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Rosemeire Aparecida de Almeida

Tânia Paula da Silva


ORGANIZADORAS

Repercussões Territoriais do
Desenvolvimento Desigual-Combinado
e Contraditório em Mato Grosso

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Reitora
Célia Maria Silva Correa Oliveira

Vice-Reitor
João Ricardo Filgueiras Tognini

Obra aprovada pelo


CONSELHO EDITORIAL DA UFMS
Resolução nº 30/15

CONSELHO EDITORIAL
Jeovan de Carvalho Figueiredo (Presidente)
Carmen de Jesus Samúdio
Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento
Claudete Cameschi de Souza
Edgar Aparecido da Costa.
Edgar Cézar Nolasco
Elcia Esnarriaga de Arruda
Gilberto Maia
Maria Rita Marques
Maria Tereza Ferreira Duenhas Monreal
Rosana Cristina Zanelatto Santos
Sonia Regina Jurado
Ynes da Silva Felix

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

R425 Repercussões territoriais do desenvolvimento desigual-combinado


e contraditório em Mato Grosso / Rosemeire Aparecida de
Almeida, Tânia Paula da Silva, organizadoras. – Campo
Grande, MS : Ed. UFMS, 2015.
332 p. : il. (algumas color.) ; 21 cm.

ISBN 978-85-7613-520-3

1. Reforma Agrária – Mato Grosso. 2. Posse da terra – Mato


Grosso – Mato Grosso do Sul. I. Almeida, Rosemeire Aparecida de.
II. Silva, Tânia Paula da.

JVD CDD (22) 333.318172

 2
Rosemeire Aparecida de Almeida
Tânia Paula da Silva
ORGANIZADORAS

Repercussões Territoriais do
Desenvolvimento Desigual-Combinado
e Contraditório em Mato Grosso

Campo Grande - MS
2015

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Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica,
Coordenadoria de Editora e Gráfica - PROPP/UFMS

A revisão linguística e ortográfica


é de responsabilidade dos autores

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para esta edição

Coordenadoria de
Editora e Gráfica - PROPP/UFMS
Portão 14 - Estádio Morenão - Campus da UFMS
Fone: (67) 3345-7200 - Campo Grande - MS
e-mail:conselho.editora@ufms.br
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Associação Brasileira das


Editoras Universitárias

ISBN: 978-85-7613-520-3
Depósito Legal na Biblioteca Nacional
Impresso no Brasil

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Dedicatória

Por muitas razões este livro é dedicado à Mieceslau Kudlavicz


- aqueles que o conhecem sabem o significado d​esta escolha.
Todavia, é preciso registrar que o merecimento é ainda
fruto da profunda gratidão e respeito por este homem que,
como poucos, soube aliançar militância por vocação com
ciência por opção, fazendo da Geografia arma de combate  ​em
prol dos pobres do campo e da cidade. Mie, que, entre nós é
o “Velho”, timoneiro da caminhada, mas também o jovem da
esperança nossa e nova de cada dia, este livro tem o tecido
dos seus conhecimentos da terra, da gente e dos números nos
“Matos Grossos” - que tão bem conheces. E a costura não
poderia ser outra que a esperança de dias melhores que tanto
cultiva​s​como aluno e mestre.

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Sumário

O Desenvolvimento Capitalista Desigual-Combinado


e Contraditório nos Campos Mato-Grossenses
Rosemeire Aparecida de Almeida__________________________________21

Faces da Agricultura Familiar Camponesa nas Microrregiões


do Alto Pantanal e Tangará da Serra - Mato Grosso - Brasil
Onélia Carmem Rossetto________________________________________ 41

O Descumprimento da Função Social da Terra e a Invisibilização


do Latifúndio como Estratégia de Classe: o Caso de Mato Grosso
Eliane Tomiasi Paulino__________________________________________ 63

Tangará da Serra-MT: dinâmica Fundiária,


Agricultura Capitalista e (Re)criação Camponesa
Sedeval Nardoque______________________________________________83

Reflexões sobre o Acesso a Terra e as


Relações de Trabalho em Mirassol D’Oeste (MT)
Sinthia Cristina Batista_________________________________________ 109

Vida e Luta Camponesa em Cáceres-MT: um Olhar sobre


os Assentamentos Rurais na Região de Fronteira Brasil-Bolívia
Tânia Paula da Silva
Jacob Binzstok_______________________________________________141

Formação da Propriedade Capitalista nos Campos Mato-Grossense


e Sul-Mato-Grossense: conflitualidade e Resistência
Mariele de Oliveira Silva
Rosemeire Aparecida de Almeida_________________________________163

Geografia das Ocupações e Manifestações em


Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (2000-2012)
Danilo Souza Melo____________________________________________185

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Mudanças Espaço-Temporais da Paisagem dos
Assentamentos Providência III e Tupã, no Contexto das
Transformações Socioterritoriais do Município de Curvelândia-MT
Sandra Mara Alves da Silva Neves
Junior Miranda Scheuer
Miriam Raquel da Silva Miranda_________________________________217

Agricultura: a História da Comunidade


Vale do Sol II, Tangará da Serra-MT, Brasil
Daniel Ricardo da Silva Sena
Hellen Simone Tortorelli
Santino Seabra Júnior__________________________________________ 241

Agricultura Familiar e a Produção de


Hortaliças no Município de Cáceres-MT
Andréia Gonçalves Ladeia
Ronaldo José Neves
Sandra Mara Alves da Silva Neves________________________________265

Comunicação e Agricultura Familiar na


Comunidade Vale do Sol II - Tangará da Serra-MT
Kelly Sinara Alves de Carvalho
Ana Cristina Peron Domingues
Raimundo Nonato Cunha de França
Santino Seabra Júnior__________________________________________285

Estudo Comparativo das Práticas de Agroecologia


no Assentamento Roseli Nunes, Mirassol D’Oeste-MT
e no Assentamento 72, Ladário-MS
Edgar Aparecido da Costa
Rozilene Cuyate______________________________________________315

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Prefácio

O livro “Repercussões Territoriais do Desenvolvimento Desigual-


-Combinado e Contraditório em Mato Grosso”, organizado pelas pro-
fessoras doutoras Rosemeire Aparecida de Almeida e Tânia Paula da
Silva, apresenta os resultados do projeto de pesquisa “Questão Agrária
e Transformações Socioterritoriais nas microrregiões do Alto Pantanal
e Tangará da Serra/MT na última década censitária”, vinculado à Rede
de estudos sociais, ambientais e de tecnologias para o sistema produtivo
na região sudoeste mato-grossense (Rede ASA), aprovado no edital da
Rede Centro-Oeste de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação (Rede PRO-
-CENTRO-OESTE).
A finalidade da Rede ASA foi fortalecer a pós-graduação e execu-
tar projetos de pesquisa, com intuito de investigar os condicionantes
ambientais, socioeconômicos e culturais e os sistemas de produção do
sudoeste do estado de Mato Grosso, possibilitando a geração de indica-
dores, metodologias, modelos e a inovação de tecnologias para integrar
as diferentes dimensões da sustentabilidade. O intuito foi de otimizar,
assim, a geração de transferência de tecnologias nos sistemas agrícolas e
contribuir para o desenvolvimento da região, preconizar a sustentabili-
dade ambiental por meio de estratégias de aumento da diversificação, a
ampliação da base produtiva, a melhoria da qualidade de vida e a redu-
ção das desigualdades sociais.
Os resultados apresentados nos capítulos do livro demonstram a
reflexão teórico-prática e o panorama atualizado acerca da posse, uso da
terra e resistência camponesa na região Sudoeste. As informações obti-
das e disponibilizadas poderão orientar as políticas públicas no estado
de Mato Grosso.
O capítulo inicial apresenta o desenvolvimento capitalista desi-
gual-combinado e contraditório nos campos mato-grossenses. Nos ca-
pítulos seguintes são acrescentadas reflexões sobre: o acesso à terra e as
relações de trabalho; faces da agricultura familiar camponesa nas mi-

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crorregiões do Alto Pantanal e Tangará da Serra; a dinâmica fundiária,
agricultura capitalista e resistência camponesa; o descumprimento da
função social da terra e a invisibilização do latifúndio como estratégia
de classe; a formação da propriedade capitalista nos campos mato-gros-
sense e sul-mato-grossense, conflitualidade e resistência; e a Geografia
das ocupações e manifestações em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Os demais capítulos retratam as problemáticas (econômica, social e am-
biental) vividas nos assentamentos rurais.
Os autores mostraram objetivação nos capítulos do livro com apre-
sentação de problematização das questões sobre a ocupação no campo,
que poderão subsidiar reflexões de ordem teórica e prática sobre o tra-
tamento da temática, estimulando, assim, o interesse do leitor.

Professora Doutora Celia Alves de Souza


Coordenadora da Rede ASA
Curso de Geografia da Universidade
do Estado de Mato Grosso/Unemat

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Apresentação

Este livro, em forma de coletânea, apresenta a produção da equipe


de pesquisadores da Rede de Estudos Sociais, Ambientais e de Tecno-
logias para o Sistema Produtivo na Região Sudoeste de Mato Grosso
(ASA), responsáveis pela execução do projeto de pesquisa “Ques-
tão Agrária e Transformações Socioterritoriais nas microrregiões do
Alto Pantanal e Tangará da Serra/MT na última década censitária”,
da Rede Centro-Oeste de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação (Edital
MCT/CNPq/FNDCT/FAPs/MEC/CAPES/PRO-CENTRO-OESTE nº
31/2010).
De forma geral, o conjunto de textos que constituem a coletânea
pronuncia-se sobre as principais repercussões territoriais da posse e
uso da terra, tendo por base comparativa os dois últimos censos agro-
pecuários do IBGE no Estado de Mato Grosso (1995/1996 e 2006) e
enfatizando análises para a região Sudoeste e as particularidades das
micror­regiões do Alto Pantanal e Tangará da Serra. Uma das metas é
atualizar o panorama da posse e uso da terra por classe de área, ou seja,
por divisão territorial da agropecuária – pequeno, médio e grande es-
tabelecimento –, de modo que as produções sirvam como parâmetro a
orientar políticas públicas pertinentes, especialmente no atual cenário
de pouca oferta de recursos e em face da necessidade cada vez mais ur-
gente de que o Estado selecione prioridades.
Em particular, o olhar direcionou-se para a realidade agrária-
agrícola do estado de Mato Grosso, mas sem descartar Mato Grosso
do Sul – pela história em comum que muito influencia os processos
territoriais do tempo presente. Os temas relacionados à questão agrá-
ria-agrícola foram perscrutados dos mais diversos prismas – aspectos
históricos, geográficos, sociológicos, agronômicos –, nas suas interfa-
ces com o território. Articuladas em 13 capítulos, as abordagens se-
guiram três eixos. Primeiro, a eleição de áreas-foco para estudo do
processo de (re)criação da agricultura familiar camponesa via política

 11
de Reforma Agrária, particularmente o efeito das políticas públicas
para a reprodução familiar – destaque para a microrregião do Alto
Pantanal pelo número elevado de assentamentos rurais. Segundo, a
eleição de áreas-foco para estudo da expansão da agricultura capita-
lista (Agronegócio), em especial  os  efeitos socioambientais da  espe-
cialização do território – destaque para a Microrregião Geográfica de
Tangará da Serra como área de expansão da soja e da cana. Terceiro, a
proposição de análises resultantes, basicamente, de pesquisas de Dou-
torado, Mestrado e Iniciação Científica, que correlacionam a realidade
agrária de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
A coletânea inicia-se com as reflexões de Rosemeire Aparecida de
Almeida, no capítulo “O desenvolvimento capitalista desigual-combi-
nado e contraditório nos campos matogrossenses”, que assume a tarefa
teórica de ler os números do último período intercensitário por meio
da teoria do desenvolvimento desigual-combinado e contraditório a
fim de explicar a expansão da agricultura capitalista vis a vis com a re-
criação camponesa, refutando, desse modo, a tese da homogeneização
das relações capitalistas no campo mato-grossense. Longe de entender
a permanência camponesa como funcional ao capital, a autora bus-
ca elementos na realidade para demonstrar que a conflitualidade tem
sido a marca dessa disputa, cuja correlação de forças desigual sela com
sangue o chão dessa contradição. “[...] o término desta reflexão não
poderia ser outro senão a defesa da Reforma Agrária e das lutas políti-
cas, visto que dividir a terra num país como o Brasil, com histórico de
grilagem de terra e estrutura fundiária concentrada, não é matéria do
reino da economia, mas, sim, da política – como exercício pedagógico
de democracia!”.
Onélia Carmem Rossetto, com o capítulo “Faces da agricultura
familiar camponesa nas microrregiões do Alto Pantanal e Tangará da
Serra - Mato Grosso – Brasil”, destaca e analisa tendências marcantes
nas microrregiões em estudo, como a inconsistência de dados quan-
titativos e qualitativos acerca da diversidade que se enseja no termo
“agricultor familiar”, situação que produz equívocos no direcionamen-

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to das políticas públicas, uma vez que a marca da distinção dos povos
do campo não se refere apenas às atividades econômicas, mas, sobre-
tudo, ao modo de vida. Por conseguinte, a autora contribui para “des-
velar as múltiplas faces e o ‘lugar’ da agricultura camponesa no Estado
de Mato Grosso” – tanto no território pantaneiro como no território
do complexo agroindustrial de Tangará da Serra. E mais: entende que
a territorialização camponesa, ao defrontar-se com a territorialização
do capital, diversifica os elementos de resiliência – ora estando na si-
tuação de subordinação, ora buscando mecanismos de manutenção da
sua autonomia.
No capítulo “O descumprimento da função social da terra e a
invisibilização do latifúndio como estratégia de classe: o caso de Mato
Grosso”, Eliane Tomiasi Paulino trabalha com o princípio metodológi-
co do preceito constitucional inscrito no título do texto. A articulação
entre os dados do último Censo Agropecuário, da Companhia Nacional
de Abastecimento e do Cadastro de Imóveis, resulta na perscrutação das
representações ideológicas que tomam o progresso técnico como por-
tador de transformações sociais traduzidas em desenvolvimento, visan-
do ocultar a persistência do latifúndio improdutivo no estado de Mato
Grosso. Estratégia que, segundo a autora, permite simultaneamente o
ocultamento das profundas implicações territoriais da emergência do
latifúndio produtivo, traduzida em não menos intenso processo de
destruição ambiental em nome de fins supostamente agrícolas, mas
igualmente incapazes de proporcionar dinâmicas territoriais virtuosas.
Renuncia, assim, à abordagem estritamente agrícola para captar a com-
plexidade do agrário em terras mato-grossenses, demonstrando a insu-
ficiência do tratamento analítico do campo com base no desempenho
das commodities.
A contribuição de Sedeval Nardoque, no capítulo “Tangará da
Serra (MT): dinâmica fundiária, agricultura capitalista e (re)criação
camponesa”, permite entender a expansão das monoculturas como
irmã siamesa da concentração e da reconcentração fundiária; um mo-
vimento que não se faz de forma isolada, pois os camponeses abrem

 13
brechas na estrutura por meio da luta. Dessa maneira, agricultores
familiares camponeses, muitas vezes imersos no território capitalis-
ta, são protagonistas nas disputas territoriais e na produção de ali-
mentos (legumes, frutas, verduras, doces e queijos), como ocorre em
Tangará da Serra. Em suas palavras: “Contraditoriamente, o avanço
das empresas e empresários capitalistas no campo [...] promoveu o
contato e o conflito, novamente, com os camponeses, via expropriação
e violência. A expansão das monoculturas propiciou a concentração
e a reconcentração fundiária em Tangará da Serra, contribuindo para
a diminuição da população residente no campo, mas também para a
luta dos camponeses para voltarem à terra e nela permanecerem, no
processo de (re)criação camponesa. Isso se deve, sobretudo, às ações
dos movimentos sociais [...]”.
O capítulo “Reflexões sobre o acesso a terra e as relações de traba-
lho em Mirassol D’Oeste (MT)” é parte das reflexões da tese de Dou-
toramento da autora Sinthia Cristina Batista. Por meio de referencial
teórico potente e análise rigorosa das fontes, o texto brinda o leitor com
reflexões acerca do processo histórico de formação da propriedade capi-
talista e das relações de trabalho em Mato Grosso, mais especificamen-
te no município de Mirassol D’Oeste, região da Grande Cáceres (MT).
O conjunto de análises, alicerçadas em revisão bibliográfica, leitura de
dados e trabalho de campo, permite aos leitores questionar a história
oficial da apropriação da terra, bem como a propalada produtividade
do agronegócio no sentido de cobrar do Estado a realização da Reforma
Agrária. Alerta a autora que, no campo mato-grossense, existe e resis-
te o campesinato: “O trabalho desenvolvido no município de Mirassol
D’Oeste, no Assentamento Roseli Nunes, nos permite afirmar que a terri-
torialização do capital em Mato Grosso, apesar de histórica, não tem sido
via de mão única, pois tem encontrado resistências camponesa, indígena
e quilombola, intensificando-se assim a luta pela terra e pela Reforma
Agrária no território mato-grossense”.
As reflexões do capítulo “Vida e luta camponesa em Cáceres (MT):
um olhar sobre os assentamentos rurais na região de fronteira Brasil-

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Bolívia” são recortes de tese de doutorado em Geografia. Tânia Paula da
Silva e Jacob Binzstok, autora e coautor do texto, evidenciam, por meio
das fontes orais, que o modo de vida camponês não é um a priori, mas,
sim, o processo de fazer-se camponês nas terras da Reforma Agrária na
Microrregião Geográfica do Alto Pantanal. Com o olhar voltado para
os assentamentos rurais em Cáceres (MT), região de fronteira Brasil-
-Bolívia, tecem a compreensão do campo a partir dos próprios sujei-
tos que nele produzem e asseveram: “[...] não podemos apenas buscar
compreender o campo brasileiro e, em específico, o mato-grossense, se-
gundo a ótica das condições capitalistas, pois o processo de (re)criação
camponesa vai além das estruturas capitalistas e dos agentes envolvi-
dos na luta. Nele, a lógica camponesa ainda se faz presente, não sem
conflitos, mas engendrada em laços de solidariedade e reciprocidade,
o que tem permitido que às famílias mato-grossenses reproduzam-se e
mantenham-se camponesas na sua terra de trabalho e de (re)produção
de vida [...]”.
O texto do capítulo “Formação da propriedade capitalista nos
campos mato-grossense e sul-mato-grossense: conflitualidade e resis-
tência” traz questões fundamentais discutidas em Dissertação de Mes-
trado em Geografia, orientada pela coautora do capítulo. Nele, Mariele
de Oliveira Silva e Rosemeire Aparecida de Almeida buscam os nexos
históricos sinalizadores do ordenamento desses territórios para a ex-
pansão do capital no campo, obedecendo a interesses de acumulação,
tanto pela via produtivista como pela rentista. Desse modo, reafirmam
a relação intrínseca entre a formação e a manutenção do latifúndio, me-
tamorfoseada em grande propriedade, e as lutas dos pobres para a re-
produção social do seu modo de vida. Entendem, pois, que não apenas
de concentração de terra e modernidade se faz a história dos campos
mato-grossenses e sul-mato-grossenses: “[...] presenciamos também a
luta, a versatilidade, a criatividade do povo camponês, que há séculos
tem desafiado as teses que apregoavam e apregoam o seu desapareci-
mento, contrapondo-se ao desemprego, e a perda de autonomia, com a
conquista da terra de vida e trabalho”.

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O capítulo de Danilo Souza Melo, intitulado “Geografia das ocu-
pações e manifestações em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (2000
– 2012)”, é também fruto de Dissertação de Mestrado em Geografia. No
texto, a temática da terra é tratada como expressão de resistência cultu-
ral e política dos sujeitos do campo. O estudo da dinâmica da luta pela
terra, nos dois estados (MT e MS), deu-se pela sistematização dos dados
da Rede DATALUTA e por meio de trabalho de campo nos municípios
de Cuiabá (MT), Cáceres (MT), Mirassol D’Oeste (MT), Campo Gran-
de (MS), Dourados (MS) e Itaquiraí (MS). As investigações permitiram
ao autor atestar a continuidade da luta pela terra a despeito das teses
contrárias e, mais, a mudança de estratégias e atores como, por exem-
plo, o protagonismo indígena em Mato Grosso do Sul. Nas palavras do
autor: “A análise da dinâmica da luta pela terra revela que, apesar dos
números sobre ocupações indicarem redução, a luta em MT e MS não
está acabada, pelo contrário, percebemos a mudança de estratégia dos
movimentos sociais diante da atual conjuntura de paralisação da Refor-
ma Agrária”. A pesquisa representou também a articulação com a Rede
DATALUTA-NERA/FCT/UNESP.
Sandra Mara Alves da Silva Neves, Junior Miranda Scheuer e Mi-
riam Raquel da Silva Miranda, autores do capítulo “Mudanças espaço-
temporais da paisagem dos assentamentos Providência III e Tupã, no
contexto das transformações socioterritoriais do município de Curve-
lândia (MT)”, partem do pressuposto de que as geotecnologias podem
gerar subsídios e orientações na tomada de decisões quanto ao planeja-
mento territorial, em especial, para a conservação ambiental nos assen-
tamentos do Alto Pantanal. Desse prisma, investigam o uso da terra nos
assentamentos do município de Curvelândia, Providência III e Tupã e
constatam que a pecuária leiteira, por suas características intrínsecas,
representa o refúgio econômico de assentados mato-grossenses. Por
ser a terra um bem natural finito, e riqueza vital à reprodução familiar,
urgem, todavia, medidas para diminuição do impacto negativo, parti-
cularmente no tocante à proteção das nascentes. “Nos assentamentos
pesquisados, a predominância da pastagem e sua localização, próxima
a cursos de água, constitui um fator de preocupação por impactar, além
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da biodiversidade vegetal e animal, o meio de sobrevivência do assenta-
do, que é a terra [...]”.
O capítulo “Agricultura: a história da comunidade Vale do Sol II,
Tangará da Serra (MT), Brasil” traz a contribuição de Daniel Ricardo da
Silva Sena, Hellen Simone Tortorelli e Santino Seabra Júnior. Os auto-
res, por meio da pesquisa participante, dão visibilidade ao processo de
formação e permanência na terra da Comunidade Vale do Sol II, que
representa um modelo diferente de acesso a terra em relação à Reforma
Agrária, uma vez que se trata da aquisição da área via financiamento
do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF). O estudo inves-
tiga os motores de êxito e os limites para a reprodução desses agricul-
tores na Microrregião Geográfica de Tangará da Serra. Nesse sentido,
são enfáticos nas críticas ao PNCF, alertando o poder público para que
os insucessos do Programa não recaiam sobre os agricultores, como de
costume. Para tanto, afirmam: “[...] analisando o texto do PNCF, é pos-
sível ver que a estrutura oferecida aos agricultores que adquirem a terra
por meio do Programa não foi consolidada no caso da Vale do Sol II,
pois os agricultores relatam grandes dificuldades de acesso a assistência
técnica, estrutura e políticas públicas que auxiliem no desenvolvimento
efetivo do sistema de produção”.
O cultivo de hortaliças por agricultores familiares na Microrregião
Geográfica do Alto Pantanal é o tema do capítulo “Agricultura familiar
e a produção de hortaliças no município de Cáceres (MT)”, apresenta-
do por Andréia Gonçalves Ladeia, Ronaldo José Neves e Sandra Mara
Alves da Silva Neves. A investigação das condições em que vivem os su-
jeitos envolvidos na produção de hortaliças no campo de Cáceres abran-
geu dois assentamentos, duas comunidades e em um distrito. O estudo
coaduna-se com pesquisas em âmbito nacional, reforçando premissas
de que esse tipo de atividade pode ser economicamente viável por pos-
suir alternatividade, servir ao autoconsumo e à geração de renda, não
exigindo grandes áreas e propiciando desenvolvimento de canais curtos
de comercialização, a exemplo das feiras, além dos mercados institu-
cionais, como PAA e PNAE. Assim, a reflexão proposta pelos autores

 17
ressalta a importância da temática na: “[...] geração de subsídios para
o planejamento e desenvolvimento da atividade em âmbito municipal”.
O texto que compõe o capítulo “Comunicação e agricultura fami-
liar na comunidade Vale do Sol II – Tangará da Serra – Mato Gros-
so”, de Kelly Sinara Alves de Carvalho, Ana Cristina Peron Domingues,
Raimundo Nonato Cunha de França e Santino Seabra Júnior, caminha
no sentido de apresentar impactos positivos do trânsito de informações
no sistema cooperativado da comunidade Vale do Sol II, no municí-
pio de Tangará da Serra. Os pesquisadores partem da premissa de que
os conceitos de comunicação participativa e de cooperativismo estão
intrinsecamente ligados, uma vez que ambos configuram importante
ferramenta de interação entre os grupos. Em relação aos acertos da co-
mercialização, destacam que a comunicação ocupa papel decisivo, in-
clusive na certificação dos produtos. Concluem os autores: “[...] que a
certificação é considerada pelas cooperadas como ferramenta de redu-
ção de assimetria informacional, ao apresentar os atributos intrínsecos
dos produtos, proporcionando segurança ao consumidor em relação ao
consumo. Nesse mesmo contexto, o rótulo também constitui elemento
de comunicação, uma vez que o produto, possuindo valor simbólico,
estimula as sensações humanas, tendo função de transferir todas as in-
formações, sejam visuais ou verbais”.
As reflexões de Edgar Aparecido da Costa e Rozilene Cuyate, ma-
terializadas no “Estudo comparativo das práticas de agroecologia no
assentamento Roseli Nunes, Mirassol D’Oeste (MT) e no assentamento
72, Ladário (MS)”, fecham a Coletânea e representam o exercício, no
marco da Transição Agroecológica, de comparar as induções de desen-
volvimento territorial e de práticas agroecológicas em dois projetos de
Reforma Agrária – assentamento Roseli Nunes, com apoio da Fede-
ração de Órgãos da Assistência Social e Educacional  (Fase), e assen-
tamento 72, com apoio da UFMS e da Embrapa Pantanal. Concluem
os autores que tanto os agentes exógenos de indução de desenvolvi-
mento territorial como os endógenos são fundamentais em situação de
transição agroecológica e de estímulo aos canais curtos de comerciali-

 18
zação, especialmente num quadro de carência histórica de assistência
técnica nos assentamentos rurais. Nesse sentido, asseveram os autores:
“[...] pode-se dizer que a indução do desenvolvimento territorial assu-
me as mesmas feições, independente das características territoriais, dos
camponeses envolvidos e das instituições indutoras”.

Rosemeire Aparecida de Almeida


Tânia Paula da Silva
Outono de 2015.

 19
 20
O Desenvolvimento Capitalista
Desigual-Combinado e 1

Contraditório nos Campos


Mato-Grossenses 2

Rosemeire Aparecida de Almeida


Doutora em Geografia. Docente na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Introdução
Os períodos de crise são também períodos de dramática reestru-
turação. O capitalismo está sempre transformando o espaço à sua
própria imagem, mas em períodos de expansão isto significa a subs-
tituição de padrões mais ou menos estabelecidos num período an-
terior. Precisamente durante as crises é que os novos padrões se
estabelecem, numa reestruturação sem precedentes do espaço geo-
gráfico. Esta é a fase na qual nós ingressamos hoje. (SMITH, 1988,
p. 223. Grifo nosso).

1
Para Smith (1988), a preocupação com a “Lei do Desenvolvimento Desigual e Com-
binado” está associada à tradição trotskista como parte da Teoria da Revolução Perma-
nente.
2
O capítulo articula-se ao projeto de pesquisa “Questão Agrária e Transformações So-
cioterritoriais nas microrregiões do Alto Pantanal e Tangará da Serra/MT na última dé-
cada censitária”, da Rede Centro-Oeste de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação (Edital
MCT/CNPq/FNDCT/FAPs/MEC/CAPES/PRO-CENTRO-OESTE nº 31/2010).

 21
O momento atual do capitalismo ainda é de reflexo da crise global
de 2008. Oportunas, portanto, as contribuições de Smith (1988) e Har-
vey (2005) a respeito das crises do capitalismo como oportunidades de
acumulação, em especial pela via da destruição seletiva de capitais e, até
mesmo, de países - a chamada “acumulação por espoliação”:
A crise é, não somente, o produto de uma contradição inerente en-
tre a necessidade de desenvolver as forças produtivas e as condições
sob as quais esta deve ocorrer; em seu desenvolvimento concreto,
assim como em sua gênese, a crise econômica é também essencial-
mente contraditória. Devemos olhar para alguns dos resultados
contraditórios da crise, pois, não importa quão destruidoras e
disfuncionais elas sejam, as crises podem ser agudamente fun-
cionais para o capital. As fusões, encampações e falências, assim
como a desvalorização geral (das mercadorias, da força de trabalho,
da maquinaria, do dinheiro) e a destruição do capital (tanto do va-
riável quanto do constante), que acompanham as crises, também
preparam o terreno para nova fase de desenvolvimento capitalista.
(SMITH, 1988, p. 185. Grifo nosso).

Igualmente fundamental à compreensão da crise é a concepção


do desenvolvimento capitalista desigual-combinado, uma vez que é no
movimento de vaivém do capital que reside a lógica das desigualdades:
[...] o capital tenta fazer um “vaivém” de uma área desenvolvida para
uma área subdesenvolvida, para então, num certo momento poste-
rior voltar à primeira área que agora se encontra subdesenvolvida,
e assim sucessivamente. Na medida em que o capital não pode en-
contrar um fixo espacial na produção de um ambiente imóvel para a
produção, ele recorre à completa mobilidade como um fixo espacial.
Novamente, a fixidez espacial e a a-espacialidade não são senão fa-
ces de uma mesma moeda. O capital busca não um equilíbrio cons-
truído na paisagem, mas um equilíbrio que seja viável precisamente
em sua capacidade de se deslocar nas paisagens de maneira sistemá-
tica. Este é o movimento em vaivém do capital, que está subjacen-
te ao processo mais amplo de desenvolvimento desigual. (SMITH,
1988, p. 213).

Explica Smith que esse “vaivém” do capital, a fim de minimizar a


crise, implica deslocamentos espaciais e entre setores da economia. Não

 22
por menos, tem-se presenciado a atual migração de capitais em direção
às commodities e compra de terras, como possibilidade de recuperação
da acumulação:
El colapso del mercado hipotecario, las empresas dot.com, la bio-
tecnología, la banca financiera y otras burbujas especulativas han
contribuido a la primera crisis económica mundial generalizada de
este siglo (Stédile 2008, Cox 2008, Rosset 2009). Esto ha creado una
búsqueda algo desesperada por nuevas oportunidades de inversión,
empujando a los inversionistas a mirar con mayor énfasis en el Sur,
especialmente enfocándose en los recursos naturales rurales. Esto
está generando un nuevo boom de cultivos de exportación, agro-
combustibles, minería y plantaciones de monocultivo industrial
(Humphreys 2003, Barney 2007, Stédile 2008, Rosset 2009, Mc-
Michael 2010). A pesar de que los agronegocios transnacionales
ya tenían gran presencia en Latinoamérica, por ejemplo, desde al
menos los 1980s (Burbach and Flynn 1980, Teubal 1987, Marsden
y Whatmore 1994), esta nueva ola de inversiones es mucho mayor
debido a la mayor inyección de capital en consecuencia de las crisis.
En la mayoría de los países, tanto en el Norte como en el Sur, las
empresas nacionales han sido parcial - o totalmente compradas
por las corporaciones transnacionales y los bancos financieros,
y/o han tenido una nueva re-capitalización con grandes créditos
que se les vuelvan casi subsidiarias de los grandes financiadores
transnacionales […]. (ROSSET, MARTINEZ-TORRES, 2012, p. 2.
Grifo nosso).

Nessa mesma direção, todavia com novos aportes, Petras e Velt-


meyer (2014) e Bartra (2015b) acrescentam que a retomada atual da
rodada de acumulação do capital está marcada, sobretudo, por formas
de controle dos recursos naturais cuja raridade produz rendas.
Para Bartra (2015b), por exemplo, essa realidade faz com que a
análise da renda proveniente da terra, da água, do petróleo, dos miné-
rios, entre outras fontes, seja até mais significativa do que no tempo em
que Marx escreveu – porque a renda capitalista tem importância em
proporção direta a sua escassez. Trata-se de bens finitos, recursos es-
cassos que não podem ser produzidos pelo capital. Fruto disso, a dispu-
ta pela renda da terra, pelos ganhos de acumulação com base em bens

 23
naturais, está na base da crise agroambiental – e civilizatória – que vi-
vemos e que Petras e Veltmeyer (2014, p. 20) identificam como sendo
expressão do capitalismo neoextrativista, com ampla participação do
Estado, também acumulador rentista:
Al apoyarse en el capitalismo extractivo, los regimenes de centro-iz-
quierda se convierten en complejos Estados rentistas que recolectan
regalías, ‘rentas’, provenientes de las materias primas de exportación.
Los ciclos de las mercancías del pasado son reemplazados por me-
ga-ciclos, a medida que los precios favorables de las mercancías du-
rante décadas reemplazan las fluctuaciones de un año al otro. El flujo
estable de ingresos deriva en presupuestos estables y financia las im-
portaciones sin súbitos y abruptos déficits presupuestarios y comer-
ciales (y problemas de la balanza de pagos). (Grifo dos autores).

Processo do qual Martins (1981) lançou as bases interpretativas


por meio da compreensão de que, no desenvolvimento do capitalismo
brasileiro, a terra é o centro de acumulação. Segundo o autor:
[...] Enquanto para o modelo europeu no centro do desenvolvimen-
to capitalista está o capital, no modelo brasileiro, profundamente
marcado pela tradição da dependência colonial, a terra é essencial
para o desenvolvimento capitalista porque propicia uma acumula-
ção de capital com base no tributo e na especulação, isto é, com base
na renda da terra. (MARTINS, 1994, p.129).

Atualmente, Petras e Veltmeyer (2014) apontam que a estratégia


de crescimento via reprimarização da economia (RepE) – encaminha-
da por governos de centro-esquerda na América Latina – representa
contratos de longo prazo e em grande escala com corporações trans-
nacionais, que são os atores dessa estratégia de crescimento baseada na
dependência das exportações agrominerais. As vulnerabilidades desse
meio de desenvolvimento são de muitas ordens, em especial aquelas
produzidas pelo controle territorial com vistas à acumulação capitalista,
e de poder, por parte das corporações transnacionais. Na concepção dos
pesquisadores:
La concentración en la exportación de productos primarios ha es-
tado acompañada de una creciente concentración de la propiedad,

 24
en especial por el capital extranjero en el sector extractivo, con fre-
cuencia asociado con los tecnócratas del sector público con estre-
chas ligas pasadas y probablemente futuras con el sector privado.
(…) La concentración de la propiedad esta íntimamente correla-
cionada con el crecimiento de megamillonarios y la concentración
de la riqueza. Las firmas capitalistas y bancarias privadas de origen
nacional se unen a las sociedades y se benefician de dar servicio a
las firmas extractivas del Estado y de las CMN [Corporaciones Mul-
tinacionales]. Las CMN, los tecnócratas, casas de inversión, consul-
tarías y banqueros se convierten en la nueva clase gobernante en los
Reci [Regímenes de centro-izquierda]. (PETRAS; VELTMEYER,
2014, p. 21).

No caso brasileiro, o reencontro dessa acumulação via reprima-


rização ocorreu, em especial, pela via do mercado de commodities, si-
tuação que sinaliza que o capital encontrou fôlego, para sair da crise,
nos bens primários, em particular minérios, grãos, agrocombustíveis e
celulose3. Importante destacar que o campo no Brasil é ambiente propí-
cio à acumulação capitalista; resultado, sobretudo, da fragilidade insti-
tucional do controle da terra por parte do Estado e do deficiente apoio à
comercialização da agricultura familiar camponesa, situações que favo-
recem o escoamento da renda da terra para o capital.
Fundamental tem-se mostrado a desconstrução desse caminho da
reprimarização, uma vez que a presença do capital no campo não repre-
senta necessariamente a conversão completa dos capitais improdutivos
(leia-se: especulativos) em capitais produtivos, mesmo quando se trata
do setor industrial, como o de eucalipto/celulose no Brasil. Esse caso
do eucalipto-celulose é emblemático da reprimarização, pois o modelo,
mesmo contendo a obtenção da celulose a partir do eucalipto, continua,
na essência, sendo exportação de matéria-prima, uma vez que existe
incompletude do ponto de vista da industrialização clássica. Explica-se:

3
É fundamental expor que as referidas mudanças técnicas que afetaram o campo brasi-
leiro não significaram o expurgo do latifúndio; ao contrário, esse processo avançou lado
a lado com a permanência da figura da terra improdutiva como sinônimo de reserva
de valor. O acesso aos incentivos fiscais modernizou parcialmente o latifúndio, como
explica Martins (1994) e como comprovam os dados do IBGE (2006).

 25
neste setor, há (re)concentração da terra; elevado investimento com uso
substancial do crédito público, escasso efeito multiplicador, posto que a
agregação de valor é pequena (95% da pasta de celulose são exportados
para fabricação de papel na Europa); pouca geração direta de emprego
e centralização do capital.
Reiteram os autores que, nesses setores agroindustriais que ban-
cam a reprimarização da economia, ditos modernos, a expansão/acu-
mulação do capital se dá por meios rentistas. Evidência maior disso é
a não separação entre interesses produtivos e especulativos no interior
dessas empresas, o que leva à vulnerabilidade de países como o Brasil,
onde parcela significativa dos lucros não é reinvestida no aumento da
capacidade produtiva do país, mas na remuneração dos giros especula-
tivos do capital.
Esse caminho de apropriação de bens primários, e das rendas deles
provenientes, como parte do eixo de acumulação do sistema capitalista,
recoloca o debate do campo e da questão agrária no processo de repro-
dução ampliada do capital.
Um dos termos desse debate é, fundamentalmente, o paradoxo que
representam as economias centradas na exportação de bens primários,
uma vez que a agropecuária tem sido, nos últimos anos, o setor que tem
a menor representação na composição do Produto Interno Bruto (PIB)
em diversos países. O caso brasileiro é modelar: de acordo com o IBGE
(2014), em 2011 a agropecuária contribuiu com 5,5% do PIB, enquanto
a indústria contribuiu com 27,5%, e o setor de serviços, com 67%.
Diante de desempenho econômico tão tímido do setor primário,
como entender a matemática do agronegócio brasileiro que alardeia
participações de até 25,11% no PIB nacional? A explicação está na forma
de atuação territorial do que Ploeg (2008) chama de “Império”, uma vez
que o agronegócio (a face visível do capitalismo no campo) é composto
por uma rede que envolve o mercado interligado, que em muito extra-
pola o setor primário, porque articula todos os momentos do processo
de produção, a saber: insumos/produção/indústria de processamento e

 26
distribuição. “O Império é aqui entendido como um modo de ordena-
mento que tende a tornar-se dominante”. (PLOEG, 2008, p. 20). Esse or-
denamento dos “Impérios” (agrícolas e alimentares) significa o controle
do território (envolvendo os bens inalienáveis da natureza, como água e
terra) e a disseminação de normas e padrões, como forma de assegurar a
apropriação das riquezas. São impérios transnacionais que orquestram
a reprimarização das economias, em particular as latino-americanas; o
que há de nacional no agronegócio é o controle da propriedade da terra.
Oliveira (2007), crítico do agronegócio, ou melhor, da agricultura
capitalista, há muito destacou essa forma de dominação do campo por
setores exógenos. Situação possível em decorrência da transnacionaliza-
ção da agricultura, cujo controle se dá por meio de novas configurações
territoriais, a saber: territorialização e monopolização do território. Ci-
tando Jank, Oliveira (2007, p. 147) esclarece que:
O conceito de ‘agribusiness’ foi desenvolvido por Ray Goldberg, em
1957, nos EUA. Foi traduzido para o Brasil, e proposto como ‘com-
plexo agroindustrial’ ou ‘agronegócio’ por Ney Bittencourt, Ivan
Wedekin e Luiz A. Pinazza, nos anos 1980, com enorme repercus-
são nos meios empresariais e acadêmicos. O agronegócio nada mais
é do que um marco conceitual que delimita os sistemas integrados
de produção de alimentos, fibras e biomassa, operando desde o me-
lhoramento genético até o produto final, no qual todos os agentes
que se propõem a produzir matérias-primas agropecuárias devem
fatalmente se inserir, sejam eles pequenos ou grandes produtores,
agricultores familiares ou patronais, fazendeiros ou assentados.

Alertam Giarracca e Teubal (2008), que o controle da terra e do


território se intensificou após a derradeira crise do capital; os impérios
transnacionais têm comprado terras em distintas regiões do globo, a
fim de garantir a extração da renda absoluta, sendo modelar o caso ar-
gentino.
Apesar dessa hegemonia do desenvolvimento capitalista no cam-
po, compreendemos que o território é marcado por lógicas distintas de
uso e apropriação, resultado do processo de desenvolvimento desigual,
contraditório e combinado do capitalismo. Dessa forma, a expansão do

 27
desenvolvimento do capital no campo não significa a homogeneização
do território e das relações sociais no sentido da hegemonia do trabalho
assalariado. Esse processo de expansão da forma capitalista de apropria-
ção da terra caminha, contraditoriamente, com outras formas sociais, em
especial a agricultura familiar camponesa (PAULINO; ALMEIDA, 2010).
Significa dizer que o desenvolvimento desigual do capitalismo no
campo se faz a partir do movimento contraditório, em que se expandem
as atividades propriamente capitalistas alicerçadas na apropriação da
mais-valia e da renda – via territorialização e monopolização do capi-
tal4, concomitante com a recriação de espaços não capitalistas, a exem-
plo das frações camponesas.
A base teórica desta análise encontra-se, fundamentalmente, em
contribuições de Luxemburgo (1976); Martins (1981); Smith (1988);
Sevilla-Guzmán (1990); Harvey (2005); Oliveira (2007); Bartra (2007);
Paulino; Almeida (2010).
É inspirador resgatar os ensinamentos de Rosa Luxemburgo acer-
ca da impossibilidade de dominação universal da produção capitalista
e, portanto, da homogeneização espacial. O capitalismo não sobrevive
sem a existência de formas não capitalistas, é também desta contradição
que emana sua conflitualidade, uma vez que em seu processo de ex-
pansão, trava luta contínua a fim de submetê-las ao seu funcionamento
como mercado de consumo, fonte de matérias-primas e mão de obra:
O capitalismo é a primeira forma econômica com capacidade de
desenvolvimento mundial. Uma forma que tende a estender-se por
todo o âmbito da terra e a eliminar todas as demais formas econô-
micas; que não tolera a coexistência de nenhum outro. Mas é tam-
bém a primeira que não pode existir sozinha, sem outras formas

4
Os conceitos de territorialização e monopolização do capital são usados para explicar a
realidade agrária no Brasil a partir de uma análise que tem como foco principal o desen-
volvimento capitalista no campo e a permanência contraditória do campesinato. Esses
conceitos têm como matriz as obras de Ariovaldo Umbelino de Oliveira, que entende a
territorialização do capital como controle da terra pelo capital a partir do processo pro-
dutivo, e para quem a monopolização do território é o controle do capital na circulação
da mercadoria. Esses processos podem ocorrer imbricados, como no caso do complexo
eucalipto-celulose.

 28
econômicas de que possa alimentar-se. Ao mesmo tempo que
tende a converter-se em forma única, fracassa pela incapacida-
de interna de seu desenvolvimento. Ele oferece o exemplo de uma
contradição histórica viva. Seu movimento de acumulação é a ex-
pressão, a solução progressiva e a intensificação dessa contradição.
(LUXEMBURGO, 1976, p. 411-412. Grifo meu).

Nesta linha de análise, sobressai-se o entendimento de que um


dos aspectos da permanente acumulação capitalista é sua capacidade
de relacionar-se com modos de vida não tipicamente capitalistas. Isso
não ocorre, entretanto, via funcionalidade do capital, mas, sim, como
conflitualidade, uma vez que os métodos utilizados são a exploração, a
subordinação, a pilhagem, a opressão, a fraude, a “coerção consentida”,
entre outros, que resultam, por exemplo, na reprodução subordinada
dos camponeses. Ou, até mesmo, na expulsão de populações campone-
sas pela territorialização do agronegócio, o que, em síntese, demarca o
pressuposto fundamental: a impossibilidade de coexistência harmôni-
ca entre a propriedade capitalista da terra e a camponesa – esta última
identificada, para fins de classificação, como agricultura familiar.
Logo, a complexidade da expansão do capitalismo no campo tem re-
velado que, neste século XXI, a luta transcende a terra; é a luta por terra e
território, pois, a terra, em disputa, revela sua condição de território por-
tador de recursos naturais e matérias-primas indispensáveis à expansão
do capital, situação que faz que a terra continue sendo motivo de disputas
e mortes. Isso decorre do fato de o desenvolvimento do capital se fazer de
forma desigual e combinada, tendo por base a multiplicidade das formas
sociais. A fim de reiterarmos esse entendimento, destacamos as explica-
ções de Amim e Vergopoulos (1977, p. 139) acerca do sistema capitalista:
[...] A força vital do sistema capitalista não provém de sua reprodu-
ção ampliada sobre as zonas a ele ‘exteriores’, mas emana do relacio-
namento entre espaços não homogêneos, irregulares, não-idênticos.
O grande espaço diferenciado e ‘pervertido’ constitui para o capital,
ao mesmo tempo, uma barreira interna a negar, a ultrapassar e uma
condição sine qua non a recriar para a continuação de seu movi-
mento. (Grifo dos autores).

 29
A essência da contradição:
desenvolvimento desigual-combinado,
concentração da terra e permanência
camponesa em Mato Grosso
Cabe previamente esclarecer a intencionalidade do uso de dados
dos censos agropecuários do IBGE: refutar a tese da homogeneização
das relações capitalistas no campo considerando o contexto mato-gros-
sense. Este que, sem dúvida, representa, no cenário nacional, a hege-
monia das estratégias de acumulação do capital expressas, sobretudo,
no avanço da agricultura tipicamente capitalista, alicerçada na grande
unidade de produção, com foco nas mercadorias de renda alta, com di-
namismo seletivo e gerador de desigualdade espacial. Por outro lado, o
estudo da posse e uso da terra cumpre ainda a tarefa de expor como o
desenvolvimento do capitalismo se faz a partir da lógica das contradi-
ções e conflitualidades – expressas tanto no uso capitalista do território
como na luta para recriação da agricultura familiar camponesa.
Para fins deste estudo, classificamos, como pequena unidade, os
estabelecimentos do IBGE (unidade de produção) de menos 01 hec-
tare a menos de 200 hectares; como média, de 200 a menos de 1.000
hectares; como grande unidade, acima de 1.000 hectares. Essa classi-
ficação é a adaptação da Lei 8.629/1993, que define a propriedade no
Brasil (unidade jurídica), a saber: pequena propriedade, até 4 módulos
fiscais; média, acima de 4 até 15; grande, acima de 15 módulos fiscais. É
também a aproximação com o disposto na Lei 11.326/2006, que trata da
definição do universo da agricultura familiar como sendo aquele que,
em área, não excede a quatro módulos fiscais, dentre outras característi-
cas. A promulgação dessa Lei, em 2006, é o reconhecimento institucio-
nal da existência camponesa e, mais, do desenvolvimento contraditório
do capitalismo, em que a recriação camponesa se faz num movimento
ambíguo, porque misto de resistência e subordinação.
Os dados acerca do comportamento da estrutura fundiária no in-
tervalo de uma década revelam duas situações marcantes. A primeira

 30
é a conhecida concentração da terra: dez anos após o censo 1995/96, a
classe de área de 1.000 ha acima representa 7,63% dos estabelecimen-
tos e domina 77,51% da área. A segunda diz respeito à permanência e
expansão da pequena unidade de produção, ou seja, os dados revelam
a resistência e recriação do campesinato no Brasil, a despeito da pouca
área que detém (Tabela 1).
Nesse sentido, vale registrar que, no censo 1995/96, a classe de área
com menos de 200 ha representava 73% dos estabelecimentos, ocupan-
do 6% da área total de MT. Em 2006, na classe de área com menos de
200 ha, subiu para 78,65% o número de estabelecimentos, passando a
ocupar 8,76% da área total. A tabela 2 impede, todavia, idealizações acer-
ca dessa permanência, uma vez que a área média dos estabelecimentos
de menos de 200 ha recuou no período intercensitário, acelerando o já
conhecido processo de minifundização do qual a Reforma Agrária é par-
tícipe, pois a regra tem sido diminuir a cada ano o tamanho dos lotes.

Tabela 1 – Mato Grosso: estrutura fundiária -1995/96 e 2006.


Estabelecimentos em hectares (ha)
1995/96 2006
Classes de área (ha) N. % Área % N. % Área %
Menos de 10 9.801 12,44 46.163 0,09 14.987 13,27 58.603 0,12
10 a menos de 50 22.243 28,24 606.515 1,22 37.874 33,52 1.037.878 2,17
50 a menos de 100 14.833 18,83 982.163 1,97 23.900 21,15 1.544.379 3,23
100 a menos de 200 10.733 13,63 1.385.111 2,78 12.099 10,71 1.549.185 3,24
Sub Total 47.910 73,34 3.019.952 6,06 88.860 78,65 4.190.045 8,76
200 a menos de 1.000 13.128 16,67 5.851.965 11,74 14.478 12,81 6.560.794 13,73
De 1.000 acima 8.011 10,17 40.977.746 82,20 8.624 7,63 37.054.676 77,51
Sem área 14 0,02 ----- 1.016 0,90 -----
Total 78.763 100 49.849.662 100 112.978 100 47.805.514 100
Fonte: IBGE. Org. Mieceslau Kudlavicz, 2015.

Tabela 2 – Mato Grosso: tamanho médio dos estabelecimentos (ha),


segundo as classes de área (ha).
Classes de Área (ha) 1995/1996 2006
0 a menos 200 52,42 47,15
200 a menos 1.000 445,76 453,16
Acima de 1.000 5.115 4.296
Fonte: IBGE. Org. Mieceslau Kudlavicz, 2015.

 31
Outro dado que evidencia o desenvolvimento desigual e contradi-
tório nos campos mato-grossenses diz respeito ao pessoal ocupado. Na
tabela 3, percebe-se aumento no número de pessoal ocupado nas classes
de área com menos de 100 hectares, situação que certamente é reflexo
do impacto da Reforma Agrária. Processo que, embora lento e incon-
cluso, tem sido a porta aberta na luta da recriação camponesa no Brasil
e também em Mato Grosso, como revela a Figura 1.

Tabela 3 – Mato Grosso: pessoal ocupado em


estabelecimentos agropecuários - 1995/96 e 2006.
1995/96 2006
Classes de área (ha)
Pessoal ocupado % Pessoal ocupado %
Menos de 10 30.691 9,31 37.805 10,55
10 a menos de 50 74.060 22,46 95.583 26,68
50 a menos de 100 49.513 15,01 60.919 17,00
100 a menos de 200 36.904 11,19 30.381 8,48
SubTotal 191.168 57,97 224.688 62,71
200 a menos de 1.000 53.683 16,28 47.758 13,33
De 1.000 acima 84.857 25,73 83.271 23,24
Sem declaração 90 0,03 2.604 0,73
Total 329.798 100 358.321 100
Fonte: IBGE. Org. Mieceslau Kudlavicz, 2015.

Figura 1 – Mato Grosso: número total de assentamentos - 2015


Fonte: INCRA/DATALUTA. Org: Danilo Souza Melo.

 32
No período intercensitário, são também esses extratos com menos
de 100 ha os responsáveis pelo aumento na produção de leite, enquanto
o restante sofre significativa redução - menos de 100 ha aumentou a
produção em 94,66%, ao passo que acima de 1000 ha, houve queda de
55,41%. Como mencionado, esses extratos menores se aproximam da
área média dos lotes dos beneficiários da Reforma Agrária. Portanto,
embora o leite também esteja inserido no circuito da monopolização
do território, responsável pela drenagem de renda dos pequenos para as
indústrias, ele continua sendo estratégia defensiva da pequena unidade
de produção. Ao mesmo tempo em que atende ao autoconsumo, gera
renda monetária e alimenta a indústria doméstica de doces, queijos e
iogurtes.

