadas pelo
Vice-rei D. Luís de Vasconcelos e Souza, durante o seu governo no
Rio entre 1779 e 1790.
Registrem-se, finalmente, os biógrafos desses dois artistas: Rodrigo Gerreira Bretas, professor da
província de Minas Gerais, que publicou a biografia de o Aleijadinho, em 1858, no Correio Oficial de
Minas, em Ouro Preto; e Manuel de Araújo Porto-Alegre, professor da Academia de Belas Artes, que
publicou, em 1856, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a primeira biografia de Mestre
Valentim.
É o único pintor que se conhece ter iniciado a sua carreira na condição de escravo e comprado a alforria
com o produto de sua arte. Nascido e falecido no Rio de Janeiro, conseguiu, depois de livre, completar os
seus estudos em Lisboa, dedicando-se à pintura e escultura.
Formou muitos discípulos, numa escola que mantinha em sua casa. Foi autor de murais espalhados por
várias igrejas do Rio de Janeiro, com destaque para os que executou na Igreja da Boa Morte.
Considerado o maior pintor sacro do século XVIII, fez parte de um grupo de artistas denominado “Escola
de Mariana”. A sua atuação em várias irmandades religiosas levou-o a receber a patente de alferes e,
pouco depois, sendo titulado Mestre em Arquitetura e pintura. O seu estilo barroco, embora influenciado
pelas escolas italiana e francesa, deixava transparecer a sua origem africana, não só nas feições das
figuras como na escolha das cores em suas obras. Entre elas destaca-se a Glorificação da Virgem,
pintada na nave da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto e A Ceia do Senhor, no Colégio do
Caraça, em Santa Bárbara, MG.
O século XIX vai proporcionar uma nova feição às artes visuais brasileiras. Em Novembro de 1800 foi
criada, no Rio de Janeiro, a Escola Pública de Desenho e Figura. A chegada da corte portuguesa, em
1808, foi um marco nessa mudança, sobretudo com a chegada, em 1816, da Missão Francesa que irá
instituir o Neoclassicismo no Brasil. As artes passam então a participar diretamente de um circuito
internacional que o barroco não tivera. Diga-se, de passagem, que o isolamento internacional que o
barroco sofreu terá, provavelmente, contribuído para a sua originalidade tão afro-brasileira.
Logo depois da chegada dos professores franceses foi criada, em agosto de 1818, a Escola Real de Artes
e Ofícios no Rio de Janeiro. Dois anos depois, com a colaboração francesa é criada a Escola Imperial de
Artes que se tornará, em 1890, a Escola Nacional de Belas Artes.
Se no período colonial a maior parte dos nossos tesouros artísticos foi de autoria de negros, o mesmo
não ocorrerá nos séculos XIX e XX. É preciso ter presente a mentalidade reinante nessa época de
escravismo, onde qualquer tipo de trabalho, mesmo artístico, era indigno de um branco da casa-grande.
Dessa regra eram quase a única exceção os padres que, de modo geral, aprendiam as artes na
Metrópole. Para uma eficaz ação evangélica da Igreja eram indispensáveis várias artes, e não só a
retórica dos sermões. Eram necessários muitos templos, que se espalhavam por cada capitania. Cada um
deles requisitava arquitetos, pintores, escultores, músicos (o padre José Maurício Nunes Garcia é o
músico mais reverenciado da época). E não esqueçamos os corais, quase todos formados por negros,
principalmente até meados do setecentos, por jesuítas.
No início do século XIX, em face dos fatos atrás relatados, bem como da consolidação do estilo
implantado pela Academia, há um grande aumento de encomendas dos governos, expande-se o mercado
das artes e aumentam as viagens de estudo ao exterior. Pela capacidade que a arte adquire de constituir
carreiras promissoras, ela finalmente passa a atrair os filhos da aristocracia rural e da burguesia
emergente.
O artista negro se refugia, na sua maioria, na arte de inspiração religiosa afro-brasileira ou numa
produção de tipo naif. Mencionaremos aqui, já no século XX, os casos de Heitor dos Prazeres e de
Mestre Didi. Contudo, durante os anos do oitocentos, alguns artistas negros se sobressaíram na arte
propugnada pela Academia. Entre estes, citamos: Firmino Monteiro, Estevão Silva, Fernando Pinto
Bandeira e Artur Timóteo da Costa.
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IV ARTISTAS CONTEMPORÂNEOS
nome.
Sua carreira se projeta a partir de 1942 e dois anos depois expôs na Bahia aquele que é considerado
como o primeiro quadro abstrato executado no estado. Foi expositor constante, como pintor e escultor, na
Bienais de São Paulo entre 1955 e 1977. Participouda delegação brasileira em doisfestivais mundiais de
Arte Negra: em Dacar (1966) e em Lagos (1977), com uma arte
geométricaostentando símbolos dos cultos afro-brasileiros.
Artista mineira, teve a sua produção marcada por uma técnica de colagem de cabelo natural, que iniciou
em 1968. Ela descreve: “A tinta já ia junto com o cabelo, já na tela, já ia bater no pincel para ficar ali (...).
Nesse ano, o meu quadro de candomblé ganhou o 1º prêmio em Embú”. A outra característica, onde
alguns vêm um afloramento da pop art, é a utilização da massa
plástica para obter relevo e movimento. Na sua arte misturam-se
sexualidade e temas religiosos, fertilidade e candomblé.