Tabela 4 – Mato Grosso: quantidade produzida de leite – 1995/96 e 2006


1995/96 2006
Classes de área - ha
(Litros) % (mil litros) %
Menos de 10 10.447.611 2,78 18.903 3,65
Menos de 50 84.574.582 22,53 185.828 35,92
Menos de 100 69.525.812 18,52 115.588 22,34
Menos de 200 63.487.685 16,91 77.167 14,92
Subtotal 228.035.690 60,74 397.486 76,83
Menos de 1000 95.141.027 25,37 90.401 17,48
Acima de 1000 52.249.636 13,92 28.955 5,60
Produtor sem área ------- ------ 462 0,09
TOTAL 375.426.353 100 517.304 100
Fonte: IBGE. Org. Mieceslau Kudlavicz, 2015.

Na tabela 5, destacamos o rebate econômico da pequena unidade


de produção: apesar de possuir ínfima representação territorial, a classe
de área com menos de 200 ha participa com 10,59% do valor total da
produção – sendo 21,60% na produção animal e 5,93% do valor total na
lavoura temporária. No caso da horticultura, os pequenos responderam
por 91,16% do valor total.

 33
Tabela 5 – Mato Grosso: valor da produção agropecuária total
(mil reais) por classes de área (ha) - 2006
-200 200 a -1.000 + 1.000 Sem área Total
Animal 639.322 558.178 1.760.107 2.344 2.959.952
Permanente 35.202 10.805 51.892 ----- 97.899
Temporária 534.060 939.414 7.535.688 774 9.009.938
Horticultura 36.658 1.847 1.276 433 40.215
Floricultura 2.776 1.560 ----- ----- 4.372
Extração vegetal 21.927 3.561 3.912 ------ 29.407
Silvicultura 11.689 4.399 26.879 377 43.372
Agroindústria 4.429 982 1.016 31 6.458
Total 1.286.063 1.520.746 9.380.770 3.959 12.191.613
Fonte: IBGE. Org. Mieceslau Kudlavicz, 2015.

Em relação aos financiamentos, Mato Grosso segue a tendência


nacional, que é a da desigualdade de acesso. A pequena unidade (menos
de 200 ha) obteve 6,35% dos financiamentos; a grande unidade (acima
de 1000), 81,31% do valor dos financiamentos. (Tabela 6).

Tabela 6 – Mato Grosso: número de estabelecimentos


e valor dos financiamentos obtidos (mil reais) - 2006
Classes de área Estabelecimentos Valor dos financiamentos
Menos de 10 1.069 12.143
Menos de 50 5.061 61.053
Menos de 100 3.722 50.812
Menos de 200 1.589 34.152
Menos de 1.000 2.446 282.343
Acima de 1.000 1.703 2.051.055
Produtor sem área 35 460
TOTAL 15.625 2.492.017
Fonte: IBGE. Org. Mieceslau Kudlavicz, 2015.

O uso do fundo público para financiar a agricultura capitalista, de


natureza expansível e, ao mesmo tempo, seletiva, expressa-se de forma
contundente quando a classificação é feita por microrregião em Mato
Grosso. No quesito financiamento, três das 22 microrregiões (Parecis,
Alto Teles Pires e Canarana) abocanharam R$1.458.672,00 (mil reais),
ou seja, 71,50% dos valores financiados em 2006.

 34
Considerações
O exercício de análise da realidade desigual-combinada e contra-
ditória dos campos mato-grossenses, por meio dos dados do IBGE, per-
mite destacar alguns processos basilares em curso. O mais emblemático
é a recriação da pequena unidade de produção na classe de área com
menos de 200 ha, em vista da expansão tanto do número de estabeleci-
mentos quanto da área. Situação que aponta para a possibilidade de re-
produção social do modo de vida camponês, que se encontra subjacente
nessa pequena fração do território.
Outra questão conclusiva é a diferenciação geográfica na escala
das microrregiões em Mato Grosso, pois elas apresentam dinamismos
agrários seletivos, em que prevalece o binômio capitalista, que sinteti-
zamos em microrregiões marcadas pelo domínio da pecuária, como é
o caso de Aripuanã, Alta Floresta, Colider, Norte Araguaia, Alto Gua-
poré e Jauru, e microrregiões em que a hegemonia é agrícola, com o
exemplo da soja, que, em 2006, tinha 74,84% da produção concentra-
da nas microrregiões de Parecis, Alto Teles Pires, Canarana, Primavera
do Leste e Rondonópolis. Há também microrregiões que, no período
intercensitário, se isolaram na especialização do território, como Tan-
gará da Serra, que é responsável por 49,92% da cana-de-açúcar produ-
zida em Mato Grosso.
Por fim, e não menos importante, depreende-se que essa reprodu-
ção da pequena unidade ocorre como contradição e, por isso, carrega
a marca da conflitualidade, da luta para entrar e permanecer na terra
– não se trata de concessão do capital. A marca de sangue dessa contra-
dição em Mato Grosso está estampada nos dados de conflitos da CPT,
conforme se visualiza nas tabelas 7, 8 e 9.

 35
Tabela 7 – Mato Grosso: conflitos no campo – 2013-2014
2013 2014
 Conflito
Quantidade Famílias Quantidade Famílias
Conflito por terra 33 2.150 25 1.306
Conflito por água 2 134 6 1.247
Ocupação/retomada 5 398 4 262
Acampamentos 0 0 1 50
TOTAL 40 2.682 36 2.865
Fonte: Caderno de Conflitos da CPT.

Tabela 8 - Mato Grosso: trabalho escravo – 2013-2014


2013 2014
 Conflito
Quantidade Trabalhadores Quantidade Trabalhadores
Trabalho escravo 9 73 3 14
Superexploração 1 1 0 0
TOTAL 10 74 3 14
Fonte: Caderno de Conflitos da CPT

Tabela 8 - Mato Grosso: trabalho escravo por tipo de


atividade – 2013-2014
Tipo de trabalho Denúncias Trabalhadores
Mineração 2 28
Pecuária 6 23
Reflorestamento 2 15
Catação de raiz 1 15
Soja 1 5
Carvoaria 1 2
TOTAL 13 88
Fonte: Caderno de Conflitos da CPT.

Retomar o debate da violência do capital é fundamental neste


momento de “vaivém” de capitais e busca de novos ambientes de acu-
mulação – como já exposto na Introdução deste capítulo. Trata-se de
um movimento do capital que seguramente aponta para aumento da
concentração de terra e riqueza, acirramento da luta e da necessidade
de políticas públicas de proteção, financiamento e comercialização que
assegurem, no marco da dignidade, as condições de recriação das pe-
quenas unidades.

 36
Destaca-se, a título de alerta, que, embora a tônica deste texto te-
nha sido o exercício de ler a realidade nos dados censitários de posse
e uso da terra, prioritária se faz a premissa da questão agrária anterior
a toda e qualquer discussão das políticas agrícolas, da viabilidade (ou
não) da agricultura familiar, ou coisa que o valha, em relação a mudan-
ças na base técnica. Isso porque o enfrentamento da concentração da
terra em poucas e privilegiadas mãos – e da violência dela derivada – é
tarefa inconclusa no Brasil e, em particular, em Mato Grosso.
Portanto, o término desta reflexão não poderia ser outro senão a
defesa da Reforma Agrária e das lutas políticas, visto que dividir a terra
num país como o Brasil, com histórico de grilagem de terras e estrutura
fundiária concentrada, não é matéria do reino da economia, mas, sim,
da política – como exercício pedagógico de democracia!
Merecem menção, aqui, as ponderações de R. Luxemburgo:
É uma ilusão esperar que o capitalismo se conforme com os meios
de produção que pode obter pelo caminho do comércio de mer-
cadorias. A dificuldade nesse ponto consiste em que, nas grandes
zonas da superfície terrestre, as forças produtivas estão em poder de
formações sociais que ou não se encontram inclinadas ao comércio
de mercadorias ou não oferecem os meios de produção mais impor-
tantes para o capital porque as formas econômicas ou estrutura so-
cial constituem um obstáculo. É o caso, por exemplo, da terra, com
suas riquezas minerais, seus prados, bosques e forças hidráulicas,
enfim, dos rebanhos dos povos primitivos dedicados ao pastoreio.
Confiar-se ao processo secular lento de decomposição interna des-
sas estruturas econômicas e em seus resultados equivaleria para o
capital a renunciar às forças produtivas daqueles territórios. [...]. O
capital só conhece, como solução para esse problema, o uso da
violência, que constitui um método permanente da acumulação
de capital no processo histórico, desde sua origem até os nossos
dias. (LUXEMBURGO, 1976, p. 319-320. Grifo nosso).

A escolha do referencial teórico do desenvolvimento desigual-


-combinado e contraditório para ler os processos territoriais em Mato
Grosso, cumpre a tarefa de nos alertar que a contradição continua posta.
Logo, não procede a ideia de um continum cidade-campo, em que este

 37
último figura como complementar às lógicas de construção do urba-
no, à mercê do agronegócio, basicamente porque não há, infelizmen-
te, sinais de diluição das contradições - tampouco estamos vivendo um
acirramento destas. O dilema parecer ser outro, qual seja, a (re)criação
camponesa refém de um capitalismo moldado pelas conflitualidades e
que bem por isso as elas se antecipa, criando tutelas para conciliar os
historicamente desiguais. Para tanto, conta com um parceiro também
histórico e decisivo, o Estado.

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 40
Faces da Agricultura Familiar
Camponesa nas Microrregiões
do Alto Pantanal e Tangará da Serra
- Mato Grosso – Brasil

Onélia Carmem Rossetto


Doutora em Desenvolvimento Sustentável – Politica e Gestão Ambiental(UnB/CDS).
Docente na Universidade Federal de Mato Grosso

Introdução
Inserido no modelo capitalista de produção, o estado de Mato
Grosso apresenta 52,92% (IBGE, 2009) da sua área territorial voltados
para atividades agropecuárias, configurando um mosaico heterogêneo,
com diferentes formas de manejo das atividades econômicas, relações
sociais de produção, cultura e modo de vida. Apesar dessa diferencia-
ção, é comum, nas 22 microrregiões, a dependência das atividades do
agronegócio, em diferentes proporções, uma vez que a ideologia predo-
minante apregoa sua supremacia para o crescimento econômico e ob-
tenção de superávits na balança comercial.
É importante salientar que o agronegócio não se resume apenas na
posse de grandes áreas utilizadas para monocultura de espécies agrícolas
voltadas para exportação. Na realidade, além de se materializar no espaço

 41
geográfico via infraestrutura e logística, também se consolida nos fluxos
financeiros, nas relações políticas, comerciais, de trabalho e nas transfor-
mações da cultura e das relações sociais, buscando homogeneizar as rela-
ções de dependência e subordinando a agricultura camponesa.
Na perspectiva de Batalha; Souza Filho (2003), o conceito de agro-
negócio reside na noção de que há uma cadeia de negócios e ativida-
des produtivas, que não podem ser analisadas de forma isolada, pois
envolvem os produtores rurais e o manejo das atividades econômicas
por eles desenvolvidas, a indústria ligada ao setor e as redes de benefi-
ciamento, armazenamento e comercialização. Envolve também o setor
de comércio e serviços, formando um sistema articulado com relações
de dependência.
Ademais, o agronegócio traz o estereótipo da modernidade, da
tecnologia, produtividade e eficiência, sendo apontado como única
alternativa de crescimento econômico para o estado de Mato Grosso,
buscando subordinar ou invisibilizar a agricultura camponesa, as et-
nias indígenas, enfim, os grupos populacionais considerados atrasados
e retrógrados, empecilhos para o avanço do capital. Nesse cenário, os
movimentos socioterritoriais de resistência e a luta pela reforma agrária
no território mato-grossense têm, no entanto, desafiado a ordem estabe-
lecida e vêm obtendo sucesso nos processos de reorganização fundiária
e na manutenção do modo de vida camponês.
As microrregiões do Alto Pantanal e de Tangará da Serra, no su-
doeste de Mato Grosso, apresentam duas fisionomias diferentes do
agronegócio. A primeira se caracteriza por municípios colonizados no
século XVIII, e com uma particularidade: estão localizados no Pantanal
mato-grossense, ou seja, durante cerca de seis meses, anualmente, ficam
encobertos pela água.
Segundo Rossetto (s.d./no prelo), esse fenômeno resulta do con-
junto de três fatores inter-relacionados e que influenciam as técnicas de
manejo das atividades produtivas: o clima, a topografia e a proximidade
ou não dos mananciais aquíferos. Pesquisas realizadas pela autora re-

 42
gistram que o município de Barão de Melgaço tem cerca de 99% da sua
área inundável; Cáceres e Curvelândia, cerca de 51%; Poconé, cerca de
80,3%. Como correlato, o manejo do gado é diferente em cada estação
climática e de acordo com a localização geográfica.
No pântano ou Pantanal baixo, área inundável, é desenvolvida
a pecuária extensiva; já no Pantanal alto ocorre a semiextensiva, am-
bas com diferentes graus de tecnologia. Ainda é possível encontrar, no
Pantanal baixo, o manejo tradicional do gado, criado solto nos cam-
pos nativos, com quase nenhum trato e baixos índices zootécnicos. No
mesmo contexto, é possível identificar o agronegócio, via extensas áreas
de pastagens exóticas, uso de tecnologias e insumos químicos, com a
produção voltada para a exportação (ROSSETTO, 2004). A necessida-
de de manejo do gado das terras baixas para as terras altas favoreceu a
concentração fundiária, uma vez que os detentores do capital justificam
o monopólio das terras no pantanal a partir da sazonalidade climática,
elemento discutível no âmbito da luta pela reforma agrária.
É possível registrar, todavia, na Microrregião do Alto Pantanal, a
diversidade de atividades econômicas que não estão calcadas na gran-
de produção, a exemplo da pesca profissional artesanal, praticada pelas
populações ribeirinhas, ou da produção agrícola familiar realizada pe-
las comunidades remanescentes de quilombos e assentados da reforma
agrária. Não há, entretanto, dados quantitativos sobre a distribuição
espacial dessa população e as políticas públicas; e respectivos progra-
mas são criados e implantados desconsiderando a complexa realidade
agrária do Pantanal.
Na Microrregião de Tangará da Serra, o agronegócio desenha suas
características na paisagem, não restando dúvidas sobre a sua supre-
macia: os municípios de Nova Olímpia, Barra do Bugres e Denise re-
gistram, em sua história econômica, dois períodos: antes da década de
1980, quando tinham incipiente base econômica, e após a década de
1980, com a chegada das Usinas Itamarati, o moderno complexo agroin-
dustrial que cultiva diferentes espécies de cana-de-açúcar e as transfor-
mam em etanol, açúcar e energia elétrica.

 43
A mão de obra da agroindústria é arregimentada entre os residen-
tes na região e também trazidos de outras localidades do país, especial-
mente da região nordeste. Rossetto (1997) registra que, durante cerca de
20 anos, a contratação dos trabalhadores braçais foi efetuada por “gatos”,
ou seja, agenciadores de mão de obra que se responsabilizavam por gru-
pos de cerca de 200 pessoas e recebiam, em 1997, 4% sobre a produção
de cada trabalhador. Pesquisas realizadas em 2012 revelam que, com
o aprimoramento das técnicas de produção e a adoção do plantio e da
colheita mecânica, reduziu-se o número de trabalhadores e a figura do
agenciador desapareceu (GECA, 2012). Por outro lado, a pequena pro-
priedade está sendo subordinada ao capital agroindustrial via arrenda-
mento das suas terras para o plantio da cana-de-açúcar, integrada ao
agronegócio. Além disso, sobretudo, está perdendo sua autonomia por
meio da dependência e, talvez, a sua identidade.
O principal fator em comum entre as microrregiões em estudo é
o escasso conhecimento do perfil do camponês do território pantaneiro
e do camponês do território do complexo agroindustrial. Tal questão
norteia a reflexão aqui proposta, que busca desvelar as múltiplas faces
e o “lugar” da agricultura camponesa no estado de Mato Grosso, desta-
cando alguns dados publicados nos Censos Agropecuários 1996/97 e
2006 e, em alguns casos, registrando dados atuais oriundos de diferentes
fontes.
A próxima seção apresenta alguns conceitos essenciais para a aná-
lise e registra dados na escala estadual e nas microrregiões em estudo
para o período censitário 1996/97 e 2006. Na sequência, desenham-se
as diferenciações da agricultura camponesa, buscando revelar sua iden-
tidade no território do agronegócio.

Agricultura familiar camponesa em Mato Grosso


A utilização do termo agricultor familiar neste capítulo se dá, pri-
meiro, porque os dados censitários em análise utilizam tal termo; se-
gundo, porque a legislação brasileira o adota, inclusive definindo-o na

 44
forma de lei. Tem-se, entretanto, a clareza de que tal conceito integra
o Paradigma do Capitalismo Agrário (ABRAMOVAY, 1992), que de-
fende a transformação do camponês em pequeno capitalista integrado
e subordinado ao mercado e ao Estado, sem identidade e autonomia,
contribuindo compulsoriamente para o avanço da exploração e da con-
centração do capital. Dessa forma, é importante esclarecer que o termo
agricultor familiar está sendo aqui utilizado não como conceito, mas
como condição de organização do trabalho, perspectiva já evidenciada
por Fernandes (2001).
A definição do termo agricultor familiar encontra-se no artigo 3º
da Lei Federal 11.326, de 24 de julho de 2006:
o trabalhador rural que atende, ao mesmo tempo, aos seguintes crité-
rios: (I) não detenha área maior do que 04 (quatro) módulos fiscais;
(II) utilize predominantemente mão de obra da própria família nas
atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;
(III) tenha percentual mínimo da renda familiar originada de ativida-
des econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na for-
ma definida pelo Poder Executivo; e (IV) dirija seu estabelecimento
ou empreendimento com sua família. (BRASIL, 2006).

A terminologia “Módulo Fiscal” (MF) foi instituída pela Lei nº


6.746, de 10 de dezembro de 1979, e significa a unidade de medida agrá-
ria que representa a área mínima necessária para as propriedades rurais
serem consideradas economicamente viáveis. Em Mato Grosso, os mó-
dulos fiscais variam de 30 a 100 hectares; portanto, de maneira geral, a
propriedade rural familiar varia no intervalo das classes entre 1 e 400
hectares. A posse de até quatro módulos fiscais é determinante para a
classificação dessa modalidade de produtor, contudo exclui novamente
a pluralidade de grupos sociais, inclusive as comunidades tradicionais
e os remanescentes de quilombos que ainda têm a posse comum das
terras ou que se encontram em situação fundiária irregular. Atores que
desconhecem até mesmo o tamanho da área que ocupam ou que sua
família ocupava desde períodos ancestrais.
O módulo fiscal serve de parâmetro para a classificação fundiária
dos imóveis rurais do município quanto ao seu tamanho, em confor-
 45
midade com o art. 4º da Lei nº 8.629/93. (BRASIL, 1993). Dessa forma,
as propriedades rurais podem ser classificadas em: minifúndios: com
tamanho de até um módulo fiscal; pequenas propriedades: com área en-
tre um e quatro módulos fiscais; médias propriedades: com dimensão
superior a quatro e até 15 módulos fiscais; grandes propriedades: com
área maior do que 15 módulos fiscais.
Com a Lei Federal 11.326, de 24 de julho de 2006, aumentaram os
grupos sociais considerados agricultores familiares, pois enquadram-se
nessa categoria silvicultores que cultivam florestas nativas ou exóticas
e que promovem o manejo sustentável daqueles ambientes; aquiculto-
res que explorem reservatórios hídricos com superfície total de até 2 ha
ou ocupem até 500m³ (quinhentos metros cúbicos) de água, quando a
exploração se efetivar em tanques-rede; extrativistas que exerçam essa
atividade artesanalmente no meio rural, excluídos os garimpeiros e fais-
cadores; pescadores que exerçam a atividade pesqueira artesanalmente;
povos indígenas e integrantes de comunidades remanescentes de qui-
lombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais.
Em Mato Grosso, é possível identificar grupos pertencentes a todas
as categorias arroladas pela legislação citada, contudo ainda há precarie-
dade de informações que possibilitem sua localização no território, bem
como indicadores que demonstrem seu perfil. A ausência de informa-
ções conduz a múltiplos indicadores quantitativos, inclusive em relação
ao total de estabelecimentos da agricultura familiar e sua distribuição
espacial no território mato-grossense. Já os indicadores qualitativos que
particularizam cada categoria de agricultor familiar são esparso; como
correlato, pouco se sabe sobre a base econômica, as relações sociais de
produção, a situação fundiária e ambiental das unidades produtivas fa-
miliares ou das pequenas e médias propriedades rurais no estado, as
dificuldades enfrentadas pelos remanescentes de quilombos, por extra-
tivistas, por pequenos agricultores autônomos, por agricultores pesca-
dores profissionais artesanais e demais grupos que integram a categoria.
A tabela 1 apresenta informações relevantes. Tendo como referên-
cia a Lei da Agricultura Familiar e o tamanho dos módulos fiscais e

 46
guardadas as significativas diferenças no formato de realização entre os
dois censos em análise, pode-se afirmar que, de maneira geral, o Cen-
so Agropecuário 1996/97 (BRASIL, 1996) demonstra que existiam, em
Mato Grosso, cerca de 70.738 estabelecimentos da agricultura familiar,
contudo, como não é possível identificar o número de propriedades
entre 200 e 400 hectares, tal número se torna apenas uma aproximação.
Os dados do Censo da Agricultura Familiar 2006 (BRASIL, 2009)
revelam que o Estado de Mato Grosso era ocupado por 86.167 estabele-
cimentos de agricultura familiar, entretanto o documento não indica os
perfis dos agricultores, se pertencentes a assentamentos, comunidades
tradicionais, remanescentes de quilombos ou a outras categorias.

Tabela 1 – Mato Grosso: estrutura fundiária – 1995/96 e 2006


– estabelecimentos em hectares
1995/96 2006
Classes de área (ha)
N. % Área % N. % Área %
Menos de 10 9.801 12,44 46.163 0,09 14.987 13,27 58.603 0,12
10 a menos de 50 22.243 28,24 606.515 1,22 37.874 33,52 1.037.878 2,17
50 a menos de 100 14.833 18,83 982.163 1,97 23.900 21,15 1.544.379 3,23
100 a menos de 200 10.733 13,63 1.385.111 2,78 12.099 10,71 1.549.185 3,24
200 a menos de 1.000 13.128 16,67 5.851.965 11,74 14.478 12,81 6.560.794 13,73
De 1.000 acima 8.011 10,17 40.977.746 82,20 8.624 7,63 37.054.676 77,51
Sem área 14 0,02 ----- 1.016 0,90 -----
Total 78.763 100 49.849.662 100 112.978 100 47.805.514 100
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
Organizador: Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade – GECA/UFMT, 2013.

Uma das consequências do modelo do agronegócio é o aumento


da concentração de terras nas mãos de minoria detentora do capital. A
análise da estrutura fundiária de Mato Grosso demonstra, todavia, que,
no período censitário entre 1996/97 e 2006, em decorrência da inten-
sificação dos movimentos socioterritoriais de luta pela terra, ocorreu o
aumento de 49,14% dos estabelecimentos rurais com menos de 10 ha.
Como correlato, observa-se o aumento de 26,94% da área ocupada. Foi
registrado também o incremento de 62,54 % das áreas entre 10 a menos

 47
de 100 ha, bem como o aumento do número de estabelecimentos em
16,15 %. As áreas entre 100 e menos de 1.000 ha sofreram o acréscimo
de 12,06%, fato que resultou em acréscimo do número de estabeleci-
mentos na ordem de 11,38%.
Entre 1996 e 2006, o número de estabelecimentos agropecuários
com 1.000 ha ou mais aumentou em 7,65%, entretanto a área ocupada
diminuiu em 5,74%. A estrutura das propriedades intermediárias (10 a
menos de 100 hectares e de 100 a menos de 1.000 hectares) sofreu pouca
variação. Enquanto os estabelecimentos de 10 a menos de 100 hectares
concentravam, respectivamente, 39,4% e 38% da área total dos estabe-
lecimentos nos censos agropecuários de 1995/96 e 2006, a participação
dessas propriedades quanto ao número total de estabelecimentos pas-
sou de 17,7% (em 1995/96) para 19% (em 2006).
No que se refere às propriedades de 100 a menos de 1.000 hectares,
a variação passou de cerca de 35%, em 1995/96, para 34%, em 2006;
quanto à área ocupada, em relação ao total da área dos estabelecimen-
tos, a variação foi de cerca de 9%, em 1995/96, para 8,2%, em 2006. A
área total dos estabelecimentos agropecuários de Mato Grosso (2006)
diminuiu em 2.044.147,54 milhões de hectares (-4.10%) em relação ao
Censo Agropecuário 1995/96.
Os dados registrados revelam os resultados da intensificação dos
movimentos socioterritoriais de luta pela terra em Mato Grosso via ele-
mentos que sinalizam para a desconcentração fundiária, mas que não
pode ser confundida com reforma agrária, pois tal questão integra a
estrutura do sistema capitalista e sua dinâmica forma o círculo vicio-
so, ora de concentração extrema, ora de moderada desconcentração. A
reforma agrária organiza-se de forma processual e depende basicamen-
te de transformações na lógica de acumulação de capital, dificilmente
transponível no âmbito do sistema capitalista.
As atividades econômicas desenvolvidas no espaço agrário refle-
tem o processo de concentração de terras e capital. Em 2006, na Micror-
região do Alto Pantanal e na Microrregião de Tangará da Serra (Tabelas
2 e 3), constata-se a liderança do agronegócio ligado à pecuária e à cul-
 48
tura de lavouras temporárias, ou seja, plantio de culturas de curta dura-
ção e que necessitam geralmente de novo plantio após a colheita, como,
por exemplo, a soja e a cana-de-açúcar (a cana é considerada lavoura
temporária mas a colheita e novo plantio obedecem o ciclo que varia de
cinco a sete anos). Tais atividades são caracterizadas pela adoção de tec-
nologia intensiva em capital e em mão de obra qualificada, assim como
de crescente escala de produção.

Tabela 2 – MRG do Alto Pantanal (MT):


número de estabelecimentos rurais por atividades econômica – 2006
Barão de
Cáceres Curvelândia Poconé Total
Melgaço
Lavouras temporárias 91 188 8 226 513
Lavouras permanentes 17 54 9 36 116
Horticultura e fruticultura 12 69 3 36 120
Produção de sementes e mudas 0 0 0 0 0
Pecuária e criação de outros animais 604 2.195 446 1.205 4.450
Produção florestal– floresta plantada 2 11 1 4 18
Produção florestal – floresta nativa 1 0 2 1 4
Pesca 107 1 0 1 109
Aquicultura 0 6 1 0 7
Total 834 2.524 470 1.509 5.337
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
Organizador: Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade – GECA/UFMT, 2014.

Tabela 3 –MRG de Tangará da Serra (MT):


número de estabelecimentos rurais por atividades econômica – 2006
Barra do Nova Porto Tangará
Denise Total
Bugres Olímpia Estrela da Serra
Lavouras temporárias 118 20 37 26 190 391
Lavouras permanentes 14 2 15 1 72 104
Horticultura e fruticultura 52 21 8 7 145 233
Produção de sementes e mudas 0 0 0 0 0 0
Pecuária e criação de outros animais 643 363 457 456 1.041 2.960
Produção florestal – floresta plantada 1 1 4 4 22 32
Produção florestal – floresta nativa 2 1 1 7 13 24
Pesca 0 0 1 1 0 2
Aquicultura 1 0 1 0 1 3
Total 831 408 524 502 1.484 3.749
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
Organizador: Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade – GECA/UFMT, 2014.

 49
Como decorrência da adoção do elevado padrão tecnológico, a
oferta de trabalho diminui, incluindo os postos de trabalho relativos à
agroindústria canavieira, presente na Microrregião de Tangará da Serra,
que durante muito tempo absorveu grande contingente de mão de obra
temporária. A baixa qualificação dos trabalhadores sazonais implica a
inaptidão para o manuseio de equipamentos da agricultura de precisão
e gera desemprego. Tal questão tem suas raízes no sistema educacio-
nal deficitário adotado no Brasil, onde as escolas, em decorrência de
problemas estruturais, não cumprem o seu papel de subsidiar as classes
populares para que construam o conhecimento básico e a leitura crítica
de mundo. (ROSSETTO, 1997).
No contexto das lavouras de soja e cana-de-açúcar, a principal
forma de subordinação da agricultura familiar camponesa é o arrenda-
mento das terras dos pequenos proprietários pelos complexos agroin-
dustriais, tornando-os dependentes exclusivamente do agronegócio. Tal
fato é comum na Microrregião de Tangará da Serra, onde a Usina Itama-
rati ocupa 67 mil hectares de terras cultiváveis (próprias e arrendadas)
e, em 2015, planta 70% da sua área mecanicamente e já utiliza a colheita
mecanizada em 100% da sua área. (ITAMARATI, 2015).
A esse respeito, cabe notar que a absorção de mão de obra restrin-
ge-se a alguns tratos culturais e a funções que exigem melhor qualifica-
ção. Para a agricultura familiar camponesa residente na região, a alter-
nativa é o arrendamento e dependência; para os trabalhadores sazonais,
a alternativa reside na contínua migração, na sujeição da venda da força
de trabalho em outros setores, como a construção civil e a permanente
proletarização.
Essa análise é relevante, também, para a Microrregião do Alto
Pantanal, onde a prática da pecuária tradicional extensiva em pastagens
nativas está sendo substituída pelo cultivo de pastagens exóticas e o uso
de insumos químicos e a mecanização se dão de forma acelerada. Dessa
forma, como aponta Rossetto (2009), a oferta de trabalho para os deno-
minados peões pantaneiros, sábios no manejo do gado nas extensas pla-
nícies inundáveis, vem diminuindo gradativamente, e outras funções de

 50
maior complexidade são criadas, a exemplo do manuseio e aplicação de
insumos químicos e condução de tratores ou demais veículos utilizados
nos tratos culturais das pastagens cultivadas.
Por outro lado, em face da dificuldade de adquirir meios de sobre-
vivência, observa-se, na Microrregião do Alto Pantanal, a intensificação
dos movimentos socioterritoriais de luta pela terra, por meio dos quais
os trabalhadores rurais têm conseguido paulatinamente influenciar a
organização fundiária. Como correlato, no município de Cáceres desta-
ca-se o maior número de manifestações e de ocupações entre 2000-2013
(DATALUTA MATO GROSSO, 2013).
A leitura direta do aumento do número de propriedades da agri-
cultura familiar remete à temática da segurança ou soberania alimen-
tar, pois, segundo a Organização das Nações Unidas – ONU, as pro-
priedades agrícolas familiares detêm, em escala global, cerca de 80% da
produção de alimentos e 75% dos recursos agrícolas do mundo. Como
correlato, são agentes essenciais para o desenvolvimento sustentável e
para a erradicação da insegurança alimentar.
Os indicadores econômicos levantados em dados secundários
pelo Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e Conservação da Bio-
diversidade – GECA enfatizam a importância da Agricultura Familiar
do estado de Mato Grosso na produção agropecuária. Para chegar a
isso, foram analisados alguns produtos agrícolas selecionados que,
com base no conhecimento empírico, são cultivados pela agricultura
familiar.
Tais indicadores revelam que, em 2006, no estado de Mato Grosso,
11.340 estabelecimentos da agricultura familiar produziram 4.121.606
toneladas de milho e 10.411 produziram 108.381 toneladas de mandio-
ca, enquanto 3.699 estabelecimentos produziram 10.659.324 toneladas
de soja (Tabela 4).
Os produtos mais cultivados na Microrregião do Alto Pantanal
são a soja (10.262T), milho (4.161T) e a mandioca (1.998T); na Mi-
crorregião de Tangará da Serra a produção de soja também destaca-se

 51
(106.483T), destinada à indústria e à exportação. Portanto, a hipótese
que se desenha é o arrendamento das terras da agricultura familiar cam-
ponesa pelos grandes sojicultores e a substituição do plantio de pro-
dutos alimentícios, muitos dos quais voltados para o mercado interno,
pelo plantio da soja direcionada à exportação.
No conjunto das microrregiões de Mato Grosso, a Microrregião
de Rosário Oeste era a maior produtora de mandioca do estado, com
25.059 toneladas em 2006, e a de Alto Teles Pires liderava a produção
de milho, com 1.961.980 toneladas. Seguindo a tendência da Micror-
região de Tangará da Serra, os agricultores familiares da Microrregião
do Alto Teles Pires lideraram a produção de soja com 3.988.311 tone-
ladas.

Tabela 4 - MRGs de MT: produção familiar de soja, feijão, mandioca e


milho, por estabelecimentos (número) e produção (toneladas) – 2006
Soja Feijão Mandioca Milho
MRGs
número tonelada número tonelada número tonelada número tonelada
Alta Floresta 3 11.474 50 21 668 1.942 770 15.265
Alto Araguaia 120 258.011 2 301 57 156 90 84.028
Alto Guaporé 7 26.510 - - 165 1.198 306 6.911
Alto Pantanal 5 10.272 3 39 305 1.998 290 4.161
Alto Paraguai 13 43.481 - - 361 712 227 21.933
Alto Teles Pires 1.465 3.988.311 10 376 628 13.768 1.112 1.961.980
Arinos 96 376.028 2 11 468 2.716 231 100.944
Aripuanã 42 119.928 97 59 534 5.205 2.244 39.905
Canarana 377 913.833 - - 463 2.354 762 127.017
Colíder 30 55.535 26 7 1.493 9.890 1.122 16.685
Cuiabá 18 76.453 1 4 740 12.239 283 33.797
Jauru 3 1.050 3 1 354 2.918 598 19.499
Médio Araguaia 10 62.104 - - 43 399 21 382
Norte Araguaia 22 146.171 5 0 469 3.763 640 39.304
Paranatinga 73 143.483 1 1 105 4.477 89 24.456
Parecis 405 1.851.459 5 1.251 92 571 257 677.926
Primavera do Leste 200 599.976 2 2 157 1.112 190 347.194
Rondonópolis 201 735.557 4 0 918 2.784 620 220.026
Rosário do Oeste 2 - 4 16 906 25.059 509 7.314
Sinop 468 744.305 13 5 978 5.442 659 264.505
Tangará da Serra 30 106.483 1 4 266 3.190 206 26.932
Tesouro 109 386.563 - - 241 6.486 114 26.932
Total 3.699 10.659.324 229 2.099 10.411 108.381 11.340 4.121.606
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE/Censo Agropecuário 2006.
Agricultura Familiar – Primeiros Resultados. Organizador: Grupo de Pesquisas em
Geo­grafia Agrária e Conservação da Biodiversidade – GECA/UFMT, 2015

 52
Em 2006, a produção resultante da atividade pecuarista destacava
a avicultura, com 30.953 estabelecimentos produtores e 2.983 cabeças
abatidas, e a pecuária bovina, com 25.612 estabelecimentos e 265.517 ca-
beças abatidas, enquanto 33.299 estabelecimentos produziram 517.305
mil litros de leite (Tabela 5).
As microrregiões de Jauru e Rondonópolis, em número de esta-
belecimentos, lideravam a produção de leite em 2006, e a segunda li-
derou também o número de abates de bovinos. A produção de suínos,
em número de estabelecimentos da agricultura familiar, em 2006, estava
concentrada na Microrregião de Canarana, Rondonópolis e Norte Ara-
guaia. Na Microrregião do Alto Pantanal, observava-se a predominân-
cia da produção de bovinos, aves e leite; na Microrregião de Tangará da
Serra caracterizava-se pela produção de aves e leite.

Tabela 5 – MRGs de Mato Grosso: produção familiar da pecuária, em número


de estabelecimentos, total de cabeças e leite produzido (litros) – 2006
Aves Leite
Bovinos (abatidos) Suínos (vitimados)
MRGs (vitimados) (produção)
número cabeças número cabeças número cabeças número mil litros
Alta Floresta 2.136 21.152 549 3.704 1.994 39 2.283 26.000
Alto Araguaia 298 2.510 117 870 318 7 423 6.924
Alto Guaporé 1.471 14.441 329 1.710 1.238 25 2.026 52.907
Alto Pantanal 1.163 14.795 313 1.958 1.401 22 1.311 18.984
Alto Paraguai 303 2.878 174 1.356 436 151 615 11.084
Alto Teles Pires 817 6.624 564 53.961 1.139 320 877 6.263
Arinos 822 13.542 395 2.483 1.420 43 800 8.582
Aripuanã 1.903 19.782 648 3.946 2.779 54 2.757 21.264
Canarana 1.472 14.931 856 4.565 2.218 55 1.780 26.707
Colíder 3.969 20.359 651 3.324 2.976 51 4.595 67.597
Cuiabá 1.290 14.861 766 4.744 1.730 157 1.302 20.020
Jauru 2.043 20.050 685 3.465 2.246 139 4.126 96.782
Médio Araguaia 405 20.417 185 1.100 586 11 604 7.230
Norte Araguaia 1.871 15.352 679 3.566 2.340 39 1.831 24.039
Paranatinga 579 3.397 268 1.725 627 14 564 5.630
Parecis 628 4.684 180 47.777 531 29 788 9.445
Prim. do Leste 200 1.340 87 1.935 354 654 238 4.774
Rondonópolis 1.400 23.435 727 15.321 2.221 185 2.775 59.359
Rosário do Oeste 633 4.049 301 1.673 735 15 451 2.701
Sinop 898 9.039 510 4.916 1.212 115 1.018 9.297
Tangará da Serra 581 6.227 311 1.892 1.084 837 813 9.196
Tesouro 730 11.652 383 18.997 1.368 23 1.322 22.521
Total 25.612 265.517 9.678 184.988 30.953 2.983 33.299 517.305
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE/Censo Agropecuário 2006.
Agricultura Familiar – Primeiros Resultados. Organizador: Grupo de Pesquisas em
Geo­grafia Agrária e Conservação da Biodiversidade do Pantanal – GECA/UFMT, 2015.

 53
De maneira geral, a Agricultura Familiar Camponesa busca sua
inserção nos mercados via agroindústrias. Observa-se que, em 2006, fo-
ram registrados 998 estabelecimentos da agricultura familiar que agre-
gavam valor à mandioca, fabricando farinha, e também à cana de açú-
car, fabricando rapadura e aguardente (Tabela 6).
A Microrregião do Alto Pantanal registrava a presença de 26
agroindústrias de farinha de mandioca e a Microrregião de Tangará da
Serra, 17. No conjunto das microrregiões em análise, a produção da fa-
rinha de mandioca concentrava-se nas microrregiões de Rosário Oeste
(2.327 t) e Norte Araguaia (178 t).

Tabela 6 – MRGs de Mato Grosso: agroindústrias da agricultura fami-


liar, em número de estabelecimentos e de venda (L e T) – 2006
Farinha de mandioca Aguardente de cana Rapadura
MRGs
Número Venda (T) Número Venda (L) número Venda (T)
Alta Floresta 15 45 10 59 35 213
Alto Araguaia 7 29 - - 13 7
Alto Guaporé 9 1 - - 2 -
Alto Pantanal 26 166 1 - 2 -
Alto Paraguai 36 27 - - 13 43
Alto Teles Pires 7 91 - - 6 9
Arinos 11 27 1 - 3 1
Aripuanã 4 1 - - 1 -
Canarana 78 34 1 - 5 4
Colíder 36 41 1 - 16 22
Cuiabá 28 127 4 6 2 -
Jauru 11 119 - - 18 52
Médio Araguaia 1 - 1 - 3 8
Norte Araguaia 105 178 - - - -
Paranatinga 12 9 - - 14 8
Parecis 3 1 - - 3 3
Prim. do Leste 6 56 1 - 3 191
Rondonópolis 69 130 2 - 1 -
Rosário do Oeste 280 2.327 - - 16 24
Sinop 40 73 - - 19 24
Tangará da Serra 17 42 3 21 5 4
Tesouro 23 14 - - 4 2
Total 824 3.636 16 321 158 440
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE/Censo Agropecuário 2006.
Agricultura Familiar – Primeiros Resultados. Organizador: Grupo de Pesquisas em Ge-
ografia Agrária e Conservação da Biodiversidade – GECA/UFMT, 2015

 54
A agroindústria camponesa familiar rural pode representar espaço
de resistência, uma vez que possibilita a oportunidade de fuga da de-
pendência do complexo agroindustrial, reaproximando-se de atividades
que podem conduzir à relativa autonomia camponesa no mundo globa-
lizado. Ademais, como no caso da farinha de mandioca e da rapadura,
entre outros elementos da cultura material e imaterial, permite a rein-
venção de práticas tradicionais.

Diferenciações da agricultura familiar camponesa no


território mato-grossense
Em Mato Grosso, segundo o INCRA (2013), existem 118.124 pro-
priedades nas classes de área de menos 1 a menos de 400 hectares, ou
seja, propriedades da agricultura familiar com até 4 módulos fiscais. O
módulo fiscal nas microrregiões do Alto Pantanal e de Tangará da Serra
é de 80 hectares; portanto, as propriedades da agricultura familiar cam-
ponesa nesse espaço geográfico têm o tamanho máximo de 320 hecta-
res. A Microrregião do Alto Pantanal concentra 5.013 estabelecimentos
da agricultura familiar e a Microrregião de Tangará da Serra, 3.186 esta-
belecimentos (Figura 1).
No conjunto das 22 microrregiões geográficas do Estado de Mato
Grosso, as microrregiões em estudo figuram entre aquelas que apre-
sentam menor número de propriedades nessa categoria, pois os esta-
belecimentos da Agricultura Familiar estão concentrados nas micror-
regiões de Colíder, Alta Floresta, Aripuanã e Alto Teles Pires, onde
um módulo fiscal varia entre 90 e 100 hectares. Como correlato, a
propriedade da agricultura familiar camponesa possui entre 360 e 400
hectares e caracteriza-se pelo considerável grau de tecnificação e su-
bordinação ao agronegócio por meio da cadeia carne-grãos, conforme
demonstrado por Bernardes (2006, p. 21), que concebe a situação da
pequena produção nessa região como “[...] integrada, subordinada ou
aniquilada”.

 55
Figura 1 – MRGs de Mato Grosso: total de estabelecimentos
da agricultura familiar Camponesa – 2013.
Fonte: INCRA, 2015. Org. Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade do Pantanal - GECA/UFMT, 2015.

Contrariando tal designação, os elementos de resiliência camponesa


e de luta pela terra no território do agronegócio demonstram o avanço da
reforma agrária, especialmente entre 1996/7 e 2006 (Tabela 7).

Tabela 7 - MRG Alto Pantanal, Tangará da Serra, Colíder, Aripuanã


e Alto Teles Pires: comparativo do total de assentamentos de Reforma
Agrária por período – 1996/97 – 2006 – 2015.
Assentamentos da Assentamentos da Assentamentos da
Microrregiões Reforma Agrária até Reforma Agrária Reforma Agrária
1996 1997 - 2006 2007-2015
Alto Pantanal 3 34 3
Tangará da Serra 3 9 2
Colíder 31 30 3
Aripuanã 6 15 1
Alto Teles Pires 5 21 -
Fonte: INCRA - 2015. Org. Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade do Pantanal - GECA/UFMT, 2015.

 56
A distribuição geográfica municipal revela que os três municípios
com maior número de agricultores familiares são Alta Floresta, Colíder
e Juína. Em 2015, segundo registros do INCRA, o município de Cáce-
res, pertencente à Microrregião do Alto Pantanal, ocupa a 5ª posição
entre os 10 municípios que apresentam maior número de agricultores
familiares.
Na categoria Agricultor Familiar Assentado pela Reforma Agrária,
o INCRA aponta a existência de 128 assentamentos sob jurisdição do
Instituto de Terras de Mato Grosso – INTERMAT (Figura 2), 403 assen-
tamentos federais sob os auspícios do INCRA (Figura 5) e 15 assenta-
mentos municipais, totalizando 546 assentamentos da reforma agrária
no estado de Mato Grosso.

Figura 2 – MRGs de Mato Grosso: distribuição dos


assentamentos sob jurisdição dos municípios e do
Instituto de Terras de Mato Grosso – INTERMAT/2015
Fonte: INCRA, 2015. Org. Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade do Pantanal - GECA/UFMT, 2015

 57
Figura 3 – MRGs de Mato Grosso: distribuição dos assentamentos
sob jurisdição do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) - 2015
Fonte: INCRA, 2015. Org. Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade do Pantanal - GECA/UFMT, 2015

A observação dos dados das figuras 2 e 3 permite inferir que o


INTERMAT atua com mais intensidade no ordenamento fundiário das
microrregiões de Cuiabá, Rosário Oeste e Alto Pantanal, com média in-
tensidade nas microrregiões de Alta Floresta e Norte Araguaia e com
baixa intensidade nas demais. O INCRA tem suas ações mais distribu-
ídas pelo estado e atua com mais intensidade nas microrregiões de Co-
líder e Norte Araguaia. Tal indicador preliminar possibilita aos órgãos
analisar suas ações institucionais e redirecionar suas ações nos aspectos
que considerem pertinentes.
A Microrregião do Alto Pantanal ocupa o terceiro lugar entre
as com maior número de assentamentos do estado de Mato Grosso;

 58
a Microrregião de Tangará da Serra figura entre aquelas que apre-
sentam diminutas taxas de estabelecimentos resultantes da reforma
agrária.
Importa destacar a fragilidade dos indicadores estatísticos, que ig-
noram a diversidade de categorias da agricultura familiar camponesa. A
propósito, aqueles atores que não se enquadram como beneficiários da
reforma agrária e não apresentam título de propriedade são excluídos
das políticas ou de créditos e, como correlato, tornam-se invisíveis para
o poder público. É o caso, por exemplo, das comunidades tradicionais
conceituadas como “grupos culturalmente diferenciados e que se reco-
nhecem como tais, que possuem formas próprias de organização so-
cial, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição
para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição” (BRASIL, 2007. DECRETO FEDERAL nº 6040, de 7 de
fevereiro de 2007).
A Secretaria de Estado Planejamento e Coordenação Geral – SE-
PLAN/MT (2008) registra a presença de 66 comunidades tradicionais
no estado de Mato Grosso. A Microrregião de Rosário Oeste, formada
pelo município homônimo, Acorizal e Jangada, apresenta maior número
de comunidades tradicionais (Fig.4). A Microrregião do Alto Pantanal
ocupa o 3º lugar em relação às comunidades tradicionais, distribuídas
entre os municípios de Nossa Senhora do Livramento, Poconé e Barão
de Melgaço. (Figura 5)
Os problemas enfrentados pelas comunidades tradicionais no
acesso às políticas públicas oferecidas aos demais segmentos da socieda-
de decorre da ausência de reconhecimento das diferenciações campone-
sas e de suas práticas culturais, sociais e econômicas. Enfim, é necessário
assegurar o acesso à terra e às políticas de bem-estar social a todas as
categorias de camponeses e dar visibilidade a essa expressiva parte da
população, estabelecendo diretrizes e objetivos que permitam seu aces-
so às políticas universais e à melhoria da qualidade de vida.

 59
Figura 4 - Mato Grosso: total de comunidades tradicionais
por microrregiões - 2008.
Fonte: Secretaria de Estado de Planejamento e Coordenação Geral
– SEPLAN/MT – 2008. Elaboração: Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade do Pantanal – GECA/UFMT, 2015.

Figura 5 – Mato Grosso: total de comunidades tradicionais


por município – 2008
Fonte: Secretaria de Estado de Planejamento e Coordenação Geral
– SEPLAN/MT – 2008. Elaboração: Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade do Pantanal – GECA/UFMT, 2015

 60
Considerações finais
Os indicadores estatísticos existentes, além de apresentarem índi-
ces quantitativos variáveis, raramente categorizam os múltiplos perfis
dos agricultores familiares, impedindo a formulação de políticas públi-
cas específicas para, por exemplo, os agricultores familiares que não re-
sidem em assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicio-
nais e os remanescentes de quilombos. Os dois últimos são comumente
classificados como a única categoria, fato que conduz a equívocos no
direcionamento das ações.
A agricultura familiar camponesa vem paulatinamente resistindo
ao agronegócio e reterritorializando-se no estado de Mato Grosso, ora
estando na situação de subordinação, ora buscando mecanismos de ma-
nutenção da sua autonomia. Na Microrregião do Alto Pantanal, o cam-
ponês vive no ritmo das águas e o trabalho está vinculado à pecuária; já
na Microrregião de Tangará da Serra, o camponês vive da agricultura e
do arrendamento das suas terras.
A maneira como cada uma dessas áreas se configura diante das di-
ferentes problemáticas resulta de complexos fatores, em especial a orga-
nicidade criada pela construção coletiva dos camponeses e movimentos
sociais. Portanto, as lideranças e as escolhas políticas, sociais e econômi-
cas feitas por cada grupo refletem-se na territorialidade de cada lugar,
na forma como são organizados e também como se desenvolvem. Nesse
sentido, a territorialização camponesa defronta-se com a territorializa-
ção do capital e diversifica os elementos de resiliência.

Referências
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tec; Rio de Janeiro: ANPOCS; Campinas: Edunicamp, 1992.
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 61
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Mato Grosso, 1997.
SEPLAN/SECRETARIA DE ESTADO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GE-
RAL. MT. Anuário Estatístico de Mato Grosso. 2008. Cuiabá, MT.

 62
O Descumprimento da Função Social
da Terra e a Invisibilização do
Latifúndio como Estratégia de Classe:
o Caso de Mato Grosso

Eliane Tomiasi Paulino


Doutora em Geografia. Docente na Universidade Estadual de Londrina.

A propriedade da terra gera males paradoxais porque destrói a na-


tureza com força devastadora e argumenta que mais precisa destruir
para dar de comer a desesperado e incontável contingente humano.
Ironicamente, quanto mais destrói a natureza, menos vida possibi-
lita, inclusive humana, quanto mais altera os seres vivos, mais se
aproxima da morte. Há algo de errado nessa lógica inversa, não é
possível que a garantia de um direito individual seja o flagelo do
direito dos povos. (MARÉS, 2003, p.13)

Introdução
O capítulo articula-se ao projeto de pesquisa “Questão agrária e
transformações socioterritoriais nas microrregiões do Alto Pantanal
e Tangará da Serra/MT na última década censitária”, da Rede Centro-
-Oeste de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação (Edital MCT/CNPq/
FNDCT/FAPs/MEC/CAPES/PRO-CENTRO-OESTE nº 31/2010)

 63
Em volume de produção agrícola, atualmente o estado de Mato
Grosso ocupa a primeira posição nacional, condição assumida muito
recentemente em vista da expansão das áreas cultivadas com lavouras
temporárias. O caráter monocultor profundo da agricultura aí desen-
volvida repercute no expressivo volume da produção, e a dianteira em
relação aos demais estados vem aumentando a cada ano, notadamente
quando se consideram as principais culturas de sua pauta produtiva: a
soja e o milho.
Considerando que, até o início do milênio, a área de lavouras em
Mato Grosso era irrelevante, diante da extensão territorial do estado,
que é de 90,3 milhões de hectares, novas dinâmicas territoriais acaba-
ram por combinar-se com outras outrora existentes, sendo o objetivo
deste texto problematizá-las à luz do viés analítico dos estudos agrários.
De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (CO-
NAB, 2015), na safra 1995/96 a área utilizada para plantio de grãos em
Mato Grosso foi de 3021,1 milhões de hectares, tendo atingido 4.656,1
milhões no ano de 2000. A superfície lavrada acabou praticamente du-
plicada ao final da década e, desde então, expandiu-se ao ritmo não in-
ferior a novos 700 mil hectares incorporados a cada ano, chegando-se à
estimativa de 13,3 milhões de hectares semeados na safra 2014/15.
Assim, não deixa de ser oportuno destacar o desempenho da ativi-
dade pelo viés do volume colhido, até porque essa tem sido a referência
predominante, senão única, evocada na maior parte dos estudos agrícolas
no Brasil. Aqui são utilizados, entretanto, alguns parâmetros para esmiu-
çar os valores brutos, porque, quando descolados da variável espacial, eles
nada podem dizer sobre o enquadramento das propriedades mato-gros-
senses nos critérios legais que justificam sua manutenção, pois a própria
Constituição Federal (1988) determina a desapropriação de quaisquer
grandes propriedades descumpridoras da função social. É nesses termos
que os estudos agrários diferenciam-se dos estudos agrícolas.
Com isso, a análise percorre duas frentes de investigação: a imo-
bilização de terra e o produto gerado, eliminando-se aqui a expressão
“agropecuária”, porque se entende que todo uso do solo mediante a com-
 64
binação entre trabalho humano e ciclos naturais, visando à obtenção de
alimentos, é do âmbito da agricultura. Ademais, em caráter extensivo,
a pecuária mais nega do que afirma esse princípio produtivo, cabendo
aqui a advertência de que conceitos nunca são inocentes, especialmente
quando tratam de representações forjadas nas disputas de classe, variá-
vel parametrizadora deste estudo.
Por isso, é o princípio da função social da terra que orienta as aná-
lises aqui traduzidas em triangulações comparativas, sem perder de vis-
ta a temporalidade da investigação sobre a qual repousa este texto, bem
como o principal instrumento analítico, o último Censo Agropecuário,
realizado em 2006, publicado integralmente em 2009 e republicado com
alterações em 2012, com o que o Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística denominou de Segunda Apuração. Os dados estão disponíveis
no Sistema IBGE de Recuperação Automática (IBGE/SIDRA, 2015), de
onde foram extraídos os números aqui apresentados.
Como forma de transcender as limitações do trabalho somente com
essa base de dados, recorreu-se também a duas outras fontes oficiais: ao
levantamento de safras da Companhia Nacional de Abastecimento (CO-
NAB, 2008, 2015), observando-se a cronologia capaz de preencher lacu-
nas analíticas, e aos dados do Programa de Monitoramento da Floresta
Amazônica Brasileira por Satélite (MCT/MMA/PRODES, 2015), cuja
correlação com os demais objetivou a análise que almeja ser menos quan-
titativa e mais territorial, a fim de refletir sobre as implicações deletérias
da monopolização fundiária, do ponto de vista ambiental.

A geografia da perdularidade e ociosidade grafadas nas


terras de negócio em Mato Grosso
Definir recortes microrregionais para compreender o atual qua-
dro agrário de Mato Grosso não torna menos árdua a tarefa de explicar
números oficiais que, por vezes, são díspares e, por vezes, não factíveis,
explicitando a combinação entre a adulteração da contabilidade pelos
declarantes e a falta de vontade política de identificá-la.

 65
Mas, como lembrou Oliveira (2015), “dado bom é o dado que exis-
te”, até porque nenhuma fraude declaratória será capaz de ocultar as
tendências que a justificam, sendo esse um princípio metodológico que
deve nortear qualquer estudo agrário em um país onde os mecanismos
de constituição da propriedade privada são eivados de fraudes. Tanto
quanto a necessidade de simular atividade econômica compatível com
o preceito constitucional do cumprimento da função social, a produ-
tividade, o caráter autodeclaratório do Censo Agropecuário cai como
uma luva para os que operam no plano da ilegalidade passível de ser
institucionalmente ocultada.
Certamente as estratégias hoje disponíveis para que o aparelho de
Estado colete, armazene e verifique dados retiram do âmbito técnico o
problema da nebulosa representação oficial que se tem do campo bra-
sileiro, restando a explicação política, pois, num país em que impera a
lógica latifundista, a licença para fraudes declaratórias é condição para
a sua perpetuação.
Como o solo, em sua dimensão espacial, é um dado que não
compreende variações, os dados contidos nos dois últimos censos
agropecuários podem confirmá-lo: no censo de 1995/96, a área de-
clarada dos estabelecimentos em Mato Grosso era de 49,8 milhões
de hectares e, em 2006, aparece reduzida para 48,7 milhões de hecta-
res, malgrado o crescimento exponencial da apropriação capitalista,
revelada inclusive na consolidação da produção de commodities no
período.
O improvável recuo na área sob cercas privadas revela-se no deta-
lhamento dos dados: no período, o número de estabelecimentos rurais
aumentou 30,3%, fato verificado em todos os estratos de área. Dentre os
estabelecimentos com até 200 hectares, a área média encolheu aproxi-
madamente seis hectares, uma evidência de que nem mesmo a política
de assentamentos, em seu período de maior densidade, foi capaz de mi-
tigar o movimento de monopolização fundiária. Tanto que, no estrato
intermediário, que vai de 200 a 1.000 hectares, os estabelecimentos cres-
ceram, em média, mais de oito hectares.

 66
Por sua vez, os dados relativos aos estabelecimentos com mais de
1.000 hectares apontam a perda média de 805 hectares por estabeleci-
mento, não havendo qualquer fenômeno de ordem econômica ou jurí-
dica que pudesse explicar o encolhimento. Destaque-se que, caso isso
tivesse ocorrido, os demais estratos teriam que ter absorvido a diferença
territorial, fato que não aconteceu.
Ainda assim, os pretensos proprietários de áreas com mais de 1.000
hectares afirmaram monopolizar nada menos que 37,9 milhões de hec-
tares, ou 77,9% da superfície declarada do estado, cuja situação agrária é
das mais díspares: enquanto 79,4% dos estabelecimentos dispunham de
área média de 40 hectares, cada membro dessa generosa classe fundiária
controlava, em média, 4.340 hectares.
A hipótese é que o falseamento das informações ao IBGE é a ação
amplamente orquestrada pelo latifúndio improdutivo, como forma de
ocultar a dimensão especulativa dos imóveis que imobilizam a maior
parte do solo mato-grossense, sem propiciar produção minimamente
compatível com os brandos índices de produtividade vigentes, devida-
mente demonstrados na tabela 1, mais à frente.
Ainda que a adjetivação aqui proposta pareça pleonástica, trata-se
de uma saída explicativa para o próprio aprisionamento conceitual do
latifúndio num marco temporal que, a julgar pelos argumentos de Buai-
nain et al (2013), teria sido superado. Afirmam os autores que o concei-
to de latifúndio seria aplicável aos domínios extensos, combinados com
primitivismo técnico e próprios dos tempos do autoritarismo político,
ambos, em tese, superados naturalmente em vista da dinâmica técnica,
que, segundo suas palavras, teria redimido a agricultura brasileira.
Ocorre que, mesmo essa representação do que era e que, supostamen-
te, teria deixado de ser o latifúndio, contempla tão somente a unidade agrí-
cola em sua dimensão econômica – leia-se: da produção estrita –, quando o
conceito é mais amplo. Basta atentar ao preconizado pela Carta Magna em
vigor, pois o texto constitucional elimina qualquer possibilidade de peque-
nos e médios imóveis rurais serem desapropriados, admitindo apenas que
grandes propriedades não cumpridoras da função social o sejam.

 67
A propósito, em vez de uma, o documento define quatro variáveis
e, mais que isso, indissociáveis entre si, como indicadoras do requisito
função social. Com isso, não basta às grandes propriedades serem pro-
dutivas; simultaneamente, deverão ser ambientalmente inimputáveis,
não infringir normas trabalhistas e, além disso, assegurar o progresso
social dos proprietários e dos que ali trabalham, sob pena de incorrer no
vício instaurador do processo de desapropriação.
Inquirir a produção acadêmica a fim de verificar se esses preceitos
estão sendo considerados pelos que afirmam ter havido a substituição
do latifúndio pela empresa rural não deixa de ser um exercício de rigor
metodológico necessário para explicitar ideologias travestidas de verda-
des científicas. Como lembra Fernandes (2006), a expressão “agronegó-
cio” tem servido como saída linguística para escapar ao debate neces-
sário sobre o latifúndio produtivo e, nessas condições, tão passível de
desapropriação quanto o improdutivo.
Martins (1995) já advertira que o conceito de latifúndio é prenhe
da luta política que o incluiu no léxico brasileiro pelo enfrentamento
do campesinato, o outro conceito político forjado na luta de classes que
o Estado brasileiro tratou de suprimir. Primeiro, na letra da Lei Agrá-
ria (Lei 8.629/93), que invisibilizou esse muro interposto ao desenvol-
vimento brasileiro excluindo-o literalmente, ao mesmo tempo em que
instaurou uma classificação fundiária baseada em duas categorias de
propriedades: pequenas e médias.
Pelo silêncio, institucionalizou a ficção de que, no Brasil, o limite
das propriedades seria de 15 módulos fiscais, embora o último Cen-
so Agropecuário (IBGE, 2015) identifique apenas 13,8% da superfície
mato-grossense em propriedades de tais dimensões, lembrando que os
módulos fiscais no estado variam de 60 a 100 hectares1.
No caso de Tangará da Serra, a participação dos estabelecimentos
com até 15 módulos fiscais na superfície da microrregião é de 15,5% e,
por fim, em Alto Pantanal apenas 7,9% da extensão territorial da mi-

1
A única exceção é Cuiabá, em que o módulo fiscal é de 30 hectares.

 68
crorregião encontram-se sob estabelecimentos de dimensões não supe-
riores a 1.200 hectares, já que o módulo fiscal de todos os municípios
dessas microrregiões é de 80 hectares (INCRA, 2013).
A Lei Agrária, que traduz o preceito constitucional da possibilida-
de de desapropriação unicamente das grandes propriedades improdu-
tivas, determina que o índice de produtividade seja avaliado mediante
o cálculo de duas variáveis: o Grau de Utilização da Terra (GUT) e o
Grau de Eficiência na Exploração (GEE), que dizem respeito, respecti-
vamente, à utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e con-
servação do meio ambiente e ao aproveitamento racional e adequado
dos recursos, e, para cumprir a função social, a propriedade rural terá
que ter GUT igual ou superior a 80% e GEE de 100%. A tabela 1, adian-
te, mostra a discrepância entre os índices médios efetivamente obtidos
pelos agricultores mato-grossenses e os que estão vigentes, segundo de-
terminação da Lei mencionada.
Como forma de garantir a triangulação com dados oficiais, para
apurar a produtividade em 2006, utilizaram-se dados da CONAB re-
lativos às lavouras predominantes em Mato Grosso, e, em face da au-
sência de levantamento similar para a bovinocultura, recorreu-se aos
rendimentos mensurados pelo Censo Agropecuário 2006. Eis a razão
do uso desse ano-referência para tratar a problemática do cumpri-
mento da função social da terra como processo cada vez mais violado,
consentido e em processo de aprofundamento, instituído na tradição
e reafirmado na modernização técnica, como mostram os estudos de
Rossetto (2009).

Tabela 1 – Mato Grosso: índices de (im)produtividade vigentes


e índices de produtividade médios
Produto índices vigentes rendimento 2006 rendimento 2014
Arroz* 0,9 2,6 5,5
Feijão* 0,3 1,6 1,1
Milho* 0,9 3,7 5,3
Soja* 1,3 3,0 3,0
Bovinos** 0,4 0,9 ***
* toneladas/hectares **animais/ha *** sem dados
Fonte: Conab (2008, 2015); Embrapa por Landau (2013)

 69
Os resultados expressos na tabela exigem que se considere a ge-
ografia de Mato Grosso segundo forma e conteúdo: além da enorme
extensão territorial, compreendendo 10,6% do território nacional, o es-
tado é constituído por três biomas distintos. Assim, deve-se levar em
conta que a variabilidade de clima é um dos fatores que interferem no
resultado anual das colheitas. Acrescente-se que características do solo,
topografia e posição em relação às vias de escoamento completam o
quadro físico que não pode ser negligenciado quando se afere a produ-
tividade segundo o cálculo do produto obtido por hectare.
Complementarmente, consideram-se relações imanentes, indisso-
ciáveis e amalgamadas no conteúdo expresso num aspecto identificável:
a comoditização célere. Há uma singularidade nesse conjunto, revelada
na lógica destruidora de florestas e seres que, eventualmente, possam
emperrar as engrenagens das máquinas de fazer dinheiro e, simultane-
amente, semear desastres.
Assim está posicionado o imperativo da técnica no estágio em que
os resultados da agricultura são diretamente proporcionais à capacidade
de submissão dos ciclos naturais e dinâmicas sociais, quando mediado
pela capacidade de investimento monetário dos produtores: resultam
disso passivos de duas ordens; primeiro, os ambientais, a serem social-
mente pagos sempre que a terra arrasada cobrar seus tributos; segundo,
os sociais. Como escapam ao escopo deste trabalho suas implicações aos
povos indígenas, tratamos os passivos sociais pelo viés da dinâmica que
fere o campesinato tanto como classe como modo de vida.
O fato de uma classe se definir, em primeiro plano, pelas condi-
ções materiais de reprodução social, as situações desiguais em relação
a recursos públicos e privados têm muito a dizer sobre capacidades e
resiliências – e farão toda a diferença enquanto prevalecer a lógica pro-
dutivista.
Do ponto de vista do modo de vida, vislumbram-se passivos que
afetam a dimensão societária do campesinato. São eles os guardiões do
saber criativo e criador do alimento cultivado com a natureza, e não

 70
contra ela. Os moinhos satânicos do mercado autorregulável anuncia-
dos por Polanyi (1980) proliferam-se sob a forma de técnicas indutoras
de consumo produtivo que necessita mobilizar insumos externos em
prejuízo dos aliados naturais singularmente mobilizáveis em favor da
agricultura. Isso leva à perda do patrimônio cultural que até agora per-
mitiu o sustento de grupos humanos nas mais diferentes condições eda-
foclimáticas.
Por isso, optamos pela expressão índices de (im)produtividade
na tabela anterior, até porque a inocuidade normativa para mensurar
o descumprimento da função social da terra é flagrante: o aumento do
potencial produtivo médio decorreu da tecnificação alavancada em me-
ados da década de 1970, momento em que foram captados os índices
desde então inalterados. Nesse caso, verifica-se que o próprio Estado
brasileiro descumpre a legislação regularmente instituída e em vigor,
senão vejamos o prescrito no artigo 11 da Lei 8.629/93:
Os parâmetros, índices e indicadores que informam o conceito de
produtividade serão ajustados, periodicamente, de modo a levar em
conta o progresso científico e tecnológico da agricultura e o desen-
volvimento regional, pelos Ministros de Estado do Desenvolvimen-
to Agrário e da Agricultura e do Abastecimento, ouvido o Conselho
Nacional de Política Agrícola.

Dito isso, verificou-se que, dentre os estabelecimentos com mais de


1.000 hectares, cada hectare gerou, no ano do levantamento censitário,
R$ 247,00 (IBGE, 2015). Esse corte estatístico foi feito buscando conci-
liar duas limitações: a variação da área que forma os módulos fiscais no
estado e a classificação do Censo Agropecuário, que faz desse estrato
o mais aproximado do que se configura como grandes propriedades, a
saber: estabelecimentos com área superior a 15 módulos.
Quanto aos estabelecimentos com até 10 hectares, o valor mone-
tário aferido por hectare foi de R$ 1.787,00, o que denota a capacidade
de os estabelecimentos mais vulnerabilizados pela insuficiência do fator
terra conseguirem superar, em sete vezes, os mais aquinhoados em su-
perfície e em recursos! Mesmo tomando-se a média do valor monetário

 71
gerado pelos estabelecimentos com até 50 hectares, que reúnem parte
relevante dos assentados em condições produtivas precárias pela pró-
pria situação de transição que a instalação recente impõe, o valor gera-
do por hectare foi de R$ 641,00. Evidência que derruba a tese de que a
reforma agrária somente se justifica como política social, por suposta
inviabilidade econômica per si. (BUANAIN et al., 2013). Estudos feitos
por Oliveira et al. (2013) em assentamentos do município de Cáceres
são reveladores do grau de convergência ideológica dessa assertiva com
os asseclas do latifúndio no Brasil.
No caso da Microrregião de Alto Pantanal, o resultado por hectare
contido pela cerca dos grandes foi de R$ 95,00 enquanto o dos micro-
estabelecimentos foi de R$ 1.255,00. Por sua vez, na Microrregião de
Tangará da Serra, a discrepância foi menor, porém não menos signifi-
cativa: cada hectare dos menores estabelecimentos gerou R$ 2.853,00
enquanto, nos grandes, gerou R$ 793,00.
Como a produção dentro da porteira é variável insuficiente para se
pensar o cumprimento da função social da terra, que só se fará quando
garantidas as possibilidades de progresso social, variável delimitável em
termos de desenvolvimento local, outro dado relevante é a quantida-
de de pessoas ocupadas por mais de 180 dias por ano, segundo a área
cultivada. Considerando a média do estado, verificou-se que, dentre
os grandes estabelecimentos, são necessários 462,1 hectares para gerar
uma ocupação em metade do ano, enquanto entre os estabelecimentos
menores é necessário apenas 1,6 hectare para prover igual ocupação.
Poderíamos desdobrar tal dado afirmando que, em Mato Grosso, os
estabelecimentos micro geram 288 vezes mais oportunidades de inclusão
produtiva do que os grandes. Ignorar esse dado é desconhecer a geografia
desse estado, onde a renda local é decisiva para a população que vive fora
da capital, e de algumas poucas cidades cuja dinâmica do setor secundá-
rio e terciário independem do campo a elas contíguo. Mais grave que isso
é ignorar que parte significativa da renda advém da manutenção, e não da
destruição dos biomas Pantanal, Amazônia e Cerrado, como comprovam
os estudos realizados por Mendes et al. (2014).

 72
Na Microrregião de Alto Pantanal, a discrepância é assustadora: os
microestabelecimentos necessitam de 1,4 hectare para empregar uma
pessoa durante pelo menos seis meses no ano enquanto os grandes imo-
bilizam em média 1.049 hectares para igual provimento de uma opor-
tunidade de trabalho.
É evidente que tais dados não se explicam exclusivamente pela in-
corporação de tecnologias poupadoras de força de trabalho, ainda que
isso seja parcialmente verdadeiro. O fato é que aquilo que aparece como
regra –a suposta eliminação do latifúndio improdutivo – não passa de
exceção, e o caráter patrimonial especulativo sobrepuja significativa-
mente a prática empreendedora pontual em grandes domínios.
Tese comprovável quando se mensura um indicador ícone do pro-
cesso de tecnificação: a mecanização. De acordo com o Censo (IBGE,
2015), enquanto se identificou um trator para cada 135,7 hectares con-
trolados pelos menores estabelecimentos, nos grandes a relação é de um
trator para cada 1.532 hectares.
Mesmo na Microrregião de Tangará da Serra, fortemente marcada
pela agricultura capitalista reduzida à produção de commodities, cada
superfície de 507,8 hectares fracionada em unidades produtivas com
área inferior a 10 hectares comportava um trator, enquanto nos grandes
estabelecimentos a disponibilidade de tratores estava mensurada segun-
do a razão de uma máquina a cada 1.095,6 hectares.
Tais números são apropriados para confrontar elucubrações teóri-
cas sobre as quais repousam os argumentos clássicos de incompatibili-
dade da agricultura camponesa com o desenvolvimento do capitalismo
no campo, pelo pressuposto de que eficiência é condição emanada de
domínios extensos, em si portadores da vocação de otimização dos re-
cursos naturais e técnicos. (KAUTSKY, 1980; LÊNIN, 1980).
Acontece que a agricultura é atividade sui generis porque envolve
um meio de produção singular: a terra. Antes que qualquer ato produ-
tivo seja empreendido, esse meio de produção irá proporcionar moda-
lidade de riqueza derivada do caráter de escassez que a envolve: apesar

 73
de se constituir no único aporte sobre o qual repousam as condições
materiais de existência da vida, é irreprodutível.
Por sua vez, a escassez não é variável fixa e nem necessariamente
física, conforme esclarecido por Raffestin (1993), porque determinada
socialmente segundo o modo como se instituem as demandas de consu-
mo e as respectivas salvaguardas e controles a elas inerentes.
Nisso repousa a lógica da gestão do território. Segundo Correa
(1987), somente indagações sobre seu fim último permitirá desvendá-
-la. Enquanto sociedades igualitárias organizam o território de forma
que se possam atenuar as diferenças entre os indivíduos ocupacional-
mente estabelecidos, em sociedades de classes se almeja exatamente o
oposto, sendo a organização espacial socialmente induzida para ser in-
dutora das assimetrias territoriais, que, como o próprio Raffestin (1993)
ensina, são as imagens do poder de incluir e excluir.
Assim, há de se indagar o que determina a comprovada incapaci-
dade da grande propriedade em responder aos desafios da produção,
dadas suas incomparáveis condições objetivas para se sobressair sobre
unidades agrícolas coagidas pela escassez fundiária e sua infindável ca-
deia de determinações fragilizadoras. Ter a seu favor artimanhas eco-
nomicistas que, em regra, simulam sua superioridade, limitando-se ao
fator produto total, é boa pista para a explicação, que, certamente, não
se esgota nisso.
Dada a monopolização fundiária, que, no estudo em tela, se mani-
festa na diferença de 1.164 vezes entre a área média dos estratos extremos
aqui destacados, ignorar o fator superfície na geração de receita é menos
um ato falho de cálculo que uma opção metodológica coerente com uma
opção de classe. Nutrida pela renda, disputa espaços de representação e
legitimação social tão primordiais como o são os da ciência, como forma
de garantir que essa riqueza continue fluindo graciosamente pelo cerco
das cercas sobre o solo, um bem que é comum por natureza.
Sob o signo da isenção ideológica, estudos agrícolas dessa estir-
pe arvoram rigor científico, promovendo a abstração do fator terra.

 74
Limitam-se, assim, a tratar a agricultura como provedora indistinta de
mercadorias e dividendos (BUAINAIN et al., 2013), quando o desdém
aos princípios geográficos da localização, distribuição e densidade não
permite compreendê-la como atividade complexa e transcendente ao
campo, que, por mãos humanas, mobiliza o conjunto dos bens ambien-
tais que provêm as mais básicas necessidades de todos. Não sem razão,
esclarece Marés (2003, p. 11):
As sociedades humanas sempre tiveram, em todas as épocas e for-
mas de organização, especial atenção ao uso e ocupação da terra.
A razão é óbvia: todas as sociedades tiraram dela seu sustento. E
entenda-se sustento tanto o pão de cada dia como a ética refundi-
dora da sociedade. A argamassa espiritual que une uma sociedade
flui a partir das condições físicas do território em que o povo habita.

Como mostrado por Moreno (2007), o estado de Mato Grosso é a


evidência concreta do menosprezo a tais princípios, em vista do duplo
desdobramento territorial que o desmando fundiário impõe: primeiro,
o da interdição ao direito de cultivar a terra a quem é e/ou queira ser
cultivador; segundo, o da gestão temerária da biosfera, porque é neces-
sário lembrar que a propriedade privada não repercute apenas na gestão
do solo, mas também na da hidrosfera, litosfera e atmosfera! A prova de
que a produção incipiente oriunda das grandes propriedades não advém
da conservação dos biomas são os dados da depredação florestal articu-
lados aos da expansão das áreas cultivadas.
Em 1998, teve início o Programa de Monitoramento da Floresta
Amazônica Brasileira por Satélite (MCT/MMA/PRODES, 2015), mo-
mento em que se estimou que a média anual de desmatamento da flo-
resta – somente no bioma amazônico no estado, que originalmente co-
bria 54% do território – era de 514 mil hectares. Naquele mesmo ano, o
cultivo com grãos ocupava 2,83 milhões de hectares. No ano de 1999, a
área lavrada em Mato Grosso recuou 492,7 mil hectares, contudo foram
destruídos novos 596 mil hectares de floresta. De 1990 até 2000, a área
cultivada com grãos aumentou cerca de 1,6 milhões de hectares e, nesse
mesmo intervalo, tombaram 6,6 milhões de hectares cobertos com a
floresta equatorial. Nos seis anos subsequentes (2001 a 2006), somente o
 75
bioma amazônico perdeu mais 4,9 milhões de hectares, contudo a área
total cultivada em grãos no estado aumentou 2,3 milhões de hectares.
Considerando que, em se tratando de grãos, pode haver duas sa-
fras anuais, foram utilizados, para melhor aproximação analítica, os da-
dos da CONAB referentes à safra 2006/2007, tendo sido discriminadas
as lavouras segundo a época de plantio e colheita para determinar as
possíveis sucessões no mesmo terreno. Isso permitiu estimar a área cul-
tivada em aproximadamente 6,4 milhões de hectares.
Por fim, cabe esclarecer que os comparativos sobre aquele bioma
se devem à inexistência de dados anuais oficiais sobre o desmatamento
no pantanal e no cerrado mato-grossense, sendo a única informação
precisa a publicada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(EMBRAPA), que identificou 12,1 milhões de hectares de cerrado des-
truídos até 2006 (SANO, 2007, p. 30).
No intervalo entre 2001 e 2013, cultivou-se a área adicional de
7,9 milhões de hectares, período em que foram destruídos novos 6,5
milhões de hectares de florestas. A tese de que a frente de devastação
florestal em Mato Grosso não é determinada pela expansão das áreas
de cultivo é corroborada por Domingues e Bermann (2012, p. 13), que
assim concluem:
Nas áreas de expansão da soja, é a lucratividade da pecuária e a pos-
terior transformação ou venda da terra para a agricultura intensiva
que sinaliza, tanto para os agentes iniciais quanto para os próprios
pecuaristas, que o desmatamento e a conversão das florestas em
pastagens são rentáveis.

Considerações finais
Malgrado a tese de que o progresso técnico é portador de trans-
formações sociais traduzidas em desenvolvimento, ao se eleger o tema
agricultura tendo como recorte geográfico o estado de Mato Grosso, que
detém a característica ímpar de representar veloz processo de destruição
de biomas florestais em nome de fins supostamente agrícolas, verifica-se

 76
o quanto isso está distante das possibilidades de proporcionar dinâmi-
cas territoriais virtuosas.
Buscando fugir de representações simplificadoras que encontram,
no desempenho das commodities aí verificado, o seu melhor argumen-
to, este texto recorreu ao exercício de escala para evidenciar uma sé-
rie de esbulhos que a apropriação capitalista da terra afiançada por um
Estado leniente acarreta. O processo que tanto interdita possibilidades
concretas de economia parcimoniosa quanto dissipa bens comuns, se-
jam eles de ordem natural ou monetária, impondo passivos a serem pro-
gressivamente absorvidos pela sociedade.
Tais desdobramentos somente aparecem quando a dimensão de
classe é tomada como fio condutor das análises, por permitir abordagens
transcendentes ao pressuposto de que o fim econômico da apropriação
da terra é o uso agrícola per si. Menos que um detalhe, isso é decisi-
vo para compreender a virulência de um mecanismo sobressalente aos
propósitos produtivos: o especulativo-rentista. Considera-se a caracte-
rística singular da terra, por se tratar de meio de produção incompará-
vel com os demais pelo simples fato de a propriedade capitalista do solo
possibilitar a apropriação de riqueza sem qualquer utilização: qualquer
empreendimento produtivo proporcionará dupla remuneração, renda e
lucro respectivamente.
Tal perspectiva analítica permite o escrutínio da eficiência produ-
tiva que culmina no desvelamento da ideologia do agronegócio, dado
que a grande propriedade se mostra proporcionalmente ineficiente. Ine-
ficiência aqui explicada pela hipótese da ociosidade das terras. Conclui-
-se que os latifundiários assim o são por não elegerem como princípio
mobilizador da manutenção da terra a produção eficiente, mas o trunfo
eficiente em sacar mais valia social traduzida em renda fundiária.
O desdobramento territorial mais imediato dessa apropriação é o
cerceamento do trabalho capaz de fazer que a terra dê frutos, sendo essa
uma das formas de descumprimento dos preceitos legais no tocante ao
controle da terra condicionado ao uso produtivo. Trata-se de situação

 77
em que Mato Grosso é apenas um exemplo pronunciado, não havendo
distinção relevante em relação às demais unidades da federação brasi-
leira, salvo disparidade (maior ou menor) que não altera a essência do
fenômeno ardilosamente representado às avessas mediante a expressão
“agronegócio”.
Qualquer levantamento temático preliminar em que circulam
prestigiadas produções acadêmicas poderá atestar a prevalência de
abordagens focadas no suposto circuito virtuoso da apropriação ca-
pitalista da terra, em que as grandes propriedades são identificadas
com empresas rurais modernas e jamais com os latifúndios. A simples
correlação com o banco de dados referente ao Cadastro de Imóveis do
Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA, 2013) retira qualquer
possibilidade de se atenuar o caráter ilegal da grande propriedade no
tocante ao cumprimento da função social, mesmo limitado ao quesito
produtividade.
Embora não se possam comparar diretamente tais informações
com as contidas no Censo Agropecuário e aqui elencadas, por agregar
os dados segundo o status de propriedade oficialmente avalizada e de-
tentora do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR), a diferença
da superfície apurada pelo IBGE e pelo INCRA entre os imóveis com
mais de 1.000 hectares é de 43,8%.
O fato é que parte relevante dos 29,5 milhões de hectares que fal-
tam no censo foram efetivamente omitidos no momento da declaração
da extensão dos estabelecimentos, com dois objetivos: primeiro, porque
certamente parte dessa área é grilada e poucos se submetem ao risco
de explicitar o ilícito a um órgão oficial; segundo, porque a omissão de
parte da área faz que a aparência da produtividade logre maior êxito,
lembrando que essa variável é a que tem permitido a desapropriação
para fins de reforma agrária. Portanto, a diferença de valor monetário
entre os menores e os maiores imóveis em Mato Grosso é maior do que
as sete vezes aferidas mediante os dados do IBGE.
Em suma, ao se considerarem os números em seu conjunto, é pos-
sível identificar que, quanto maior o índice de concentração fundiária,
 78
menor a produção em valor por hectare – e isso se verificou tanto na es-
cala dos estados quanto na das mesorregiões. Por outro lado, observou-
-se que, quanto menores os estabelecimentos, maior a capacidade de
geração de empregos e renda proporcional, o que efetivamente mantém,
na agenda do dia, a necessidade de reforma agrária no país.
Ainda que os dados da agricultura capitalista, particularmente
a manifesta nas lavouras temporárias de soja e milho, demonstrem a
enorme capacidade de produção, nem de longe alcançam o equivalente
ao que é fornecido pelo fundo público, via fomento à agricultura.
Os dados são a melhor evidência dos fatos que contrariam a no-
ção dominante de que a pequena propriedade é incapaz de responder
aos desafios econômicos no campo. Antes, é o oposto que é verdadeiro,
embora isso não sirva como boa desculpa para bloquear o projeto de
reforma agrária no Brasil, coisa que nenhum governante do regime de-
mocrático o fez com tanta convicção quanto Dilma Roussef (PAULINO,
2015).
Menos do que a personalização de competências ou escolhas,
trata-se de inquietante sinal da aliança para o atraso nessa sociedade
de história lenta, para parafrasear Martins (2011). Sociedade que mais
uma vez silencia, para não dizer que compactua com a coalizão da casa
grande, para a qual há pouco foi promovida como sócia virtual e que
nela não ingressará malgrado a penhora do bem mais precioso de que
poderia dispor: a democracia como valor universal.

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 81
 82
Tangará da Serra (MT):
Dinâmica Fundiária,
Agricultura Capitalista e
(Re)Criação Camponesa

Sedeval Nardoque
Doutor em Geografia. Docente na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Introdução
O texto objetiva analisar a relação entre dinâmica fundiária e
a agricultura capitalista na Microrregião Geográfica (MRG) de Tan-
gará da Serra (MT) a partir dos dados dos censos agropecuários de
1995/6 e de 2006, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e das nuances da resistência camponesa no município sede da
microrregião e sua (re)criação. A sua composição resultou de ações
vinculadas ao projeto de pesquisa “Questão Agrária e Transforma-
ções Socioterritoriais nas microrregiões do Alto Pantanal e Tangará
da Serra/MT na última década censitária”, da Rede Centro-Oeste de
Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação (Edital MCT/CNPq/FNDCT/
FAPs/MEC/CAPES/PRO-CENTRO-OESTE nº 31/2010). Para tanto,
ante as suas ações, desenvolveram-se dois projetos de Iniciação Cien-

 83
tífica, nos anos de 2013/14 e 2014/151, obedecendo a editais internos
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, orientados pelo autor
deste trabalho.
Para a elaboração do capítulo, fez-se levantamento bibliográfico e
sua breve revisão, objetivando apresentar algumas características con-
sideradas relevantes da MRG de Tangará da Serra (MT), especialmente
da sua conformação territorial pelo avanço da agricultura capitalista e
seus negócios e negociantes nas últimas décadas. Posteriormente, com
base nos dados dos censos agropecuários do IBGE, fez-se a análise do
comportamento dos principais produtos da agricultura capitalista e
suas derivações na dinâmica fundiária e populacional na mencionada
microrregião. Por último, analisam-se aspectos do município de Tan-
gará da Serra no que diz respeito à gênese da apropriação capitalista da
terra e suas derivações; às ações de empresas vinculadas à agricultura
capitalista atuantes na cidade, ligadas ao consumo produtivo do campo
e, também, de agricultores familiares camponeses, muitas vezes imersos
no território capitalista, mas protagonistas nas disputas territoriais e na
produção de alimentos.

Aspectos gerais da microrregião de Tangará da Serra


(MT)
A Microrregião Geográfica de Tangará da Serra localiza-se no su-
doeste do estado de Mato Grosso (figura 1) e é composta pelos seguintes
municípios: Tangará da Serra, Barra do Bugres, Denise, Nova Olímpia e
Porto Estrela, totalizando 22.303 Km2 (Tabela 1), com 144.911 de habi-
tantes (tabela 2). (IBGE, 2010).

1
O primeiro projeto de iniciação científica foi desenvolvido pela acadêmica Talita Sgobi
Martins (2013-2014), realizando-se trabalho de campo em Tangará da Serra. O segundo
foi desenvolvido pela acadêmica Talita Paula Casagrandi (2014-2015). As duas são aca-
dêmicas do Curso de Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e rece-
beram bolsas do CNPq. Agradecemos a colaboração do Prof. Msc. Mieceslau Kudlavicz
no levantamento de dados e na realização do trabalho de campo.

 84
Figura 1 - Mato Grosso: Microrregião Geográfica de Tangará da Serra
Fonte: IBGE, 2002.

 85
Tabela 1 - MRG de Tangará da Serra (MT): áreas municipais – km2
Tangará da Serra Barra do Bugres Denise Nova Olímpia Porto Estrela
11.323,649 6.060,199 1.307,188 1.549,821 2.062,760
Fonte: IBGE – Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/>.
Acesso em: 15 jun. 2015.

O município-sede da MRG, Tangará da Serra, possui 11.423,04


km , sendo cerca de 51% área indígena dos Paresí (OLIVEIRA, 2002,
2

p.17). A população absoluta, em 2010, era de 83.431 (7.510 residentes


no campo e 75.921, na cidade); em 1996, eram 50.138 habitantes. Por-
tanto, apresentou crescimento populacional significativo nas últimas
décadas, com população estimada, em 2014, de 92.298 (IBGE, 2014)2. O
crescimento significativo da população do município deve-se às trans-
formações ocorridas nos últimos tempos em seu espaço, resultantes do
avanço das atividades econômicas ligadas à agricultura capitalista local
e nos municípios de seu entorno, com destaque à ampliação da área
plantada de cana e de soja, modificando substancialmente seu perfil
econômico. Pelos dados da tabela 2, nota-se que Tangará da Serra tinha
53% da população da MRG em 1996, passando para 57% em 2010.

Tabela 2 - MRG Tangará da Serra (MT): população absoluta


Tangará Barra Nova Porto
Anos/municípios Denise Total
da Serra do Bugres Olímpia Estrela
1996 50.138 20.327 8.079 11.257 4.616 94.417
2010 83.431 31.793 8.523 17.515 3.649 144.911
Fonte: IBGE – Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/>.
Acesso em: 15 jun. 2015.

A economia da MRG de Tangará baseia-se nas atividades agrope-


cuárias, destacando-se o avanço das lavouras temporárias nas últimas
décadas. Em 1996, a área ocupada com estas era de 104.738 hectares

2
Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=5
10795&search=||infogr%E1ficos:-informa%E7%F5es-completas>. Acesso em: 15 jun.
2015.

 86
(ha)3, totalizando, em 2013, 253.065 hectares. A soja (figura 2) desta-
cou-se, contribuindo para a ampliação da área plantada, pois saltou de
28.831, em 1996, para 60.206 hectares, em 2006 (tabela 3). De toda for-
ma, dados mais atualizados indicam a ampliação da área para 76.500,
em 20134, somente no município de Tangará da Serra. A cana-de-açúcar
despontou como a principal lavoura temporária, em área plantada, jus-
tamente pelo crescimento significativo nas últimas décadas, saltando de
58.372ha, em 1996, para 102.262ha, em 2006. Assim como a soja, novos
números indicam, em 2013, na MRG, área de 130.793 hectares plantada
com cana.

Figura 2 - Tangará da Serra (MT): colheita de soja - 2014


Fonte: <http://veja.abril.com.br/noticia/economia/chineses-agora-financiam-e
-exportam-soja-brasileira> . 02 jan.2014. Foto: Andre Penner. Acesso em: 28 jun. 2015.


O município de Tangará da Serra destaca-se, em área plantada,
com soja; Barra do Bugres, com cana, conforme se observa na tabela
3. Na safra 2013/14, a área plantada de cana, no município de Barra do
Bugres, atingiu 54.202 hectares; Denise, 46.053 hectares; Nova Olímpia,

3
Dados referentes ao Censo Agropecuário do IBGE de 1995/6.
4
Dados referentes à Produção Agrícola Municipal (PAM) de 2013.

 87
21.180 hectares, de acordo com o Monitoramento da cana-de-açúcar,
pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Canasat).5

Tabela 3 - MRG Tangará da Serra (MT): área de soja e


cana-de-açúcar - hectares.
Soja Cana
MRG-municípios 1995/6 2006 1995/6 2006
MRG Tangará da Serra 28.831 60.206 58.372 102.262
Barra do Bugres - 3.906 19.686 42.452
Denise - - 18.419 26.150
Nova Olímpia 2.831 - 17.290 17.030
Porto Estrela - 1.300 50 98
Tangará da Serra 26.000 55.000 2.927 16.531
Fonte: IBGE – censos agropecuários 1995/6 e 2006.

Nota-se, pelos números apresentados na tabela 4, o aumento da


área ocupada com lavouras na MRG de Tangará da Serra entre 1995/6
e 2006. Por outro lado, a área ocupada com pastagens apresentou di-
minuição no mesmo período, passando de 714.178 para 638.164 hec-
tares.
Esses dados exprimem o avanço da agricultura capitalista na
MRG de Tangará da Serra, vinculada aos cultivos de soja e de cana, via
instalação de usinas nos municípios de Barra do Bugres (Barrálcool) e
em Nova Olímpia (Itamarati), no ano de 1980, além de empresas liga-
das ao armazenamento e esmagamento de soja em Tangará da Serra,
como a Bunge Alimentos e a Cargill Agrícola. Nos últimos anos, por
meio de incentivos creditícios do Banco Nacional de Desenvolvimen-
to Econômico e Social (BNDES), o setor sucroalcooleiro recebeu novo
incremento, ampliando as áreas de plantio. Somente a Itamarati pos-
sui 67.000 hectares de área plantada com cana, entre terras próprias e
arrendadas.6

5
Para mais informações, acessar: <http://www.dsr.inpe.br/laf/canasat/tabelas.html>.
Acesso em: 10 jul. 2015.
6
Informações disponibilizadas em: <http://www.usinasitamarati.com.br/itamarati/pro-
ducao.html> . Acesso em: 20 jul. 2015.

 88
Os municípios com maior redução da área de pastagens são os de
expansão da área plantada de soja e de cana, com destaque para Tangará
da Serra e Nova Olímpia.
É certo que, mesmo não fazendo parte da MRG de Tangará da Ser-
ra, há, na Chapada dos Parecis, outros municípios próximos, de topo-
grafia suavemente ondulada, como Diamantino, Campo Novo dos Pa-
recis, Sapezal e Campos do Júlio, possibilitando a expansão das lavouras
mecanizadas de soja.
Em Tangará da Serra, por exemplo, a área destinada às lavouras
apresentou crescimento de quase 37% em dez anos. Por outro lado, a
área ocupada por pastagens, mesmo sendo significativa, apresentou re-
dução de mais de 13%, conforme os dados apresentados na tabela 4. A
área ocupada com soja saltou de 26 mil para 55 mil, de 1995/6 para 2006
(tabela 3). Para a safra 2014/15, estimou-se em 101.698 hectares a área
plantada com soja no município de Tangará da Serra; 401.782 hecta-
res, em Sapezal; 383.149 hectares, em Campo Novo dos Parecis; 211.236
hectares, em Campos do Júlio; 381.352 hectares, em Diamantino.7

Tabela 4 - MRG Tangará da Serra (MT): área de lavouras e


pastagens - hectares.
Lavouras Pastagens
MRG-municípios 1995/6 2006 1995/6 2006
MRG Tangará da Serra 139.120 188.328 714.178 638.164
Barra do Bugres 42.205 38.626 262.323 212.607
Denise 21.315 14.453 69.549 84.394
Nova Olímpia 21.149 62.511 58.321 52.301
Porto Estrela 2.096 1.303 85.457 82.319
Tangará da Serra 52.356 71.435 238.528 206.543
Fonte: IBGE – censos agropecuários 1995/6 e 2006.

Apesar da diminuição na área ocupada com pastagens, entre


1995/6 e 2006, houve aumento do efetivo de bovinos (Tabela 5) na MRG

7
Os dados apresentados são do Instituto Mato-Grossense de Economia Aplicada
(IMEA). Disponível em: <http://www.imea.com.br/upload/publicacoes/arquivos/
R404__14_12_11_Tratamento_plantio_14-15.pdf> . Acesso em: 30 jul. 2015.

 89
de Tangará da Serra, com redução somente no município de Denise.
O município de Tangará da Serra apresentou o maior incremento no
efetivo de bovinos, saltando de 190.267 para 275.406 cabeças no perí-
odo. Em grande parte, o incremento deve-se ao avanço tecnológico do
setor, especialmente pela integração lavoura-pecuária. Nesse sistema,
as lavouras são plantadas no início das primeiras chuvas, na primavera
(setembro ou outubro), colhidas ao final de janeiro ou fevereiro e, após,
planta-se o capim (Brachiaria ruziziensis), utilizado como pastagem
para o rebanho bovino8. Além das áreas de soja, as de milho, com 24.868
hectares, plantadas em 2013 (IBGE/PAM-2013), em Tangará da Serra,
são utilizadas para o sistema de integração lavoura-pecuária.
Dessa maneira, os avanços tecnológicos espraiaram-se no cam-
po, atingindo a lavoura e a pecuária, especialmente pela nova face do
processo de modernização do campo, via uso intensivo de agrotóxicos,
adubação química pesada, mecanização intensiva, melhoramento gené-
tico e transgenia. Assim, mesmo com a expansão das áreas de lavoura
nos últimos anos, o efetivo de bovinos continuou em expansão pelo in-
cremento de novas tecnologias em áreas de criação bovina tradicional.

Tabela 5 - MRG de Tangará da Serra (MT): efetivo de bovinos.


MRG-municípios/censos agropecuários 1995/6 2006
MRG Tangará da Serra 583 675 729.985
Barra do Bugres 206 220 214.046
Denise 70 360 68.217
Nova Olímpia 58 635 67.890
Porto Estrela 58 193 104.426
Tangará da Serra 190 267 275.406
Fonte: IBGE – censos agropecuários 1995/6 e 2006.

A forte concentração fundiária é outra característica da MRG de


Tangará da Serra, facilitando, nos últimos anos, as ações das empresas
ligadas à agricultura capitalista e seus negócios e negociantes derivados,

8
Disponível em: <http://g1.globo.com/mato-grosso/agrodebate/noticia/2014/10/inte-
gracao-lavoura-pecuaria-garante-bons-resultados-no-oeste-de-mt.html> . Acesso em:
25 jul. 2015.

 90
expandindo as áreas de cultivo de cana e soja, além da pecuária bovina
melhorada.
Nota-se, pelos dados da tabela 6, a manutenção, entre 1995/6 e
2006, da concentração fundiária na MRG de Tangará da Serra, pois os
estabelecimentos com mais de 1.000 hectares diminuíram em núme-
ro no período, passando de 13,75% para 6,1% do total. Em 2006, 229
estabelecimentos, no estrato com mais de 1.000 hectares, totalizavam
74,98% da área ocupada na microrregião. Dessa maneira, diminuiu-se
em número e área total, mas aumentou o tamanho médio dos estabele-
cimentos, passando de 3.230 para 4.095 hectares. Por sua vez, o tama-
nho médio dos estabelecimentos do estrato de área de 100 a menos de
500 saltou de 93 para 235 hectares, e o estrato de área de 500 a menos
1000 passou de 315 para 713 hectares.
Por outro lado, nota-se aumento em número e área no estrato dos
estabelecimentos entre 10 e 100, correspondendo, em 2006, a mais de
63% do total e ocupando mais de 77 mil hectares, mas com tamanho
médio reduzido, justamente aquele dos assentados de reforma agrária.
Apesar de território do capital e do latifúndio, há 16 assentamentos na
MRG de Tangará, destacando-se na sua sede dois com 1.149 famílias
assentadas em 41.385 hectares.9

Tabela 6. MRG de Tangará da Serra: número e área de


estabelecimentos agropecuários – ha – 1995/6-2006.
1995/6 2006
Grupos de áreas Nº % área % Nº % área %
Menos de 10 681 23,17 3.037 0,20 475 12,67 2.031 0,16
10 a menos de 100 1.145 38,97 43.898 2,95 2.366 63,11 77.510 6,19
100 a menos de 500 409 13,92 38.064 2,56 470 12,53 110.483 8,83
500 a menos de 1.000 299 10,17 94.233 6.34 172 4,58 122.758 9,81
Mais de 1.000 404 13,75 1.305.244 87,92 229 6,10 937.805 74,98
Produtor sem área x x 37 0
Fonte: IBGE – censos agropecuários – 1995/6 e 2006.

9
Disponível em: <http://www.ippri.unesp.br/Home/pos-graduacao/desenvolvimento-
territorialnaamericalatinaecaribe/relatorio_dataluta_mt_2012.pdf>. Acesso em: 23 jul.
2015.

 91
A concentração fundiária na MRG de Tangará da Serra deve-se
ao modelo de ocupação das terras em Mato Grosso, especialmente via
titulação ou venda, pelo Estado, de grandes extensões de terras a latifun-
diários e empresários, destacando-se empresas colonizadoras atuantes
em outros estados desde a década de 1950. Por corrupção e má-fé, em
vários lugares de Mato Grosso, os agentes do Estado em órgãos governa-
mentais (como instituto de terras) e, também, em cartórios, por exem-
plo, emitiam títulos em duplicidade na mesma área. Segundo Ferreira
(1984, p. 64): “Estes títulos entraram no mercado de terra e passaram a
ser denominados de ‘Títulos Voadores’, cabendo aos seus adquirentes
ajustá-los a alguma ‘terra livre’, desocupada, condição necessária à re-
gularização da propriedade real do imóvel”. Após a década de 1950, as
ações de grileiros foram comuns em todo o Mato Grosso, desdobrando-
-se em vários conflitos fundiários que perduram até os dias atuais, pois
titularam terras ocupadas por posseiros, indígenas, quilombolas e ou-
tros. Outro desdobramento foi a forte concentração fundiária em Mato
Grosso (e na MRG de Tangará da Serra), pois os títulos emitidos eram
de grandes áreas10.

Tangará da Serra: agricultura capitalista, seus negócios


e (re)criação camponesa
A região onde se localizam atualmente Tangará da Serra e outros
municípios, na Chapada do Parecis e adjacências, era terra indígena. De
acordo com Oliveira (2002), parte dessa população sofreu extermínio
pelo avanço do processo de ocupação, a partir das primeiras décadas
do século XX. Atualmente, há as terras indígenas (TIs) Paresí, pequena
parcela em relação ao seu território tradicional, com 563.586, 5345 hec-
tares no município de Tangará da Serra (MT). Os Paresí, com cerca de
1.499 pessoas (IBGE-2010), têm 9 terras indígenas (TI), distribuídas no

10
Para ver mais sobre o assunto, consultar: FERREIRA, Eudson de Castro. Posse e pro-
priedade: a luta pela terra em Mato Grosso. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Ins-
tituto de Filosofia e Ciências Humanas – UNICAMP, Campinas, 1984.

 92
sudoeste de Mato Grosso, especialmente em Tangará da Serra, Campo
Novo dos Parecis, Conquista do Oeste e Sapezal, totalizando 1.119.300
hectares. Em Tangará da Serra, são 29 aldeias (OLIVEIRA, 2002, p.193;
NASCIMENTO, 2007, p. 2).
Para Oliveira (2002, p. 217), o Estado, ao demarcar as terras indí-
genas dos Paresí, permitiu a perda do espaço de suas matas, usado tra-
dicionalmente para roças, majoritariamente no vale do rio Sepotuba.
Os Paresí, anteriormente à demarcação, na mata de poaia, realizavam
suas roças, mas, posteriormente, ficaram restritos às áreas de cerra-
do, nas chapadas. Esse fator, além de limitante do ponto de vista das
atividades desenvolvidas e relacionadas às tradições, contribuiu para
a redução de seus espaços, justamente pelo avanço da frente pioneira
entre 1970 e 1980, com fluxo migratório em direção às terras altas
de Mato Grosso, sobretudo oriundo do sul do Brasil, denominado de
“segundo fluxo migratório” (OLIVEIRA, 2002, p. 218). Esse fluxo con-
tribuiu, definitivamente, para o encurralamento dos Paresí em áreas
inferiores àquelas tradicionalmente ocupadas, mas, por outro lado,
concorreu para a expansão do processo de apropriação capitalista da
terra e de atividades econômicas vinculadas à agricultura moderna,
tecnificada.
Para Nascimento (2007, p. 36), esse segundo fluxo resultou do for-
te modelo de intervencionismo da ditadura civil-militar (1964-1985)
para ocupação do “espaço vazio”, desconsiderando os índios, posseiros,
poiaeiros e seringueiros como ocupantes desse espaço. Segundo o autor,
o objetivo era atrair migrantes para “colonizar” a região, diminuindo a
pressão por terra, especialmente no sul do país, evitando-se, assim, fazer
a reforma agrária nas regiões de ocupação mais antiga. De toda forma,
esse segundo fluxo relaciona-se ao processo mais geral de moderniza-
ção da agricultura em curso no Brasil, mormente ligada aos cultivos
para exportação e à pecuária de corte.
Diferentemente, o primeiro fluxo de migração (OLIVEIRA, 2002)
decorreu da ação de empresários/latifundiários que, nos anos 1950 e
1960, oriundos do estado de São Paulo, obtiveram grandes extensões

 93
de terras tituladas pelos órgãos governamentais de Mato Grosso, geral-
mente via conluios.11
Ainda de acordo com Oliveira (2002, p. 99), no caso de Tangará da
Serra, a empresa denominada Sociedade Comercial Imobiliária de Tupã
para Agricultura Ltda. (SITA)12colonizou quatro glebas de terras: Santa
Cândida, Santa Fé, Juntinho e Esmeralda. Os empresários/latifundiários
tinham por objetivo lotear as terras rurais e, para tanto, fundaram, em
1959, a cidade – Tangará da Serra – para dar suporte ao propósito e, ao
mesmo tempo, vender lotes na futura área urbana. Essa prática foi mui-
to comum, sobretudo no oeste do estado de São Paulo e no Paraná13. A
empresa colonizadora adotou procedimentos anteriormente utilizados
em glebas loteadas, projetando a cidade com ruas e avenidas largas (Fi-
gura 3), formando planos ortogonais, rodeada com um primeiro con-
junto de pequenas áreas (chácaras), depois por áreas um pouco maiores
(sítios) e, por fim, mais distantes, as fazendas (ANDRADE, 2009, p. 92).
Essa prática relaciona-se ao capitalismo rentista brasileiro, pois
a produção/reprodução do capital dá-se pela apropriação da renda da
terra, no caso da renda absoluta14, extraída como imperativo do pro-
prietário de cobrar pela sua antecipação. Acrescente-se que esse pro-
prietário comercializa frações do espaço privatizado-mercantilizado,
tornado renda capitalizada, e transforma a em dinheiro no momento da
venda de lotes (chácaras, sítios, fazendas, lotes na cidade) aos migrantes
provenientes de outros estados brasileiros que, atraídos pelo mito da
11
Para ver mais sobre a questão do acesso à terra em Mato Grosso, consultar: MORENO,
Gislaine. Os descaminhos da apropriação capitalista da terra em Mato Grosso. São Pau-
lo, 1993. Tese (Doutorado em Geografia) Universidade de São Paulo.
Até o dia 30 de janeiro de 1969, denominava-se Companhia Imobiliária Tupã para
12

Agricultura (CITA), conforme Oliveira (2002, p.99).


13
Para saber mais sobre as grilagens de terras, fundação de cidades e a comercialização
de terras por empresas colonizadoras ou colonizadores individuais, ver: NARDOQUE,
Sedeval. Apropriação capitalista e desconcentração fundiária em Jales –SP. Dourados
(MS): EDUFGD, 2014. _______. Renda da terra e produção do espaço urbano em Jales-
-SP. Tese (Doutorado em Geografia), IGCE/UNESP, Rio Claro (SP), 2007.
14
OLIVEIRA, Ariovaldo U. Renda da terra absoluta. Orientação, São Paulo, IGEOG-
-USP, n. 07, p. 77-79, dez. 1986.

 94
fronteira, estimulados pelo desejo de libertação do patrão15, conseguem
pedaços de chão para o trabalho ou para ampliação de suas terras de
cultivo, como ocorrido em Tangará da Serra.
De acordo com Nascimento (2007, p. 2), Tangará da Serra, eman-
cipado em 13 de maio de 1976, concentra a maior parte de seu Produto
Interno Bruto (PIB) nas atividades de serviços e indústria ligadas à agri-
cultura capitalista moderna, como a produção de soja e de cana, mas
diversificada por lavouras de milho, criação de aves e pecuária bovina
moderna.
A tabela 7 demonstra a composição do PIB de Tangará da Serra e
de Mato Grosso. Constata-se, pelos dados, que, em Tangará da Serra, os
serviços são os mais representativos no município, destacando-se, dian-
te dos demais setores, com o PIB de R$ 864.792,00 (oitocentos e sessenta
e quatro mil, setecentos e noventa e dois reais) ou 60,4% do total. A
cidade, pela diversidade de comércio e serviços, polariza as atividades
desenvolvidas no campo de seu município e de outros, além de outras
cidades, sendo a sexta economia do estado de Mato Grosso, segundo o
IBGE. Ao longo dos últimos anos, Tangará da Serra tornou-se impor-
tante centro comercial e de serviços após o incremento das atividades
modernas no campo, atraindo empresas ligadas à agropecuária capita-
lista, como os frigoríficos Marfrig (bovinos) e Anhembi (aves). Além
disso, há diversas empresas prestadoras de serviços, em agronomia e
veterinária, e de comercialização e armazenamento de grãos.

Tabela 7 - Mato Grosso e Tangará da Serra: Produto Interno Bruto


em reais – 2011.
Variável Tangará da Serra Mato Grosso
Agropecuária 224.057 10.743.851
Indústria 342.278 6.229.481
Comércio e Serviços 864.792 16.418.854
Fonte: IBGE, em parceria com os Órgãos Estaduais de Estatística, Secretarias Estaduais de
Governo e superintendência da Zona Franca de Manaus – SUFRAMA.

15
Para ver mais sobre o assunto, consultar: MARTINS, José de Souza. Os camponeses
e a política no Brasil. Petrópolis (RJ): Vozes, 1991 e _______. O cativeiro da terra. São
Paulo: Hucitec, 1998.

 95
As transformações significativas no espaço, em Tangará da Serra e
na região, decorreram das ações do Estado brasileiro, na ditadura civil-
-militar (1964-1985), sobretudo nos anos 1980. Várias foram as ações,
por meio de programas federais: o Programa de Desenvolvimento de
Mato Grosso (PROMAT), o Programa de Desenvolvimento Integrado
do Noroeste do Brasil (POLONOROESTE) e o Programa de Desenvol-
vimento dos Cerrados (POLOCENTRO). Boa parte dessas ações, em
Tangará da Serra e região, destinava-se a dotar o território de infraes-
trutura, como abertura de estradas e linhas de transmissão de energia,
financiamentos para expansão de monoculturas e armazenamento de
grãos. Além de incentivos à agricultura de grãos, o setor sucroalcooleiro
também os recebeu, viabilizando a instalação de duas usinas (Itamarati
e Barralcool) na MRG de Tangará da Serra, no ano de 1980, com subsí-
dios do Programa Nacional do Álcool (Proálcool).

Figura 3 - Tangará da Serra (MT) – vista aérea – 2009.


Fonte: <http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=562675&page=3>.
Foto: Marcelo Lima. 30 jun.2009. Acesso em: 22 jun. 2015.

 96
Parte do processo migratório para Tangará da Serra deu-se, nos
anos 1960 e 1970, pelo denominado primeiro fluxo migratório (OLI-
VEIRA, 2002) de famílias originárias de Minas Gerais, São Paulo, Para-
ná e de estados do nordeste brasileiro, atraídas pela colonização privada,
promovida pela empresa SITA. Muitas famílias, seguindo a migração
campo-campo, migraram em busca de terras para plantação de café,
mas plantaram milho, arroz e feijão, além de desenvolver a criação de
aves, suínos e bovinos, atividades desenvolvidas nos locais de origem
(OLIVEIRA, 2002, p. 17-8).
Os migrantes instalaram-se em pequenas porções de terras (ge-
ralmente de 40 hectares) e plantaram de 3 a 4 milhões de pés de café e,
nos anos 1970 e 1980, motivados pelos baixos preços e sua baixa pro-
dução, muitos camponeses deixaram de produzir a rubiácea e passaram
a trabalhar como assalariados, nas fazendas de criação de gado, ou na
produção diversificada de alimentos (legumes, frutas) em seus sítios ou
ainda se dedicaram à criação de animais, como frangos e vacas de leite
(PASSOS; DUBREUIL; BARIOU, 2006, p. 72).
Segundo Oliveira (2002, p. 23), a vinda dos migrantes, considerados
neste trabalho como a origem significativa dos camponeses em Tangará
da Serra, deu-se por aqueles oriundos do projeto de colonização da SITA,
proprietários ou não de terras em seus locais de origem, atraídos por terra
“barata” ou possibilidade de acesso a ela, pelo menos nas propagandas
feitas pela empresa, promovendo a mobilidade na fronteira. Além deles,
há os ex-poaieiros e indígenas (ou descendentes), “que estriaram o am-
biente antes da chegada dos picadeiros, que fizeram o serviço de demar-
cação de glebas de terras”. Para o mesmo autor, “[...] no período de 1959
a 1979, as famílias que vieram para Tangará da Serra possuíam poucos
recursos financeiros, a ocupação do espaço rural foi das áreas próximas à
cidade [...]” (OLIVEIRA, 2002, p. 24). Muitos dos migrantes deslocaram-
-se para a fronteira como porcenteiros, meeiros, seguindo o movimento
migratório do Nordeste para São Paulo e Minas ou para o Paraná, outros
passando pelo sul de Mato Grosso (atual sul de Mato Grosso do Sul) e
deslocando-se até Tangará da Serra (OLIVEIRA, 2002, p. 87, 100).

 97
É certo que algumas das famílias do “primeiro fluxo de migração”
tornaram-se proprietárias em Tangará da Serra porque eram, também,
proprietárias nos seus locais de procedência (OLIVEIRA, 2002, p.172).
A migração tinha sentido para ampliar a terra de vida e trabalho para
a família, pois vendiam-se áreas menores e compravam-se maiores na
fronteira, justamente pelas diferenças nos preços16. De toda forma, a
maioria das famílias dos camponeses migrantes constituía-se de lavra-
dores pobres, agregados de outras famílias, com esperança de acesso à
terra. (OLIVEIRA, 2002, p.172-3). Na fronteira, a terra tinha dono e,
para acessá-la, era necessário ter dinheiro para comprá-la.
Dessa maneira, a concentração fundiária em Tangará da Serra deu-
-se pela apropriação de latifúndios adquiridos com fins especulativos
(reserva de valor) ou pela aquisição, no processo migratório, por aqueles
proprietários em seus locais de origem17. Por outro lado, pelo processo
migratório, a terra fragmentou-se parcialmente, via aquisição de peque-
nos sítios e chácaras por migrantes menos abastados. Segundo Oliveira
(2002, p.177-8), a ausência de políticas para os pequenos proprietários e
meeiros causou a muitos a expropriação, sobretudo pelo abandono das
lavouras cafeeiras e pela venda da terra ou pela substituição das lavouras
por pastagens, causando, também, desemprego no campo.
É certo que o movimento no campo atingiu plenamente seus su-
jeitos. A migração para a cidade foi a condição imposta aos camponeses
pequenos proprietários ou não, justamente pela crise proporcionada na

16
O depoimento de uma migrante ilustra o objetivo de migrar: “Eu queria ser fazendei-
ra, vim comprar terras, deu pra comprar uma pequena fazenda, maior do que o sítio que
tínhamos em Nova Granada. Depois que eu mudei pra cá, trouxe junto minhas noras,
Maria e Adelaide, elas reclamavam do lugar, muito mato, cobra, aranha, sapo, casas de
tábua, coberta de tabuinha, eu achava a mesma coisa, mas não falava, pois eu já conhecia
Tangará, eu que falei em São Paulo que aqui era bom, mas se pudesse voltar, voltava na
hora. Quando cheguei ainda era debaixo de chuva, chovia mais dentro de casa do que
fora”. (OLIVEIRA, 2002, p.77).
17
“Em todos os casos, os proprietários adquiriram superfícies exploráveis bem mais
importantes que no sul-sudeste do Brasil: o proprietário da fazenda São Benedito ven-
deu uma de suas fazendas de 400 ha no Paraná para comprar 4.000 ha no Mato Grosso
e constituir um domínio de 11.000 ha de terras em 1982”. (PASSOS; DUBREUIL; BA-
RIOU, 2006, p.73).

 98
fronteira, pelo declínio mais imediato das lavouras tradicionais, como a
do café, pelas dificuldades de acesso a terra, a escolas, a assistência mé-
dica, mas, mormente, pelo avanço das ações do capital no campo, via es-
praiamento das lavouras comerciais, como soja e cana, e intensificação da
técnica pelo processo de modernização do campo, seletivo e excludente.
Na opinião de Pereira (1999), o desenvolvimento econômico de
Tangará da Serra, antes baseado na agricultura tradicional e substituído
pelo modelo de alta tecnologia, com monocultura de soja para expor-
tação, proporcionou, nos últimos anos, grande fluxo de migrantes do
campo para a cidade. Outro fator importante na redução da população
residente no campo, em Tangará da Serra, é a concentração/reconcen-
tração fundiária nos últimos anos, contribuindo para a expropriação
e expulsão de pequenos proprietários tradicionais e trabalhadores do
campo, sobretudo meeiros, arrendatários e parceiros.
Dessa maneira, houve interferências na dinâmica demográfica,
como se observa na tabela 8. No ano de 1980, 59,25% da população do
município de Tangará da Serra era considerada rural, ou seja, residente
no campo. Ano após ano, essa população reduziu-se, em termos percen-
tuais, chegando, em 2010, a apenas 9% do total constante no município.
Essa redução tem relação direta com a reconcentração fundiária no mu-
nicípio e nos municípios do entorno (basta rever a tabela 6), com a crise
das lavouras da agricultura tradicional e o avanço das atividades econô-
micas, no campo e na cidade, ligadas à agricultura capitalista. Conco-
mitante à redução da população do campo, houve aumento significativo
da população absoluta, saltando de 31.293, em 1980, para 83.431 ha-
bitantes, em 2010. No mesmo período, houve aumento da população
residente na cidade, passando de 12.745 (40,75%), em 1980, para 75.921
(91%), em 2010.
De toda forma, de 2000 para 2010, houve aumento, em termos ab-
solutos, da população residente no campo, saltando de 7.345 para 7.510,
provavelmente em consequência dos projetos de reforma agrária. Ape-
sar do pequeno crescimento, os números contradizem a tendência, pois
resultam da resistência dos camponeses em permanecer na terra, mas,

 99
acima de tudo, da luta para entrarem na terra, no processo contínuo de
(re)criação camponesa.

Tabela 8 - Tangará da Serra (MT) – dinâmica demográfica – 1980 a 2010.


1980 % 1991 % 2000 % 2010 %
Urbana 12.745 40,75 32.053 80,44 51.495 87,51 75.921 91,0
Rural 18.548 59,25 7.795 19,56 7.345 12,49 7.510 9,0
Total 31.293 100 39.848 100 58.840 100 83.431 100
Fonte: IBGE – censos demográficos 1980 a 2010. Disponível em: <http://www.sidra.
ibge.gov.br/bda/acervo/acervo6.asp?e=c&n=6&t=195&v=93&cp=CD&d=Censo+Dem
ogr%C3%A1fico&z=t&o=3>. Acesso em: 20 ago. 2015.

A concentração e a reconcentração fundiária, de 1995/6 para 2006,


são evidentes em Tangará da Serra, como demonstrado na tabela 9. A
concentração fundiária é manifesta, pois, em 1995/6, o estrato de mais
de 1.000 hectares representava apenas 8,3% do total de estabelecimen-
tos, mas ocupava 87,35% da área ocupada. Por outro lado, o total de
estabelecimentos de até 100 hectares atingia 65,76%, mas ocupava so-
mente 4,11% da área. Os dados de 2006 demonstram algumas alterações
na distribuição fundiária em Tangará da Serra, mas sem mudar drasti-
camente a concentração, pois os estabelecimentos com mais de 1.000
hectares, mesmo representando 4,38% do total, concentravam 75,71%
da área ocupada por todos os estabelecimentos rurais no município. A
mudança mais evidente é demonstrada, na tabela 9, pelos dados dos
estratos de até 100 hectares, aumentando em número (84,29%), em re-
lação a 1995/6, e, também, em área ocupada (8,71%). Essa mudança
deveu-se à luta camponesa para entrar na/retornar à terra, justamente
pela criação de assentamentos de reforma agrária.
De toda forma, houve reconcentração fundiária em Tangará da
Serra no período demonstrado na tabela 9. O estrato de mais de 1.000
hectares tinha o total de 105 estabelecimentos, em 1995/6, reduzindo-se
para apenas 65, em 2006. Apesar da redução da área total nesse estrato,
a média dos estabelecimentos saltou de 4.215 hectares, em 1995/6, para
4.556 hectares, em 2006, demonstrando que, mesmo com a criação de

 100
assentamentos de reforma agrária e o aumento do número e da área dos
estabelecimentos de até 100 hectares, houve reconcentração da terra no
município.

Tabela 9 - Tangará da Serra: número e área de estabelecimentos


agropecuários - 1995/6-2006. Hectares (ha)
Grupos de áreas 1995/6 2006
ha Nº % área % Nº % área %
Menos de 10 291 23 1.425 0,28 284 19,33 975 0,26
10 a menos de 100 541 42,76 19.404 3,83 964 64,96 33.045 8,45
100 a menos de 500 232 18,34 12.703 2,5 124 8,36 28.587 7,31
500 a menos de 1.000 96 7,59 30.533 6,0 45 3,03 32.237 8,24
Mais de 1.000 105 8,3 442.646 87,35 65 4,38 296.176 75,71
Produtor sem área x x x x 2 0,13 x x
Fonte: IBGE – censos agropecuários – 1995/6 e 2006.

Diante da forte concentração fundiária em Tangará da Serra (e na


região) e o movimento decorrente do avanço da agricultura moderna,
houve expropriação e expulsão de camponeses da terra, pequenos pro-
prietários, mas, majoritariamente, camponeses sem terra. Essa condição
é observável a partir dos dados da tabela 10, na nítida redução do pes-
soal ocupado no campo, como os arrendatários e parceiros, utilizados,
no início da ocupação pela frente pioneira, na formação das fazendas.
Dessa maneira, a luta para retornar à terra foi a alternativa para muitos
camponeses no Brasil, em Mato Grosso e em Tangará da Serra, condição
de negação à proletarização.

Tabela 10 - Tangará da Serra – pessoal ocupado em estabelecimentos


agropecuários – 1995/6 e 2006.
1995/6 2006
Proprietário 5.466 3.681
Arrendatário 570 113
Parceiro 68 12
Ocupante 51 53
Assentado sem titulação definitiva x 925
Produtor sem área x 4
Total 6.155 4.788
Fonte: IBGE – censos agropecuários – 1995/6 e 2006.

 101
As contradições no processo de apropriação da terra em Tangará
da Serra contribuíram para a criação e a recriação camponesa18, via re-
sistência em permanecer na terra, particularmente pelos camponeses
tradicionais, e pela luta para entrar na terra, por meio dos camponeses
não proprietários e expropriados na fronteira em movimento. A luta
para entrar na terra deu-se pela ação dos movimentos sociais no campo,
sobretudo pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)
em Mato Grosso, arregimentando e organizando aqueles camponeses
pobres, sem acesso à terra, que seguiram a fronteira em movimento. A
materialização dessa luta deu-se pela criação e instalação de dois pro-
jetos de assentamentos de reforma agrária no município de Tangará da
Serra, como demonstrado na tabela 11: o Antonio Conselheiro, com
área de mais de 38.000 hectares e quase 1.000 famílias assentadas, e o
Triângulo, com mais de 3.000 hectares e 150 famílias.

Tabela 11 - Tangará da Serra (MT) – projetos de assentamentos de


reforma agrária.
Projeto Área (ha) Famílias Assentadas Criação
PA Antonio Conselheiro 38.337,83 997 1997
PA Triângulo 3.047,32 150 1994
Fonte: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.

Percebem-se nitidamente, em Tangará da Serra, as contradições


na produção capitalista do espaço, pois o espraiamento da agricultura
capitalista moderna, via soja e cana, aliado à concentração fundiária,
possibilitaram as ações dos camponeses, proprietários ou não, nos en-
frentamentos em disputa pelo território capitalista.
Na produção capitalista do espaço, grupos econômicos e latifun-
diários ligados à agricultura dita moderna, estabelecida em Tangará da
Serra e na região, apropriaram-se de grande parte desse território, exer-

18
A criação e a recriação camponesa baseiam-se, neste trabalho, na obra de ALMEIDA,
Rosemeire Aparecida. (Re)criação do campesinato: identidade e distinção. A luta pela
terra e o habitus de classe. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

 102
cendo relações de poder no âmbito econômico e na divisão territorial
do trabalho, entre campo e cidade, promovendo rearranjos na produção
agropecuária. A lógica territorial do capital tornou a cidade de Tanga-
rá da Serra polo econômico regional, ligado aos negócios vinculados à
agricultura capitalista, como empresas processadoras de produtos agro-
pecuários (frigoríficos, por exemplo) e empresas vinculadas ao consu-
mo produtivo do campo, como as concessionárias de tratores, máquinas
e implementos agrícolas (Figura 4).

Figura 4 - Tangará da Serra:


concessionárias de tratores e máquinas agrícolas.
Fonte: Trabalho de campo, nov. 2013. Fotos: Talita Sgobi Martins.

Por outro lado, diante das dificuldades impostas pelos padrões


mercadológicos e da agricultura capitalista, há enfrentamentos dos
camponeses para a inserção de suas produções no mercado. Dessa ma-
neira, os camponeses constroem alternativas para sua recriação – além
da luta para entrarem na terra –, como as ações para nela permanece-

 103
rem, mesmo que contraditoriamente, subordinando-se, via integração,
às empresas frigoríficas de aves e suínos, ou buscando emancipação,
inserindo seus produtos e alimentos em feiras ou fornecendo-os para
o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e para o Programa Na-
cional de Alimentação Escolar (PNAE).
A figura 5 demonstra a comercialização dos produtos da agricultu-
ra familiar camponesa na Feira Central de Tangará da Serra, constituída
por mais de 300 agricultores familiares camponeses tradicionais que ad-
quiriram terras no período inicial da colonização do município. Nota-se
sua importância justamente pela qualidade e pela diversidade de produ-
tos oferecidos para a população da cidade. Os camponeses enfrentam
muitas dificuldades no deslocamento até a cidade para a realização da
comercialização na feira, além da falta de assistência técnica e de maio-
res incentivos à produção. Isso concorre para a comercialização de lotes
pelos assentados, que acabam por ceder às propostas exorbitantes, feitas
pelos agentes vinculados à agricultura capitalista, por suas terras, seja
para arrendamento ou compra19.
Notam-se claramente, na cidade vinculada aos negócios e nego-
ciantes da agricultura capitalista, as contradições postas pelo avanço do
capital no campo e a resistência camponesa em seu processo de criação
e de recriação, sobretudo pela luta para retornar à terra e nela permane-
cer, via produção e comercialização, realizada pelos agricultores fami-
liares camponeses tradicionais e assentados de reforma agrária.

Considerações finais
As leituras, os levantamentos de dados censitários e o trabalho de
campo, realizados em Tangará da Serra, permitiram, mesmo que par-
cialmente, a compreensão do processo de apropriação capitalista da
terra, via expansão da frente pioneira, suas formas e conteúdos, e, es-
sencialmente, pelas suas contradições geradas na fronteira. Sem dúvida,

19
De acordo com entrevistas realizadas com camponeses, em trabalho de campo reali-
zado no novembro de 2013, no município de Tangará da Serra.

 104
Figura 5 - Tangará da Serra: Feira Central dos camponeses.
Fonte: Trabalho de campo, nov. 2013. Fotos: Talita Sgobi Martins (2013).

a primeira contradição resultou dos (des)encontros de diferentes entre


si, mormente entre os índios e não índios, entre camponeses pobres e
grandes proprietários de terra. Nos dizeres de Martins (1997, p. 150-1),
“o conflito na fronteira faz dela, a um só tempo, um lugar de descoberta
do outro e de desencontro, de temporalidades históricas diferentes”.
Dessa maneira, em Tangará da Serra e região, a apropriação das
terras indígenas (Paresí) e de camponeses (poiaeiros, por exemplo) deu-
-se pela fronteira em movimento vinculada à frente pioneira, imersa na
economia de mercado, onde os latifundiários, empresários e agentes do
Estado transformaram a terra sagrada (para os índios) e de trabalho
(para os posseiros) em mercadoria, em terra de negócio, mesmo por
vias contrárias às regras do próprio mercado, pela grilagem, pela apro-
priação indébita.

 105
As ações de empresas de colonização, como a SITA, em Tangará
da Serra, contribuíram para a fundação de cidades e o retalhamen-
to das terras para a efetivação de novas especulações imobiliárias e
atração de migrantes de outras partes do Brasil, na ânsia de vender
lotes para camponeses sem terra ou àqueles que eram possuidores/
proprietários de terra em outras paragens para ampliação das áreas
de cultivo.
Contraditoriamente, o avanço das empresas e empresários capita-
listas no campo, nas últimas décadas, via espraiamento das monocultu-
ras de soja e cana, além da pecuária melhorada, promoveu o contato e o
conflito, novamente, com os camponeses, via expropriação e violência.
A expansão das monoculturas propiciou a concentração e a reconcen-
tração fundiária em Tangará da Serra, contribuindo para a diminuição
da população residente no campo, mas também para a luta dos campo-
neses para voltarem à terra e nela permanecerem, no processo de (re)
criação camponesa. Isso se deve, sobretudo, às ações dos movimentos
sociais, que culminaram na criação e instalação de dois projetos de
assentamento em Tangará da Serra, com destaque para o PA Antonio
Conselheiro, com quase 1.000 famílias assentadas.
Dessa maneira, em meio ao avanço do capital no campo (e na ci-
dade), em Tangará da Serra, os camponeses situam-se como sujeitos da
História, lutando para entrar e permanecer na terra.

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http://www.veja.abril.com.br
http://www.usinaitamarati.com.br
http://www2.unemat.br/nepec/perfil_tangara/101.html

 107
 108
Reflexões Sobre o Acesso a Terra
e as Relações de Trabalho em
Mirassol D’Oeste-MT

Sinthia Cristina Batista


Doutora em Geografia. Docente na Universidade Federal de Mato Grosso

Introdução
Este texto traz questões fundamentais discutidas na tese de Dou-
toramento Cartografia Geográfica em questão: do chão, do alto, das
representações, orientada pela professora Dirce Maria Antunes Suer-
tegaray, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em
maio de 2014. O capítulo cumpre o objetivo de contribuir com as reflex-
ões do projeto de pesquisa “Questão Agrária e Transformações Socio-
territoriais nas microrregiões do Alto Pantanal e Tangará da Serra/MT
na última década censitária”, da Rede Centro-Oeste de Pós-Graduação,
Pesquisa e Inovação (Edital MCT/CNPq/FNDCT/FAPs/MEC/CAPES/
PRO-CENTRO-OESTE nº 31/2010).
Em meio a realidade agrária concentrada e extremamente foca-
da na produção e exportação de commodities como a mato-grossense,
propõe-se, neste capítulo, refletir sobre o processo histórico de acesso a
terra e as relações de trabalho em Mato Grosso, mais especificamente

 109
no município de Mirassol D’Oeste (MT), inserido na região da Grande
Cáceres, porção sudoeste do estado de Mato Grosso. Esta análise é rel-
evante porque, na atualidade, Mirassol D’Oeste vem disputando força
política e econômica com o município mais antigo da região, Cáceres,
a partir da irrestrita abertura para o avanço da produção das commod-
ities.
O processo de abertura dessas terras das fronteiras mato-grossens-
es para o capital abriu-se igualmente para o camponês, que, no percurso
em busca de terra e trabalho, desenrolou diversos conflitos pela terra e,
nos anos 1990, teve sua força ampliada e motivada pela aliança entre os
trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base e a chegada do Movimento
dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra em Mato Grosso.
Processo que se apresenta, neste trabalho, concomitante aos contextos
políticos e econômicos atuais do município de Mirassol D’Oeste, para
que seja compreendido o sentido da luta por terra e trabalho nas ter-
ras do agronegócio, com olhar específico sobre o assentamento Roseli
Nunes, que se situa, em maior parte, no município de Mirassol D’Oeste,
estabelecendo com ele suas relações político-administrativas.

Constituição histórica das condições da luta dos


camponeses
Esta vasta capitania, pela sua situação geográfica sempre foi consi-
derada como a grande reserva do Brasil, pois abrange as divisões in-
ternas desta imensa área do novo continente, berço de seus maiores
rios, que se desdobram em inúmeros canais, enriquecida com gran-
des e inexplorados tesouros (JOHN MAWE, 1811 apud SEPLAN/
MT, 2011).
Historicamente, a colonização no Brasil tem se constituído na al-
ternativa escolhida pelas classes dominantes para evitar, simulta-
neamente a necessária reforma estrutural do campo e, ao mesmo
tempo, suprir-se de força de trabalho para seus projetos na frontei-
ra. Dessa forma, a abertura das novas frentes de ocupação na Ama-
zônia sempre trouxe consigo este caráter contraditório da formação
da estrutura fundiária brasileira no interior da lógica do desenvol-

 110
vimento capitalista. Assim, o processo que leva os grandes capita-
listas a investirem na fronteira contém o seu contrário, a necessária
abertura dessa fronteira aos camponeses e demais trabalhadores do
campo (OLIVEIRA, 1997, p. 135).

As citações acima apresentadas situam a contradição que funda o


processo de ocupação das terras e a produção do estado de Mato Gros-
so. Sua explicativa parte da compreensão do processo de avanço do cap-
ital às fronteiras do Brasil, inicialmente impulsionado pelas ações da
Coroa Portuguesa para a defesa das fronteiras da Colonização Espanho-
la; num segundo momento, pelo processo de integração da Amazônia
ao capital internacional e, hoje, pelo avanço do capital monopolista e a
consolidação do domínio de toda a cadeia produtiva do campo a partir
do agronegócio.
Desse modo, segundo Oliveira (1997), é preciso compreender
tanto a sujeição do trabalhador quanto a sujeição da terra ao capital
internacional no Brasil, a participação das elites nacionais e o aprofun-
damento da dívida externa nacional. Compreensão que passa pelo en-
tendimento das ações do Estado na relação com o capital, a partir de
planos e programas, na produção da infraestrutura; disponibilidade de
mão de obra; transferência de terras públicas e subsídios fiscais para a
consolidação da exploração da Amazônia.
Esse processo é aqui contextualizado à luz das análises de dois
geógrafos sobre a realidade agrária mato-grossense: Ariovaldo Umbe-
lino Oliveira e Gislaene Moreno. Duas outras autoras, por sua vez, nos
aproximam da realidade regional: a antropóloga Bernadete A. C. Cas-
tro Oliveira (1998), que discute o processo de travessia camponesa em
Mirassol D’Oeste, e a historiadora Andréia de Cássia Heinst (2003), que
revela como a história dos vencedores subsume a realidade vivida por
todos os sujeitos da história, escamoteando a opressão e violência do
processo de “abertura das terras” de Mirassol D’Oeste.
A orientação analítica constitui-se no processo contraditório de
criação e recriação do campesinato no modo de produção capitalista,
sua permanência na terra e crescimento e na participação da agricultura

 111
brasileira. Para Oliveira (2013; 2007; 2001; 1997), o desafio histórico de
compreender a questão agrária no Brasil sob o modo capitalista de pro-
dução se apresenta a todos aqueles que assumem a necessidade de situar
o papel e o lugar do campesinato, aos povos indígenas e quilombolas na
sociedade capitalista contemporânea, em sua marcha e luta pela terra e
pelo território no Brasil. Desafio de compreender a contradição da su-
jeição dos trabalhadores a cativar (e estar cativo) a terra ao mesmo tem-
po em que buscam o trabalho livre e, portanto, questionam a sociedade
em que vivem e o modo de produção que a viabiliza.
Assumindo a análise do autor, toma-se como pressuposto o desen-
volvimento desigual e contraditório do capitalismo no campo brasileiro,
que simultaneamente atua em direção à implantação do trabalho assala-
riado e desenvolve, de forma articulada e contraditória, a produção cam-
ponesa. Desenvolve-se a partir de seu caráter rentista “pela fusão, em uma
mesma pessoa, do capitalista e do proprietário de terra” (OLIVEIRA, 2001,
p.186), num país em que a propriedade privada da terra é também reti-
da para fins não produtivos, funcionando ora como reserva de valor, ora
como reserva patrimonial.
Para compreender esse processo no estado de Mato Grosso, é
fundamental resgatar dois momentos: a passagem e tomada das ter-
ras públicas e devolutas do Brasil, em especial em Mato Grosso, para o
domínio privado – Moreno (2007) – e a territorialização da produção
monopolista a partir da abertura da Amazônia tanto para os campone-
ses quanto para os capitalistas/proprietários de terra – Oliveira (1997) –,
aqui apresentada junto ao processo histórico de Mirassol D’Oeste.
Segundo Moreno (2007, p. 24), “na medida em que a terra é ele-
mento essencial, indissociável e particular de toda atividade agrícola, a
renda fundiária, que é decorrente do seu monopólio, torna-se um con-
ceito-chave para a compreensão do desenvolvimento do capitalismo no
campo”. E este, por sua vez, exige entendimento das diversas formas de
apropriação da renda fundiária, bem como do papel do Estado no uso
capitalista do território, conferindo as condições materiais necessárias
para sua produção e reprodução.

 112
Em meticuloso trabalho analítico de leis e documentos históricos
sobre a história da terra em Mato Grosso entre os anos de 1892 e 1992,
Moreno (2007) aponta, como principais formas legais de distribuição
de terra no território mato-grossense, as seguintes: alienação de terras
devolutas e públicas, por meio da venda direta, via processo de licitação,
ou de concessões do governo; a regularização fundiária, com ou sem a
exigência de concorrência e concedendo ou não o direito de preferência;
e a colonização oficial e particular, segundo a política maior, empreen-
dida pelo Governo Federal, para a ocupação dos “espaços vazios” e sua
integração à economia nacional, especialmente na sua fase recente de
acumulação capitalista.
Durante o final do século XIX, a partir dos atos legitimatórios
das posses da terra, estabeleceu-se o beneficiamento dos grandes pro-
prietários, favorecendo os projetos econômicos do Estado com base
na agricultura, pastoreio e na exploração extrativa vegetal, sobretudo
erva-mate, borracha e poaia. Excluía-se a possibilidade da compra pe-
los pequenos posseiros, pois estes não tinham condições econômicas e
políticas para o desenvolvimento da monocultura estimulada pelo Es-
tado.
O início desse processo de acesso à terra já anunciava os mecanis-
mos utilizados pelo Estado brasileiro, em especial em Mato Grosso, em
sua política fundiária: a burla, o envolvimento político dos responsáveis
pelos serviços de demarcações e registros para fim de transferência
de grande volume de terras aos grandes proprietários e a contradição
necessária do acesso a terra (e expulsão dela) pelos pequenos propri-
etários, condição de sua expropriação, reprodução e produção no modo
de produção capitalista.
Dessa forma, Moreno (2007) explicita como o Estado, por meio
dos processos legislativos, escreve a “história legal da terra em Mato
Grosso caracterizada por uma política de favorecimento à monopo-
lização da propriedade privada da terra”, expressão máxima das “pre-
tensões das classes dominantes que comandaram esse processo por anos
a fio, seja como governantes, seja como beneficiários do poder econômi-

 113
co e político”. Tais beneficiários foram fundamentalmente os interesses
econômicos e político-partidários locais interessados em se manter no
poder e manter seus aliados, assim como beneficiar grupos econômicos
fora do território de Mato Grosso.
Em síntese, a autora situa historicamente esse processo nos se-
guintes momentos: a predominância da política geral de venda de terras
no estado de Mato Grosso (1940-1960), com o objetivo de aumentar
sua arrecadação legitimando grandes posses, reconhecendo inúmeros
domínios particulares – sendo a maior parte grilos; o breve estímulo
para a imigração e concessão gratuita, entre 1822 e 1892, de terras que
não chegaram a 1% das terras alienadas do estado, formando restritos
núcleos de povoamento; a colonização agrícola oficial no Estado Novo
de Vargas, anos 1940, com a promessa de solucionar os problemas do
homem do campo facilitando o acesso à terra aos colonos imigrantes,
objetivando, a partir da Marcha para o Oeste, a política de trabalho-col-
onização como “conquista” do interior do país; o processo de concessão
da colonização às empresas particulares, entre os anos 1947 e 1964, pro-
movida pelos governos estaduais de MT, cedendo áreas destacadas aos
núcleos de colonização do Estado Novo, a partir da política de expansão
das fronteiras agrícolas de Mato Grosso, incorporando-a na economia
nacional e, ao mesmo tempo, visando absorver a mão de obra excedente
do restante do país (esses projetos mais serviram à concentração de ter-
ras do que ao povoamento). Nas décadas de 1970 e 1980, todas as outras
ações repetiram-se inseridas num contexto mais amplo da geopolítica
militar da ocupação da Amazônia.
Moreno (2007) contribui significativamente para essa reflexão ao
esclarecer como a passagem das terras devolutas às propriedades parti-
culares, a partir dos processos de ação discriminatória, retirou a possibi-
lidade de posse da terra pela transformação do devoluto em terra pública.
Assim, as terras públicas sujeitas a regularização passaram por processos
de compra e venda, concedendo ao capital a possibilidade da compra em
detrimento das posses, permitindo que “a discriminação também funcio-
nasse como um ato de expropriação”. (MORENO, 2007, p. 275).

 114
Aspectos históricos de Mirassol D’Oeste
O município de Mirassol D’Oeste foi criado pela Lei nº 3.698, de 14
de maio de 1976, de autoria do deputado Airton dos Reis. A veiculação
de sua história oficial não toca nas questões sobre a terra, tampouco no
processo de exploração da classe camponesa para a expansão do capi-
tal na região. Nos sites oficiais, tanto da prefeitura, quando do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), exaltam-se as iniciativas
de grandes “aventureiros”, bons investidores, homens “de bem” e de boa
vontade para viabilizar o processo “civilizatório” em Mato Grosso:
Foi Antonio Lopes Molon que fundou o núcleo que deu origem ao
atual município de Mirassol D’Oeste. Por volta de 1958, Molon co-
meçou a interessar-se por terras em Mato Grosso e investiu todo o
seu capital nesta região, requerendo terras devolutas por meio do
Departamento de Terras do Estado. A seguir decidiu dividir a gleba
em lotes rurais e urbanos. Molon montou um escritório de venda
de terras, no local da futura Mirassol de Mato Grosso. Para melhor
gerir os negócios associou-se a Mário Mendes, José Lopes Garcia,
Nírcia Lopes D’Áuria e Paulo Mendonça. A cidade ganhou esta de-
nominação em homenagem aos familiares de Molon, que residiam
na cidade de Mirassol, no Estado de São Paulo. O termo D’Oeste foi
acrescentado para que não fosse confundido com o município de
Mirassol, no Estado de São Paulo. (IBGE “Cidades”, 2013).

Heinst (2007), a partir de documentação jornalística e materiais esco-


lares do município de Mirassol D’Oeste, demonstra como os mecanismos
de dominação se realizam a partir da oficialização da história burguesa, a
história dos vencidos, a ser seguida e reproduzida:
A partir do final de 1980 e início de 1990 são produzidos, na pró-
pria localidade, textos escritos, dirigidos especialmente às escolas
do município, sobre a história da cidade, as apostilas municipais e
dois livros publicados. Nesses textos, inquieta e chama a atenção,
o modelo de história utilizado para criar e fixar a ideia de que o
município é um lugar que, desde sua formação, já nasceu “predes-
tinado” ao progresso. Suas terras são representadas como férteis e
produtivas e as pessoas apresentadas como pioneiras são conside-
radas aquelas que se estabeleceram inicialmente na localidade. Tais

 115
pessoas são descritas, nesse discurso, como os que trabalharam bem
a terra, souberam aproveitar a fertilidade do solo, tornaram-se prós-
peros proprietários, transformando a cidade também em próspera,
portanto, são verdadeiros heróis. Para tanto, os interesses que ela-
boram a produção escrita sobre a história de Mirassol D’Oeste e que
estabelecem um tipo de memória - a memória do vencedor - tomam
como ponto de partida aquele que deve fazer parte dessa memória:
o pioneiro. Selecionam esses indivíduos que, via-de-regra, têm uma
história de ascensão sócio econômica e, ao mesmo tempo, excluem
a multiplicidade das experiências vividas quotidianamente pelas
pessoas que fizeram parte da chegada e vivenciaram o duro trabalho
de abertura da área, tomando como parâmetro apenas o par pro-
gresso/pioneiro. Consequentemente, os pioneiros apresentados são
sempre pessoas voltadas para o trabalho com a terra. Essa história
que busca as origens, para dar tons de verdade a certos interesses do
presente, encontra na figura do paulista o pioneiro mais ajustado
aos interesses de fixar uma história de progresso para o Estado. Sen-
do assim, elegem o paulista que se deslocou para Mato Grosso como
herdeiro dos grandes bandeirantes, responsáveis por seus locais de
origem, as regiões Sudeste/Sul, regiões, segundo tais discursos, mais
desenvolvidas que os demais Estados do país (HEINST, 2007, p. 3,
04-05).

A aproximação inicial da história do município sugere que o Sr.


Antonio Lopes Molon era dono da Imobiliária Mirassol e promoveu,
a partir de pedido de “regularização” de terras devolutas, o projeto de
colonização particular na região. Segundo Oliveira (1998) é preciso, no
entanto, ir mais fundo para compreender o processo histórico da ori-
gem jurídica das terras desse município, fruto de antiga Sesmaria: a da
Vacca Morta.
Posteriormente à passagem do poder de regularização e validação
das sesmarias para o domínio do Estado, após a Constituição de 1891,
elucidada por Moreno (1999), essas terras foram alvo de disputa en-
tre os interesses políticos locais, além do forte interesse do capital es-
trangeiro na exploração de recursos naturais, por meio de atividades
como o garimpo de ouro, e também do interesse nacional para o res-
guardo de suas fronteiras. Portanto, ao mesmo tempo em que há a ab-

 116
ertura para o processo de colonização visando a integração do país, há
também a corrida pelo acesso à propriedade da terra e incorporação de
terras ao mercado nacional.
Essas terras não eram, entretanto, despovoadas; ali habitavam in-
dígenas, quilombolas e também antigos posseiros, até mesmo descen-
dentes de ex-bandeirantes, que compreendiam a inserção destas terras
na nação de outra forma, pois seria preciso, a partir do poder do Estado,
que “a lei nova (a revolução)” viesse a obrigar “toda gente a entrar para
a nação do Brasil” (fala de Seu Melanias – velho cuiabano descendente
de paulistas que povoaram Mato Grosso, citada por OLIVEIRA, 1998,
p. 67).
A história contada nos sites do Estado escamoteia os processos
de expropriação dos povos residentes sob a égide da valorização do
avanço e da modernidade produtiva com poder civilizatório. Subsume
as relações de trabalho que se estabelecem e, portanto, a sujeição do tra-
balhador e a sujeição da terra ao modo de produção capitalista.
As histórias “oficiais” não expõem os mecanismos para estimular
o desenvolvimento regional e, ao mesmo tempo, atrair a mão de obra
barata de outros pontos do país, como no caso da construção da ponte
sobre o rio Paraguai, no município de Cáceres, em 1960, e os projetos
de colonização, federal e estaduais, dos anos 1950. São escamoteados
seus sentidos políticos e econômicos como os incentivos fiscais à colo-
nização do centro-oeste para a ocupação da Amazônia, ou melhor, para
o avanço das fronteiras da produção capitalista e da entrada do capital
internacional no Brasil, que viabilizaram o processo de estruturação e
consolidação do capital monopolista em Mato Grosso. Para revelar to-
dos esses sentidos e significados e para que possamos compreender os
motivos que levaram os diversos paulistas a migrarem “trazendo consi-
go muitos sonhos a serem realizados na região”, exige-se a história dos
não vencedores.
Dessa forma, a partir de Oliveira (1998), compreendemos que par-
te desses paulistas – camponeses expropriados das terras, já em mãos

 117
dos grandes latifundiários produtores de cana-de-açúcar e café, migrou
em busca de terra e trabalho, em decorrência de inúmeros conflitos,
no noroeste paulista, entre os anos 1950 e 1960, como arrendatários
que lutavam junto ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao Fórum
Nacional do Trabalho (FNT) e a lideranças sindicais por seus direitos
trabalhistas. Buscavam, por meio de seu processo migratório, “a pos-
sibilidade de recriação do modo de vida camponês, uma vez que es-
sas famílias ao migrarem, reconstruíram a condição social de sitiantes,
portanto, passaram pela crise e superação, negando o destino à prole-
tarização”. (OLIVEIRA, 1998, p.13). Mais tarde, esse processo de luta
geraria os conflitos em torno da área que se tornaria, nos anos 1980,
o assentamento de Mirassolzinho. Conflitos que não podem ser com-
preendidos fora do movimento histórico do Brasil dos anos 1950 com
as Ligas Camponesas1.
Segundo Oliveira (1998), nessa região o movimento deu-se a par-
tir de muitas mudanças na agricultura: a expansão das fazendas de gado
(anos 1960), como extensão da atividade pecuária do oeste de São Pau-
lo, fortalecida pela entrada do gado, já em tempos coloniais, na região
de Cáceres; o aumento do fluxo migratório, nos anos 1960 e 1970, de
camponeses das regiões Sul e Sudeste; o alto crescimento populacional
urbano da região do Alto Guaporé-Jauru (anos 1970-80); a expansão
dos chamados empreendimentos agropecuários (anos 1970 e 1980),
alavancados por planos e programas federais para o desenvolvimento
econômico por meio de incentivos fiscais; as derrubadas da mata e cer-
rado com o crescimento da agricultura, mais pela expansão espacial do
que por sua modernização.
O forte incentivo da “Marcha para o Oeste” e a abertura das vastas
áreas de terras públicas e devolutas aos grandes proprietários de ter-
ras, e também aos posseiros, estabeleciam a contradição que marcou a
região, pela ideologia e pelas ações do Estado, dos propalados “vazios
1
Movimento social camponês, surgido nos anos cinquenta, no Engenho Galileia, em
Vitória de Santo Antão, Pernambuco. Essas ligas existiram até 1964, ocasião em que fo-
ram desmanteladas pelo regime militar instalado no país, e seus dirigentes condenados
à ilegalidade e perseguidos.

 118
demográficos e vazios econômicos”: a abertura da área para os proje-
tos agropecuários e a colonização dirigida (públicas e privadas), esta-
belecendo relação direta entre as áreas de interesse do capital nacional
e internacional para resolver os problemas da contingência da mão de
obra não absorvida nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste e diminuta na
Amazônica.
Esse processo também deve ser compreendido a partir da pas-
sagem das terras devolutas a terras privadas, como assinala Moreno
(2007, p. 276):
As vítimas mais visíveis desse processo foram e têm sido os lavrado-
res ou camponeses que, na recusa de se tornarem proletários, ten-
tam se reproduzir como trabalhadores livres em outros lugares, por
meio da posse de terras devolutas, indígenas ou privadas. Também
são vítimas do mesmo processo de expropriação os povos indíge-
nas que sistematicamente, foram e têm sido massacrados, escravi-
zados, espoliados e dizimados. No auge da expansão da fronteira
econômica em toda a Amazônia Legal, exacerbou-se o processo de
expropriação, tornando mais acirrada a luta destes povos contra o
capital, pois afigurava-se uma luta entre desiguais, envolvendo, de
um lado, índios e ou posseiros e, de outro, latifundiários, empresá-
rios ou grileiros.

Paulo Mendonça, proprietário das terras loteadas e vendidas para


formar a cidade de Mirassol D’Oeste, em entrevista a Heinst (2003),
esclarece e contextualiza diversos pontos do processo de aquisição de
terras na região, abordados por Moreno (1999; 2007). Mendonça ex-
plicita a preocupação com as movimentações camponesas dos anos
1950/1960, diante da ameaça de João Goulart da realização de ampla
reforma agrária, que culminou na expulsão dos camponeses do Sudeste,
de diversas maneiras, até mesmo com a ajuda do “patrão”, que lhes ofere-
cia dinheiro para comprar terras distantes. Esclarece ainda a prática de
aquisição de terras por familiares, a formação de grandes áreas, a política
de especulação da terra e de sua valorização. O entrevistado também toca
nas estratégias de favorecimento e envolvimento de pessoas ligadas ao
governo, conforme registra o pesquisador entrevistador:

 119
[...] terra aqui não era devoluta. Essa família Saraiva fez os requeri-
mentos, cada membro da família recebeu um título de aproxima-
damente 2.000 hectares e, eu adquiri esses títulos. Esse pedaço de
terra pertencia a Eurico Saraiva, Alírio Saraiva e mais os irmãos e
cunhados [...]. Cada título era de 2.000 hectares, era nove [...] en-
tão eram 18.000 hectares aqui meu. Mato Grosso tinha muita terra
barata, ainda tava saindo daquela fase do devoluto para o terreno
titulado né, então comprava bastante terra com pouco dinheiro [...]
(HEINST, 2003, p. 46).
Aqui aconteceu o seguinte; nessa região aqui, antes de eu vir com-
prar, veio trabalhar um agrimensor francês que fez amizade com
gente importante de Cuiabá. Então ele descobriu essas terras aqui
e requeriu para essa família Saraiva. Edio Otolfo por exemplo, é mé-
dico da Santa Casa de Cuiabá, é cunhado do Arnaldo Saraiva que
é irmão do Eurico Saraiva, essa família Saraiva, gente de bens em
Cuiabá. Por meio do conhecimento do pessoal do estado e o enge-
nheiro agrimensor fazendo o levantamento dessas terras para aten-
der o pessoal, que aí compra isso aqui por requerimento. Nem sabia
onde era! E aí o engenheiro dava informação. Então aconteceu o
seguinte, os amigos compravam essa terra aqui que era muito
boa. O Luiz Ambrózio era advogado ali em Cáceres, foi prefeito,
era pessoa bem colocada, ele comprou dez mil hectares por meio
de requerimento, não custou quase nada. [...] Comprei também
do senhor Aurélio, do Cartório do 1° Ofício de Cáceres, o homem
é cacerense de nascença, então quer dizer, o pessoal, os amigos,
os mais chegados, adquiriram essas terras todas do Estado por
meio de requerimento, quase de graça, depois me venderam [...].
(HEINST, 2003, p. 51). (Grifos nossos).

Na entrevista, afirma ainda que as terras eram muito baratas


em relação às terras do Sudeste: “ao redor desse plano de Mirassol
eu comprei mais ou menos cinquenta a sessenta mil hectares [...] eu
vendia um alqueire em São Paulo, com aquele dinheiro eu chegava e
comprava aqui, cem alqueires. Vê que aqui era barato e lá era caro de-
mais”. Demonstra, assim, como era possível adquirir terras melhores
a partir da prática de títulos voadores, mas afirma não ter utilizado
essa prática. No tocante à relação entre Estado e iniciativa privada, o
antigo proprietário do projeto Mirassol reclama do descaso do Estado

 120
nos projetos de colonização privada dos anos 1950/60, apesar da pro-
moção da aquisição de terras.
Observamos que a região sudoeste de Mato Grosso (antes conheci-
da como Vale do Guaporé) teve seu processo de ocupação iniciado ain-
da no século XVII, com a marcha bandeirante à procura de ouro. Num
segundo momento, foi intimamente ligada ao processo de passagem das
terras devolutas às terras privadas de Mato Grosso e o avanço do capital
nacional e estrangeiro com vistas não só ao estabelecimento dos proje-
tos agropecuários; mas, antes de tudo, atrás da renda privada da terra,
ao mesmo tempo em que houve a abertura aos camponeses expropria-
dos das diversas regiões do Brasil. Inseriu-se no eixo dos projetos ofici-
ais de colonização, nos focos de conflitos, representado especialmente
pelo conflito de Mirassolzinho, contudo não contou com os projetos de
colonização privada acompanhados pelo Estado, que se concentraram
na região norte/nordeste de Mato Grosso e no eixo da BR 364.
Esse contexto sugeriu a fundação de Mirassol D’Oeste a partir de
processo de colonização particular especulativa, estimulada pelo estado
de Mato Grosso nos anos 1950 e 1960, a partir da ocupação dos “vazios”.
Como apontado por Paulo Mendonça, especulador imobiliário que, a
partir do processo de requisição de terras devolutas ao estado de Mato
Grosso, realizou sua própria colonização com a venda de terras na re-
gião:
A intenção minha não era fazer loteamento, nem imobiliária, meu
negócio é criar boi, e só isso. Eu resolvi lotear porque no primeiro
ano que eu cheguei aqui, eu vim na época das águas, cheio de ribei-
rãozinho aí, cheio de peixe. Eu voltei na seca só tinha peixe morto,
secou tudo. Aí eu consultei um geólogo de Cuiabá, e ele falou: en-
quanto tá coberto de mato segura uma aguinha, mas quando tirar a
mata vai secar tudo e vai acabar. Então, vou lotear e vender, quem
tem a área pequena fura um poço, bebe água, dá água para vaca.
Agora eu vou dar água para dez mil bois? Quer dizer, aí eu comecei
a vender, o pessoal começou a abrir. [...] Então vamos marcar aqui
uma cidade, fazer um loteamento aqui de cidade. Ao redor vamos
fazer de chácara. Então vamos tirar 400 alqueires, tira 40 para a ci-
dade, 360 em chácaras. [...] eu tinha uma equipe de agrimensores

 121
para cortar o terreno, então o pessoal vinha aqui, a gente andava e
procurava a terra que servisse para aquele indivíduo. Ele determina-
va a quantia, a área que ele queria adquirir e o agrimensor cortava,
então foi feito de acordo com a possibilidade do comprador, podia
comprar cinco alqueires, dez, cinquenta, duzentos, era de acordo
com a possibilidade [...] pra vender eu tinha que trazer gente de lá,
vender picadinho, pra vender fazenda, dois, três, quatro mil alquei-
res já dava trabalho [...]. Foi feito na época o mapa, dividi os lotes
em chácaras de um alqueire e a pessoa comprava o que podia pagar
[...]. (Entrevista de MENDONÇA, citada por HEINST, 2003, p. 64).

Em processo orientado pelo sentido especulativo e de valorização


da terra, o importante era lotear, o que pôs pequenos produtores em
situações problemáticas. Não havia condições efetivas para o desen-
volvimento de qualquer atividade produtiva; tampouco a preocupação
com a infraestrutura mínima de acesso aos lotes; somente a área central
da cidade era “limpa”; o resto era mata.
Sendo a região da Grande Cáceres área de fronteira, e a BR 364
sua maior via de acesso, seu processo de ocupação atrelou-se às políti-
cas econômicas nacionais e internacionais, de integração nacional da
Amazônia, promovidas pelo governo militar e até hoje em franco desen-
volvimento. Essas políticas apresentam relação direta com os programas
de desenvolvimento das fronteiras amazônicas dos anos 1970/1980
(PIN, POLOAMAZÔNICA, POLOCENTRO), a partir da integração
nacional de capitais da região norte, como Porto Velho, Manaus, Boa
Vista e Rio Branco, e de integração internacional a partir da construção
da estrada que liga Cáceres a Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, e da
Rodovia Panamericana (que a liga ao Porto de Arica no Chile), visando
a passagem para o Oceano Pacífico.
Essa rota é ainda hoje valorizada para o escoamento de produtos
primários nacionais, como vemos no “Plano de Desenvolvimento do Cen-
tro Oeste (2007-2020)” (BRASIL, 2007), sobre a necessidade da implantação
das rodovias Transoceânica, Anel regional-internacional (Goiânia-Campo
Grande-Cuiabá-Santa Cruz-Salta e Assunção) e em projetos de iniciativa
de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) que

 122
viabilizam a ligação continental e a saída para o Pacífico. O foco é atingir
o mercado asiático e facilitar a conexão por terra entre os dois oceanos
(Pacífico e Atlântico), desenvolvendo “forte integração físico-territorial e
logística, que ampliará o comércio regional” (BRASIL, 2007).
Tal contexto foi reforçado por Oliveira (1998), ao explicar que alta
soma de recursos do POLONOROESTE foi distribuída em municípios do
Vale do Guaporé (região sudoeste do estado de Mato Grosso), atendendo,
ao mesmo tempo, aos interesses geopolíticos de integração e de alargamen-
to das fronteiras, proporcionando o desenvolvimento econômico especial-
mente em Araputanga e Mirassol D’Oeste,
onde as fazendas de soja e gado se expandiram, concentrando
terra e onde as propriedades já pertencem às classes das médias e
grandes. É nesse sentido que, posseiros e colonos aparecem como
“amansadores de terra” e fornecedores de mão de obra e gêneros
alimentícios ao grande empreendimento rural, possibilitando a va-
lorização das terras e apropriação do trabalho camponês. (OLIVEI-
RA, 1998, p. 35).

Mirassol D’Oeste atualmente


Conforme aponta Oliveira (1997, p. 328), a consequência do pro-
cesso de avanço do capital na Amazônia brasileira aprofundou a con-
centração fundiária nessa região, agregando os “maiores latifúndios que
a história da humanidade já registrou”. Contraditoriamente, registra-se
“o crescimento e participação significativa dos posseiros na história da
ocupação da região”, não só em seu processo de ocupação, como também
em seu processo produtivo. É o que veremos no município de Mirassol
D’Oeste, onde está situada a maior parte do assentamento Roseli Nunes.
Considerando os diversos trabalhos de campo, a interlocução com
os camponeses e a análise dos diversos índices estatísticos apresentados
pelo IBGE (censo populacional, 2010 e agropecuário, 2006); documentos
produzidos pelo estado de Mato Grosso (Secretaria de Estado do Meio
Ambiente – SEMA, 2013 e Secretaria de Estado de Planejamento – SE-
PLAN, 2011) e pelo Governo Federal (Plano Territorial de Desenvolvi-
 123
mento Rural Sustentável - BRASIL, 2010 e Plano Estratégico Centro Oes-
te – BRASIL, 2007-2020); Mirassol D’Oeste situa-se entre os municípios
expressivos no contexto econômico da “Grande Cáceres”, ligado às ativ-
idades agropecuárias e estabelecendo nova frente de produção de grãos
no estado.
O município de Mirassol D’Oeste compõe região de frontei-
ra com a Bolívia, dista 329 km da capital Cuiabá e margeia a BR-070,
Cuiabá-Porto Velho. Essa região, entre o Vale do Guaporé e a Bacia do
Alto Paraguai (grande parte de bioma amazônico), porção noroeste
da “Grande Cáceres”, apresenta municípios pouco populosos e rurais,
destacando-se Mirassol D’Oeste e Cáceres com 80% de sua população
urbana (BRASIL, 2010, p. 38-39). Em Mirassol D’Oeste busca-se desen-
volvimento econômico a partir da ampliação de sua cadeia produtiva,
visando à atração de grandes investidores, realizando até mesmo certa
polarização econômica com Cáceres.
A população economicamente ativa, segundo dados do IPEA,
apresentados pela Sema-MT (2013), é de 50,9% de sua população to-
tal, com quase 50% de pessoal ocupado em 2010. Segundo os dados
apresentados em cartogramas pelo IBGE Cidades, o município apre-
senta alta taxa de pobreza em relação aos demais municípios do estado:
37,59%.
O quantitativo de pessoal ocupado em estabelecimentos agro-
pecuários é de apenas 2.271 pessoas (um terço da população ocupada)
em 1.335 estabelecimentos, o que representa menos de duas pessoas
por estabelecimento2. Contudo, mesmo as áreas de comércio e serviços
estão voltadas ao desenvolvimento da agropecuária no município. Se-
gundo a Sema-MT (2013, p. 540), a maior parte do pessoal ocupado,
cerca de 12.889 pessoas, desenvolve atividades na área de comércio e de

2
É preciso registrar que, no Atlas do Trabalho Escravo no Brasil (THÉRY et al. 2012,
p. 28), consta que, em Mirassol do Oeste, um foco de trabalho escravo foi identificado
entre os anos de 1995 a 2006, com a liberação de mais de 250 trabalhadores. Em trabalho
de campo, durante conversas informais, soube-se de grupos ligados à Igreja que atuam
ainda hoje na liberação de escravos na região, especialmente no trabalho com a cana-
-de-açúcar.

 124
serviços: 6.525 pessoas; na agropecuária: 1.818 pessoas; em indústria de
transformação (também relacionada à agropecuária, como laticínios e
frigoríficos): 1735 pessoas.
O município aumentou, entre 2000 e 2011, em mais de 40% o re-
banho bovino, 50% do rebanho ovino e apenas 10% do rebanho suíno,
conforme SEPLAN-MT (2012). A análise dos diversos Cartogramas
do IBGE Cidades indica Mirassol entre os municípios de expressão
na produção de gado em Mato Grosso, fundamentalmente no eixo
da Grande Cáceres. Ainda de acordo com a Associação Brasileira das
Indústrias Exportadoras de Carnes (que congrega os grandes grupos
frigoríficos de capital nacional e internacional), do total de 83 plantas
industriais no Brasil, 18 estão em Mato Grosso e 4 estão na região da
Grande Cáceres: Araputanga; Mirassol D’Oeste; São José dos Quatro
Marcos e Cáceres.
Algumas dessas empresas, a JBS e a Brasil Foods S.A., enfrentam
problemas trabalhistas em Mato Grosso e outras partes do país, ampla-
mente divulgados na internet, respondendo judicialmente por várias
denúncias relacionadas, em geral, a “sobrecarga de trabalho”. Situação con-
firmada, durante os trabalhos de campo, pelos camponeses, ao afirmarem
que quem se sujeita ao trabalho nessas empresas está subordinado à su-
perexploração, tanto para quem trabalha entregando sua produção quanto
para quem trabalha nos frigoríficos.
Apoiadas pelo governo federal, essas grandes corporações consolid-
am seu espaço político de produção a partir de reformas estruturais a fim
de aumentar substancialmente sua produtividade, ampliando até mesmo
o processo de desestruturação da legislação trabalhista:
Vivemos um momento em que o governo Dilma aprofunda as re-
formas que visam retirar toda e qualquer legislação restritiva ao
avanço do capital no Brasil, e não encontra nenhuma oposição! [...].
Dá pra ilustrar com exemplos como tais ações que vêm ocorren-
do [...]. A BR Foods, produto da fusão da Sadia com a Perdigão, é
um desses exemplos [...] Ou seja, o capital continua em sua marcha
de concentração, centralização. E o governo apoia. Contraditoria-
mente, vemos que uma parte dessas empresas brasileiras que vão

 125
se tornando mundiais têm dinheiro dos fundos de pensão das es-
tatais. É uma coisa curiosa, pois assim os próprios trabalhadores
se tornam ‘interessados’ no fortalecimento de tais empresas. É uma
espécie de nova soldagem da relação capital-trabalho, de forma a
mostrar ambos como duas faces da mesma moeda. E penso que as
contradições na relação capital-trabalho vão se aguçar, pois, inevita-
velmente, o país terá posto na pauta política a discussão da questão
previdenciária [...] É só olharmos o item principal das medidas na
Europa no momento de crise: retirada das conquistas sociais dos
trabalhadores. O governo ainda não implementou tais políticas,
mas inevitavelmente vai fazer isso no ano que vem, principalmente
se tivermos o aprofundamento da crise mundial. E tudo indica que
ela irá se aprofundar, o que, se ocorrer, impactará o Brasil também.
Aí, tais questões vão aparecer, o que permitirá aos trabalhadores ve-
rificarem de que lado está o Partido dos Trabalhadores. E não tenho
dúvidas de que esse lado é o do capital, não o do trabalho. (OLI-
VEIRA, 2013, n.p.). Disponível em: http://terralivre.org/2012/01/
entrevista-com-ariovaldo-umbelino-pelo-o-correio-da-cidadania/.
Acesso em: 16 dez. 2013.

Não podemos afirmar categoricamente, mas a região da Grande


Cáceres, por sua história, com a presença de muitos assentamentos e
posseiros em luta pela terra, apresenta ainda resistência à entrada total
dessas empresas e das condições de superexploração do trabalho. Dif-
erente de cidades como Lucas do Rio Verde e Nova Mutum, espaços
produzidos brutalmente, com a parceria do Estado, para a consolidação
dessas empresas.
Os camponeses do assentamento Roseli Nunes afirmam que não
vendem sua produção a esses grupos e que, em geral, os assentados
não entregam sua produção de carnes, mas há pequenos produtores da
região que entregam e são superexplorados.
O exemplo dessas parcerias público-privadas ocorreu com o Gru-
po Marques&Caetano (Granja Marques), sediado em Mirassol D’Oeste,
que agrega cinco marcas de produtos alimentícios, como embutidos,
peixes, aves e produtos para nutrição animal. Esse grupo mato-gros-
sense consolidou-se a partir dos fomentos do Estado para médios pro-

 126
dutores, que, aos poucos, expandiram-se e tornaram-se grandes. O frig-
orífico do grupo, na lista do Indea (2012), é o único regularizado no
tocante a “saúde animal” para abatimento de aves. Realiza sua produção
em parceria com os pequenos produtores, mas, assim como na relação
com os frigoríficos de carne bovina, em geral os assentados da região
não comercializam sua produção com essa empresa.
A análise dos números da produção pecuária de Mirassol D’Oeste,
série histórica 2000-2011, de acordo com a SEPLAN (2012), indica a
diminuição do rebanho avícola de galinhas em quase 50% e também
de seus ovos – cerca de 20% de diminuição (produção camponesa para
consumo e venda), pequeno aumento dos rebanhos avícolas (galos,
frangos e pintos) em 2011, apesar de quedas nos intervalos entre os anos
2001 e 2010.
Há trabalhos de análise de economistas que revelam a falta de
“qualidade” da produção de aves na região da Grande Cáceres, em
decorrência da falta de regularização das áreas de abate e criação, ou
seja, insere-se o camponês na produção e busca-se o enquadramento
industrial da produção, porém, como não é alcançado, diminui-se o
valor pago pelos produtos. Assim, a região apresenta “dificuldades”
para sua inserção nas plantas industriais das produções avícolas de
Mato Grosso, especialmente se comparada a outras regiões como o
meio norte, onde estão os municípios de Sorriso, Campo Verde e Lu-
cas do Rio Verde3.
De acordo com a SEPLAN (2012), a produção de leite aumentou
expressivamente neste período. O rebanho de ordenha, na ordem de
6.076 cabeças (2000), passou para 12.560 (2011), e a quantidade de leite
produzida passou de 7.291 (mil litros) para 14.243 (mil litros); ambos
dobraram seu volume. Vale assinalar que o rebanho bovino efetivo do
município é de 132.416 cabeças (2011).

3
Ver artigo de Cleiton Franco et al, 2009. Disponível em: <http://www.sober.org.br/pa-
lestra/13/279.pdf>. O autor assinala ainda subsídios do Estado e o avanço da produção
de aves em Mato Grosso e as fusões para o desenvolvimento de toda a cadeia produtiva
da avicultura.

 127
Segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastec-
imento (MAPA) (s.d.), na região da Grande Cáceres há grande número
de fábricas de laticínios e usinas de beneficiamento de leite: são onze
estabelecimentos. Destes, o grupo “Vencedor” é a maior usina de bene-
ficiamento de leite, confirmando os dados levantados em campo a partir
das experiências dos assentados. O laticínio Vencedor é de um grupo
paulista com sede em São José dos Quatro Marcos, com mais de oito
municípios fornecedores na região.
A produção de leite é estimulada nos assentamentos desde a
elaboração do Plano de Desenvolvimento do Assentamento (PDA): “a
pecuária leiteira não constava no planejamento inicial de muitos mu-
nicípios, sendo que foi amplamente estimulada pelos programas de fi-
nanciamento” (BRASIL, 2010, p. 46), mas tem-se apresentado, forçosa-
mente, como alternativa mais viável e certa de produção. Nesse sentido,
observa-se que o governo federal, a partir do Plano Territorial de Desen-
volvimento Rural Sustentável - Território da Grande Cáceres4 (BRASIL,
2010, p.45-48), aponta o desenvolvimento da produção do leite como
alternativa ao autoconsumo para a modernização do camponês, desde
que se agregue às cadeias produtivas maiores e busque estratégias para o
aumento de sua produtividade.
A expectativa, coincidentemente ao “Plano Territorial de Desen-
volvimento Rural Sustentável - Território da Grande Cáceres5” (BRA-
SIL, 2010), é do aumento da produtividade e da qualidade do leite pe-
los pequenos e médios produtores e, consequentemente, o aumento do
preço e a inserção no mercado internacional. Todavia, ao contrário do
que se anuncia, o programa Leite Legal, sob o rótulo “o que se paga é a
qualidade”, e os mecanismos desse controle certamente favorecerão os
grandes laticínios. Provavelmente diminuirá o pagamento pelo produto

4
Para aprofundar este debate, ver o artigo de Conceição (2013). Estado, Capital e a far-
sa da expansão do Agronegócio. MERIDIANO. Revista de Geografía, número 2, 2013,
p.81-104. – versión digital. <http://www.revistameridiano.org/>.
5
Para aprofundar este debate, ver o artigo de Conceição (2013) Estado, Capital e a far-
sa da expansão do Agronegócio. MERIDIANO. Revista de Geografía, número 2, 2013,
p.81-104. – versión digital. Disponível em: <http://www.revistameridiano.org/>.

 128
bruto por causa do aumento da exploração da capacidade de trabalho
do camponês6.
O gado, ao longo do século XX, constituiu-se como a força
econômica do capital da região da Grande Cáceres, contudo anun-
cia-se a abertura de outra relação: o avanço da produção de soja. A
análise dos dados do Censo Agropecuário de 2006 para o estado de
Mato Grosso, considerando as décadas de 1970 a 2006, indica a aceler-
ação desse processo, inserido no contexto de modernização e monop-
olização do capital na produção do espaço agrário mato-grossense.
Para compreender o processo, faz-se importante apresentar breve-
mente alguns dados sobre o estado, para, em seguida, retomar os da-
dos do município e estabelecer a relação da expansão da produção de
grãos em Mato Grosso.
Em Mato Grosso, houve, entre 1970 e 2006, o acréscimo de 10
vezes o número de tratores, aumentando brutalmente a ocupação
das áreas com a produção de lavouras: de 753.749ha (1970) para
6.865.763ha (2006); aumento de mais de 9 vezes, ou seja, superior ao
aumento das pastagens, uma vez que o aumento de áreas ocupadas por
atividades agropecuárias é de 3,5 vezes. No estado, as pastagens dimi-
nuíram em números absolutos e relativos, pois, de 31.588.303ha, em
1970, passaram para 22.809.021ha, em 2006. O interessante do dado
sobre pastagens é que são somadas as pastagens pecuárias às pastagens
naturais, o que sugere que as pastagens ocupavam quase o dobro das
áreas agropecuárias ocupadas em 1970. A questão é: para assa expan-
são das lavouras, o que diminuiu foram as áreas do gado ou as áreas
do Cerrado?
Segundo a Secretaria de Estado de Meio Ambiente/SEMA-MT
(2013, p. 57), com base nos dados do IBGE, Mato Grosso é o maior pro-
dutor bovino do Brasil, com 12,86% da produção total, contando com

6
O incentivo do Estado para a produção de outros produtos, como, por exemplo, o mel
de abelha, apesar de estar presente em muitos planejamentos para pequenos produtores,
não se consolida no município. Os camponeses do Roseli Nunes reclamam da dificulda-
de de formação técnica para seu desenvolvimento.

 129
27.357.089 cabeças de gado. A maior parte desse rebanho está no Bioma
Amazônia, sendo 22. 809.021 hectares de áreas de pastagens. Da região
da Grande Cáceres, estão, entre os dez maiores produtores de bovinos
do estado: Vila Bela da Santíssima Trindade, Pontes e Lacerda e Porto
Espiridião (Bioma Amazônia) e Cáceres (Bioma Pantanal).
Há forte relação entre o desmatamento e a pecuária. A partir da
leitura dos dados de 1970, quando as matas e florestas representavam
quase 50% das áreas ocupadas, verifica-se que, em 2006, não chegam a
36%. Considerando que essas áreas somam, além das áreas de reserva
legal, as áreas de proteção permanente, tanto no Bioma Cerrado quanto
no Amazônico, observa-se que os estabelecimentos agropecuários não
cumprem minimamente os 35% nas áreas de Cerrado e 80% nas áreas
da Floresta Amazônia, exigidos na Lei Federal 12.651/2012 (o novo Có-
digo Florestal).
No tocante à produção agrícola, Mato Grosso também lidera no
ranking nacional da produção de grãos e oleaginosas. É o primeiro ex-
portador de soja e algodão e o terceiro na produção de arroz. O Bioma
Cerrado é o que aporta a maior produção agrícola, quase 70% do total
do Estado. (SEMA-MT, 2013). Hoje se busca conciliar a consolidação do
desmatamento ao “melhor aproveitamento das áreas” com o avanço da
produção de grãos, fundamentalmente soja, no circuito das commodi-
ties agrícolas.
A partir dos dados apresentados pela SEPLAN-MT (2011), é pos-
sível identificar a desigualdade entre área, volume de produção e va-
lores das colheitas de grãos (geralmente commodities) e os produtos
alimentícios no estado de Mato Grosso. Entre os anos de 2001 e 2010,
enquanto a mandioca aumentou somente cerca de 10% da sua área e
20% da sua produção e o tomate aumentou cerca de 30% em área e
em produção, a melancia diminuiu em ambas, alcançando certa insta-
bilidade ao longo dos dez anos. O milho quadriplicou e a soja dobrou,
em área e produção, acompanhados de aumento do sorgo – plantio de
alternância e preparo para o plantio de soja. Cerca de 70% da produção
agrícola do estado é de soja.

 130
Noutra tabela, com outra matriz de produtos, também se observa
a mesma movimentação. Ainda que haja aumento das áreas e dos volu-
mes de produção de abacaxi, amendoim, feijão, há aumento significati-
vo da cana-de-açúcar, apesar de certa oscilação ao longo dos dez anos, e
manutenção da área e do volume do algodão. Há, no entanto, diminui-
ção expressiva do plantio de arroz no estado, com 40% a menos de sua
área e quase 50% de seu volume de produção. Para a Sema-MT (2013),
a produção de alimentos é, em grande parte, fruto da agricultura fami-
liar camponesa, representando, a mandioca, a banana, o café, o feijão, o
abacaxi, o maior volume de produção. Também são grandes produtores
de borracha. O município de Cáceres é o 4º produtor de mandioca do
estado, sendo este o principal produto atribuído à agricultura campone-
sa na região da Grande Cáceres.
Os dados do município de Cáceres, apresentados pela Seplan
(2011; 2012), a banana teve, ao longo de dez anos (entre 2000-2011),
redução na área produzida e pequeno aumento no volume da produ-
ção. Nesse mesmo intervalo, o tomate apresenta manutenção em área
de produção e queda de 10% em produção. A melancia teve redução em
sua área de produção e oscilação em seu volume de produção, manten-
do, ao longo dos dez anos, entre 150 e 200 toneladas anuais.
Boa parte desses produtos existe nos assentamentos da região para
consumo dos camponeses, e não para comercialização. A comercial-
ização é local, à exceção do algodão e da banana, que tiveram queda em
sua comercialização, mas vem sendo retomada.
Assim como em todo o estado de Mato Grosso, entre 2000-2011 a
área de produção de arroz foi reduzida a menos da metade (de 500 ha para
200 ha) e a produção, de 1.000 para 600 toneladas, o que representa quase
1% da produção do estado de Mato Grosso (687.137 toneladas). O feijão
também teve sua área reduzida, de 250 ha, em 2002, para 150 ha, em 2011,
mostrando a oscilação que pode ser explicada pelo aumento inicial dos
anos de 2003 a 2005, com a fase de estruturação de muitos assentamentos
do entorno. As dificuldades apresentadas em entrevistas, como, por exem-
plo, a falta dos subsídios para o plantio, o uso de agrotóxicos de fazendas

 131
de cana próximas às áreas de plantio de feijão, forçaram o abandono da
produção na região. A crise do preço do feijão em 2007 impulsionou, to-
davia, nova produção, mantendo-a por um tempo e agora apresentando
nova queda. Assim como ocorreu com o arroz, o município foi responsável
por cerca de 2% da produção do estado – 133.813 toneladas –, com 275
toneladas em 2010.
Em dez anos, a mandioca ampliou sua área de produção de 30 ha
para 150ha, aumento de cinco vezes; em volume, aumento de 4 vezes,
passando de 450 para 1.950 toneladas. Além de a mandioca represen-
tar um dos alimentos mais importantes da cultura camponesa em Mato
Grosso, outra possível explicação é a promoção das farinheiras pelo
estado como proposta de consolidação dos assentamentos no começo
dos anos 2000. A produção de cana-de-açúcar aparece registrada a par-
tir de 2003 e sua produção aumenta expressivamente, de 250 ha (2003)
para 5.527ha (2011), mais de 22 vezes, com 469.795 toneladas produz-
idas em 2011, perfazendo cerca de 3% da produção total do estado em
2010 – 14.564.724 toneladas –, indicando sua expansão na bacia do Alto
Paraguai. A produção do milho apresentou forte oscilação no período
apresentado, com aumento entre os anos de 2002 e 2005; queda entre os
anos de 2006; aumento nos dois anos posteriores e agora parece estar
em queda novamente, tanto em área quanto em volume de produção.
A produção de soja no município ainda é pequena; seus registros
aparecem somente no ano de 2003, com área de 800ha, chegando a
1.865ha de área plantada e colhida em 2011, sendo produzidas 1.920,00
toneladas (2003) e 5.819 toneladas, em 2011. Seu valor no município
passou de R$975.000,00 (Novecentos e setenta e cinco mil reais) para
R$3.491.000,00 (Três milhões, quatrocentos e noventa e um mil reais),
por tonelada produzida, demonstrando aumento crescente.
Vale assinalar que, no tocante a relações de trabalho, os municípios
que compõem a Grande Cáceres apresentam fraco processo de arren-
damento, com poucos estabelecimentos usando essa relação; segun-
do dados do IBGE (2006), em Mirassol D’Oeste são somente 5. Caso
se confirme o avanço da produção de grãos na região, é possível que

 132
a prática de arrendamento estabeleça-se como mais um elemento de
desestruturação dos assentamentos.
Todo esse contexto de produção realiza o PIB per capita a preços
correntes de R$15.600,43 (Quinze mil, seiscentos reais e quarenta e três
centavos), situando Mirassol D’Oeste medianamente em relação a out-
ros municípios de Mato Grosso ao ser comparado com grandes PIB,
como o de Sapezal: R$27.202,68 (Vinte sete mil, duzentos e dois reais
e sessenta e oito centavos), onde predominam terras do Senador Blai-
ro Maggi, com forte concentração fundiária (De acordo com o Índice
de Gini, por volta de 0,8, conforme apresentado pelo DATALUTA–MT,
2012). Segundo o sociólogo Inácio Werner, em entrevista à Revista
Unisinos, em 20117:
O latifúndio se renovou e hoje gerencia um moderno sistema cha-
mado agronegócio, que controla as terras e a produção. Dados do
último censo agropecuário de 2006 indicam que 3,35% dos estabe-
lecimentos, todos acima de 2.500 hectares, detém 61,57% das terras.
Na outra ponta, 68,55% dos estabelecimentos, todos até 100 hecta-
res, somente ficam com 5,53% das terras. A concentração das terras
traz um reflexo direto para a agricultura familiar. Enquanto a média
nacional de apropriação é de 33,92% dos recursos, em Mato Grosso
esta fatia cai para 6,86%. Em outras palavras, 93,14% do bolo fica
com a agricultura empresarial. (REVISTA USININOS, 2011).

O recente documento da Secretaria de Estado de Meio Ambiente


(SEMA-MT, 2013, p. 53) relaciona claramente a concentração fundiária
à expansão da produção de grãos, mais especificamente da soja. Mes-
mo reconhecendo a concentração de terras como um problema social,
barreira ao “desenvolvimento sustentável”, não apresenta os dados da
estrutura fundiária do estado e tão pouco discute os mecanismos de sua
produção.
Os dados fundiários da Grande Cáceres (Tabela 1), permitem visu-
alizar a concentração das terras em Mirassol D’Oeste (apenas 13 estabe-

7
Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/45914-do-latifundio-ao-
-agronegocio-a-concentracao-de-terras-no-brasil-entrevista-especial-com-inacio-wer-
ner>. Acesso em: 10 set. 2014.

 133
lecimentos ocupam 59,8% da área do município), ao mesmo tempo em
que indicam alguma parcela de terras nas mãos dos antigos posseiros,
vindos ainda nos anos 1950 (com 19,6% de estabelecimentos em áreas
menores de 10 hectares), e de muitos assentados (com 929 estabeleci-
mentos com área entre 10 e 100 hectares, perfazendo 70% do número
de estabelecimentos do município). Situa-se como o segundo município
com maior concentração de terras dessa região, precedido por Cáceres;
contraditoriamente, também o segundo em número de estabelecimen-
tos próximos ao seu módulo fiscal (80 ha) certamente representado pe-
los assentamentos.
Em Mirassol D’Oeste, são seis assentamentos: Roseli Nunes (331 fa-
mílias); Santa Helena II (53 famílias); Providência I (67 famílias); São Sa-
turnino (112 famílias); Margarida Alves (144 famílias) e Vila Rural Mode-
lo Fitoterápico (25 famílias); com o total de 732 famílias (BRASIL, 2010).
Para refletir sobre a luta pela terra na região, partirmos dos da-
dos do IBGE (2006), que apresenta, no total do estado de Mato Gros-
so, 3,8% de estabelecimentos na categoria produtor sem área declarada,
com 1.016 (unidades). Seriam esses produtores famílias sem terra? Caso
sejam, as mobilizações pelo estado de Mato Grosso mostram número
muito maior.
De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), de
2003 até 2012, foram mais de 15 acampamentos com mais de 8 mil
famílias. As informações da Ouvidoria Agrária do INCRA de Mato
Grosso reiteram informalmente esse número (não há dados publiciza-
dos), confirmando a distribuição de 8 mil cestas básicas, sugerindo no
mínimo 8 mil famílias acampadas. Segundo o Movimento dos Tra-
balhadores Rurais Sem Terra de Mato Grosso (MST/MT), são mais de 2
mil famílias sem terra em luta a partir desse movimento. De acordo com
a FETAGRI–MT, no final de 2012 eram 800 famílias nas proximidades
da Gleba Marzagão I e II, na baixada Cuiabana.
A concentração fundiária em Mato Grosso desdobra-se na luta
pela terra, gerando conflitos, e nos últimos três anos foram mais de

 134
Porto
Jauru

D’Oeste
D’Oeste
D’Oeste

Cabaçal
Lacerda
Cáceres

Lambari

Pontes e
Mirassol

4 Marcos
Município

Esperidião

Reserva do
Pedra Preta
Curvelândia

Salto do Céu
Porto Estrela
Figueirópolis

São José dos


80 80 80 80 80 100 60 80 80 80 80 80 80 Módulo
281
435 269 1.327 502 894 1.241 908 1.335 890 534 470 2.524 Número
Total

85.911 73.296 111.615 139.702 352.011 525.653 276.808 171.035 76.828 102.211 70.169 28.192 1.182.936 Área
55 61 227 88 96 145 98 262 46 63 52 121 285 Número
12,7 22,7 17,1 17,5 10,7 11,7 10,8 19,6 16,4 7,06 9,75 25,7 11,3 Percentual
0a

252 219 1.211 443 327 616 346 1.005 276 330 229 669 1.372 Área
menos 10

0,3 0,29 1,09 0,32 0,08 0,12 0,12 0,6 0,36 0,31 0,33 2,38 0,12 Percentual
252 139 884 252 440 697 501 929 159 688 367 301 1.697 Número
58 52 67 50 49 56 55 70 57 77 69 64 67 Percentual
8.823 4.764 29.588 9.567 16.584 27.627 13.723 27.645 5.269 24.486 13.354 9.117 57.440 Área
10 a - 100

10 6,5 27 6,9 4,7 5,3 5 16 6,9 24 19 32 4,9 Percentual


104 51 200 131 279 302 145 124 60 119 105 46 398 Número
23,9 19 15,1 26,1 31,2 24,3 16 9,29 21,4 13,4 19,7 9,78 15,8 Percentual
100

34.344 14.084 56.156 44.744 96.217 94.257 55.066 33.939 19.572 27.590 28.622 14.472 137.366 Área
a - 1.000

40 19 50 32 27 18 20 20 25 27 41 51 12 Percentual
19 8 16 14 52 49 58 4 11 11 4 2 67 Número
4,37 2,97 1,21 2,79 5,82 3,95 6,39 0,3 3,91 1,24 0,75 0,43 2,65 Percentual

Fonte: IBGE. Censo Agropecuário, 2006.


1.000

27.389 15.286 24.657 20.263 79.105 80.726 92.408 6.108 17.886 16.614 6.305 X 104.969 Área
a - 2500

31,9 20,9 22,1 14,5 22,5 15,4 33,4 3,57 23,3 16,3 8,99 X 8,87 Percentual
3 10 - 11 27 44 23 13 4 9 4 - 75 Número
0,69 3,72 - 2,19 3,02 3,55 2,53 0,97 1,42 1,01 0,75 - 2,97 Percentual
mais
2.500

15.101 38.943 - 64.684 159.776 322.426 115.265 102.338 33.817 33.188 21.659 - 881.789 Área
17,6 53,1 - 46,3 45,4 61,3 41,6 59,8 44 32,5 30,9 - 74,5 Percentual
5034 3894 #### 5880 5918 7328 5012 7872 8454 3688 5415 #### 11757 Média dos acima de 2.500
2 - - 6 - 4 # 3 1 - 2 - 2 Produtor sem área

 135
Tabela 1 - Região da Grande Cáceres-MT: estrutura fundiária em hectares (ha)
24 casos, mantendo-se cerca de 10 até 2013, dois deles na região de
Cáceres (Fazenda Nova Mutum e Fazenda Rancho Verde). Os prin-
cipais casos estão nas regiões norte e nordeste do estado, envolvendo
terras indígenas e acampamentos, além de desapropriações de pos-
seiros e assentados por obras de construção de barragens. Nos últimos
25 anos, foram mais de 110 pessoas assassinadas em MT. Segundo da-
dos da CPT, em 2012, no Brasil, foram 794 casos de conflitos envol-
vendo 81.074 famílias em área de 13.181.559 hectares, indicando que
a luta pela terra ainda é forte.
A análise de Oliveira (2013) questiona a situação das terras no
estado de Mato Grosso e a ausência do Estado na viabilização de as-
sentamentos e na realização da reforma agrária. A partir de dados do
IBGE (2006), Oliveira (2013) expõe que, da área total de Mato Grosso,
90.338.609 hectares, somente 58.231.757 hectares (64%) dessas áreas
são cadastradas, estando o restante em situação de desconhecimento de
sua “natureza”. Deste total de áreas, 56.843.815 hectares (12.557 imóveis)
são improdutivos e 32.106.852 hectares (36%) são terras devolutas.
Nos mapas da distribuição de terras devolutas em Mato Gros-
so por municípios, Oliveira (2013), chama atenção ao fato de que, na
região da Grande Cáceres, os municípios de Mirassol D’Oeste e São José
dos Quatro Marcos, ambos produzidos a partir de projetos de coloni-
zação privada, apresentam de 50% a 90% de suas terras devolutas. Essa
região é também movimentada por acampamentos de luta pela terra,
além de apresentar enorme capacidade de realização de projetos de as-
sentamentos.

Considerações finais
Compreender e identificar as forças que atuam na produção do
espaço regional da Grande Cáceres, em especial no município Mirassol
D’Oeste (MT), vivenciado pelos camponeses do assentamento Roseli
Nunes, conduziram a que paulatinamente fosse possível compreender
as palavras de Oliveira (2001, p. 186):

 136
[...], a chamada modernização da agricultura não vai atuar no senti-
do da transformação dos latifundiários em empresários capitalistas,
mas, ao contrário, transformou os capitalistas industriais e urbanos
– sobretudo do Centro-Sul do país – em proprietários de terra, em
latifundiários. A política de incentivos fiscais da Sudene e da Sudam
foram os instrumentos de política econômica que viabilizaram esta
fusão [...]. No Brasil, esta aliança fez com que, ao invés de a burgue-
sia atuar no sentido de remover o entrave (a irracionalidade) que
a propriedade privada da terra traz ao desenvolvimento do capita-
lismo, atuasse no sentido de solidificar, ainda mais, a propriedade
privada da terra.
Dessa forma, a concentração da propriedade privada da terra no
Brasil não pode ser compreendida como uma excrescência à lógi-
ca do desenvolvimento capitalista. Ao contrário, ela é parte consti-
tutiva do capitalismo que aqui se desenvolve. Um capitalismo que
revela contraditoriamente sua face dupla: uma moderna no verso
e outra atrasada no reverso. É por isso minha insistência na tese
de que a concentração fundiária no Brasil tem características sui
generis na história mundial. Em nenhum momento da história da
humanidade houve propriedades privadas com a extensão das en-
contradas no Brasil.

Contexto que impulsionou – e ainda impulsiona – muitos campone-


ses sem terra a lutar por terra, em busca de melhores condições de vida
e trabalho. Portanto, o trabalho desenvolvido no município de Mirassol
D’Oeste, no Assentamento Roseli Nunes, permite-nos afirmar que a terri-
torialização do capital em Mato Grosso, apesar de histórica, não tem sido
via de mão única, pois tem encontrado resistências camponesa, indígena
e quilombola, intensificando-se assim a luta pela terra e pela Reforma
Agrária no território mato-grossense.

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 139
 140
Vida e Luta Camponesa em Cáceres-MT:
Um Olhar Sobre os Assentamentos
Rurais na Região de Fronteira
Brasil-Bolívia

Tânia Paula da Silva


Doutora em Geografia. Docente na Universidade do Estado de Mato Grosso.

Jacob Binzstok
Doutor em Geografia. Docente na Universidade Federal Fluminense. Campus de Nite-
rói-RJ.

Introdução
Este trabalho é parte da tese de doutorado intitulada “Territórios
de Esperança: o processo de (re)criação camponesa em Mato Grosso”,
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Univer-
sidade Federal Fluminense (UFF), que, por sua vez, se insere em estudo
mais amplo financiado pela Rede Pro-Centro-Oeste, Pesquisa e Ino-
vação CNPq/MCT e do FUNDECT – Rede ASA, intitulado: “Questão
Agrária e Transformações Socioterritoriais nas Microrregiões do Alto
Pantanal e Tangará da Serra/MT na última década censitária”.
Neste capítulo, apresentam-se algumas reflexões a respeito do pro-
cesso de (re)criação camponesa em Mato Grosso, em específico nos as-

 141
sentamentos rurais em Cáceres-MT, região de fronteira Brasil-Bolívia1.
Objetiva-se compreender o campo a partir dos próprios sujeitos, seu
modo de vida e de trabalho, suas práticas para manutenção e perma-
nência na terra conquistada: os assentamentos do território fronteiriço.
Do total de assentamentos rurais implantados no município de
Cáceres-MT (21), verifica-se que, na região da fronteira Brasil-Bolívia,
existem atualmente sete assentamentos rurais devidamente catalogados
pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
cada um com suas especificidades e em diferentes estágios de desenvol-
vimento, conforme se visualiza na tabela 1.

Tabela 1 – Cáceres (MT): assentamentos na região de


Fronteira Brasil -Bolívia
Área Número de Ano de Distância de
Assentamentos
(hectares) Famílias criação Cáceres (Km)
Sapicuá 1.250 39 1999 95
Rancho da Saudade 2.407 47 1997 105
Nova Esperança 1.695 49 1997 105
Katira 1.886 48 2003 110
Jatobá 907 30 1997 115
Corixo 3.414 74 2001 130
Bom Sucesso 433 14 2002 145
Fonte: INCRA/MT, 2011.

A área territorial desses assentamentos é de 11.992 hectares, ocu-


pados por 301 famílias, distribuídas em lotes parcelados e de diferentes
tamanhos (variam de 05 a 25 hectares por família). Segundo Silva et al.
(2012), a maior parte desses assentamentos – resultado de pressões dos
movimentos sociais de luta pela terra em Mato Grosso – se constituiu
a partir de processos de desapropriação para fins de Reforma Agrária e

1
A fronteira Brasil-Bolívia compreende uma faixa de aproximadamente 3423,2 km de
extensão, dos quais 250 km de território brasileiro estão dentro do município de Cáce-
res, sob guarnição do 2º Batalhão de Fronteira contribuindo para a segurança nacional
através dos Destacamentos Militares da Corixa e Fortuna, com atuação no patrulha-
mento e manutenção dos marcos de fronteira na área considerada “Zona Neutra” – faixa
correspondente e a 25 metros para o lado brasileiro e 25 metros para o lado boliviano, a
partir do marco (JANUÁRIO, 2004).

 142
da prática da agricultura camponesa. Esses assentamentos estão locali-
zados a distância de 95 a 145 km da cidade de Cáceres (MT) e a pouco
mais de 20 km da Bolívia, situação que estimula as relações comerciais
com o país vizinho.
Nesse sentido, objetiva-se, por meio de dados coletados em campo
(observação participante, aplicação de questionários, entrevistas e aná-
lise documental), analisar e compreender o processo de luta pela terra
e na terra em Cáceres, e a dinâmica da vida camponesa presente nesses
assentamentos rurais fronteiriços.
Tais reflexões, resultantes de análise da realidade efetivamente
vivida pelos camponeses nesse território, foram complementadas por
nossa experiência profissional em trabalhos de extensão e pesquisa nos
assentamentos rurais dessa região fronteiriça e apoiadas, por sua vez,
pela literatura sobre a agricultura camponesa e os assentamentos rurais
no Brasil, os quais são compreendidos como:
O conjunto de famílias de trabalhadores rurais vivendo e produ-
zindo num determinado imóvel rural, desapropriado ou adquirido
pelo Governo Federal (no caso de aquisição, também pelos Gover-
nos Estaduais) com o fim de cumprir as disposições constitucionais
e legais relativas à Reforma Agrária. A expressão assentamento é
utilizada para identificar não apenas uma área de terra, no âmbito
dos processos de reforma agrária, destinada à produção agropecu-
ária e ou extrativista, mas, também, um agregado heterogêneo de
grupos sociais constituídos por famílias de trabalhadores rurais.
(CARVALHO, 1998, p. 29).

E mais, segundo Feliciano (2006, p. 164), “o assentamento é o pon-


to de chegada da luta camponesa no acesso à terra, ao mesmo, tempo,
seu ponto de partida num processo contínuo de luta para a afirmação
de sua sobrevivência e reprodução como classe social”. Essa definição
do assentamento como ponto de chegada e de partida contribui para
a compreensão de que o acesso à terra não cessa a luta; pelo contrá-
rio, a luta continua em prol da defesa, estruturação, manutenção e per-
manência na terra conquistada. Portanto, a continuidade da luta se dá
agora por políticas públicas voltadas para a produção familiar campo-

 143
nesa, por novas alternativas de renda, por novas formas de produção e
organização do trabalho e pela conquista de direitos necessários à vida
digna (moradia, água, estradas, energia elétrica, educação, saúde, entre
outras) e voltados à realidade do campo.
A esse respeito, Carvalho (2006, p. 164) afirma que:
A luta pela/na terra é sempre e ao mesmo tempo uma luta pela pre-
servação, conquista ou reconquista de um modo de ser e de traba-
lho. Todo um conjunto de valores culturais entra em linha e conta
como componente do modo de ser e viver do campesinato.

Isso significa dizer que os assentamentos rurais, com suas contra-


dições, conflitos, similaridades e diferenças, são territórios de resistên-
cia camponesa, pois se apresentam, para os camponeses, como possi-
bilidade de (re)criação do seu modo de vida, permitindo que eles se
organizem para não serem desterritorializados e proletarizados. Isso re-
vela, entre outras coisas, a persistência camponesa contra as impositivas
do capital e das classes sociais que compõem o bloco no poder, pois os
camponeses lutam não só para entrar, mas também para permanecer na
terra de trabalho2 e de morada da vida3.

Aspectos históricos do processo de luta pela terra em


Cáceres-MT
Cáceres é município do estado de Mato Grosso, situado no pon-
to de confluência entre o rio Paraguai e as rodovias BR-070, BR-174 e
BR-364 e integrante da mesorregião do centro-sul mato-grossense e da
microrregião do Alto Pantanal; faz fronteira do Brasil com a Bolívia e
abrange área territorial de 24.796,8 km2 (IBGE, 2000). A cidade de Cá-
ceres está situada a 215 km da capital do estado (Cuiabá), localizada nas
coordenadas 16º 13’ 42’’, latitude sul, e 57º 40’ 51’’, longitude oeste, a 118
metros de altitude acima do nível do mar (Figura 1).

2
Expressão utilizada por Martins (1981).
3
Expressão utilizada por Woortmann (1990).

 144
Figura 01 – Cáceres (MT): localização do município
Fonte: LABET, 2014.

Fundada em 1778, a cidade de Cáceres sofreu grandes transfor-


mações com as medidas de expansão da fronteira agrícola entre 1950 e
1960. A partir da década de 1970, com as mudanças políticas e econô-
micas no país e a consolidação da modernização da agricultura brasilei-
ra, a cidade de Cáceres sofre outras grandes transformações, que contri-
buíram para o seu desenvolvimento. Entre as mais relevantes, destacam-
-se: a construção da Rodovia Cuiabá-Porto Velho e da Ponte Marechal
Rondon (sobre o Rio Paraguai) e o incentivo à produção pecuária da
região, a ponto de se constituir como um dos maiores polos de rebanhos
de gado bovino do Brasil.
Na atualidade, verifica-se que Cáceres tem sua economia aqueci-
da pela atividade de pecuária extensiva, na região de Pantanal, além de
pecuária leiteira, cria, recria e de corte, no Pantanal e em regiões de rel-
evo mais elevado. A agricultura predominante é de pequeno porte, com

 145
diversas culturas e lavouras para autoconsumo praticadas em pequenas
unidades de produção familiar. Na região da Província Serrana, a nor-
deste, e bem próximo à sede do município, começaram a surgir, no ano
de 2003, as primeiras áreas exploradas para a monocultura de soja e de
teca (Tectona grandis). O município também se destaca porque desem-
penha a função de polo regional nas áreas de saúde, educação superior
e prestação de serviços.
Os movimentos de luta pela democratização do acesso à terra e
combate ao latifúndio na Região iniciaram-se em 1996, quando fo-
ram organizados vários acampamentos, caracterizando a chegada dos
movimentos sociais do campo à região. Cabe ressaltar que a chegada
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) possibi-
litou melhor organização das famílias no processo de luta pela terra.
Desse modo, em 1996, essas famílias, incentivadas pela movimentação
nacional de luta pela terra e organizadas pelo MST, a Igreja e o Sin-
dicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, ambos formadores
das lideranças da mobilização inicial da região, iniciaram as primeiras
reuniões de base de mobilização para a constituição dos acampamen-
tos na região.
Contudo, segundo relato dos camponeses e de militantes do MST,
desde o começo da organização, as famílias foram vigiadas e pressiona-
das para que não ocupassem a terra:
Quando nós decidimos com o coletivo fazer o acampamento aqui
na região, sofremos tudo quanto é tipo de perseguição, teve prisão
de liderança, de camponês, teve di tudo, né? Eu passei alguns meses
preso por conta da nossa organização [...] (MILITANTE DO MST
NO MT, 2013).
Naquela época, quando a gente começou a fazer as reunião de base,
começamos a sofrer ameaças, a polícia já veio com tudo pra cima
da gente, teve muitos companheiros que responderam processo por
conta dessa primeira ocupação, teve muita família que desistiu com
medo das represálias e outros por causa da polícia, nós passamos
por muito sofrimento, mas não desistimos não. (ASSENTADO EM
CÁCERES, 2013).

 146
O acampar era, no entanto, naquele momento, a única possibili-
dade de retorno à terra para as famílias. Assim, a efetivação da primei-
ra ocupação ocorreu na páscoa do mesmo ano, mais precisamente na
data de 08 de abril de 1996, na fazenda Santa Amélia, no distrito do
Caramujo, e contou com a participação de 1.500 famílias. Desta primei-
ra ocupação surgiram dois assentamentos: Che Guevara (que migraria
para a região de Tangará da Serra, originando o assentamento Antônio
Conselheiro) e Margarida Alves (que originou o assentamento de mes-
mo nome, e as famílias excedentes foram posteriormente para o assen-
tamento Roseli Nunes). Em segundo movimento de ocupação, surgiu o
acampamento do Facão, que, posteriormente, gerou os acampamentos
Roseli Nunes e Paulo Freire.
A partir dessas conquistas, outras ocupações e mobilizações fo-
ram sendo realizadas pelos acampados e lideranças da luta, entre elas
a ocupação da sede do INCRA, por motivos diversos: a pressão para a
agilidade da desapropriação de fazendas improdutivas; a agilidade da
definição dos assentamentos; a falta de infraestrutura para a manuten-
ção das famílias acampadas (especialmente nos períodos de pré-assen-
tamento), entre outros. De acordo com lideranças do MST, tais ações
políticas, de mobilização e resistência foram amplamente divulgadas na
mídia mato-grossense, situando de forma explícita o MST como movi-
mento violento de ameaçava a ordem pública e exigia condições para a
continuidade de sua desordem. Ou seja: a mídia propagava a luta como
ação de baderneiros, que objetivava fundamentalmente tomar a terra
dos outros sem ter trabalho algum; essa situação gerou o processo de
criminalização da luta e do Movimento.
Nesse contexto, foram mais de dois anos de negociação entre
MST e INCRA para a compra ou desapropriação de fazendas para
realizar o assentamento das famílias em luta. Em 1998, cerca de 100
integrantes do MST ocuparam o INCRA/MT, representando mais de
mil famílias dos acampamentos da região de Cáceres, especialmente
do Margarida Alves, acampadas desde 1996, para pressionar a conso-
lidação do assentamento. Assim, depois de muita tensão e negocia-

 147
ção, o movimento de luta conseguiu a primeira conquista na região: o
comodato da fazenda Prata, que possibilitava o assentamento de 350
famílias que estavam instaladas no acampamento Roseli Nunes. Veja-
mos alguns relatos:
O comodato da fazenda Prata para assentamento das famílias acam-
padas foi uma das primeiras conquistas da luta organizada pelo
Movimento aqui no Estado. Na época nós estávamos lutando pela
liberação emergencial de três fazendas: a São Saturnino, a Santana,
e a Prata. Realizamos várias mobilizações em prol da liberação e
desapropriação das fazendas para o assentamento das famílias em
luta; pressionamos o Estado, por meio do INCRA, de várias formas,
pois sabíamos que o problema da terra em Mato Grosso é político,
porque o que não falta aqui é terra [...], foram vários anos de luta
para que nossas reivindicações fossem atendidas. (LIDERANÇA
DO MST EM CÁCERES, 2013).
Na época das primeiras ocupações de terra no Estado, nós realiza-
mos muitas mobilizações, pressionamos o INCRA de tudo quanto
é forma para a liberação de várias fazendas na região, buscávamos
uma solução para o conflito, para a realização da Reforma Agrária.
As famílias acampadas vivenciaram situações de extremo abandono,
inclusive tivemos vários problemas com a questão dos alimentos.
Para você ter uma ideia a luta e os conflitos aqui no Estado foram
tão violentos que ganhou repercussão nacional [...], neste processo
o INCRA passa a exercer uma pressão maior sobre os processos de
vistoria de áreas consideradas improdutivas, essa pressão culminou
na liberação da fazenda Prata e de várias outras aqui na região. Essa
foi a nossa primeira grande conquista aqui na região. (LIDERAN-
ÇA DO STTRs de CÁCERES, 2013).

Essas conquistas resultaram em crescente número de assentamen-


tos implantados no município de Cáceres e região. Assim, até o ano de
2011, foram implantados e regularizados, segundo o INCRA/MT, 21
projetos de assentamentos no município, nos quais estão assentadas
aproximadamente 2 mil famílias, em área total de 97.676,32 hectares
(Tabela 2).

 148
Tabela 2 – Cáceres (MT): assentamentos rurais – 1995 a 2006.
ASSENTAMENTOS FAMÍLIAS ÁREA CRIAÇÃO
São Luiz 27 4.033,74 1995
Margarida Alves 142 3.902,00 1997
Nova Esperança 48 1.695,29 1997
Paiol 221 16.067,41 1997
Rancho da Saudade 47 2.407,46 1997
Jatobá 30 906 1997
Laranjeira I 126 10.944,00 1997
Laranjeira II 33 1.210,00 1997
Ipê Roxo 28 1.247,00 1998
Barranqueira 77 2.326,05 1999
Sapicuá 39 1.249,77 1999
Limoeiro 166 8.649,39 2000
Corixinha 71 3.413, 18 2001
Facão 84 1.639,96 2001
Flexas 7 309 2002
Bom Sucesso 14 433,2607 2002
Sadia/ Vale Verde 422 13.666,91 2003
Katira 46 1.886,37 2003
Flor da Mata 22 1.187,07 2004
Arraial Santana - 15.720,00 2005
Facão/Bom Jardim 168 4.782,47 2006
21 Assentamentos 1.818 97.676,32
Fonte: INCRA/MT, 2011.

Cabe ressaltar que esses assentamentos foram implantados pelo


Governo Federal, via INCRA, e são coordenados pelos vários movimen-
tos de luta pela terra no município: MST, Sindicato dos Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais, entre outros. Esses movimentos, em sua maioria,
organizam e desenvolvem várias ações/manifestações em prol da luta
pela terra e na terra no estado, entre as quais se podem citar: marchas,
caminhadas, atos públicos, ocupações de prédios públicos, bloqueio de
rodovias e outras.
Assim, pode-se dizer que, no contexto da região analisada, as áre-
as destinadas aos assentamentos rurais pouco alteraram o quadro pre-
dominante de concentração fundiária – região de grandes latifúndios
voltados para a criação de gado, de forma extensiva –, mas apresenta-
ram mudanças significativas na composição da paisagem e do territó-
rio dessa região fronteiriça, implicando a ressocialização das famílias e

 149
a implantação de novas dinâmicas de organização social, econômica e
política. Além disso, percebe-se também que esses assentamentos rurais
exercem importância significativa na interação com a Bolívia, especial-
mente pelo aumento do fluxo de pessoas com suas práticas sociais e
culturais de integração entre as comunidades.

O modo de vida camponês: família, terra e trabalho


A reprodução social camponesa está baseada na combinação de
estratégias fortemente orientadas pela tríade família, terra e trabalho e,
fundamentalmente, centrada na economia familiar. Nesse sentido, po-
de-se afirmar que o trabalho e a vida na terra são marcados por relações
de solidariedade e reciprocidade, mediadas por laços de família e de
parentesco, tendo como base seus ideais familiares, os valores campo-
neses e suas concepções de mundo, já que “[...] no mundo camponês, a
terra, o trabalho, a família e a liberdade, são elementos importantes: a
terra como patrimônio da família, sobre a qual se realiza o trabalho, que
constrói a família – a terra como valor de uso e não para fins mercantis”.
(SCHREINER, 2002, p. 307).
Autores apontam, em seus estudos sobre o mundo camponês, que,
mais que objeto de trabalho, a terra é o espaço da família, de modo
que não é concebida apenas como patrimônio material, meio de produ-
ção, no qual se projeta o trabalho de um grupo doméstico. É também
patrimônio da família, que extrapola qualquer consideração de ordem
econômica, em que valores simbólicos e culturais estão presentes e são
preservados e transmitidos para as gerações subsequentes.
Chayanov (1974), em seu trabalho “La Organizacion de la Uni-
dad Económica Campesina”, considera que a lógica no mundo campo-
nês é movida por outros valores, sendo diferente da capitalista. Para
o autor, a economia camponesa define-se pela inter-relação entre a
organização da produção e as necessidades de consumo: o trabalho
é familiar e não pode ser avaliado em termos de lucro, pois seu custo
objetivo não é quantificável. Isso quer dizer que a produção das uni-

 150
dades camponesas está voltada para os valores de uso, e não para os
valores de troca:
Portanto, me inclino mais a usar outras hipóteses para explicar teo-
ricamente as peculiaridades organizativas que se observaram – uma
hipótese baseada no conceito da unidade de exploração agrícola
como uma unidade econômica familiar na qual a família, como o
resultado do seu trabalho de um ano, recebe uma simples remune-
ração do trabalho e mede seus esforços em relação aos resultados
materiais obtidos. Em outras palavras, [...] tomamos a motivação
da atividade econômica do camponês não como a de um empre-
sário que como resultado do investimento do seu capital recebe a
diferença entre o ganho bruto e os gastos gerais de produção, mas
como a motivação do operário por um sistema peculiar de salário
ao trabalho que lhe permite determinar por si mesmo o tempo e a
intensidade do seu trabalho. (CHAYANOV, 1974, p. 33).

Apesar de partir de uma ótica econômica4, percebe-se, em Chaya-


nov, que a tríade família, trabalho e terra orientam e dão sentido à vida
camponesa; são categorias que ordenam o mundo rural, como relatam
assentados em Cáceres (MT):
A gente lutou e luta para ter um pedacinho de terra e conseguir dar
uma vida digna a família [...]. Aqui no assentamento todo mundo
se ajuda e busca a manutenção da família e da terra, né? Porque
aqui a gente planta e colhe para comer e dar de comer aos filhos, na
verdade é para sobreviver, né? A gente qué é sobreviver aqui nesta
terrinha, cuida dos filhos, das criação, da nossa casinha, a gente ten-
ta fazer daqui nosso cantinho, né? (ASSENTADA EM CÁCERES,
2013).
Quando a gente chegou aqui no lote tudo era muito difícil, faltava
um monte de coisa, né? Mas a gente tinha uns aos outros, a gente foi
fazendo amizade com os vizinhos, né? Aí um ajudava o outro, um
ensinava ao outro aquilo que sabia, aí todo mundo foi se ajudando e
lutando para isso aqui ficar melhor, pra gente te condições de viver

4
Segundo Woortman (1995, p. 29) a principal limitação da abordagem de Chayanov é
tratar a família a partir de uma ótica econômica e não como um valor cultural. A família
é concebida por ele como “um conjunto de produtores e de consumidores, quer dizer,
uma unidade de força de trabalho e de consumo centrada num casal e seus filhos, aos
quais se podiam agregar outros membros”.

 151
aqui, né? Aí com o tempo as coisas foram melhorando, né? A gente
trabalhava duro na lida com a terra, pra produzir, né? Nesse tempo
também já comprava algumas vaquinhas e ia vendendo o leite, né?
Cuidando das criação [...], a turma toda aqui foi aos pouquinhos se
estabelecendo, foi conseguindo tira da terra o sustento da família, ih
hoje a gente pode dizê que a luta valeu a pena, porque os fios (filhos)
tão criado, a rendinha do leite e de outras vendinhas dá para viver.
Hoje a gente pode dizer que é feliz, porque a gente se ajuda e trabaiá
no que é nosso, né fia? (ASSENTADO EM CÁCERES, 2013).

Tais depoimentos confirmam a análise de Carvalho (2006), Woort-


mann e Woortmann (1990, 1995 e 1997), Heredia (1979), Garcia Junior
(1983), Tedesco (1999), entre outros, sobre o mundo camponês. Segun-
do tais autores, a terra é, para o camponês, patrimônio sociocultural,
ligado a descendência (transmitida de pai para filho, mas pertencente
ao todo, expresso pela família) e condição de realização do sujeito tra-
balhador. Nessa perspectiva, não é possível pensar a propriedade cam-
ponesa, o trabalho na terra, sem pensar na família, pois ambas formam
um todo coeso, sendo a família “unida” extremamente valorizada, pois a
esta característica é atribuído o sucesso da propriedade como um todo.
(SHANIN, 1980).
Ainda segundo Chayanov (1974), o montante de produção em
cada unidade familiar varia de acordo com a estrutura da família, de
acordo com o equilíbrio entre braços para trabalhar e bocas para comer.
Assim:
Cada familia, entonces, según su edad, constituya em sus diferentes
fases um aparato de trabajo completamente distinto de acuerdo com
su forza de trabajo, la intensidade de la demanda de sus necesida-
des, la relación consumidor-trabajador, y la possibilidad de aplicar
los princípios de la cooperación compleja. (CHAYANOV, 1974, p.
55-56).

Essa situação da família camponesa, de trabalhado coletivo, uma


vez que cada pessoa desempenha trabalho útil e concreto, segundo o
momento e a necessidade, em busca de sua reprodução, foi observada
em vários relatos colhidos em campo:

 152
Aqui no sítio todo mundo trabalha, a família inteira desenvolve
uma atividade, a muié cuida do quintal, da horta e das coisas da
casa, os meninos ajudam a mãe com a casa e as criação e eu faço
minha parte na lavoura, com as criação e, quando dá tempo, tam-
bém ajudo nas tarefas da casa e da horta, porque de lá a gente tira
uma rendinha também, né? Então, desse jeito aí que eu to te dizen-
do ninguém fica parado, porque aqui na roça tem sempre serviço
sobrando, tem sempre coisas para fazer, roçar, arar, cuidar do gado,
das plantação, da casa, da horta mas se todos colaboram a gente fica
bem, senão fica como uns e outros aí que os fios (filhos) tão tudo
perdido, que o trabalho no lote no rende, não dá para sustentar a
família [...]. (ASSENTADO EM CÁCERES, 2013).
Então fia, aqui em casa é assim, tem serviço o dia todo, todos os
dias, se a gente não se ajuda o trabalho não rende, a gente não
sobrevive. Os meninos estudam, mas também ajudam na lida da
roça, na casa e ainda sobra tempo para eles se divertir; a muié não
fica parada também não, tá sempre procurando alguma coisa pra
fazer e por aqui tem muita, mas ela lida mais com o pomar, com a
horta, a casa, os animais e, quando precisa, ajuda na roça também;
eu e a véia trabaiamo o dia todo, ela com as atividades que te falei
e com as bolachas, pão e doce que elas fazem lá na associação e
eu na lida da roça, porque no sítio a gente tem muita tarefa para
realizá, muito trabaio pra fazer, mas graças a Deus minha famia
(família) é unida, a gente trabaiá pra gente, então a gente consegue
sobrevive com dignidade aqui nesta terrinha. (ASSENTADO EM
CÁCERES, 2013).

Assim, vê-se que esse conjunto de valores baseados na tríade famí-


lia, trabalho e terra é que “orienta e organiza as relações sociais, as estra-
tégias de reprodução social, a família camponesa, o processo e a organi-
zação do trabalho dentro e fora do grupo doméstico”. (WOORTMANN,
1990, p. 48). E, segundo essa ótica, percebe-se que a lógica econômica
própria da economia camponesa não é movida pelo lucro, mas pela pos-
sibilidade crescente de melhoria das condições de vida e de trabalho da
família, de sua reprodução.
Nesse sentido, Carvalho (2006), em suas análises sobre o mundo
camponês, descreve elementos da especificidade camponesa, relacio-
nando-os e compreendendo-os a partir da sua interdependência, o que,

 153
consequentemente, reforça a teoria sobre a lógica camponesa baseada
na família, na terra e no trabalho e do campesinato como “ordem mo-
ral5”:
A família, seja a família singular seja a ampliada, produtora ou
extrativista de produtos e subprodutos agropecuários, florestais,
pesqueiros e artesanais, entre outros; Acesso (estável ou instável,
duradouro ou temporário, proprietário ou não proprietário) aos
recursos naturais e à terra; Diferentes formas e modos históricos
de apropriação dos recursos naturais ou de relação com a natureza;
Predominância do trabalho familiar direto e de formas diversas de
cooperação interpessoal, interfamiliar e comunitário; A presença de
um território de uso comunitário dos recursos naturais; Produção
e extração para o autoconsumo e para os mercados; Produção e re-
produção de saberes sobre a sua relação com a natureza e formas de
transformação produtiva; Formas de integração institucional (so-
cial, política, cultural, religiosa) que definem os valores e normas de
comportamento que as famílias vivenciam; Assim como as possibi-
lidades de alianças, tensões e contradições que explicam dinâmicas
próprias de transformação social. (p. 264).

Maia (2003), na dissertação de mestrado “Lugar e trecho”, que es-


tuda “migrações, gênero e reciprocidade em comunidades camponesas
do Jequitinhonha”, buscou elementos explicativos para compreender e
demonstrar que boa parte da vida social e econômica camponesa é re-
gida por essa lógica e organizada pelos princípios da reciprocidade e da
ajuda mútua:
A comunidade é um espaço cultural e social mais do que econô-
mico, onde residem formas tradicionais de cooperação vicinal e
solidariedade, que são acionadas pelos indivíduos de acordo com
as necessidades de sobrevivência, com a precisão, e reprodução do
grupo doméstico e da própria comunidade e não, necessariamente,
para economia de mercado. Tais necessidades são, quase sempre,
expressas pela baixa pressão demográfica da família nuclear ou em
momentos da produção que exigem um maior número de força de
trabalho na unidade camponesa, como na preparação da roça e na

5
No Brasil, esta linha de pensamento tem como base os estudos realizados por Woort-
mann e Woortmann 1990, 1995 e 1997.

 154
colheita. Estas formas de cooperação estão baseadas em princípios
de reciprocidade e ajuda mútua, por isso o indivíduo que não seguir
as regras de dívida social da comunidade será marginalizado, po-
dendo ficar em situação de hostilidade e ter dificuldades em receber
ajuda comunitária quando necessitar. (MAIA, 2003, p. 26).

A autora defende a tese de que homens e mulheres são capazes de


reinventar os próprios destinos na busca de soluções que minimizem as
perdas e os sofrimentos, sendo constante, na vida do camponês, a luta
pela terra e na terra em busca de melhores dias, de sonhos e de digni-
dade.
De forma muito contundente, em seus estudos sobre a sociedade
camponesa, Wolf (1976, p. 28-29) afirma a importância da dimensão
familiar ao se analisar a economia camponesa, pois é justamente esse
fator que possibilita a sua reprodução:
[...] o camponês é, a um só tempo, um agente econômico e o cabeça
de uma família. Sua propriedade tanto é uma unidade econômi-
ca como um lar. A unidade camponesa não é, portanto, somente
uma organização produtiva formada por um determinado número
de ‘mãos’ prontas para o trabalho nos campos; ela tem tanto ‘bo-
cas’ para alimentar quanto ‘mãos’ para trabalhar. Além disso, uma
unidade camponesa não estará preocupada exclusivamente com a
alimentação de seus membros; estes deverão ser atendidos com inú-
meros outros serviços. (grifos do autor).

Portanto, para Wolf (1976), assim como para os autores acima


elencados, o campesinato se recria não apenas pelas mãos unilaterais
do capitalismo6, mas também pela sua luta cotidiana e continuada por
reprodução na própria terra; portanto, o assentar-se na terra representa
a possibilidade de transformação da vida em família a partir do traba-
lho. Desse modo, pesquisar e entender o campesinato é compreender
as relações sociais vivenciadas por ele em seu cotidiano, é entender e
compreender seu modo de vida.
6
Uma forma de o campesinato se reproduzir é a partir do efeito do desenvolvimento
– essencialmente contraditório do modo capitalista de produção, pois o campesinato
ao mesmo tempo em que é expulso, perdura (Oliveira, 1997; Almeida, 2003; Paulino,
2006).

 155
Tendo por base essa linha de raciocínio e a análise dos dados co-
letados no trabalho de campo, percebe-se que os assentamentos rurais
estudados têm possibilitado aos camponeses ter um “pedaço de terra”
próprio, não no sentido de ter a propriedade em si (propriedade privada
capitalista), mas pela liberdade que ter a terra significa. Ou seja: ter o
controle e a autonomia do processo de trabalho, notadamente familiar,
como também do seu espaço e do seu tempo, conforme pondera Bom-
bardi (2003, p. 205):
As famílias camponesas elaboram e constroem suas unidades terri-
toriais, primeiro, a partir de suas necessidades básicas. Desta forma,
o tempo e o espaço de que são possuidoras são dirigidos na busca
deste suprimento, não há trabalho inútil ou supérfluo, ou em exces-
so, o trabalho não tem um fim em si mesmo, ele é direcionado para
suprir as necessidades da família, e é dessa forma que cada uma ela-
bora o seu calendário agrícola (do ponto de vista do tempo) e a or-
ganização interna da sua propriedade (do ponto de vista do espaço)
em um movimento tal, que esses dois elementos não lhes aparecem
separadamente, são pensados de forma única.

Em entrevistas nos assentamentos rurais situados em Cáceres


(MT), na região de fronteira Brasil-Bolívia, foram registrados vários de-
poimentos exatamente neste sentido:
Moça pode entrar, aqui você não precisa marcar hora não, a gente
pode receber as pessoas na casa da gente a toda hora, tô em casa,
posso deixar o trabalho para mais tarde [...] hoje a gente não tem
mais patrão, trabalho pra mim a hora que quero. Se você chegar
aqui a qualquer hora a gente vai te receber, não tem que marcar hora
não, viu? Se a gente tiver na roça a gente para e vem conversar ou
a gente conversa na roça mesmo, não tem problema nenhum não,
aqui nós faz nosso horário, graças a Deus, hoje eu faço meu horário
na lida da roça, da casa, do cuidado com as criação, eu sou o dono
da terra [...]. (ASSENTADO EM CÁCERES, 2013).
Olha, fia (filha), aqui eu faço meu horário, a gente tem a liberdade
de plantar e de colher, de acordo com o nosso tempo, sem mando
do patrão [...]. Antes não, antes eu vivia sobre o cabresto do patrão,
tinha hora para tudo, aqui não, aqui graças a Deus a gente faz nosso
horário, e a gente trabalha, trabalha de sol a sol, porque se eu não

 156
plantar eu não colho e aí não tem como sustentá a família, né? Mas a
gente sabe que o fruto do trabalho é nosso, é da nossa família, então
a gente é feliz aqui, porque é deste pedacinho de terra que a gente
tira o sustento da família é, pra mim isso aqui é o céu. (ASSENTA-
DO EM CÁCERES, 2013).

Esses relatos demonstram a importância da autonomia para os


camponeses-assentados, que, após a conquista da terra, podem dispor
do seu próprio tempo e ter liberdade no processo de trabalho, situação
que lhes possibilita escolher seu modo de viver, de realizar suas práticas
e costumes, de se reproduzir como camponês. E mais: é comum, nos
relatos, a relação entre a propriedade familiar e a autonomia do trabalho
como símbolos da liberdade.
Segundo Paulino (2006), não se trata, todavia, de autonomia e li-
berdade absolutas; tampouco se sugere a independência a fatores exter-
nos, já que os camponeses afetam as condições circundantes e são por
elas afetados. Isso quer dizer que a luta dos camponeses por autonomia
e liberdade é desafiada pelo modo capitalista de territorializar o espa-
ço camponês por meio da apropriação do produto do trabalho familiar
camponês na terra. Portanto, nessas unidades territoriais controladas
pelo campesinato, trava-se contínua luta contra a ordem dominante do
território capitalista para criar e recriar-se como camponês.
Nesse sentido, colhemos relatos belíssimos com os camponeses
assentados na região fronteiriça de Cáceres (MT), que expressam justa-
mente essa relação de luta entre ter um “pedaço de terra” e nela conse-
guir produzir e permanecer:
A luta e a conquista da terra para nós é mais que a realização de um
sonho, é a possibilidade de ter um pedacinho de terra onde a gente
possa sobreviver, onde a gente possa plantar e colher os frutos da
terra que sustentam não só a nós (eu e minha família), mas também
a todos que dependem de alimentos para viver, porque é o pequeno
que produz para comer né, o grande só produz pra fora, nós não,
a gente pensa na família, em ter alimentos para dar de comer aos
filhos, as criação, em produzir para viver e conseguir manter nosso
pedacinho de chão [...], esse é o sonho de toda essa gente aqui, todo

 157
mundo aqui que você perguntar vai dizer isso que eu tô te falando,
que ter esse pedacinho de terra aqui é um sonho realizado, é a cer-
teza de que a luta vale a pena, por isso a gente luta e vai continuar
lutando pra fazê desse espaço aqui a nossa casa, a nossa vida, por-
que todo mundo acha que viver aqui é fácil, mas se você pergunta
pros companheiros aí vai ver que não é nada fácil não, a gente tá
feliz com nosso pedacinho de terra, mais ainda falta muita coisa pra
nossa vida ser mais tranquila, ainda temos muito que lutar pra que
a gente tenha direito a saúde, pra que nossos filhos possam estudar
aqui mesmo, sem ter que ir pra cidade, pra gente consegui produzi
e vendê nossos produtos, vixe, fia (filha), pra isso aqui ficá do jeito
que a gente qué, falta muita coisa ainda, mas a gente já tá feliz com
nossas conquistas, com ter um teto para morar e dar de comer aos
meninos. (ASSENTADO EM CÁCERES, 2013).
A gente já enfrentou muita dificuldade, principalmente porque não
tinha dinheiro para nada, então quando eu olho para tudo que já
vivi, e olha que não foi pouca coisa não, eu olho e percebo que a
vida aqui no campo é bem melhor, aqui a gente tem sempre o que
dar de comer aos filhos, tem muita fartura, tem liberdade de ficar,
de produzir, de viver, a vida aqui é mais sossegada [...], e olha que a
gente trabalha, trabalha duro para manter tudo isso aqui, porque a
vida aqui não é fácil não, a gente passa muitas dificuldades, mas aqui
todo mundo se ajuda, todo mundo conhece todo mundo, a gente se
ajuda e se respeita, então temos problemas, temos, mas a gente tra-
balha contente, porque agora a gente tem um lugar digno pra viver e
criar os filhos. (ASSENTADA EM CÁCERES, 2013).

Percebe-se que, apesar das dificuldades vivenciadas na terra con-


quistada, a valorização da liberdade no trabalho, do trabalho familiar e
da terra como morada da vida, assim como a busca de superação dos
mecanismos do capital, que sempre estão a forçar o homem do campo
no tocante à transformação da produção do lote em mercadoria, são
recorrentes nos depoimentos dos camponeses, “o que nos ajuda a en-
tender a ‘persistência camponesa’ em ficar na terra e a ela voltar quando
perdida”. (BOMBARDI, 2005, p. 58).
Nesse sentido, entende-se que não podemos apenas buscar com-
preender o campo brasileiro e, em específico, o mato-grossense, se-
gundo a ótica das condições capitalistas, pois o processo de (re)criação

 158
camponesa vai além das estruturas capitalistas e dos agentes envolvi-
dos na luta. Nele, a lógica camponesa ainda se faz presente, não sem
conflitos, mas engendrada em laços de solidariedade e reciprocidade,
o que tem permitido que as famílias mato-grossenses reproduzam-se e
mantenham-se camponesas na sua terra de trabalho e de (re)produção
de vida.

Considerações Finais
Em face do exposto, podemos dizer que o campesinato é modo de
vida que se reproduz por meio da tríade família, terra e trabalho e que
seu princípio fundamental é a reprodução material e cultural familiar,
por meio da produção para autoconsumo e da venda do excedente dessa
produção. Isso significa dizer que a vida camponesa não é organizada
pela lógica do capital, ou seja, pelas necessidades do mercado, pois não
tem como fundamento principal a acumulação, mas sim vínculos de
solidariedade. É modo de ser, de viver, de pensar, que implica a cons-
trução de relações sociais de produção e o entendimento da terra como
morada da vida.
Nos assentamentos rurais visitados, observou-se que grande par-
te dos camponeses assentados sempre viveu no campo e quase todos,
apesar dos entraves que limitam e dificultam a vida na terra – escassez
de água, baixa produtividade da terra, difícil acesso a saúde, educação
e transporte, dificuldades para acesso aos poucos incentivos governa-
mentais, entre outros –, não pensam em sair do campo. Para eles, a terra
é fruto de processo de luta empreendida pelos camponeses e suas famí-
lias na busca de sua reprodução e de manutenção do seu modo de vida.
Por fim, conclui-se que, para o desenvolvimento integral das fa-
mílias camponesas assentadas em Cáceres (MT), na região de fronteira
Brasil-Bolívia, há necessidade de desenvolvimento de políticas públicas
mais equitativas e integradoras, que visualizem o campo não só como
espaço de produção, investimento e especulação, mas também como
território de vida, de produção e reprodução camponesa. Sobretudo,

 159
porque a pesquisa comprova que, no campo mato-grossense, os cam-
poneses resistem, se recriam e se redefinem de diferentes maneiras ao
longo do tempo; lutam, antes de tudo, por um projeto de vida que tem
como base a tríade família, trabalho e terra.

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 162
Formação da Propriedade Capitalista
nos Campos Mato-Grossense e
Sul-Mato-Grossense: conflitualidade
e Resistência

Mariele de Oliveira Silva


Mestre em Geografia. Docente na Rede Pública de Ensino de Mato Grosso do Sul.

Rosemeire Aparecida de Almeida


Doutora em Geografia. Docente na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Introdução
Este trabalho é parte da dissertação de mestrado intitulada “A (re)
criação do campesinato em Cáceres/MT e no contexto de expansão ter-
ritorial do agronegócio em Três Lagoas e Selvíria em Mato Grosso do
Sul” e de discussões realizadas no Grupo de Estudos Terra e Território
(GETT), na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Câm-
pus de Três Lagoas/MS. O capítulo articula-se ao projeto de pesquisa
“Questão Agrária e Transformações Socioterritoriais nas microrregiões
do Alto Pantanal e Tangará da Serra/MT na última década censitária”,
da Rede Centro-Oeste de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação (Edital
MCT/CNPq/ FNDCT/FAPs/MEC/CAPES/PRO-CENTRO-OESTE n°
31/2010).

 163
Não há dúvidas de que a luta contra a expropriação de terras,
hoje orientada por interesses políticos e econômicos, é resquício de
histórico de concentração fundiária do país, representado pelos gran-
des fazendeiros, grileiros de terra, pecuaristas, grupos industriais, co-
merciais e financeiros, que tentam, em geral de modo violento, como
pondera Grzybowski (1990), calar e controlar as manifestações dos
camponeses.
Pressupõe-se, desse modo, que as ações que visam à criação e o
controle da organização do território constituem-se poderoso meio para
viabilizar a existência e a reprodução da sociedade de classes, campone-
ses e capitalistas, responsáveis por transformá-lo e organizá-lo confor-
me as suas necessidades. Assim, para entender os processos históricos
da luta travada entre esses grupos sociais, propomo-nos, neste texto,
por vias econômicas, políticas e culturais, apresentar os processos que
autodefiniram os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul como
estados do latifúndio, pautando alguns dos caminhos reivindicatórios
da agricultura camponesa familiar perante a ação hegemônica dos pro-
prietários de terra.
Destarte, buscamos apresentar discussões de teóricos que
abordaram, em seus trabalhos, os motivos que teriam levado Mato
Grosso a constituir-se como um dos estados mais concentrados do
país, e, por conseguinte, os processos reivindicatórios dos agricul-
tores familiares camponeses para ter acesso a terra, via movimen-
tos sociais.

Mato Grosso: concentração de terra e poder


Para o cumprimento da proposta teórica e do resgate histórico,
destacamos as contribuições de Moreno (2007) e Corrêa (2006). Para
a primeira, a história da ocupação da terra em Mato Grosso carrega,
em sua gênese, as forças políticas empreendidas pelas oligarquias domi-
nantes na implantação e consolidação da legislação fundiária de 1850,
segundo seus ideais hegemônicos.

 164
Ao analisarmos os arranjos da disputa dos grupos oligárquicos
pelo controle hegemônico do poder político, em Mato Grosso, não po-
deríamos deixar sem registro o cenário violento e armado dos coronéis
e bandidos. O primeiro grupo era representado pelos grandes proprie-
tários rurais, usineiros e comerciantes; o segundo, por grupos de ho-
mens armados e protegidos por esses coronéis.
Inicialmente, nos fins do século XIX, as ações do banditismo
estavam associadas, no norte (área do estado de Mato Grosso), aos
violentos embates políticos liderados pelos coronéis, nas constantes
lutas pelo domínio político e econômico; no sul (atual Mato Grosso
do Sul), eram ligadas à proteção da posse da terra, quando ondas
migratórias intensificaram-se rumo àquela região. Já no primeiro
período republicano, as ações desses grupos correspondiam priori-
tariamente às lutas políticas locais e, posteriormente, negando a tu-
tela dos coronéis, esses homens formaram bandos e agiram de forma
autônoma até meados de 1943, quando suas ações seriam encerradas
(CORRÊA, 2006).
Moreno (2007, p. 49) pondera sobre o poderio das oligarquias:
Após a proclamação da República dois grupos oligárquicos domi-
navam a vida política e econômica de Mato Grosso, alternando-se
no poder a oligarquia do norte, composta por usineiros, extrativis-
tas e pecuaristas, e a oligarquia do sul, composta por grandes pe-
cuaristas e comerciantes, destacando-se os coronéis da Companhia
Matte Larangeira. Estes grupos se aglutinavam em torno dos parti-
dos Nacional e Republicano. Os conflitos gerados entre os grupos
dominantes, em torno da hegemonia do poder político, acabaram
provocando ora alianças entre antigos rivais, ora separação de gru-
pos antes aliados. A ascensão ao poder dependia também do apoio
político do governo federal.

Cabe destacar, diante desse arcabouço, que o coronelismo funda-


mentou-se, sobretudo, na concentração da propriedade privada da ter-
ra, situação que garantiria o controle econômico e político desse grupo,
tanto sobre as camadas mais pobres da população, quanto sobre a su-
posta ameaça de outros coronéis (CORRÊA, 2006).

 165
Aparece também, no viés político, substituindo o poder dos usi-
neiros, o clientelismo, destacando a dominação das elites políticas do
sul, compostas pela oligarquia rural e urbana. Sua principal caracterís-
tica foi a intermediação entre o Estado e a população civil, em que a
garantia de dominação dava-se pelo controle: tanto dos cargos políticos
e administrativos, como dos votos.
Cabe salientar que, em todas as relações políticas, a base susten-
tadora do poder político e fundiário da classe hegemônica oligárquica
esteve ligada à apropriação capitalista da terra, ou seja, em Mato Grosso,
a terra teve a função de salvaguardar o domínio dos proprietários lati-
fundiaristas.
A esse respeito, vale citar as elucidativas palavras de Leal (apud
SILVA, 2008, p. 279):
[...] No cerne da problemática coronelista estava a questão da per-
manência do poder privado, em crescente contradição com a in-
fluencia do poder público. Os remanescentes do privatismo eram,
entretanto, alimentados pelo poder público, em razão do regime
representativo de base eleitoral ampla, que deu uma importância
toda especial ao voto rural. [...] Desse modo, o coronel prestava um
serviço aos políticos estaduais nos períodos eleitorais, arregimen-
tando seus eleitores “de cabresto”, e esperava em troca os favores da
política estadual para o seu município e a sua pessoa.

Sobre a apropriação capitalista da terra por parte dos fazendeiros,


Moreno (2007) ressalta que, além de ser facilitada pelo domínio das oli-
garquias latifundiárias, foi também resultante das concessões de posse
realizadas pela Coroa Portuguesa. Essas concessões foram divididas por
duas etapas: uma que marca o período sesmarial; outra que compreen-
de o auge econômico do Estado no Período Republicano. Na primei-
ra, a Coroa, por meio de políticas colonialistas direcionadas para Mato
Grosso, concedeu, para as empresas colonizadoras públicas e particu-
lares, grandes extensões de terras, com o principal objetivo de garantir
a segurança dos territórios já conquistados. A segunda corresponde às
concessões realizadas para a manutenção dos setores econômicos da
pecuária e das atividades extrativas (borracha, erva-mate e poaia), que

 166
eram lideradas pelos proprietários de terras: fazendeiros pecuaristas e
comerciantes.
Reiteramos que, desde o fim de sesmarias (1822), até a primeira
Constituição da República (1889), as formas de aquisição de terras so-
freram profundas mudanças. É sabido que, na vigência do sistema de
sesmarias, as concessões de posse eram de responsabilidade da Coroa
Portuguesa, e, com o fim desse sistema e a ausência de critério regu-
lador de posses (1822-1850), alguns senhores e possuidores de terras
apropriaram-se, ilegalmente, de áreas ainda virgens.
Com a implantação do sistema federativo, após a promulgação da
primeira Constituição Republicana (1889), as terras passariam, no en-
tanto, para o controle dos estados, ou seja, cada estado ficaria responsá-
vel pela regularização da apropriação territorial sobre as terras perten-
centes aos seus domínios.
Fabrini (2008), ao analisar a conjuntura do poder que se formou
depois da Proclamação da República, revela que, desde o momento em
que a República transferiu seu poder sobre as terras do Estado para as
oligarquias regionais, instalou-se a política de concentração, por meio
das transferências de terras devolutas para grandes fazendeiros e empre-
sas capitalistas. Ou seja: os grupos oligárquicos novamente exerceriam
seu poder sobre as posses de terras. A esse respeito, merece destaque a
seguinte reflexão:
Com a proclamação da república, a política fundiária passou para
a competência dos Estados. A república transferiu o poder sobre
as terras para as oligarquias regionais, que passam a decidir sobre
a sua propriedade dentro do domínio estadual, monopolizando a
sua posse e colocando em prática a política de concentração. Nes-
te contexto, ocorreu a transferência das terras devolutas do Estado
através da venda e arrendamento a grandes fazendeiros e empresas
capitalistas que atuavam no setor. (FABRINI, 2008, p. 60-61).

Segundo o autor, tais fatores contribuíram também para a escolha


de Mato Grosso como via de expansão de grandes fazendas de gado,
com a apropriação privada de imenso latifúndio e implantação de di-

 167
versas empresas de colonização privada. Com a expansão das fazendas,
o desenvolvimento econômico foi estimulado. A expressão “vocação
pecuária” surge nesse viés, sendo confirmada com a construção de um
dos essenciais meios de escoamento da produção, a Ferrovia Noroeste
do Brasil.
Nesse conjunto de expansão de fazendas e implantação de em-
presas colonizadoras privadas, a concentração fundiária liderada pelos
grandes proprietários foi usada também como potencial mecanismo
para evitar o acesso à terra pelos pequenos posseiros. Isso porque, como
mencionamos, com a transferência do poder para as esferas estaduais, a
organização da apropriação territorial passaria também a ser realizada
pelas oligarquias.
Percebemos, desse modo, que, no estado de Mato Grosso, a Lei
acabou sendo empregada para regularizar a posse de extensas áreas do-
minadas por um segmento específico de classe: os grandes proprietários
de terra. Por meio da legalização de posses e concessões gratuitas de
colonização, inclusive a regularização de áreas maiores que o tamanho
permitido em Lei, os fazendeiros pecuaristas alcançaram significativas
áreas, em especial terras dos pequenos posseiros, que acabavam sen-
do expulsos do campo. Segundo Silva (2008, p. 359): “Em longo prazo
não adiantava, portanto, ao pequeno posseiro, a pouca vigilância que se
exercia sobre as terras públicas. Sua permanência nas terras era tempo-
rária e instável; durava apenas até que forças mais poderosas os viessem
expulsar [...]”.
Após os anos de 1970, Mato Grosso presencia novas ondas de ocu-
pação, resultantes dos programas desenvolvimentistas organizados pelo
Governo Federal. O Programa de Integração Nacional (PIN) objetivava,
por meio da Transamazônica, intensificar a ocupação na Amazônia Le-
gal, com dois projetos principais: Poloamazônia e Polocentro. Este visa-
va propiciar a ocupação das áreas do Cerrado viáveis para a expansão da
fronteira agrícola; aquele tinha o intuito de promover o aproveitamento
das potencialidades em áreas prioritárias da Amazônia (ABUTAKKA,
2006).

 168
Ao analisar a questão econômica de Mato Grosso após os anos de
1970, Abutakka (2006) destaca que a pecuária continua sendo um dos
pilares econômicos de alguns municípios, sobretudo nas áreas destina-
das aos assentamentos. Entre os municípios, destaca-se Cáceres, que
possui o segundo maior rebanho bovino efetivo do estado, economi-
camente ligado a três pilares bases: extrativismo (destacando a poaia),
agricultura (familiar e empresarial) e pecuária (produção, criação e dis-
tribuição de gado). As duas últimas sofreram algumas modificações,
mas ainda são predominantes. Esse município mato-grossense é carac-
terizado por conter elevado número de assentamentos.
Destacam-se também, no estado, algumas atividades da agricul-
tura familiar camponesa e da empresarial. A primeira, muito presente
nos projetos de colonização e assentamentos de trabalhadores rurais,
caracteriza-se pela economia de autoconsumo, voltada para a produção
de arroz, feijão, milho, mandioca, hortaliças, pequena pecuária (leite),
entre outros produtos, sendo o excedente destinado a comercialização.
A segunda é marcada pela consolidação do modelo agroexportador da
soja, seguido desde a fase de produção (monocultivo) até o seu proces-
samento nas unidades agroindustriais.
Para Carmo (2012), a consolidação do plantio da soja nessa re-
gião colaborou para a alteração do processo de modernização em outras
regiões pertencentes ao estado, além de haver sido a responsável por
alterar, em menos de 30 anos, a paisagem do Cerrado para o plantio
de grãos. Outro fator de alteração foi o desaparecimento dos lotes ru-
rais, resultante da mecanização da agricultura, que, dispensando o uso
de mão de obra, contribuiu para o processo migratório dos colonos ali
existentes. Desse modo, ao analisar a introdução da soja, em especial
para exportação, no estado de Mato Grosso, o autor pondera que:
[...] ocasionou inúmeras transformações no espaço agrário. Os pro-
prietários de terra que não conseguiram modernizar a produção e
acompanhar os rumos do mercado agroindustrial acabaram falindo
e vendendo suas terras para outros proprietários que estavam al-
cançando êxito. Este processo ocasionou o surgimento de grandes
empresários rurais no estado, entre eles, se destacou André Maggi,

 169
que chegou a ser considerado o maior produtor individual de soja
do mundo (CARMO, 2012, p. 56-57).

Piras (2013), também ao analisar a expansão da fronteira agrícola e


a industrialização da agricultura no estado de Mato Grosso nas décadas
de 1970/80, destaca a instalação de diversas empresas, nacionais e mul-
tinacionais, no setor sojífero, marcada pela transformação das antigas
formas de produção no campo por meio da mecanização. Segundo a au-
tora, com a instalação dessas empresas, várias cidades transformaram-
-se nas capitais nacionais da soja. Merecem destaque aquelas onde os
domínios territoriais são liderados pelos grandes grupos controladores
dos processos de circulação das mercadorias para a produção e dos pro-
dutos da agricultura, como Bunge, Cargill, ADM, Dreyfus e Amaggi.
Podemos citar como exemplos de “cidades do agronegócio” os municí-
pios de Lucas do Rio Verde, Sinop, Nova Mutum, Sapezal, Primavera do
Leste, Cuiabá, Sorriso e Rondonópolis.
Essas cidades apresentam sérios problemas em relação à poluição
da água, do solo e do ar, de que derivam sérios riscos à saúde da popu-
lação residente. São muitos os casos de intoxicações por exposição aos
agentes agrotóxicos usados no combate às diversas pragas que atacam
os plantios de monoculturas, os quais estão sendo expandidos para áre-
as próximas ao perímetro urbano. Outro problema é a diminuição da
contratação da mão de obra, por causa da inserção de maquinários no
campo, caracterizando a agricultura sem agricultores.
Segundo Oliveira (2005), o campo mato-grossense é marcado, no
decorrer da década de 1990-2000, pela disputa entre dois grupos: de um
lado, a luta pela reforma agrária; de outro, a expansão do agronegócio
da soja. Este último resultante de política de Estado voltada para os inte-
resses do capital, tais com aquelas ligadas aos subsídios e créditos de in-
vestimentos dos cofres do setor estatal, via BNDES, à isenção de ICMS,
bem como à construção de infraestrutura para facilitar o escoamento
da produção, como rodovias, portos e ampliação de redes ferroviárias
e hidroviárias (capazes de atender à demanda da produção), além do
apoio político explícito do Governo. (PIRAS, 2013).

 170
Destarte, ao mesmo tempo em que o estado é considerado um
dos maiores produtores de soja, assentada na concentração fundiária,
aumenta ali a pressão dos movimentos sociais de luta pela terra. Das
lutas camponesas na região mato-grossense, entre 1994-1999, resultou a
implantação de vários projetos de assentamento. Estes foram efetivados
por meio da política de Reforma Agrária adotada pelo governo de Fer-
nando Henrique Cardoso no seu primeiro mandato, que visava ameni-
zar o quadro de conflito entre latifundiários e camponeses. (LAMERA;
FIGUEIREDO, 2013).
Segundo os autores mencionados, os projetos iniciais de assenta-
mento não tinham a infraestrutura básica para a permanência dos cam-
poneses. Além da baixa fertilidade da terra, faltava pavimentação das
vias de acesso aos projetos, assistência técnica e liberação dos créditos
básicos (custeio e investimento), entre outros itens.
Desse modo, evidenciamos que a apropriação capitalista privada
da terra gerou, além das mudanças territoriais, os conflitos fundiários
com os posseiros e os sem terra, excluídos no processo de moderniza-
ção. A terra do trabalho e da vida contrapondo-se à terra de negócio.
Sobre essa situação, pondera Silva (2011, p. 147):
Em áreas extensas de soja, cana e gado, quem olha não percebe que,
atrás do uso produtivo da terra, há uma face perversa, marcada pela
concentração fundiária, assassinatos, despejos e trabalho escravo. É
nesse cenário de contradições inerentes ao agronegócio que práticas
de resistência se afirmam e anunciam conflitos fundiários. A luta é
por direito à terra de trabalho em contraposição à terra de negócio.
Sendo assim, o agronegócio já carrega em si resistência a uma racio-
nalidade que é nociva à sociobiodiversidade.

A questão agrária no estado resultou inicialmente da especulação


da terra e, posteriormente, da expansão das atividades monocultoras,
em especial aquelas que geram alta apropriação de renda, como soja,
cana, milho e algodão.
Como exemplo das ações de luta pela terra, destacamos o muni-
cípio de Cáceres, que possui considerável número de assentamentos no

 171
estado, um total de 21 projetos, contemplando aproximadamente 1.830
famílias. Atualmente, o município destaca-se devido a participação sig-
nificativa da agricultura camponesa familiar nas Cotas Estatais: Progra-
ma Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Programa de Aquisição
de Alimentos (PAA).
Entendendo que essas cotas têm o objetivo de mitigar os bloqueios
impostos pela lógica do sistema capitalista de mercado à classe campo-
nesa familiar, percebemos que elas têm sido essenciais para a recriação
da agricultura camponesa familiar no município de Cáceres.
Em suma, concordamos com Kudlavicz (2010) ao enfatizar que
esses assentados, ao reconquistarem parcela de terra do território ca-
pitalista, reconstroem sua identidade camponesa. Ao conquistarem o
assentamento, essa parcela do território capitalista, transformada em
projeto de reforma agrária, se converte em terra de trabalho, morada da
vida, garantidora da alimentação familiar e da sociedade:
São camponeses que quando tem a posse da terra (re) constroem sua
identidade, seu modo de vida, livrando-se das imposições e dos pre-
conceitos do sistema vigente e acirrando as contradições na medida
em que se negam a ser meros produtores de mercadorias. Desejam
ser sujeitos do seu presente e protagonistas do seu futuro. Cultivam
a terra a partir dos seus conhecimentos e tecnologias apropriadas às
suas condições financeiras, e adequadas às características da região,
produzindo um alimento saudável para a sua família, para a comu-
nidade e para o país. (KUDLAVICZ, 2010, p. 104).

De Sul de Mato Grosso a Mato Grosso do Sul: a formação


de um “novo” Estado na esteira da concentração da
terra e violência
Com a divisão do estado no ano de 1977, a parte sul recebeu a
denominação de Mato Grosso do Sul e o norte manteve a denominação
de Mato Grosso. O processo de ocupação e colonização de ambos apre-
senta similaridades, resultado, sobretudo, do programa “Marcha para
Oeste” do governo de Vargas.
 172
A seguir, analisamos o processo de ocupação sul-mato-grossense
em dois momentos. O primeiro, anterior à sua criação, é marcado pela
influência da exploração da erva-mate, realizada pela Empresa Mat-
te Larangeira, na conformação da estrutura fundiária concentrada do
novo Estado. O segundo momento, quando já se criara o estado de Mato
Grosso do Sul, envolve distintas situações mais recentes.
Ao falarmos sobre a importância da Companhia Matte Larangeira
para a criação do novo estado (Mato Grosso do Sul), torna-se necessário
fazer referência ao estudo de Bianchini (2000), em que a autora propôs
discutir o processo de ocupação de terra do sul de Mato Grosso (atual
MS) no período de 1880 a 1940. Sua análise parte das concessões de
arrendamento à Companhia para a exploração dos ervais presentes na
região sul do atual estado de Mato Grosso do Sul. Enfatiza em seu tra-
balho os mecanismos utilizados pela empresa para garantir a concessão
de enorme extensão de terra, controlando, desse modo, a exploração da
erva nativa presente no extremo sul de Mato Grosso.
Nessa perspectiva, pondera a autora:
Os interesses em jogo das camadas dominantes encontraram, sob a
forma de arrendamento das terras devolutas do sul de Mato Gros-
so, a brecha para realizar a ocupação efetiva daquelas terras, através
da indústria extrativa ervateira. Forma extremamente confortável
para o governante que tinha nas mãos um Estado em dificuldades
financeiras intermitentes e falta de vontade política para vencer os
desafios. Melhor, portanto, os arrendamentos. Se não perdia o Es-
tado, a recíproca era inversa para o povo como tal. (BIANCHINI,
2000, p. 232)

Conforme a pesquisadora, o primeiro projeto de ocupação foi a


concessão gratuita de 43.560.000 (quarenta e três milhões e quinhentos
e sessenta mil) metros quadrados de terras devolutas cedidos pelo Im-
pério à Casa de Travassos & Cia no ano de 1880. Essas terras estavam
localizadas no município de Miranda, e a sua concessão destinava-se à
formação de colônias agrícolas e pastoris, num período de cinco anos,
porém, findo esse período e em face do não cumprimento da coloni-
zação, as terras voltariam ao domínio do Estado (BIANCHINI, 2000).

 173
Mesmo diante do fracasso do projeto da Casa Comercial, entre os
anos de 1880 e 1890 a região recebe grande fluxo imigratório, formado
especialmente pelos “[...] rio-grandenses, paranaenses e mineiros dos
setores da economia [...]”. (BIANCHINI, 2000, p. 74). Esses imigrantes
foram atraídos para a região por três motivos essenciais: a construção
da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, no início dos anos de 1900, que
alcançava a região; os ervais; e a pecuária.
No final do século XIX, não possuindo, ainda, o estado, um sis-
tema de colonização, duas propostas para a região sul de Mato Grosso
entraram em discussão. A primeira defendia a colonização por meio de
concessões a empresas privadas, que ficariam responsáveis pela criação
dos municípios; a segunda buscava a mediação do estado, solicitando
aquisição de terras devolutas ou já ocupadas ao sul de Mato Grosso
(atual MS).
Em meio aos debates, o governo imperial, por meio do Decreto nº.
8799, cedia, em 1882, à Thomas Larangeira, o direito de exploração das
esparsas áreas de ervais naturais da região sul do atual Mato Grosso do
Sul. Essa concessão permitia a Larangeira, não só o direito de explora-
ção, mas também o de dominação das áreas circunvizinhas. Enquanto
ao norte despontava a exploração do ouro amarelo, no sul era o ouro
verde que ganhava a atenção.
A esse respeito, esclarece Bianchini (2000, p. 85):
A questão dos ervais nativos apresenta um aspecto que parece sin-
gular em relação ao regime de propriedade de terras no Brasil. O
que existiu de forma sistemática desde os tempos coloniais foi o re-
gime de sesmarias em que as terras eram doadas pelo Estado, e não
arrendadas, como é o caso que ora se estuda. O caso que se quer
caracterizar como singular é a questão do arrendamento de grandes
extensões de terras devolutas do Estado [...].

Considerando que o país ainda estava em fase de implantação da


Lei de Terras de 1850, as concessões feitas pelo Estado a Thomas La-
rangeira apresentavam duas diferenças: não seguiam a regra geral de
compra e venda, mas sim a de arrendamento; o direito de exploração

 174
dos ervais destinado a um único “cidadão” permitiu a dominação deste
sobre vastas extensões de terras.
Segundo Bianchini (2000, p. 85), “[...] o regime implantado foi de
arrendamento de grandes porções de terras devolutas, por meio do qual
o indivíduo gozava da posse, mas não da propriedade da terra”.
Efetivada, no ano de 1891, a Companhia Matte Larangeira foi res-
ponsável tanto pela exploração quanto pela exportação da erva-mate,
enquanto a firma argentina Francisco Mendes & Cia foi encarregada da
industrialização e distribuição do produto nos mercados internacionais,
com destaque ao mercado argentino.
Com a associação das duas empresas a partir de 1892, várias mu-
danças ocorrem no processo de ocupação dessa região do Estado, entre
as quais destacamos: a presença do capital estrangeiro entre os acionis-
tas da empresa, as diversas infraestruturas construídas para melhorar o
escoamento da produção, como o porto localizado em Murtinho, poste-
riormente transferido para Guaíra, e a implantação de algumas cidades,
servindo como ponto de coleta da erva-mate (BIANCHINI, 2000).
As atividades de exploração da erva-mate não eram, no entanto,
as únicas desenvolvidas na região sul de Mato Grosso. Juntamente com
essa atividade estava a criação do gado, e, à medida que se iam esgo-
tando as matas de ervais, “[...] as terras ficavam livres para a criação
do gado, daí se originando as grandes fazendas”. (BIANCHINI, 2000,
p. 98).
Bianchini (2000), ao analisar o período anterior ao governo de
Vargas, em meados de 1929, evidencia a expansão da Matte além da
fronteira de Mato Grosso e o papel da empresa como banco financiador
aos estados de Mato Grosso e Paraná. Isso em troca de infraestrutura
para o escoamento do seu produto e do arrendamento de novas terras.
Neste último caso, a autora pondera sobre os empréstimos realizados
pela empresa ao atual estado de Mato Grosso do Sul:
Ora, não é difícil avaliar-se a forma pela qual a Matte Larangeira
fora se transformando de arrendatária, em proprietária, de direito e

 175
de fato, das terras arrendadas. Um Estado como Mato Grosso, quase
sempre em dificuldades financeiras, encontrava na Matte uma for-
ma de sair delas ou pelo menos de atenuá-la e a Companhia por sua
vez, como empresa particular, tratava de procurar os meios que lhe
garantissem o retorno dos investimentos [Arrendamento de terras].
(BIANCHINI, 2000, p. 145).

Em suma, as concessões de arrendamento à Companhia e a explo-


ração dos ervais na região sul do atual Mato Grosso do Sul representam
a aliança existente entre o Estado, que desejava ocupar as vastas exten-
sões de terras ao sul, e a Matte Larangeira, cujo interesse era realizar a
exploração dos ervais ali existentes (BIANCHINI, 2000).
Decorridas algumas décadas de exploração dos ervais, essas áreas
são transformadas em fazendas, caracterizadas pela atividade da pecuá-
ria extensiva. Circunstância que permanece até os anos de 1940, eviden-
ciando que a política de Vargas não era necessariamente possibilitar a
formação de pequenas propriedades, mas, sim, a permanência das gran-
des propriedades formadas a partir da extração ervateira, reforçando a
concentração de terras ali existente.
Como explica Bianchini (2000, p. 248):
[...] Observou-se também a enorme extensão de terras ocupadas
por pastos, a existência de poucas áreas dedicadas a lavoura e, por
outro lado, muitas terras inexploradas e improdutivas, chegando-se
à conclusão de que os discursos dos governantes no sentido de atrair
braços para ocupar a terra eram vazios, não havendo um interesse
efetivo em fixar o homem à terra.
Por outro lado, notou-se também que a exploração ervateira, da
forma em que era realizada, acabou cedendo espaço à pecuária ex-
tensiva. [...].

Segundo Fabrini (2008), a concentração de terras no sul do atual


Mato Grosso do Sul iniciou-se notadamente com a disputa de terras
entre os europeus, agravando-se posteriormente com a proclamação da
república. Assim aclara o autor:
A concentração de terras no sul de Mato Grosso do Sul está rela-
cionada ao processo de ocupação e originou-se praticamente com

 176
a chegada dos europeus ao continente americano, que passaram a
disputar, inclusive entre si, o domínio de terras. A transferência de
poder sobre as oligarquias regionais mato-grossenses com a pro-
clamação da república contribuiu ainda mais para concentração de
terras, quando o governo vendia ou arrendava terras devolutas a
grandes fazendeiros e empresas capitalistas. (FABRINI, 2008, p. 53).

Desse modo, “[...] a estrutura fundiária no sul do atual Mato Gros-


so do Sul ‘nasceu’ concentrada”, uma vez que a concentração existente
foi desencadeada pelo processo de ocupação desenvolvido, tendo como
ator principal o Estado. (FABRINI, 2008, p.54).
A ocupação foi constituída por duas frentes colonizadoras. A
primeira foi formada pelos imigrantes rio-grandenses interessados na
prática da pecuária e nas atividades ervateiras, vindos para a região no
início do século XX e localizados mais na Serra do Amambaí. A segun-
da ocupação (pela frente pioneira paulista e paranaense), foi realizada
entre 1950 e 1960 sobre os limites de São Paulo e Paraná, onde ainda
predominavam as florestas. Nesta, as terras não foram, todavia, “utiliza-
das pelos proprietários na exploração agropecuária logo que apropria-
das [...]”. (FABRINI, 2008, p. 65); a apropriação veio a se concluir por
sul-mato-grossenses vindos de outras localidades do atual Mato Grosso
do Sul, e as atividades ali desempenhadas estiveram ligadas à exploração
ervateira.
A respeito da frente pioneira, Fabrini (2008, p. 70) pondera:
A abertura dessa nova frente de ocupação, cuja característica prin-
cipal foi a concentração da terra, acabou trazendo a necessidade da
reprodução camponesa, sem permitir, no entanto, o acesso à terra,
já que os trabalhadores não eram proprietários, mas sim, “peões” e
famílias de arrendatários que tiveram acesso periódico à terra, devi-
do à sua condição de não-proprietários.

Conforme o autor, a condição de não proprietário é decorrente do


fato de que os peões e as famílias de arrendatários eram responsáveis
apenas pela derrubada das matas e formação de pastagem. Uma vez ter-
minadas essas atividades, os espaços abertos seriam direcionados para
a criação do gado bovino. Desse modo, a apropriação da terra no sul do

 177
atual Mato Grosso do Sul não permitia nem a fixação, nem o acesso do
camponês à terra. Nessa perspectiva, escreve o autor:
A presença de trabalhadores camponeses despossuídos da terra no
sul de Mato Grosso do sul decorre de uma serie de razões, mas é a
concentração fundiária aí existente, originada no processo de ocu-
pação e colonização da região principal. Os elementos econômicos
como a modernização da agricultura, que, de modo geral, levou à
expulsão do pequeno proprietário, também contribuem para o sur-
gimento de trabalhadores despossuídas na região, mas de forma se-
cundária. (FABRINI, 2008, p. 71).

Concomitante à concentração fundiária, aparecem os conflitos de


terras, liderados, de um lado, pelos despossuídos de terra (peões, ar-
rendatários e suas famílias, parceiros); de outro, pelos grandes proprie-
tários. Conflitos pelo desejo de retornar à terra, porém agora para nela
permanecer.

Da modernização conservadora na década de 1970


aos dias atuais
O Estado brasileiro, a partir de 1970, inicia a elaboração de po-
líticas públicas para efetivar a ocupação econômica da Amazônia e
do Centro-Oeste, entre elas o II Plano Nacional de Desenvolvimento
(1974). Esse plano contribuiu para o processo de modernização da agri-
cultura na região sul de Mato Grosso (atual MS), caracterizada pelas
atividades de monocultura, especialmente as grandes lavouras de soja e
a criação de gado.
Alguns programas foram criados pelo Governo para impulsionar
o desenvolvimento almejado pelo Plano, entre os quais podemos citar:
o Programa Especial da Região da Grande Dourados (Prodegran), o
Programa de Desenvolvimento do Pantanal (Prodepan), o Programa de
Desenvolvimento do Centro-Oeste (Procentro), e o Programa de De-
senvolvimento dos Cerrados (Polocentro). Este último era direcionado
para áreas nos estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso (ao norte

 178
e ao sul). Ao sul, destacaram-se os municípios de Bodoquena e Campo
Grande e parte dos municípios que compõem a microrregião de Três
Lagoas.
Segundo Asevedo (2013, p. 45), nessas políticas:
Foram efetivadas aplicações de capital em infraestrutura de trans-
porte para o escoamento da produção agroindustrial, uma vez que
havia, por exemplo, frigoríficos e secadores de soja nessa área, além
de construção e reforma de estradas vicinais, objetivando interligar
a região ao Sudeste e Sul do país. Os investimentos também contri-
buíram com a expansão da transmissão de energia, melhorias no
beneficiamento e armazenagem da produção agrícola existente e
pretendida, assim como na pesquisa e experimentação do setor pe-
cuário e de “florestamento-reflorestamento” com eucalipto e pinus.

Ainda a respeito da aplicabilidade das políticas, o autor comenta


que estas estiveram concentradas prioritariamente na região sul e que,
em decorrência disso, aprofundaram-se ainda mais as ideias divisionis-
tas do estado de Mato Grosso.
A partir da modernização do campo, à força dos grandes fazen-
deiros une-se agora a necessidade de maiores espaços para a pecuária
extensiva; concomitante a isso, os grandes fazendeiros começam a recu-
sar-se a arrendar as parcelas de terra para os arrendatários, impedindo
assim sua reprodução familiar. Sobre a possibilidade de recriação do
campesinato, Carvalho (2005, p. 24) menciona a compra e a ocupação
da terra, acrescentando que:
Assim se desenvolve num constante processo de territorialização e
desterritorialização da agricultura camponesa, ou de destruição e
recriação do campesinato. O que é compreendido como fim tam-
bém tem o seu fim na poderosa vantagem que o capital tem sobre a
renda capitalizada da terra, gerada pelo trabalho familiar.

Destarte, as atividades ligadas à expansão das monoculturas, como


soja, cana-de-açúcar, celulose, entre outros, necessitavam também de
extensas áreas para se desenvolver. Desse modo, apenas grandes pro-
priedades conseguiram manter-se no estado, enquanto a maioria das
pequenas – constituídas pelos camponeses vindos para a região em
 179
1943, nas ondas das frentes de expansão e pioneira, por meio do Progra-
ma “Marcha para o Oeste” – acabaram sendo incorporadas pelo capital.
A esse respeito, Carvalho (2005, p. 150) esclarece que:
[...] A marcha foi concebida para enfrentar a velha ordem latifun-
dista e conservadora do país para dar espaço à industrialização e
estabelecer um controle sobre as tensões sociais. Esta política tinha
em suas premissas a necessidade de explorar um território ainda
“virgem”, de baixa densidade demográfica, através do povoamento,
a criação de pequenas propriedades, amparadas aos trabalhadores
nacionais e produtividade econômica [...].

Como exemplo das recentes transformações ocorridas no campo


sul-mato-grossense, na esteira desse desenvolvimento agrário/agrícola,
temos o caso da região leste do estado de Mato Grosso do Sul, em es-
pecial os municípios de Três Lagoas e Selvíria. Região já marcada pela
concentração de terras nas mãos de latifundiários da pecuária de corte e
leiteira, passa, a partir do ano de 2006, a ser sede da expansão do mono-
cultivo do eucalipto, orquestrado pelas maiores indústrias de celulose e
papel do país: Fibria e Eldorado Brasil.
A territorialização do capital monopolista no campo, seja pelo viés
da compra, seja pelo do arrendamento, é um dos processos mais violen-
tos de despovoamento do campo. Provoca a expropriação e expulsão do
campesinato, resultando, por um lado, no agravamento das desigual-
dades socioeconômicas; por outro, na desvalorização ou extinção de
várias culturas existentes no campo, sobretudo aquelas que produzem
para o autoconsumo.
Segundo Avelino Junior (2008), o modelo capitalista, inscrito no
campo nessa fase de reestruturação da questão fundiária, provocou al-
terações na base da luta pela terra. Estamos diante de um capitalismo
excludente, de estrutura fundiária altamente concentrada, condições
estas responsáveis pelo aumento de conflitos e violência no campo. Nas
palavras do autor:
O que podemos observar é que se trata de um capitalismo baseado
na exclusão dos camponeses, os quais excluídos da terra se inserem

 180
na luta pela posse e uso da terra, luta pela reforma agrária. Essa rea-
lidade tem aumentado os conflitos agrários e a violência no campo,
que é gerada pela estrutura agrária concentradora, excludente de
milhões de brasileiros de seus direitos fundamentais à vida e à cida-
dania. (AVELINO JUNIOR, 2008, p. 124).

Percebemos que, mesmo perante a imposição da propriedade pri-


vada sobre áreas que poderiam servir para os projetos de reforma agrá-
ria, não encontramos o conformismo, mas a resistência da classe cam-
ponesa, em sua luta incessante contra o processo de territorialização do
capital monopolista no campo. Entre as diversas formas de resistência
camponesa temos a luta pela terra, por meio da implantação de proje-
tos de assentamento via distribuição de terra como parte da política de
Reforma Agrária.
Nesse sentido, enfatizamos as conquistas, em especial do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais da região: entre 2000 e 2009, foram implanta-
dos 10 projetos de assentamentos, grande parte nas áreas de influência
do plantio de eucalipto.
Durante esta pesquisa observamos que em alguns projetos de as-
sentamento as famílias ainda não conseguiram ter acesso às condições
básicas de sobrevivência, como água e energia, e à liberação dos crédi-
tos para investimento, custeio e construção da casa. Outra agravante é
o fato de que uma das alternativas buscadas pelos camponeses na luta
para ficar na terra, num cenário de deficiência das políticas públicas do
Estado no tocante à reforma agrária, tem sido o trabalho acessório nas
empresas do agronegócio monocultor.
Mesmo diante das deficiências do Estado, notamos, porém, que
a conquista na/da terra nos assentamentos é que tem garantido a esses
camponeses assentados a reprodução de um modo de vida específico
alicerçado na tríade terra, família e trabalho. Além disso, foi possível
verificar que quando é dada aos assentados a oportunidade de apro-
priação de políticas públicas, como o PAA e o PNAE, eles retomam sua
trajetória histórica de produtores de alimentos de consumo popular e,
portanto, de contribuição à soberania alimentar.

 181
Para Borges (1997, p. 139), nesse momento “o conformar” cede
espaço para “o resistir”, “[...] que pouco a pouco se transforma em neces-
sidade de enfrentamento para mudar a sua condição. Resistência que se
nutre da sua própria força de não resistir, de não enfrentar, e que agora
se manifesta como força de transformação [...]”.

Considerações Finais
Percebemos que o pacote da modernização agrícola ligado ao
avanço de atividades monocultoras muda o caráter do uso e ocupação
da terra e torna cada vez mais urgente, e difícil, a luta pela Reforma
Agrária por parte dos movimentos sociais do campo. Contraditoria-
mente, o Estado silencia sobre o problema da concentração fundiária,
aprofundada pela monocultura, num claro apoio a essas novas dinâmi-
cas modernizantes no campo.
Uma das soluções encontradas por vários grupos de famílias as-
sentadas, à medida que as dificuldades intensificavam-se, foi a migração
para a cidade, porém, mesmo diante do cenário de contradições nas po-
líticas agrárias instaladas no estado de Mato Grosso do Sul, as lutas cam-
ponesas não pararam. A continuidade do campesinato foi impulsiona-
da pela conquista da terra por meio dos Sindicatos dos Trabalhadores
Rurais, do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), entre
outros setores comprometidos com a justiça social, que exerceram papel
fundamental.
Destacamos, em especial, o movimento social formado pelos cam-
poneses, que, diante de possível ameaça a sua reprodução, resultante da
concentração de terra, insistentemente recria formas, como, por exemplo,
o movimento de luta pela terra. Neste, o camponês, ante a provável ame-
aça de perder sua parcela de terra, rebela-se contra as ações dominantes,
resistindo e superando a expulsão, conquistando o seu direito sobre par-
cela de terra e recriando múltiplos caminhos para permanência nela.
Em decorrência das mudanças socioambientais provocadas pela
“modernização conservadora do campo”, fruto do novo modelo agrá-
 182
rio-agrícola, presenciamos também a luta, a versatilidade, a criativi-
dade do povo camponês, que há séculos tem desafiado as teses que
apregoavam e apregoam o seu desaparecimento, contrapondo-se ao
desemprego, e a perda de autonomia, com a conquista da terra de vida
e trabalho.

Referências
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Cáceres (Município de Fronteira Internacional com a Bolívia). 2006. 166 f. Dissertação
(Mestrado em Geografia) - Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade
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Graduação- Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
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Editora Anita, 1997, p. 107-172.
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 184
Geografia das Ocupações e
Manifestações em Mato Grosso
e Mato Grosso do Sul (2000-2012)

Danilo Souza Melo


Mestre em Geografia. Docente na Rede Pública do Estado de São Paulo.

Introdução
Este trabalho é desdobramento da pesquisa de mestrado intitula-
da “Geografia das ocupações e manifestações em Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul (2000-2012)” e de discussões realizadas no Grupo de
Estudos Terra e Território (GETT), na Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS), Câmpus de Três Lagoas/MS. O texto encontra-
-se articulado ao projeto de pesquisa “Questão agrária e transformações
socioterritoriais nas microrregiões do Alto Pantanal e Tangará da Serra/
MT na última década censitária”, da Rede Centro-Oeste de Pós-Gra-
duação, Pesquisa e Inovação (Edital MCT/CNPq/FNDCT/FAPs/MEC/
CAPES/PRO-CENTRO-OESTE nº 31/2010).
Partimos do pressuposto teórico de que o capital no campo se de-
senvolve de maneira desigual e combinada, ou seja, ao se reproduzir, cria
relações tipicamente capitalistas e relações não capitalistas. (OLIVEIRA,
1991). Nesse sentido, a (re)criação do campesinato é resultado do pro-

 185
cesso de reprodução ampliada do capital no campo, entretanto este não é
processo mecânico; pelo contrário, há rebeldia: a (re)criação camponesa
ocorre por meio de disputas e conflitos com o capital e com o Estado.
Em Mato Grosso e em Mato Grosso do Sul, o desenvolvimento do
capital no campo teve apoio do Estado, por meio de leis e decretos que
promoveram a apropriação capitalista da terra. (MORENO 1994). Para
Fabrini (2008), o Estado não foi apenas planejador, mas indutor da for-
mação das grandes propriedades a partir da concessão e venda de terras
devolutas às empresas colonizadoras e grandes capitalistas. É, pois, a
partir da lógica contraditória do capital, que camponeses e indígenas
lutam pela terra e por territórios que lhes pertenceram outrora, reali-
zando ocupações e manifestações. Para Fernandes (1999), as ocupações
e manifestações contribuem para a espacialização e territorialização da
luta pela terra e do campesinato.
Nessa perspectiva, objetivamos analisar a dinâmica da luta pela
terra em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul por meio das ocupações e
manifestações ocorridas no período de 2000 a 2012 e registradas pelo
DATALUTA1. Para tanto, articulamos, neste capítulo, resultados de pes-
quisa bibliográfica, documental e de campo (estes coletados por meio
de entrevistas).

A questão agrária em Mato Grosso e Mato Grosso do


Sul: a política fundiária
A questão agrária, em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, está re-
lacionada ao processo de apropriação capitalista da terra e sua concen-
1
O Banco de Dados da Luta pela Terra – DATALUTA - é um projeto de pesquisa e ex-
tensão criado em 1998 no Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária
– NERA, vinculado ao Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecno-
logia da UNESP, Câmpus de Presidente Prudente. A elaboração do primeiro Relatório
DATALUTA, em 1999, com os dados de 1998, foi o início desta publicação de categorias
essenciais da questão agrária brasileira, superando a dificuldade de acesso a dados siste-
matizados sobre ocupações e assentamentos. Em 2004, incorporamos as categorias mo-
vimentos socioterritoriais e estrutura fundiária, com a apresentação de gráficos, tabelas,
quadros e mapas. (DATALUTA, 2011, p. 01).

 186
tração. No sistema capitalista, a terra é um meio de produção, entretan-
to, por ser bem finito, limitado, é diferente de outros meios de produção.
Martins (1981, p. 159-160) assevera:
A terra é, pois, um instrumento de trabalho qualitativamente diferen-
te de outros meios de produção. Quando alguém trabalha na terra,
não é para produzir terra, mas para produzir o fruto da terra. O fruto
da terra pode ser produto do trabalho, mas a própria terra não o é.

A terra, como bem finito é importante meio de produção, é, tam-


bém, valiosa mercadoria, cujo domínio possibilita ao dono cobrar da
sociedade a renda por sua utilização:
Assim como a força de trabalho se transforma em mercadoria no
capitalismo, também a terra se transforma em mercadoria. Assim
como o trabalhador cobra um salário para que sua força de trabalho
seja empregada na reprodução do capital, o proprietário da terra
cobra uma renda que ela possa ser utilizada pelo capital ou pelo
trabalhador. (MARTINS, 1981, p.160).

A Lei nº 601, de 1850, conhecida como Lei de Terras, representou


o marco inicial, visto ter instituído a propriedade capitalista da terra no
Brasil, unindo posse e domínio na mesma figura jurídica, de modo que
o acesso à terra só poderia ocorrer por meio de compra: “Com a lei de
terras de 1850, [...] o acesso à terra só passou a ser possível através da
compra/venda com pagamento em dinheiro, o que limitava, ou mesmo
praticamente impedia, o acesso à terra dos escravos que foram sendo
libertos.” (OLIVEIRA, 1991, p. 28).
Segundo a Lei de Terras, as posses já existentes deveriam ser re-
gularizadas até 1854, ficando o processo de regularização (medição e
demarcação) a cargo de cada província/estado. A partir de então, cada
Estado ficou responsável por estabelecer leis e fiscalizar a regularização
e venda de suas terras devolutas2.

2
Segundo o Art.5 da Lei 9.760 de 1946 as terras “São devolutas, na faixa da fronteira, nos
Territórios Federais e no Distrito Federal, as terras que, não sendo próprios nem aplica-
das a algum uso público federal, estadual territorial ou municipal, não se incorporaram
ao domínio privado”. (BRASIL, 1946). Ou seja: as terras não regularizadas após a Lei de
1850 deveriam ser devolvidas ao Estado.

 187
Além do fundamento jurídico, a Lei de Terras promoveu a ideolo-
gia da propriedade capitalista, perdurando até os dias atuais, pois disse-
mina-se a ideia de que todo proprietário de terra conquistou-a por meio
da compra. É necessário destacar, contudo, que leis e decretos estaduais
permitiram a regularização de posses e a grilagem das terras devolutas
no antigo Mato Grosso, composto pelos atuais estados de Mato Grosso
(MT) e Mato Grosso do Sul (MS).
Em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, a apropriação e concentra-
ção da propriedade capitalista da terra se deu essencialmente por polí-
ticas, leis e decretos criados com objetivo de motivar a migração para a
região da fronteira e “ocupar” o antigo Mato Grosso. Essa “política fun-
diária” – como aqui a chamamos – promoveu, entretanto, a apropriação
capitalista da terra e, consequentemente, a formação de latifúndios.
Nesse sentido, o Estado passou a ser disputado por oligarquias cons-
tituídas por grupos econômicos do norte e sul do antigo Mato Grosso.
Para as oligarquias, ter o controle do Estado significava também ter con-
trole do processo de regularização e compra das terras devolutas; em ou-
tras palavras, legislar em favor próprio em relação às questões de terras.
Dessa maneira, a apropriação capitalista da terra efetivou-se pela política
fundiária empregada por diferentes governos no espaço mato-grossense,
por meio de leis promulgadas entre 1893 e 1950, possibilitando a concen-
tração fundiária nas mãos das elites nortistas e sulistas do estado.
A partir do governo de Getúlio Vargas, em 1930, o Estado passa a
atuar no antigo Mato Grosso por meio de projetos e programas, objeti-
vando “integrar” as regiões norte e centro-oeste na economia nacional
e amenizar tensões sociais nas áreas de maior densidade demográfica
do país. Nesse contexto, foi lançada, em 1938, a “Marcha para o Oeste”,
resultando na criação, em 1948, da Fundação Brasil Central e das Co-
lônias Nacionais Agrícolas de Goiás, em Ceres (GO) e Dourados (MT),
no sul do antigo Mato Grosso. (ABREU, 2001).
Criada na Marcha para o Oeste, conforme Abreu (2001) a Funda-
ção Brasil Central tinha por objetivo auxiliar o processo de integração

 188
rodoviária com o sul do país, substituída em 1967 pela Superintendên-
cia de Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO). A SUDECO par-
ticipou do planejamento de políticas públicas no espaço mato-grossen-
se, que contribuíram, segundo Abreu (2001, p. 20), para a expansão do
capital na fronteira:
Podemos citar as políticas de colonização e ocupação da Amazô-
nia mato-grossense; a implantação e pavimentação da BR-364; a
divisão de Mato Grosso; a modernização da agricultura e ocupação
dos Cerrados pela monocultura da soja; a implantação de distritos
industriais nos municípios de Corumbá, Cuiabá, Campo Grande,
Dourados; ou ainda a proposta da Ferronorte e da hidrovia Ara-
guaia-Tocantins etc. Todas são ações realizadas (ou em realização)
em diferentes momentos e cujos estudos foram realizados dentro
da SUDECO.

Essas ações, entre outras dirigidas pela SUDECO, contribuíram


para a reorganização econômica de Mato Grosso, especialmente pela
infraestrutura criada. A construção das BR 364 e 163 viabilizou o fluxo
de mercadorias e pessoas no estado. Dessa maneira, ao longo da BR-163,
grandes grupos econômicos ligados à produção agrícola se instalaram e,
consequentemente, houve crescimento demográfico e surgimento de mu-
nicípios provenientes de projetos de colonização. (MARGARITI, 2012).
O avanço da fronteira agrícola tomou contornos da BR-163, apre-
sentando características de agricultura “moderna”, resultado de políticas
públicas administradas pela SUDECO, sobretudo voltadas para a im-
plantação de novos polos de desenvolvimento, como o POLOCENTRO.
Este teve por objetivo a expansão da cultura de grãos (soja e arroz, es-
sencialmente) no Cerrado do Brasil central. (OLIVEIRA, 2003).
Assim, a política fundiária, ao promover o processo de apropriação
capitalista da terra e/ou territorialização do capital no campo, em Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul, gerou intensas contradições e desigual-
dades sociais nos dois estados. A expropriação de povos tradicionais e
camponeses aliados à extrema concentração fundiária revelam as con-
tradições do desenvolvimento do capital no campo em MT e MS legiti-
mado pelo Estado.

 189
A expropriação dos povos indígenas no sul do antigo Mato Grosso
acentua-se com o monopólio das terras da Cia Matte Larangeira inicia-
do em 1882. Ao controlar as terras ervateiras, a Companhia procurou
implantar a política de “espaços vazios”, contanto com polícia própria,
dizimando a população indígena presente na área e impedindo a ocu-
pação das terras por pequenos proprietários ou posseiros. (MORENO,
1994). A esse respeito e na mesma direção, também se manifesta Guillen
(1999, p. 150-151):
[…] A manutenção de uma política de “espaços vazios” tornou-se
uma estratégia vital para a Companhia, facilitando o controle e a vi-
gilância sobre os ervais e as formas de trabalho, baseadas na escravi-
dão por dívida. Como dispositivo disciplinar, possuía a Companhia
uma polícia própria, os comitiveiros, que se encarregavam de expul-
sar quem se instalasse em seus domínios, bem como recapturavam
trabalhadores fugidos dos ervais.

Implantada em território indígena, a Companhia, quando não os


expulsava, utilizava-os como mão de obra nos ervais:
As concessões feitas a Cia. Matte Larangeira atingiram em cheio o
território dos Kaiowá e Guarani. Embora a mão-de-obra ampla-
mente predominante nos ervais tenha sido a paraguaia, ocorreu,
em várias regiões, o engajamento de índios Kaiowá e Guarani.
(BRAND; FERREIRA; AZAMBUJA, 2008, p. 31).

Os povos indígenas da região sul do espaço mato-grossense foram


expulsos de seus territórios (tekoha) e sofreram com a exploração vio-
lenta de sua mão de obra. A implantação do Serviço de Proteção ao
Índio (SPI), em 1910, agravou a situação dos indígenas no sul do antigo
Mato Grosso, como afirmam Siqueira e Souza (2005, p. 7):
Na realidade, a intenção desse órgão oficial, SPI, com a demarca-
ção dessas porções de terra para usufruto dos Kaiowá e Guarani era
aldeá-los e assim liberar terras para o “progresso” de alguns brasilei-
ros, levando estas populações a um processo conhecido na literatura
como confinamento.

O extremo sul do antigo Mato Grosso, atual sul de MS, tornou-se


mais conflituosa com a implantação da Colônia Agrícola Nacional de

 190
Dourados (CAND) em 1948. Novamente, os povos indígenas foram afe-
tados pela política fundiária com a invasão de seus territórios e conflitos
com camponeses:
[…] não se tem conta que essa Colônia estava sendo implantada em
pleno território indígena, atingindo em cheio diversas aldeias Kaio-
wa. Confrontavam-se os índios, agora com colonos em busca de
propriedades. Portanto, o conflito entre as comunidades indígenas
e a CAND foi imediato e total. (BRAND; FERREIRA; AZAMBUJA,
2008, p. 33).

A implantação da colônia de Dourados marcou o início de longa


e difícil luta indígena pela manutenção e retomada de seus territórios
abrangidos pela CAND (BRAND; FERREIRA; AZAMBUJA, 2008).
Assim, a política fundiária e o Estado são responsáveis por inten-
sos problemas sociais em MT e MS. A estrutura fundiária concentrada
comprova as desigualdades existentes nos estados. Com base em dados
do INCRA sobre imóveis rurais, o índice de GINI3 da estrutura fundiá-
ria demonstra a extrema concentração de terras nesses estados, como se
observa no mapa 1 (adiante).
Nesse mapa, é possível perceber que a maioria dos municípios, em
Mato Grosso, apresenta alto índice de GINI, ou seja, possui estrutura
fundiária concentrada. Desses municípios, destacam-se Novo Mundo,
Matupá e Peixoto Azevedo ao Norte. Ao sul de Mato Grosso, Cuiabá,
Barão de Melgaço e Santo Antônio do Leverger possuem os maiores
índices.
O mapa apresenta ainda os municípios com maior concentração
fundiária em Mato Grosso do Sul: Miranda, Itaquiraí, Paranhos e Bela
Vista no Centro-Sul. Na região central do Estado, destacam-se Campo
Grande e Aquidauana. Comparando os dados dos censos agropecuários
(tabelas 1 e 2) e os do INCRA/GINI (Figura 1), confirma-se que, nos

3
No índice de GINI (“R”), no intervalo de 0 a 1, quanto maior for a concentração, mais
próximo o índice estará de 1(um), valor de concentração absoluta. (INCRA, 2001). Des-
sa forma, os números de GINI são representados nos mapas por escalas de cores, sendo
1 a cor mais escura e 0 a mais clara.

 191
Figura 1 - MT e MS: Índice de GINI por município 2012
Fonte: INCRA/DATALUTA

 192
estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, as terras estão concen-
tradas nas mãos de poucos proprietários.
A extrema concentração fundiária e a desigualdade social no cam-
po de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul são resultantes do desenvolvi-
mento desigual e combinado do capital. Nesse contexto, camponeses e
povos indígenas engajam-se em movimentos sociais na luta pela terra,
realizando ocupações e manifestações.
Essas ações de enfrentamento dos movimentos sociais do cam-
po são diariamente registradas e sistematizadas pelo DATALUTA e re-
velam-se, tanto para pesquisadores quanto para os camponeses, como
importante fonte de informação da resistência camponesa e povos tra-
dicionais. Os registros contidos no banco de dados do DATALAUTA
balizam nossa análise sobre a dinâmica da luta pela terra das manifesta-
ções e ocupações em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

A geografia das ocupações em Mato Grosso e Mato


Grosso do Sul
A ocupação, utilizada historicamente por diversos movimentos,
é a forma de pressão mais importante e conhecida na luta pela terra.
Essa estratégia é utilizada há décadas pelo MST, desde a sua formação,
nas áreas com problemas de titulação4 ou improdutivas, reivindicando
a desapropriação para fins de Reforma Agrária. Para Stédile, um dos
principais líderes do movimento: “Se não ocupamos, não provamos que
a lei está do nosso lado. É por essa razão que só houve desapropriações
quando houve ocupação [...] A lei só é aplicada quando existe iniciativa
social, essa é a norma do direito.” (STÉDILE; FERNANDES, 1999, p.
115).
Segundo Fernandes (2005, p. 8): “A ocupação não é o começo da
conflitualidade, nem o fim. Ela é desdobramento como forma de resis-
4
Segundo Oliveira (2013), metade dos documentos de posse de terra no Brasil é ilegal.
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sustentabilidade/metade-dos-docu-
mentos-de-posse-de-terra-no-brasil-e-ilegal-7116.html>. Acesso em: 12 mai. 2014.

 193
tência dos trabalhadores sem-terra. O começo foi gerado pela expro-
priação, pelo desemprego, pelas desigualdades resultantes do desenvol-
vimento contraditório do capitalismo”.
O conflito é resultado da questão agrária produzida pelo avanço
do capitalismo no campo e, como contraponto, os camponeses e povos
tradicionais lutam por território por meio dos movimentos sociais para
garantir sua reprodução social. Os movimentos são, no entanto, repri-
midos pelas forças do Estado e, também, dos fazendeiros em defesa da
propriedade privada.
Dessa maneira:
Na luta pela terra, a ocupação é uma comprovação que o diálogo
não é impossível. Ao ocupar a terra, os sem-terra vêm a público e
iniciam as negociações, os enfretamentos com todas as forças políti-
cas. Ao ocupar espaços políticos, reivindicam seus direitos. Quando
o governo criminaliza essas ações, corta o diálogo e passa dar or-
dens. Tenta destruir a luta pela terra sem fazer a Reforma Agrária.
(FERNANDES, 2001, p. 36).

A luta camponesa e dos povos tradicionais compõe parte da luta


por território nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, cuja
ocupação e cujas manifestações são parte do processo de espacializa-
ção da luta. A espacialização e territorialização são dimensões da luta
por frações do território decorrentes das ações dos movimentos sociais,
dimensões estas indissociáveis, ocorrendo muitas vezes de forma simul-
tânea. O movimento espacializa-se ao realizar suas lutas (manifestações,
ocupações), tornando-as conhecidas e angariando tanto adeptos quanto
opositores, conforme analisa Fernandes (2000, p. 67):
Os sem-terra ocupam terras, predominantemente, em regiões onde
o capital já se territorializou. Ocupam latifúndios – propriedades
capitalistas – terras de negócio e exploração – terras devolutas e/ou
griladas. As lutas por frações do território [...] representam um pro-
cesso de territorialização na conquista da terra de trabalho contra a
terra de negócio e de exploração.

Apesar de ser a principal forma de pressionar a agilidade dos pro-


cessos de desapropriação de terra para a Reforma Agrária, as ocupações

 194
em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul apresentaram decréscimo, salvo
pequenas variações, no período de 2000 a 2012, como pode ser visuali-
zado no gráfico 1.
Com 266 ocupações (2000 a 2012), Mato Grosso do Sul apresen-
tou picos de ocupações nos anos de 2000 (88), 2001 (27), 2004 (28) e
declínio nos anos seguintes. As 88 ocupações, no ano de 2000, foram
resultantes da pressão dos movimentos, especialmente da CUT e da
CONTAG, com 33 e 21 ocupações, respectivamente.
Em Mato Grosso, ocorreram 93 ocupações (Gráfico 1), entre 2000
e 2012, e o pico de ocupações aconteceu nos anos de 2003 (26 ocupa-
ções) e 2005 (14), certamente motivadas por promessas políticas, uma
vez que a eleição do presidente Luís Inácio Lula da Silva criou o ambien-
te de otimismo junto aos movimentos sociais, particularmente no MST.
Com a entrada de um governo popular, esperava-se a desapropriação e
criação de mais assentamentos, razão por que as ocupações se intensi-
ficaram nos primeiros anos do governo Lula (2003, 2004 e 2005) como
forma de pressão.

Gráfico 1 – MT e MS: ocupações de terra – 2000 a 2012

Fonte: DATALUTA 2014. Organizado pelo autor.

Como dito, uma das explicações para o aumento das ocupações


pelo MST nos anos de 2003 e 2004 se deve ao fato de o Brasil entrar

 195
em novo contexto político a partir de 2002, com a eleição de Luís Iná-
cio Lula da Silva para presidente da República. A Reforma Agrária não
ocorreu, todavia, de acordo com a expectativa dos movimentos, as ações
de ocupação reduziram-se nos anos seguintes em face da desistência das
famílias acampadas, como afirma5 uma das lideranças do MST (MT):
Aqui é um período que quando o PT assumiu o governo, o superin-
tendente do INCRA foi em cadeia nacional e disse “só vou assentar
quem estiver acampado”, isso estimulou o sem-terra a fazer luta ir
para o acampamento. Ai vem caindo de novo, porque a partir que
isso aqui não acontece, as famílias vão desistindo e cada vez mais
difícil fazer ocupação, por quê? Porque as famílias ficam muito tem-
po acampadas, um ano dois anos, hoje cinco anos. Então se eu vejo
meu vizinho acampando há cinco anos eu não me encorajo de ir.
(Entrevistado B).

Esse contexto explica a redução significativa das ocupações de


2006 a 2012, tanto em Mato Grosso quanto em Mato Grosso do Sul,
assim como do número de famílias em ocupação. No período estudado,
38.929 famílias participaram de ocupações em Mato Grosso do Sul, en-
quanto em Mato Grosso foram 18.213 famílias.
A morosidade da Reforma Agrária e, até mesmo, sua não realiza-
ção são as principais explicações para a redução do número de famílias
em ocupações. Se junta a isso a dificuldade do MST em lutar contra o
governo amplamente apoiado por sua base.
Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) sobre a criação de assentamentos rurais (gráfico 2),
entre os anos 2000 e 2012 foram criados, em Mato Grosso, 300 assen-
tamentos; em Mato Grosso do Sul, 123. No entanto, em Mato Gros-
so, a principal forma de obtenção de terras para Reforma Agrária é o
Reconhecimento, ou seja, se regularizou assentamentos municipais ou
estaduais já existentes, dessa maneira, 43,3% (130) dos projetos, foram
regularizados pelo INCRA. Assim, parte dos projetos de Reforma Agrá-
ria, “criados” em Mato Grosso no período de 2000 a 2012, não promo-

5
Entrevista realizada em junho de 2014 na secretaria do MST em Cuiabá (MT).

 196
veram diretamente a desconcentração fundiária. Portanto, não podem
ser chamados de Reforma Agrária.
Em Mato Grosso, 2001, 2003 e 2005 foram os anos com maior nú-
mero de assentamentos criados (44, 65 e 44 respectivamente). A partir
de 2008, a criação de assentamentos reduziu-se significativamente. O
quadro é semelhante em Mato Grosso do Sul: nos anos 2000, 2005 e
2007, houve o maior número de assentamentos (24, 22 e 26 respectiva-
mente); a partir de 2009, poucos assentamentos foram criados.

Gráfico 2 - Mato Grosso e Mato Grosso do Sul:


assentamentos criados (2000-2012)

Fonte: INCRA/DATALUTA, 2014. Organizado pelo autor.

Os números da Reforma Agrária em MT e MS reafirmam a ideia


de a redução das ocupações coincidir com o período de poucos assenta-
mentos criados. Outra explicação para a redução das ocupações e famí-
lias envolvidas na luta está no impacto dos programas sociais, como o
Bolsa Família, possibilitando a diminuição da pobreza extrema no país.
Segundo relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), entre os anos de 2001 e 2011 a pobreza extrema no Brasil caiu
55%, o que, de certa forma, reduziu a necessidade da luta radical. O
contexto de redução da pobreza no país amenizou os problemas sociais
sofridos pelos trabalhadores, afetando consideravelmente o trabalho de

 197
base realizado pelos movimentos sociais para arregimentar pessoas para
a luta.
No trabalho de base, os movimentos procuram encontrar pesso-
as com perfil de luta pela terra: não apenas trabalhadores rurais, mas
também aqueles trabalhadores urbanos que sempre moraram na cidade,
mas sonham com a vida e o trabalho familiar no campo. Como a con-
juntura político-social alterou-se, algumas estratégias adotadas pelos
movimentos também sofreram modificação a fim de possibilitar a orga-
nização das pessoas na luta pela terra. Como exemplo, podemos men-
cionar a flexibilização das atividades e organização dos acampamentos:
para as pessoas continuarem a lutar por terra, os movimentos permitem
que passem boa parte do dia, ou da semana, fora do acampamento (a
vida no acampamento é um período muito sofrido). Consequentemen-
te, estes constituem um grupo de acampados que não permanecem ali
em período integral. Trabalham na cidade e retornam ao final do dia
ou nos finais de semana. Isso decorre do fato de os acampamentos não
possuírem estrutura necessária para moradia e geração de renda.
A distribuição territorial das ocupações, outro elemento impor-
tante a ser considerado, revela as principais regiões de conflito de luta
pela terra nos estados. Assim, em Mato Grosso, as regiões com maior
número de ocupações são o Sul e o Norte; em Mato Grosso do Sul, os
conflitos concentram-se na região centro-sul, como demonstramos no
mapa 2.
Na região Norte de MT, destacam-se os municípios de Sinop (7
ocupações) e Cláudia (3 ocupações). No Sul de Mato Grosso, as ocupa-
ções são organizadas basicamente pelo MST, com destaque para os mu-
nicípios de Cáceres (9 ocupações), Rondonópolis (6 ocupações) e Jacia-
ra (5 ocupações). Em Mato Grosso do Sul, destacam-se, com os maiores
números de ocupações, no período de 2000 a 2012, os municípios de
Ponta Porã (18 ocupações), Rio Brilhante (14) e Sidrolândia (11).
Em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, há tendência semelhante
no número de ocupações, excetuando-se o ano 2000, quando a luta se

 198
Figura 2 - MT e MS ocupações por município (2000 a 2012)
Fonte: DATALUTA.

 199
encontrava acirrada em MS, resultante do significativo número (88) de
ocupações. As regiões de concentração das ocupações de terras são as
mesmas com maior índice de GINI da concentração fundiária (Figura
1). Ou seja, há embate entre movimentos sociais e latifundiários, apre-
sentando-se como agronegócio.
Na região Norte de Mato Grosso, muitos municípios foram projeta-
dos e criados por ações de colonizadoras particulares. Posseiros e povos
indígenas foram expropriados ao mesmo tempo em que trabalhadores de
outras regiões migraram à procura de emprego e acesso a terra. Assim,
parte dos municípios da região Norte de MT “nasceram” com intensos
problemas sociais, provocados pela concentração fundiária e exclusão de
camponeses, povos indígenas, como no caso dos de Sinop e Jaciara.
A situação agravou-se com a intensificação do agronegócio no es-
tado, monopolizando as terras e dificultando ainda mais a reprodução
camponesa no campo. Assim como em MT, os conflitos pela terra em
MS gravitam em torno dos processos de posse e concentração fundiária
promovidos pela política fundiária. A região centro-sul de MS, onde se
concentraram as ocupações entre 2000 e 2012, possui, em sua formação
socioespacial, a expulsão de indígenas e camponeses, concomitante à
expansão do capitalismo no campo.
Quando analisamos as ocupações por movimento social em Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul, percebemos a diversidade dos movimen-
tos na luta pela terra. O MST (33 ocupações) foi o protagonista das
ocupações em Mato Grosso, acompanhado do MTAA (3) e Movimento
indígena (2). Já em Mato Grosso do Sul, o movimento indígena realizou
mais ocupações (58), seguido pelo MST (49) e CUT (39).
O protagonismo da luta pela terra em Mato Grosso do Sul é dividi-
do entre MST e movimento indígena. O gráfico 3 mostra o protagonis-
mo desses movimentos em períodos distintos. O primeiro período vai
de 2000 a 2004 e tem o MST como o principal movimento na organiza-
ção das ocupações no Estado. A partir de 2005 até 2012, o movimento
indígena assumiu o protagonismo da luta pela terra em MS.

 200
Gráfico 3 - MS: ocupações do MST e do movimento indígena
de 2000 a 2012

Fonte: DATALUTA, 2014. Organizado pelo autor.

A ascensão da luta indígena em MS é, no período estudado, resul-


tado da luta histórica desses povos contra a invasão de seus territórios,
acentuada atualmente pelo avanço dos plantios de soja e cana.
Na avaliação de Mizusaki (2014, p. 99):
No que diz respeito aos povos indígenas em Mato Grosso do Sul, os
guaranis vêm lutando pela recuperação de seus territórios desde a
década de 1970. Os acampamentos nas rodovias ou ocupações em
propriedades onde se localiza seu tekohá têm sido a principal forma
de luta. Dos enfrentamentos e das precárias condições de vida, mui-
tas mortes, agressões e violências os tem acometido, evidenciando a
forma com que a questão agrária é tratada no Estado.

As ocupações indígenas entre os anos de 2000 e 2012, em Mato


Grosso do Sul, ocorreram na região centro-sul. Esta é a região onde os
territórios indígenas foram mais atingidos pela política fundiária, desde
o monopólio da Matte Larangeira, pelas ações do SPI, passando pela
criação da CAND e pelo avanço do agronegócio.
As ações dos movimentos sociais na luta pela terra não se limitam
a ocupação. Novas estratégias são desenvolvidas, entre as quais a ma-
nifestação e suas diferentes tipologias. Na manifestação, o movimento

 201
procura obter respostas rápidas a suas reivindicações, e a cidade se mos-
tra importante no processo:
Agora a ocupação de terras é insuficiente para enfrentar o modelo
do agronegócio. Por isso, além das ocupações, o MST deve desen-
volver novas formas de luta, que envolvam todos os camponeses e
outros setores da sociedade interessados em mudar esse modelo de
exploração agrícola, que agride o ambiente e produz alimentos con-
taminados. (STÉDILE, 2010, p. 1).

Manifestações em MT e MS e a relação campo-cidade


A espacialização da luta pela terra, que é parte do processo de luta
e resistência no campo dos sem terra e povos tradicionais, é constante.
Nessa perspectiva, os movimentos sociais lutam pela Reforma Agrária
e também por políticas públicas que os protejam minimamente da su-
bordinação da renda da terra ao capitalista. Suas ações de mobilização
coletiva contribuem para que os povos do campo se identifiquem como
sujeitos construtores da história (consciência de classe). A consciência
de classe é fundamental para a criação de espaços de resistência em di-
versas partes do território. (FABRINI, 2005).
A manifestação é importante ação dos movimentos na luta
pela terra, pois tem por finalidade dialogar com a sociedade sobre
os problemas no campo e exigir, diretamente dos órgãos responsá-
veis, soluções para seus problemas, além de que, ao mesmo tempo,
contribui para a construção da consciência de classe entre os ma-
nifestantes:
As manifestações, nas suas mais variadas formas, são um termôme-
tro dos conflitos em que estão envolvidos os trabalhadores e traba-
lhadoras do campo brasileiro, do descaso da Justiça e das autorida-
des maiores deste País com aqueles que diariamente lutam para que
o pão esteja presente na mesa de todos. Por outro lado, elas mos-
tram a vitalidade das populações camponesas e suas organizações
que querem ser ouvidas e respeitadas e exigem uma nova ordem no
campo. (MOTTA, 2007, p.175).

 202
Assim, as manifestações do campo (e que ocorrem, em sua grande
maioria, nas cidades) são, para os movimentos sociais, importante es-
tratégia na luta contra a agricultura capitalista e por Reforma Agrária. O
modelo de agricultura capitalista hegemônico reproduz-se no campo e
na cidade e, para tanto, o modo de produção solda a cidade e o campo
em unidade dialética, pois “[...] com relação aos processos contraditó-
rios e desiguais do capitalismo, devemos entender que eles têm se de-
senvolvido no sentido de ir eliminando a separação entre a cidade e o
campo, entre o rural e urbano, unificando-os numa unidade dialética”
(OLIVEIRA, 1991, p. 26).
Essa soldagem não elimina, entretanto, as diferenças entre cidade e
campo; ao contrário, provoca-as (ALENTEJANO, 2003). Ademais:
O espaço rural e o espaço urbano serão concebidos como partes
constitutivas de uma totalidade que se forma na diversidade. O que
se fará com base no conceito de divisão social do trabalho, conside-
rando-se a influência da lei do desenvolvimento desigual e combi-
nado. (MARQUES, 2002, p.105).

Nossa concepção é de que a cidade e o campo constituem um


território que se conecta com outros territórios por meio das relações
de diferentes sujeitos, sejam econômicos ou sociais (LEMOS, 2008). A
agricultura capitalista (agronegócio), como parte do modo capitalista
de produção, atua em todo o território brasileiro, abrangendo o campo
e a cidade. Na concepção de Arruda (2007, p. 27), o circuito produtivo
do agronegócio ocorre antes da porteira (cidade) e na porteira (campo).
O agronegócio não ocorre apenas no campo; estende-se ao territó-
rio, envolvendo o campo e a cidade. De toda forma, o agronegócio não
só intensifica as relações de base econômica entre o campo e a cidade,
mas também ganha a dimensão das suas contradições sociais, resultan-
tes do caráter concentrador de riqueza (principalmente de terra no cam-
po) e produtor de miséria (no campo e na cidade), desdobrando-se na
reação dos movimentos sociais do campo que marcham pelas cidades.
No território em disputa, os poderes político e financeiro locali-
zam-se historicamente na cidade. Logo, o modo de produção capitalista

 203
no campo (agronegócio) gera contradições e conflitos que refletem na
cidade, especialmente pela atuação desse poder e, contraditoriamente,
dos movimentos sociais por meio das manifestações (MELO; NARDO-
QUE, 2014).
Os dados do DATALUTA (gráfico 5) apresentam a dinâmica das
manifestações ocorridas nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do
Sul, durante o período de 2000 a 2012. O número de manifestações nos
estados apresenta tendência semelhante, exceto as variações maiores
ocorridas nos anos 2003 (67) e 2011 (66), em Mato Grosso, e 2005 (62
manifestações), em Mato Grosso do Sul.

Gráfico 5 - MT/MS: manifestações pelos movimentos sociais


do campo (2000 a 2012)

Fonte: DATALUTA, 2014. Organizado pelo autor.

Ao contrário das ocupações em decréscimo, as manifestações


em MT e MS mantiveram-se constantes ao longo do período estudado.
Isso significa que a luta pela terra não diminuiu; o que houve foram
mudanças nas estratégias adotadas pelos movimentos sociais.
Das manifestações ocorridas em Mato Grosso (179 ações), o MST
foi protagonista, seguido pelo Movimento Indígena (61) e pela CON-
TAG (49). Em Mato Grosso do Sul, o MST aparece como o principal
organizador de manifestações (100), seguido pelo Movimento Indígena
(81) e pela CONTAG (77).

 204
Ressaltamos a diversidade de movimentos organizadores de mani-
festações nos estados de MT e MS, especialmente movimentos ligados
a sindicatos, lutando por direitos trabalhistas. O principal movimento
atuante nesses estados, o MST, tem suas propostas para mudanças da
sociedade bem definidas, assim como sua forma de atuação. Tornar pú-
blicos problemas e reivindicações, por meio das manifestações nas cida-
des, é estratégia, pois nelas se concentram o poder político e a presença
da mídia amplia o alcance espacial da luta.
Nesse contexto, a cidade, como espaço das decisões políticas, é o
principal local das manifestações. No gráfico 6, apresentamos as tipolo-
gias das manifestações do campo entre os anos de 2000 e 2012 em MT
e MS.
O bloqueio de rodovia aparece como a principal forma de mani-
festação em Mato Grosso (164 bloqueios), seguido de 162 ocupações de
prédios públicos. De forma muito semelhante, em Mato Grosso do Sul o
bloqueio de rodovia (177) é a principal forma de pressão exercida pelos
movimentos do campo, seguido pela ocupação de prédio público (132).

Gráfico 6 - MT e MS: número de manifestações por tipologia


– 2000 a 2012

Fonte: DATALUTA, 2014. Organizado pelo autor.

O bloqueio de estrada/rodovia, apresentado no gráfico 6, aparece


como a principal ação dos movimentos em Mato Grosso do Sul. Essa
 205
estratégia consiste em bloquear o fluxo de veículos, ou parte dele, em
estradas e rodovias, como mecanismo de pressão do movimento para
divulgar sua luta e propostas à população e, ao mesmo tempo, negociar
com o governo as suas reivindicações.
A similaridade das tipologias é resultado das estratégias adotadas
em âmbito nacional; todavia as ações variam de acordo com a necessi-
dade do movimento, como afirma um dirigente6 do MST (MS):
Desde a ocupação de prédio público e a tranca da rodovia é uma
estratégia, depende do momento, daquele tipo de reivindicação.
Ocupar prédio público, não simplesmente porque é público, qual-
quer prédio público serve? Não. Não é qualquer órgão público que
serve, depende do momento. Quando se trata de algumas questões
da terra, desapropriação, aquisição de terra muitas vezes o INCRA é
foco, que acaba sendo o órgão mais ocupado [...].
[...] Agora quando a gente vai ao órgão público para conversar com
o gestor na questão das reivindicações, tá relacionado com a rei-
vindicação que nós queremos. Quando nós queremos reivindicar
uma desapropriação de terra, uma aquisição de terra, problemas em
questão dos assentamentos, nós vamos para o INCRA. Mas, muitas
vezes nós ocupamos o Ministério da Fazenda porque era o órgão
que estava segurando a liberação dos créditos, é o órgão que libera
o recurso pro banco liberar o crédito. Se é esse órgão, então, a nós
interessa pressionar que esse órgão resolva nosso problema. (Entre-
vistado D).

As ocupações dos espaços públicos são definidas de acordo com os


objetivos a serem atingidos por aquela ação do movimento. E ocorrem
na cidade porque é o lócus das instituições representativas do poder de
vários segmentos (Bancos, Prefeitura, INCRA, entre outros). Os mani-
festantes ocupam prédios públicos quantas vezes forem necessárias, até
serem atendidos em suas reivindicações, como pôde ser observado em
notícia publicada no jornal Correio do Estado, de Campo Grande, no
dia 24 de maio de 2012.

6
Entrevista realizada em maio de 2014, na sede do MST em Campo Grande (MS).

 206
Figura 3 - Jornal Correio do Estado: ocupação do INCRA
Fonte: Correio do Estado, 2012.

A ocupação de prédio público, sobretudo do INCRA, é a principal


forma de o movimento espacializar sua luta para pressionar, diretamen-
te, o órgão responsável pela Reforma Agrária. Portanto, a ocupação
[…] de determinados espaços políticos é fundamental para man-
ter a negociação. A pressão organizada é uma forma eficiente para
dar movimento à pauta de negociação. É criadora de fatos e novas
realidades, é a exposição pública do problema agrário e os confli-
tos que lhe são próprios. É dimensionar a luta pela terra na cidade,
mostrando a importância e a necessidade da resolução do problema
agrário. (FERNANDES, 1999, p.65).

A manifestação é forma de criar espaços de luta e resistência; é a


manifestação pública dos sujeitos e de seus objetivos (FERNANDES,
1994). Os principais objetivos das manifestações dos movimentos so-
ciais, durante os anos de 2000 a 2012, em Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul, estão ligados à desapropriação de terras e Reforma Agrária, se-
guidos por demarcações de terra e outras questões indígenas.
A maior parte das manifestações em MT e MS, durante o período
estudado, visou à desapropriação de terras para a Reforma Agrária: 307
manifestações em MT e 278 em MS. A segunda pauta das manifestações
refere-se às questões indígenas, entre elas a demarcação de suas terras,
de competência do Governo Federal e FUNAI. Recursos para produ-
ção e estruturação dos lotes e política agrícola e infraestrutura estão em

 207
terceiro lugar na pauta das manifestações. Por fim, emergem reivindica-
ções por água, saneamento básico e saúde em geral.
Quando mapeadas, as manifestações apresentam cidades politi-
camente importantes para os movimentos sociais do campo em Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul. Normalmente, as cidades com sede de ór-
gãos públicos de decisão e com importantes veículos de comunicação de
massa, formadores de opinião, são as de concentração de manifestações.
Na figura 4, Cuiabá (139 manifestações) aparece como a cidade
escolhida para as manifestações, seguida de Cáceres (39) e Rondonó-
polis (24). Estas são as principais sedes de municípios onde ocorrem
as manifestações no Mato Grosso. Campo Grande (81 manifestações),
Dourados (69) e Itaquiraí (24) concentram as manifestações em Mato
Grosso do Sul.
Apesar de, segundo o responsável7 pelo setor “Frente de Massa”
8
do MST, as manifestações em MT ocorrerem, sobretudo, nas cidades
de Cuiabá e Cáceres, o movimento passa por mudanças nas estratégias
de luta. Pelo fato de as ocupações de prédios públicos não alcançarem
os objetivos esperados, o movimento adotou os bloqueios de rodovias
como principal estratégia de luta na cidade:
[…] bloqueio de rodovia cresce muito porque os prédios públicos
não está dando mais resposta, por isso vai surgir aonde vai dar res-
posta, então para dar resposta hoje nas lutas do movimento seria
trancar rodovia, daí você tranca rodovia pra nós do MST é uma
situação crucial, porque você trancar uma rodovia você cria uma
antipatia com a sociedade, muitas vezes o governo não resolve esse
problema […] [sic]. (Entrevistado C).

O relato9 do dirigente do MST de MS aponta que, muitas vezes, os


efeitos do bloqueio de rodovia são contraditórios, pois tanto podem an-
gariar apoio da sociedade como rejeição ao movimento. Mesmo assim,
7
Entrevista realizada em junho de 2014 na sede do MST em Cuiabá (MT).
8
Denominação dada ao integrante do movimento que participa ativamente das mobili-
zações à frente dos manifestantes.
9
Entrevista realizada em maio de 2014 na sede do MST em Campo Grande (MS).

 208
Figura 4 - MT e MS manifestações do campo (2000 a 2012)
Fonte: INCRA/DATALUTA.

 209
colocando a sociedade contra o movimento, é ação necessária. Nesse
sentido, as mobilizações são estrategicamente pensadas para atingirem
seus objetivos com, ou sem, apoio da sociedade:
Então muitas vezes, ah, trancou a BR para prejudicar! Não, não é
essa a intenção, a intenção é dialogar com a sociedade, para que
a sociedade saiba o motivo pelo qual aquela ação está sendo feita.
Paramos o trânsito e vamos dar essas informações e às vezes distri-
buímos materiais escritos, já teve ações da gente parar o trânsito e
distribuir produtos da Reforma Agrária, para mostrar que a gente
produz e informar os usuários daquela BR o que está acontecendo.
Mas em momento algum uma ocupação numa estrada, uma mani-
festação numa rodovia, uma paralisação na rodovia ela vem impe-
dir o cidadão de ir e vir. Não é! Jamais nós queremos impedir os ci-
dadãos de ter o direito de ir e vir, nós queremos parar o cidadão pra
informar pra ele o que nós estamos reivindicando. (Entrevistado D).

Em Mato Grosso do Sul, Campo Grande e Dourados têm os nú-


meros mais elevados de manifestações, justamente pela centralização de
órgãos políticos e dos principais meios de comunicação no Estado, fator
primordial na luta. A localização do INCRA (Superintendência Regio-
nal) em Campo Grande e de sua unidade avançada em Dourados, assim
como a sede da FUNAI em Dourados, local de intensas manifestações
dos movimentos indígenas do Estado possibilitou a concentração das
manifestações. Itaquiraí (MS) se destaca, no entanto, pelo número de
manifestações, não por ser importante centro político, mas pela grande
quantidade de camponeses assentados e em acampamentos.
Além das ocupações em prédios públicos, o movimento indígena
realiza bloqueios de rodovias como forma de lutar e dialogar direta-
mente com o Estado. A BR-163 é importante rodovia para o fluxo de
mercadorias e pessoas em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, pois o
agronegócio expandiu-se ao longo da rodovia, acompanhado de desi-
gualdade e conflitos de camponeses e povos tradicionais expulsos, du-
rante este processo.
O movimento indígena procura, assim como os outros movimen-
tos, chamar a atenção para a realidade vivida, denunciando problemas

 210
de moradia, saúde e educação. A urgência por soluções evidencia-se na
preocupante estatística apresentada por Brand (2012, p.104):
Informações divulgadas pelo Distrito Sanitário Especial Indígena,
DESEI-MS, da Secretaria Especial de Saúde Indígena, SESAI, do
Ministério da Saúde, entre os anos de 2000 e 2011 ocorreram, no
Mato Grosso do Sul, um total de 555 casos de suicídios entre índios,
sendo que 99% dos casos ocorreram entre os Guarani e Kaiowá e
70% eram de pessoas entre 15 e 29 anos. O mesmo relatório registra
para os últimos dez anos um total de 317 homicídios entre indíge-
nas, no Mato Grosso do Sul, sendo 39, em 2011.

O movimento indígena intensifica sua luta, sendo um dos princi-


pais responsáveis pelas mobilizações nos estados. As manifestações do
campo nas cidades e rodovias comprovam a unidade contraditória entre
esses dois espaços (campo e cidade), pois contêm em seu cerne intensas
contradições inerentes ao capitalismo.
Para Fernandes (1994, p. 180), “A solução política da luta pela terra
começa com as ocupações dos latifúndios e se expande para a cidade,
lugar onde será desenvolvida a negociação sobre o problema apresen-
tado pelos trabalhadores”. Portanto, a manifestação é importante ele-
mento na discussão da luta pela terra e na relação campo-cidade, a fim
de entender o processo de desenvolvimento desigual e combinado do
capitalismo, gerador de riqueza e produtor de miséria ou de conflitos
sociais intensos.

Considerações finais
A análise da dinâmica da luta pela terra revela que, apesar de os
números sobre ocupações indicarem redução, a luta em MT e MS não
acabou; pelo contrário, percebemos a mudança de estratégia dos mo-
vimentos sociais diante da atual conjuntura de paralisação da Reforma
Agrária. Dessa maneira, as manifestações do campo realizadas nas cida-
des e rodovias foram constantes e, segundo resultados de trabalhos de
campo, são consideradas eficientes para atingir as reivindicações ime-
diatas.

 211
De 2007 a 2012, houve redução significante nas ocupações. Se-
gundo informações colhidas em campo, a redução se deve ao impacto
dos programas de combate à pobreza e transferência de renda e à não
realização da Reforma Agrária. A Reforma Agrária, principal reivindi-
cação dos movimentos sociais, não ocorreu como se esperava, produ-
zindo decepção e contribuindo para a redução do número de famílias
em luta. Outro fator importante na discussão da luta pela terra é a falta
de políticas públicas para os assentamentos, gerando desmobilização,
como afirma Almeida (2011, p.1).
É também na busca de atingir esta premissa, que os movimentos
e organizações sociais têm construído lutas por políticas públicas
complementares à Reforma Agrária, como crédito, comercialização,
assistência técnica, saúde, educação – na sábia compreensão que “só
terra cortada não basta”.

Entendemos a necessidade de a Reforma Agrária ir além da redis-


tribuição de terras, pois deve assegurar a permanência dos camponeses
na terra oferecendo-lhes saúde, educação e geração de renda, condições
dignas de vida.
Considerado eficiente na mobilização da sociedade, o bloqueio
de rodovia foi o principal tipo de manifestação em MT e MS. Em tra-
balho de campo, esta análise se confirmou: sem dúvida, bloquear ro-
dovias impacta o sistema e produz respostas rápidas. Como estratégia,
as manifestações ocorrem geralmente na cidade, por sediarem órgãos
responsáveis pela Reforma Agrária e demarcação de terras (INCRA
e FUNAI), além da presença de veículos de comunicação, dando vi-
sibilidade à luta. Essas características evidenciam a organização dos
movimentos sociais do campo, manifestando-se nos principais cen-
tros urbanos dos estados pesquisados. Em Mato Grosso, as cidades de
Cuiabá e Cáceres concentraram as manifestações; em Mato Grosso do
Sul, Campo Grande e Dourados receberam a maioria das manifesta-
ções no período estudado.
Portanto, diante das reflexões apresentadas nesta análise, conclu-
ímos que a luta pela terra, em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, está

 212
longe de estar desmobilizada ou resolvida. A luta se refaz na lógica do
desenvolvimento desigual do capitalismo, que continua a territorializar-
-se e a monopolizar os campos mato-grossense e sul-mato-grossense,
reproduzindo os conflitos pela terra. Em contrapartida, com ou sem
apoio do Estado, a luta pela terra continua a especializar-se, de acordo
com as estratégias adotadas pelos movimentos diante da conjuntura po-
lítica e econômica.

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índio e a história dos guarani/kaiowá. ANPUH - SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓ-
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STÉDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo Mançano. Brava gente: a trajetória do
MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 1999.

 215
 216
Mudanças Espaço-Temporais da
Paisagem dos Assentamentos
Providência III e Tupã, no Contexto
das Transformações Socioterritoriais
do Município de Curvelândia-MT

Sandra Mara Alves da Silva Neves


Doutora em Geografia. Docente na Universidade do Estado de Mato Grosso.

Junior Miranda Scheuer


Doutorando em Ciências Agrárias na Universidad de la República - Uruguai.

Miriam Raquel da Silva Miranda


Graduada em Geografia na Universidade do Estado de Mato Grosso.

Introdução
O presente texto foi gerado a partir de resultados obtidos na execu-
ção dos projetos de pesquisa: “Questão Agrária e Transformações Socio-
territoriais nas microrregiões do Alto Pantanal e Tangará da Serra/MT
na última década censitária” e “Modelagem de indicadores ambientais
para a definição de áreas prioritárias e estratégicas à recuperação de áre-
as degradadas da região sudoeste de Mato Grosso/MT”, da Rede Cen-
tro-Oeste de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação (Edital MCT/CNPq/
FNDCT/FAPs/MEC/CAPES/PRO-CENTRO-OESTE nº 31/2010).

 217
A Microrregião Geográfica Alto Pantanal no estado de Mato Gros-
so é formada pelos municípios de Barão do Melgaço, Cáceres, Curvelân-
dia e Poconé, totalizando 53.156,66 Km2, totalizando 132.178 habitantes
(IBGE, 2015a). Nesta, há o predomínio da pecuária, desenvolvida desde
o século XVIII, basicamente de forma extensiva, em decorrência do pul-
so de inundação do Pantanal, que ocorre em 87% da microrregião.
Destas municipalidades, este texto dedica-se ao estudo de Curve-
lândia, que, dentre os municípios, é o de criação mais recente, entretan-
to possui o assentamento rural mais antigo da microrregião, o Tupã, e
o terceiro mais antigo, o Providência III, implantados, respectivamente,
nas décadas de 80 e 90 do século passado, oportunizando a realização de
significativa análise de dinâmica da paisagem.
Os incentivos governamentais advindos dos programas de inte-
gração ou desenvolvimento – Programa de Integração Nacional- PIN
(1970) e Programa integrado de desenvolvimento do noroeste do Bra-
sil - Polonoroeste (década de 1980) – viabilizaram que assentamentos
fossem implantados com base em infraestrutura precária, desprezando
características biofísicas e provendo pouco apoio à organização social
(FEARNSIDE, 1986).
O PIN, segundo Moreno (2005), foi criado com a finalidade de
financiar obras de infraestrutura, especialmente a abertura de rodovias
federais e o desenvolvimento da reforma agrária. No contexto mato-
-grossense, mais especificamente na microrregião Alto Pantanal, o pro-
grama possibilitou a implantação da BR 174, trecho que liga Cáceres até
a fronteira com o estado de Rondônia, enquanto o Polonoroeste con-
tribuiu para o “[...] aumento do fluxo migratório de colonos que diri-
giam para os projetos de colonização implantados ao longo da rodovia
asfaltada” (MORENO, 2005, p. 42). Foi nessa conjuntura que os assen-
tamentos rurais do município de Curvelândia foram estabelecidos, con-
figurando espaço que contém “todos os tipos de espaços sociais [que]
são produzidos pelas relações entre as pessoas, e entre estas e a natureza,
que transformam o espaço geográfico, modificando a paisagem e cons-
truindo territórios, regiões e lugares” (FERNANDES, 2005, p. 26).

 218
O entendimento das mudanças na paisagem depende de docu-
mentação das alterações passadas e atuais na cobertura da terra. Desse
modo, as geotecnologias, como o sensoriamento remoto, por meio de
fotografia aérea e imagem de satélite, e os Sistemas de Informação Geo-
gráfica possibilitam, segundo Batistella e Brondizio (2004), entender e
integrar analiticamente as trajetórias das paisagens em transformação.
Os resultados proporcionados pelas geotecnologias fornecem sub-
sídios práticos aos tomadores de decisão, tanto na esfera pública como
privada, e são úteis no planejamento do desenvolvimento territorial e da
conservação ambiental.
Assim, teve-se, neste capítulo, o objetivo de caracterizar a configu-
ração territorial do município de Curvelândia, estado de Mato Grosso,
analisando as implicações das transformações socioterritoriais, relativas
aos usos da terra, na paisagem da municipalidade e de seus assentamen-
tos rurais.
Para gerar os resultados necessários à redação deste texto, foram
obtidas as bases cartográficas temáticas, na escala de 1:250.000, no sítio
da Secretaria de Estado de Planejamento e Coordenação Geral de Mato
Grosso (MATO GROSSO, 2012). As bases selecionadas foram recorta-
das pela área do município e do assentamento e inseridas no Banco de
Dados Geográficos (BDG), implementado no ArcGis (ESRI, 2007). No
software Spring (CÂMARA et al., 1996), foram processadas as imagens
dos satélites Landsat, referentes aos anos de 1984, 1994, 2004 e 2014, e
gerados os mapas de cobertura vegetal e uso da terra.
A caracterização da configuração territorial municipal, compreen-
dendo os componentes bióticos, abióticos e antrópicos da paisagem, foi
realizada a partir de pesquisa bibliográfica e documental.
Para se alcançar o objetivo proposto, a pesquisa contemplou, além
dessa introdução, das considerações finais e das referências, três partes.
Na primeira, abordou-se a configuração territorial da municipalidade
de Curvelândia, considerando os contextos socioeconômico e ambien-
tal. Na segunda, priorizou-se a análise das implicações das transfor-

 219
mações socioterritoriais relativas aos usos da terra no município; na
terceira, o foco recaiu sobre a dinâmica da mudança da paisagem nos
assentamentos rurais de Curvelândia.

Configuração territorial da municipalidade de Curve-


lândia-MT
O município de Curvelândia (Figura 1), integrante da Mesorre-
gião Geográfica Centro Sul Mato-grossense e da Microrregião Geográ-
fica do Alto Paraguai, foi criado em 28 de janeiro de 1998 por meio da
Lei estadual 6.981 (MATO GROSSO, 1998), com extensão territorial de
359,762 Km2 (IBGE, 2015a).
Atualmente, na população curvelandense há o predomínio do gê-
nero masculino, que apresentou crescimento de 8,47% no período de
2000 a 2010, enquanto, no mesmo período, o gênero feminino aumen-
tou 4,06%. A população do campo cresceu 89,79% ao passo que da
residente na cidade decresceu 18,20% (Tabela 1).

Tabela 1 – Curvelândia (MT):


dinâmica populacional nas décadas de 2000 e 2010.
População residente Densidade demográfica Crescimento da
Ano
Homens Mulheres Rural Urbana Total (hab./Km2) população (%)
2000 2.336 2.241 1.039 3.538 4.577 12,72 -
2010 2.534 2.332 1.972 2.894 4.866 13,53 6,35
Fonte: Censos demográficos (IBGE, 2015b, 2015c).

No Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (ATLAS BRA-


SIL, 2013), foi apresentado que o Índice de Desenvolvimento Humano
Municipal (IDHM) na década de 1990 era de 0,329, compreendido na
faixa de muito baixo desenvolvimento humano. Na década de 2000, o
IDHM foi de 0,530, inserindo o município na classe de baixo desenvol-
vimento e, em 2010, situou-se em 0,690, classificando-o como de médio

 220
desenvolvimento. Os índices do IDHM apresentaram evolução do ano
de 1991 a 2010, sendo Longevidade a dimensão que mais contribui para
aumento do IDHM, apresentando o valor de 0,811, seguida de Renda,
com 0,658, e Educação, com 0,615.

Figura 1 - Curvelândia: assentamentos rurais no município.


Fonte: os autores (2015).

 221
Tratando-se de saúde, em 2005, no município, havia quatro estabe-
lecimentos públicos municipais prestando serviço pelo Sistema Único
de Saúde (SUS), com atendimento ambulatorial médico em especialida-
des básicas e odontológico, entretanto sem internação pública. No ano
de 2009, houve redução de quatro para dois estabelecimentos, perma-
necendo a esfera municipal responsável pelos atendimentos na saúde. O
decréscimo foi maior para aquelas pessoas que carecem de tratamentos
odontológicos, com o registro de apenas uma unidade de atendimento
(IBGE, 2006, 2010).
Os elementos mencionados poderiam influenciar o índice de Lon-
gevidade do IDHM, motivado pela sensível redução do número de es-
tabelecimentos de atendimento em saúde (índice de 2000 – 0,723; e em
2010 – 0,811), entretanto isso não ocorreu. Segundo dados do Depar-
tamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS, 2012),
a morbidade hospitalar nos anos de 2009 a 2012, ou seja, a relação das
internações hospitalares advindas de doenças em determinado período
com a população (ROUQUAYROL, 1986), foi igual a zero (0); todavia,
em 2007, houve nove óbitos e, em 2005, sete óbitos.
Corrobora as informações de melhoria do índice de Longevidade
a esperança de vida ao nascer, de 68,4 anos, em 2000, para 73,6 anos,
em 2010; mortalidade até um ano de idade por mil nascidos vivos, de
30,1 para 17,6; mortalidade até cinco anos de idade por mil nascidos
vivos, de 33,4 para 21,5; e taxa de fecundidade (filhos por mulher), de
2,6 para 2,2, respectivamente. Inclui-se, ainda, o salto da porcentagem
da população em domicílios de Curvelândia com banheiro e água en-
canada, de 46,50%, em 2000, para 92,91%, em 2010; a porcentagem da
população em domicílios com energia elétrica, de 86,08% para 100%;
a porcentagem da população em domicílios com coleta de lixo (po-
pulação urbana), de 17,36% para 93,82%, na ordem (ATLAS BRASIL,
2013).
Em relação à educação, em 2005, na municipalidade, havia seis
escolas, entre elas uma (1) pública estadual (fundamental e médio) e
cinco públicas municipais (pré-escolar, fundamental e médio) e, no ano

 222
de 2012, uma escola pública municipal encerrou as atividades (INEP,
2015).
Em 2000, o índice de Educação perfazia 0,346, com porcentagem
de crianças entre cinco a seis anos na escola de 56,68%; na faixa dos 11
aos 13 anos, nos anos finais ou com ensino fundamental completo, de
76,54%; dos 15 aos 17 anos, com fundamental completo, de 44,67%; dos
18 aos 20 anos, com ensino médio completo, de 13,56% e, para o ano
de 2010, 90,44%; 97,30%; 70,20%; e 49,26%, respectivamente (ATLAS
BRASIL, 2013).
No mesmo sentido, o percentual de escolaridade da população
curvelandense com 25 anos ou mais, em 2000, era: fundamental in-
completo e analfabeto, 34,4%; fundamental incompleto e alfabetizado,
57,19%; fundamental completo e médio incompleto, 6,31%; médio com-
pleto e superior incompleto, 4,94%; superior completo, 1,15%; em 2010,
18,95%; 48,24%; 14,32%; 13,75% e 4,74%, em ordem (ATLAS BRASIL,
2013). O conjunto das informações indicou melhorias no acesso e na
qualificação da população, refletindo no índice.
Compondo o indicador de Renda, o Produto Interno Bruto
(PIB) do município, no ano de 2001, distribuía-se da seguinte for-
ma (em milhões): primeiro setor – agricultura – R$ 1,044; segundo
setor – indústria – R$ 1,033; terceiro setor – serviços – R$ 5,940; no
ano de 2010: R$ 12,043; R$ 6,836; e R$ 22,061, respectivamente, com
crescimento de 1.053% na agricultura, 562% na indústria e 271% nos
serviços. Dessa forma, o PIB em 2001 era de R$ 8,312 milhões e,
para o ano de 2010, elevou 419%, passando para R$ 43,148 milhões
(IBGE, 2015).
Acompanhando o cenário positivo do PIB, a renda per capita, a
porcentagem de extremamente pobres, a porcentagem de pobres, a taxa
de desocupação e o Índice de Gini também apresentaram melhorias: em
2000 – R$ 322,52; 12,29%; 36,25%; 6,39 %; 0,53; em 2010 – R$ 480,92;
2,92%; 14,43%; 3,98% e 0,47, na ordem, com crescimento de 49% na
renda, redução de 76,24% dos extremamente pobres, 60,20% de pobres

 223
e de 37,72% dos desempregados, além de diminuição da concentração
de renda em 11,32% (ATLAS BRASIL, 2013).
A produção agropecuária aumentou no município de Curvelândia,
conforme dados do Anuário Estatístico de Mato Grosso (MATO GROS-
SO, 2005, 2013, 2015). Na agricultura, a produção cresceu 260,90% e a
área, 98,28%, com destaque para a cultura da cana-de-açúcar. Na pe-
cuária, os resultados não foram tão expressivos quanto na agricultura,
porém houve acréscimo, no rebanho, de 24,80% (Tabela 2).

Tabela 2 – Curvelândia (MT): produção agrícola e pecuária.


2001 2011
Descrição
Área (ha) Produção (t) Área (ha) Produção (t)
Abacaxi 10 130
Arroz 110 220 - -
Café 4 4 - -
Cana-de-açúcar 400 28.000 1.257 101.817
Agricultura

Coco 5 32* - -
Feijão 70 28 20 12
Laranja 3 41 - -
Mamão - - 13 260
Mandioca 10 150 120 1.680
Milho 200 500 180 576
Seringueira 10 10 10 16
Total 812 28.953** 1.610 104.941
Descrição Cabeças Cabeças
Bovinos, suínos e bubalinos 34.976 52.820
Pecuária

Ovinos e caprinos 610 861


Aves 31.825 30.281
Eqüinos, asininos e muares 443 718
Total 67.854 84.680
Fonte: Mato Grosso (2005, 2013, 2015). *mil frutos. **não incluído o coco.

Entre os anos de 2001 e 2011, houve alterações no perfil agrícola,


ou seja, supressão de algumas culturas (arroz, café, coco e laranja) e in-
clusão de outras (abacaxi e mamão). Ao passo que algumas produções
agrícolas aumentaram (cana de açúcar, mandioca e seringueira), outras
tiveram reduções, como, que o feijão e o milho tiveram redução de área

 224
plantada, porém os avanços tecnológicos aumentaram a produtividade.
Para a pecuária, o incremento de cabeças foi para os bovinos, suínos,
ovinos e caprinos, com redução aos demais. O aumento da agricultura
deveu-se à atividade da cana-de-açúcar, como destacado, com perdas de
feijão e café e eliminação do arroz, ou seja, no espaço agrícola os produ-
tos alimentares foram substituídos por produto para exportação, nesse
caso, a cana para produção de etanol.
Relativo aos componentes ambientais, o município encontra-se
inserido na bacia do rio Cabaçal, sendo uma das unidades hidrográ-
ficas da Bacia Alto Paraguai (BAP), que contém o bioma Pantanal, que
abrange 235,37 Km2 (66,89%) da superfície municipal, enquanto o bio-
ma Amazônia 124,39 Km2 (33,11%).
As rochas presentes no município de Curvelândia pertencem às
seguintes formações geológicas: Aluviões atuais 72,74 Km2 (20,22%),
Pantanal 248,58 Km2 (69,10%) e Araras 38,44 Km2 (10,68%).
A geomorfologia da área investigada é constituída pelas seguin-
tes unidades: Sistema Regional de Aplainamento, 32,42 Km2 (9,01%);
Terraços fluviais, 10,78 Km2 (3%); Sistema de Dissecação em Colinas e
Morros 6,85 Km2 (1,90%); Sistema de Planície Fluvial, 1,91 Km2 (0,53%);
Planície Aluvionar Meandriforme, 60,05 Km2 (16,69%); e Sistema de
Dissecação, 247,76 Km2 (68,87%).
As formas de relevo e respectivas declividades estão assim distri-
buídas no município: 292,57 Km2 (81,32%) ocorrem em relevo plano
(0-3%), 57,13 Km2 (15,88%) em relevo suave ondulado (3,1 a 8%), 7,60
Km2 (2,11%) em relevo ondulado (8,1 a 20%) e 2,46 Km2 (0,68%) em
relevo forte ondulado (20,1-45%).
As classes de solos presentes no município são: Neossolos 80,59
Km2 (22,40%), Latossolos 279,17 Km2 (77,60%) e Argissolos 0,004 Km2
(0,001%).
De acordo com o Climate-data.org (2015), o tipo do clima de Cur-
velândia é o Tropical (Aw), com concentração de chuvas no verão. A
temperatura média municipal é de 25.8°C, e a pluviosidade média anual

 225
é de 1458 mm, sendo janeiro o mês em que ocorre maior quantidade de
precipitação e julho o mais seco (Figura 2).

Figura 2 - Curvelândia (MT): precipitação e temperaturas.


Fonte: Climate-data.org (2015). Organizada pelos autores.

Dinâmicas territoriais e mudança da paisagem de Cur-


velândia
Em Curvelândia, a classe Agricultura, situada na porção noroeste
do município, refere-se ao cultivo de cana de açúcar, tendo ocupado
área em que anteriormente era plantada pastagem (Figura 3). A super-
fície territorial utilizada para seu cultivo no período de estudo mais que
dobrou (Tabela 3). Neste caso, duas situações favoreceram a expansão
da cultura. Primeiro, a localização, pois Curvelândia dista aproximada-
mente 25 km de Mirassol D’Oeste, onde se encontra a usina Cooperativa
Agrícola dos Produtores de Cana de Rio Branco – COOPERB. Segundo,
tanto a cana-de-açúcar como a pastagem tiveram o desenvolvimento de
seus cultivos favorecido por estarem adaptados às condições edafocli-
máticas de Mato Grosso, em particular na porção sudoeste (FIETZ et
al., 2008; RIBEIRO et al., 2015).

 226
Figura 3 - Curvelândia (MT): uso da terra e cobertura vegetal.
Fonte: organizada pelos autores (2015).

Tabela 3 - Curvelândia (MT):


uso da terra e cobertura vegetal da municipalidade.
1984 1994 2004 2014 Dinâmica
Classes
Km2 % Km2 % Km2 % Km2 % (%)
Agricultura - - 19,613 5,45 27,994 7,78 47,550 13,22 142,44
Área de Tensão
6,355 1,77 6,118 1,70 6,065 1,69 5,806 1,61 -8,63
Ecológica
Água 3,203 0,89 3,119 0,87 3,102 0,86 3,027 0,84 -5,49
Floresta Aluvial 56,235 15,63 53,471 14,86 50,993 14,17 51,936 14,44 -7,64
Influencia Urbana 0,133 0,04 0,607 0,17 0,957 0,27 1,129 0,31 748,87
Pecuária 145,523 40,45 227,331 63,19 249,996 69,49 233,631 64,94 60,54
Savana Florestada 148,313 41,23 49,503 13,76 20,656 5,74 16,684 4,64 -88,75
Total 359,762 100 359,762 100 359,762 100 359,762 100
Fonte: organizada pelos autores (2015).

 227
As Áreas de Tensão Ecológica ocupam locais onde ocorre a in-
terpenetração de diferentes regiões fitoecológicas, e, na área de estudo,
observou-se o contato entre a Savana Florestada e a Floresta Estacional
Decidual (Figura 3). No período de estudo, o total de área recoberta
pela classe apresentou baixa redução (Tabela 3), fato explicado pelo re-
levo acidentado, que dificulta ou muitas vezes impede a incorporação
da área para a execução de atividades produtivas. Situação diferente foi
encontrada por Neves et al. (2014) ao investigarem a dinâmica da co-
bertura vegetal e o uso da terra no assentamento Roseli Nunes, situado
no município vizinho de Mirassol D’Oeste, onde identificaram decrés-
cimo da Área de Tensão Ecológica.
A classe Água, que contempla os rios, córregos e lagoas, mante-
ve os valores de área muito próximos nos anos investigados (Tabela 3
e Figura 3), possivelmente por influência das variáveis climáticas, hi-
drológica e antropogênicas. Essa classe é imprescindível à vida animal,
vegetal e às atividades humanas, constituindo, conforme Merten e Mi-
nella (2002), recurso finito, sem o qual não é possível o desenvolvimento
de atividades produtivas. Assim, a situação de equilíbrio apresentada
mostra-se satisfatória.
A Floresta Aluvial, encontrada especialmente ao longo dos cur-
sos hídricos, ocorre, no município de Curvelândia, sobretudo ao lon-
go do rio Cabaçal, tendo apresentado, no período de trinta anos, bai-
xos valores de redução (Tabela 3 e Figura 3). Atribui-se a situação ao
cumprimento do Código Florestal (BRASIL, 2012), pois a classe, por
estar situada ao longo dos flúvios, tem porções de sua área definidas
como de preservação permanente (APP), podendo estar coberta ou
não com vegetação nativa. Neste caso, a função da Floresta Aluvial é
a de proporcionar a preservação dos recursos hídricos, da paisagem e
da biodiversidade e, por último, assegurar o bem-estar das populações
humanas (GOUVEIA et al., 2013; KREITLOW et al., 2013; NEVES et
al.; 2014).
A influência urbana que se refere à cidade de Curvelândia foi a
segunda classe que mais apresentou crescimento no período analisa-

 228
do (Tabela 3 e Figura 3), fato que pode ser explicado pelo crescimento
populacional ocorrido na última década censitária (IBGE, 2013). Re-
sultados que corroboram o exposto foram apresentados por Cochev et
al. (2010) e Santos e Zamparoni (2012) ao realizarem análise multitem-
poral do município de Cáceres, em que constataram relação entre o au-
mento da área urbana e o crescimento populacional.
A Pecuária, embora tenha apresentado decréscimo no ano de 2014,
em consequência do crescimento da Agricultura (cana-de-açúcar), per-
maneceu como o uso predominante em Curvelândia (Tabela 3 e Figu-
ra 3). Pessoa et al. (2013), ao realizarem a análise espaço-temporal da
cobertura vegetal e uso na interbacia do rio Paraguai médio, localizada
na Bacia do Alto Paraguai, em Mato Grosso, assim como o município
de Curvelândia, verificaram diminuição da pecuária decorrente do au-
mento do cultivo de cana-de-açúcar.
Ao longo de trinta anos, a Savana Florestada foi quase completa-
mente substituída pela pecuária e agricultura (Tabela 3 e Figura 3). Lima
(2001) verificou que as áreas vegetadas, como a de Savana Florestada,
são importantes para as atividades agropecuárias por proporcionarem
maior concentração de biomassa, influenciando a fertilidade do solo.
Na tabela 04, é mostrado o estado de conservação da paisagem de
Curvelândia diante das ações humanas que modificaram os seus atribu-
tos naturais por meio dos usos. Destarte, os valores aferidos indicaram
que o processo de ocupação e uso da terra impactaram negativamente
os componentes naturais da paisagem, especialmente a vegetação, o que
pode acarretar distúrbios de ordem climática, hidrográfica e pedológica
(RODRIGUES et al., 2015).

Tabela 4 - Curvelândia (MT):


Índice de Transformação Antrópica (ITA) da paisagem.
1984 1994 2004 2014
ITA Estado ITA Estado ITA Estado ITA Estado
3,03 Regular 4,56 Regular 5,05 Degradada 5,21 Degradada
Fonte: organizada pelos autores (2015).

 229
Mudanças no uso da terra nos assentamentos rurais
de Curvelândia
A distribuição dos assentamentos da microrregião Alto Pantanal
por município mostra que, mesmo não tendo nenhum em Barão do
Melgaço, foram criados dezenove em Cáceres, dois em Curvelândia e
sete em Poconé, totalizando 28. Somente um dos assentamentos de Cur-
velândia está totalmente contido nos limites municipais (o outro não),
assim como há partes de dois outros assentamentos, que pertencem ao
município de Mirassol D’Oeste (Tabela 05).

Tabela 5 – Curvelândia (MT): assentamentos e extensão territorial.


Quantidade Área total Área em Curvelândia**
Assentamentos Criação Fase*
de Famílias Km2 ha Km2 ha %
Providência III 19/12/1995 7 74 15,97 1.596,50 15,97 1.596,50 100
Roseli Nunes 02/04/2001 3 317 106,48 10.647,87 6,53 653,22 6,40
São Saturnino 04/08/2000 3 107 30,24 3.023,99 2,87 286,93 9,49
Tupã 08/08/1986 7 113 29,85 2.985,02 21,36 2.136,15 71,65
Total 607 182,53 18.253,38 46,72 4672,80
Fonte: INCRA (2014). * 3= Assentamento Criado e 7= Assentamento Consolidado**.
Organizada pelos autores (2015)

Os assentamentos “consolidam a luta pela terra, uma vez que são


implantados em terras ociosas ou improdutivas, modificando a realida-
de territorial e sua paisagem” (ANDRADE et al., 2013, p. 70). Conforme
se pode observar, no município de Curvelândia, a supressão da vegeta-
ção ocorreu para dar espaço a construções de casas, cultivos, pastagens,
entre outros, de acordo com as necessidades das famílias assentadas ao
longo dos anos.
No tocante ao assentamento Providência III, localizado somente
no município de Curvelândia, os corpos d’água sofreram redução de
sua área, assim como a Floresta Aluvial e a Savana Florestada, enquan-
to a extensão de terra destinada à Pecuária mais que dobrou (Tabela 6
e Figura 4). A Pecuária é predominante em ambos os assentamentos,
contudo há o desenvolvimento da agricultura em pequena escala, não
representada nos mapas porque a resolução espacial da imagem Landsat

 230
(30 X 30 metros) não possibilita a sua distinção no processo de classifi-
cação utilizado para elaboração dos mapas.

Tabela 6 - Curvelândia (MT): mudanças espaço-temporal da


paisagem no assentamento Providência III
1984 1994 2004 2014 Dinâmica
Classes
Km2 % Km2 % Km2 % Km2 % (%)
Água 0,286 1,87 0,279 1,83 0,250 1,64 0,101 0,66 -64,68
Floresta Aluvial 0,282 1,85 0,274 1,79 0,237 1,55 0,069 0,45 -75,53
Pecuária 7,036 46,04 13,742 89,92 14,261 93,32 15,000 98,16 113,18
Savana Florestada 7,678 50,24 0,987 6,46 0,534 3,49 0,113 0,74 -98,52
Total 15,282 100 15,282 100 15,282 100 15,282 100
Fonte: organizada os autores (2015).

Figura 4 - Curvelândia (MT): uso da terra e cobertura vegetal


do assentamento Providência III 1984 a 2014.
Fonte: organizada pelos autores (2015).

Contudo, os agricultores familiares do assentamento Providên-


cia III, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB),
comercializaram a produção via Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA, programa do governo federal que incentiva a produção da agri-
cultura familiar e disponibiliza os alimentos às pessoas em estado de
vulnerabilidade social e insegurança alimentar) às entidades beneficen-

 231
tes, conforme pode ser observado na tabela 7. Aproximadamente 305
toneladas de alimentos foram comercializados (CONAB, 2015), dentre
eles os produtos de origem agroindustrializada, frutífera, olerícola e de
grandes atividades (milho e feijão).

Tabela 7 - Curvelândia (MT): comercialização produção da agricultura


familiar do assentamento Providência III no PAA
Produtos 20101 20112 20123 20144
Abacaxi - - 3.500,00 -
Abóbora 5.326,00 9.342,00 4.500,00 6.800,00
Alface 3.728,20 6.755,70 10.000,00 3.034,00
Almeirão 1.479,60 5.649,60 10.000,00 3.000,00
Banana - 6.364,00 15.000,00 -
Batata doce 1.830,00 2.280,00 5.500,00 -
Berinjela - 3.716,00 3.500,00 -
Beterraba - - 5.000,00 -
Bolacha - - 1.800,00 -
Caxi - - 5.000,00 -
Cebolinha verde - - - 2.500,00
Cenoura 3.690,00 1.570,00 5.000,00 -
Cheiro verde (Cebolinha e Salsinha) 830 2.416,00 7.000,00 -
Coco - - 5.000,00 -
Coentro - - - 3.000,00
Couve 1.720,00 6.216,80 8.000,00 4.000,00
Feijão   - 5.000,00 2.000,00
Feijão verde (Vagem) 1.100,00 2.340,00 5.150,00 3.600,00
Goiaba - - 5.000,00 -
Jiló - 4.624,00 5.000,00 -
Laranja - - 5.000,00 -
Limão 2.100,00 - 4.900,00 3.000,00
Mamão - - 5.000,00 -
Mandioca com casca 3.500,00 13.470,00 6.000,00 6.623,00
Maxixe - - 5.000,00 -
Milho verde (Espiga) - - 5.000,00 -
Pão (Babaçu) - - 3.840,00 -
Pepino 1.266,00 10.077,00 5.000,00 4.000,00
Pimentão 1.330,00 2.000,00 2.750,00 -
Quiabo 2.560,00 5.264,00 5.000,00 6.000,00
Rabanete - - 5.000,00 -
Rúcula 1.164,00 5.250,00 10.000,00 3.220,00
Salsa - - - 2.800,00
Tangerina - - - 4.000,00
Tomate - - 10.000,00 8.000,00
Tomate cereja orgânico 2.500,00 2.000,00 - -
Total (Kg) 34.123,80 89.335,10 181.440 65.577
1
Associação de Produtores Rurais de Providência III = R$ 49.500,00; 2Associação de
Produtores Rurais de Providência III = R$ 134.999,30; 3Associação de Produtores Rurais
de Providência III = R$ 345.900,00; e 4Cooperativa de Produtores de Hortifrutigranjei-
ros de Mato Grosso= R$ 136.000,00.
Fonte: CONAB (2015). Organizada pelos autores (2015).

 232
Entre os assentamentos no território curvelandense, destaca-se
o de Tupã, com maior extensão de terra, mesmo não estando contido
integralmente nos limites do município. Assim como encontrado no
assentamento de Providência III, as classes Água e Savana Florestada
cederam espaço à atividade pecuária (Tabela 8 e Figura 5). Situação
análoga foi encontrada por Silva et al. (2012) e Oliveira et al. (2013) ao
realizarem estudos nos assentamentos rurais de Cáceres (MT), em que
constataram que a pecuária leiteira constitui a principal atividade eco-
nômica. Além do mais, Silva et al. (2012) afirmaram que, em Cáceres,
em média 70% das áreas dos assentamentos estão ocupadas com pasta-
gens e apenas 30% com atividades agrícolas.

Tabela 8 - Curvelândia (MT): mudanças espaço-temporais da paisa-


gem no assentamento Tupã
1984 1994 2004 2014 Dinâmica
Classes (%)
Km2 % Km2 % Km2 % Km2 %
Água 0,130 0,46 0,118 0,41 0,101 0,35 0,045 0,16 -65,38
Pecuária 12,680 44,38 22,481 78,69 22,771 79,70 23,892 83,63 88,42
Savana Florestada 15,760 55,16 5,971 20,90 5,698 19,94 4,633 16,22 -70,60
Total 28,570 100 28,570 100 28,570 100 28,570 100
Fonte: organizada pelos autores (2015).

As áreas dos assentamentos Providência III e Tupã encontravam-


-se, em 1984, antropizadas, entretanto havia presença de fragmentos de
vegetação de Cerrado (Figuras 4 e 5), configurando, à época, o estado
regular de conservação (Tabela 9) e contribuindo para a proteção dos
solos e dos corpos hídricos.

 233
Figura 5 - Curvelândia (MT): uso da terra e cobertura vegetal do as-
sentamento Tupã – 1984 a 2014.
Fonte: organizada pelos autores (2015).

Tabela 9 - Curvelândia (MT): índice de transformação antrópica da


paisagem dos assentamentos Providência III e Tupã
Assentamentos 1984 1994 2004 2014
ITA Estado ITA Estado ITA Estado ITA Estado
Providência III 3,32 Regular 5,51 Degradada 5,68 Degradada 5,91 Degradada
Tupã 3,22 Regular 4,94 Regular 4,95 Regular 5,18 Degradada
Fonte: organizada pelos autores (2015).

A antropização ocorreu com maior intensidade no assentamento


Providência III, cujo uso, durante os dez anos de ocupação, degradou
a paisagem, diferentemente do assentamento Tupã, em que transcorre-
ram trinta anos para que os atributos da paisagem fossem degradados.
Nos dois assentamentos, a pecuária é o uso predominante, o que ocorre
em virtude, segundo Margulis (2003), do baixo investimento nessa ati-
vidade quando comparada com a agricultura.
Nos assentamentos pesquisados, a predominância da pastagem e
sua localização, próxima a cursos de água, constitui fator de preocupa-

 234
ção por impactar, além da biodiversidade vegetal e animal, o meio de
sobrevivência do assentado, que é a terra e a água, seja pelo aumento da
erosão e compactação do solo, seja por meio do pisoteio dos animais,
da contaminação das águas, com a utilização de agroquímicos como
nutrientes e pesticidas, em suas atividades, da perda de fertilidade, do
assoreamento de rios e represas, seja pela perda de valor das terras, re-
dução da produção agrícola, entre outros fatores (NOVOTNY; OLEM,
1993; PESSOA et al., 2013).
Nessa ótica, os “assentamentos, embora representem grandes desa-
fios para a conservação, também apresentam oportunidades para abor-
dagens inovadoras em agroflorestas e planejamento da paisagem, com a
combinação efetiva entre agricultura de pequena escala e conservação”
(CULLEN JR. et al., 2005, p. 201). Assim, de acordo com Goulart et
al. (2005, p. 84), “a reforma agrária pode, pelas práticas agroflorestais,
uma ferramenta de conservação da biodiversidade, além do seu objetivo
maior, que é o assentamento de agricultores no campo”.

Considerações Finais
Constatou-se aumento das atividades agropecuárias, industriais
e de serviços executadas no município, o que provavelmente concor-
reu para a ampliação do uso da terra e a supressão da cobertura vege-
tal, reduzindo os Corpos d’água, a Floresta Aluvial e a Savana Flores­-
tada.
No município, as classes Agricultura (sobretudo a cana-de-açúcar)
e Influência Urbana foram as que apresentaram maior dinâmica no pe-
ríodo 1984 a 2014, entretanto suas áreas territoriais somadas são infe-
riores à ocupada pela classe Pecuária. Tanto a Agricultura (cana-de-açú-
car) como a Pecuária tiveram a expansão de seus cultivos favorecida por
estarem adaptados às condições edafoclimáticas regionais.
Nesse sentido, averiguou-se que os agricultores familiares do as-
sentamento de Providência III exercem atividades agropecuárias e que a
comercialização realizou-se via PAA, entretanto não foram encontrados
 235
dados relativos à produção e comercialização agrícola dos assentados
do Tupã.
O estado degradado da paisagem do assentamento Providência III
(embora tenha sido criado após a existência das legislações ambientais)
e do Tupã, demanda estratégias de trabalho em conjunto e a organi-
zação dos processos produtivos, visando alcançar o equilíbrio entre a
produtividade e a redução dos impactos à natureza.

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 239
 240
Agricultura: a História da
Comunidade Vale do Sol II,
Tangará da Serra-MT, Brasil
1

Daniel Ricardo da Silva Sena


Mestrando em Ambiente e Sistemas de Produção Agrícola – UNEMAT.
Hellen Simone Tortorelli
Mestranda pelo em Ambiente e Sistemas de Produção Agrícola – UNENAT.
Santino Seabra Júnior
Doutor em Agronomia. Docente na Universidade Estadual do Mato Grosso.

Introdução
O capítulo articula-se ao projeto de pesquisa “Questão Agrária e
Transformações Socioterritoriais nas microrregiões do Alto Pantanal e
Tangará da Serra/MT na última década censitária” da Rede Centro-Oes-

1
A realização deste capítulo apenas foi possível devido à colaboração da Professora DSc.
Aparecida Fátima Alves de Lima, que muito contribuiu com nosso estudo, viabilizando
as visitas técnicas e disponibilizando documentos. Ao senhor professor e secretário
municipal de agricultura e pecuária do município de Tangará da Serra (MT), Neuri Elie-
zer Singer, também diretor do Núcleo de Políticas para economia Solidária - NUPES,
por disponibilizar referências e conceder entrevistas. À Prefeitura de Tangará da Serra
(MT), por disponibilizar transporte durante a pesquisa. Aos agricultores e agricultoras
da Comunidade, em especial as pertencentes à Associação de Doces da Comunidade
vale do Sol II, que foram extremamente receptivos ao nos receber e conceder as entre-
vistas. Por fim, aos nossos orientadores professores, Dsc. Edinéia Galvanin e Ronaldo
José Neves, pelas contribuições científicas ao trabalho.

 241
te de Pós-graduação, Pesquisa e Inovação (Edital MCT/CNPq/FNDCT/
FAPs/MEC/CAPES/PRO-CENTRO-OESTE nº 31/2010).
Em Mato Grosso, assim como em diversas regiões brasileiras, exis-
te grande desafio a ser superado pelas políticas públicas, que é a produ-
ção de alimentos para o mercado local e regional e o fortalecimento da
agricultura familiar. Com isso, o Governo Federal criou políticas públi-
cas de inclusão social que visam o fortalecimento da reforma agrária e o
financiamento da agricultura familiar.
Mesmo com incentivo de políticas, existem muitas barreiras a se-
rem vencidas, como, por exemplo, as condições de degradação de áreas
que deveriam proporcionar a possibilidade de exercer a agricultura com
condições mínimas de produtividade. Outro problema é a falta de in-
vestimentos que possibilitem o incremento da fertilidade, possibilitan-
do o desenvolvimento de sistema produtivo que vise a autoprodução de
alimentos e a comercialização local, atingindo a segurança alimentar e
nutricional das famílias assistidas e a qualidade de vida no campo.
Além disso, essas políticas têm que favorecer a conservação das
estradas, o acesso a água, o planejamento dos órgãos reguladores de
acesso a crédito, mitigando as dificuldades da agricultura familiar. No
caso do município de Tangará da Serra (MT), é notório que há desafios
à permanência do homem no campo e ao desenvolvimento de sua agri-
cultura, em especial nas comunidades formadas por meio de políticas
públicas.
Nesse contexto, este relato tem o objetivo de registrar o processo
de formação da comunidade Vale do Sol II em Tangará da Serra. Para
tanto, apresenta-se breve discussão sobre a história da trajetória de vida
dos agricultores e do acesso à unidade de produção, possibilitando o
exercício da agricultura familiar no município. Uma história da reali-
dade e da luta de agricultores beneficiários da reforma agrária, mas que
receberam áreas rurais com difícil acesso a água, solos que apresentam
baixa fertilidade e com escasso auxílio técnico para o desenvolvimento
dos sistemas de produção agrícolas.

 242
Vale mencionar que este relato é justificado pela importância da
luta pela terra por agricultores familiares que, na sua trajetória histó-
rica, enfrentam desafios para desenvolver sistemas de produção que
possibilitem a autoprodução de alimentos e a inserção em mercados
regionais. Acrescente-se a necessidade da associação dos agricultores
e da adesão a princípios da economia solidária para que esses agricul-
tores consigam fixar-se na terra e construir ambiente favorável à vida
camponesa.
Para este estudo, foi realizada inicialmente consulta aos documen-
tos da constituição da Comunidade Vale do Sol II e levantamento de
trabalhos desenvolvidos na comunidade. Posteriormente, foram reali-
zadas entrevistas com agricultores da Comunidade, pesquisadores que
acompanharam a organização dos agricultores em associações e repre-
sentantes de órgãos municipais que auxiliaram nas associações das mu-
lheres e de moradores do lugar de pesquisa.
As entrevistas foram realizadas nas unidades produtivas, e os en-
trevistados foram indicados pelos próprios agricultores, seguindo o
critério do processo de ocupação da área e a participação na atual con-
figuração territorial da comunidade. A identificação dos informantes
seguiu a metodologia “bola de neve”, mediante a qual, durante visitas
às unidades produtivas, foi possível vivenciar a realidade dos sistemas
de produção. Para tanto, foram utilizadas técnicas qualitativas não pro-
babilísticas, como entrevistas semiestruturadas, análise de documentos
e relatos orais que possibilitam o registro, em documentos, da história
que poderia ser perdida.
Desenvolveu-se, pois, pesquisa qualitativa, que, segundo Golden-
berg (2004, p. 14), não tem preocupação com a representatividade nu-
mérica do grupo pesquisado, mas sim com o aprofundamento da com-
preensão de um grupo social, de uma organização, de uma instituição,
de uma trajetória. A isso se acrescentam preceitos de Durkheim (2007),
que se preocupa com a sociedade e sua influência sobre o homem, pro-
porcionando a unidade das ciências. Este mesmo autor defende a rela-
ção do indivíduo com os fenômenos sociais, por meio dos fenômenos

 243
físicos, com base na consonância das relações do sujeito por intermédio
da experiência e da observação.

Metodologia utilizada
A metodologia utilizada na pesquisa para analisar a forma de
ocupação da terra no contexto histórico na Comunidade Vale do Sol II
compreendeu levantamento de bibliografia e documentos sobre a área
de estudo, visitas técnicas à comunidade e aplicação de formulários so-
cioeconômicos representativos da situação social.
Por realizarmos a descrição do convívio social dos produtores com
suas terras por meio dos sistemas de produção voltados diretamente à
agricultura familiar, à economia solidária e à qualidade de vida, opta-
mos pelo paradigma qualitativo de pesquisa. Segundo Ludke e André
(1986, p. 5): “O papel do pesquisador é justamente o de servir como
veículo inteligente e ativo entre o conhecimento acumulado na área e as
novas evidências que serão estabelecidas a partir da pesquisa”.
A identificação dos informantes se deu pelo método “bola de neve”
onde as unidades da amostra são selecionadas, por meio de identifica-
ção de pessoa que conhece a área a ser estudada e indicará os outros
participantes da pesquisa. Esta metodologia é muito utilizada na pes-
quisa social, considerada como pesquisa não probabilística por não ser
possível que seja determinada na amostra a probabilidade da seleção
dos participantes deste modo, Baldin e Munhoz (2011, p 51) afirma:
A snowball sampling ou “Bola de Neve” prevê que o passo subse-
quente às indicações dos primeiros participantes no estudo é soli-
citar, a esses indicados, informações acerca de outros membros da
população de interesse para a pesquisa (e agora indicados por eles),
para, só então sair a campo para também recrutá-los.

Além disso, introduzida inicialmente por Coleman (1958) e Gold-


man (1961), a amostragem em bola de neve é método que não se utiliza
de sistema de referências, mas sim de rede de amizades entre os mem-
bros existentes na amostra. Esse tipo de método, baseado na indicação

 244
de um ou mais indivíduos, é também conhecido como método de cadeia
e referência. O processo começa de alguma forma pelo pesquisador, que
faz a identificação de alguém da comunidade-alvo da pesquisa e essa(s)
pessoa(s), por sua vez, indicar(ão) outros indivíduos para a amostra, e
assim sucessivamente, até que se alcance o tamanho amostral desejado.

Alguns aspectos históricos do município de Tangará


da Serra
O município de Tangará da Serra possui área de 11.423,04 km2,
sendo aproximadamente 51% de área indígena, dos Paresís, que foram
os primeiros habitantes de toda a área dos campos do Tapirapuã, local
onde está edificada a cidade e onde se situa espaço rural de Tangará da
Serra (OLIVEIRA, 2002).
O autor complementa que houve fluxo migratório de pessoas ori-
ginadas de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e dos estados do nordeste,
sendo maior o fluxo populacional de famílias oriundas de Minas Gerais,
sobretudo nos seus primeiros dez anos de colonização privada. Ressalta
ainda que muitas dessas famílias seguiram a trajetória do café, migran-
do de Minas Gerais para o estado do Paraná e, posteriormente, para
Tangará da Serra, constituindo fenômeno da migração rural-rural.
Tangará da Serra foi constituída no período de 1959 a 1979, e foi
edificada próxima a pequenos ribeirões, em planalto abaixo da Serra do
Tapirapuã. O espaço foi organizado pela Colonizadora SITA, definindo
o a cidade o campo, em que as áreas rurais foram divididas conforme a
distância da área urbana. Os lotes rurais aumentavam de tamanho con-
forme se distanciavam do perímetro urbano e, com isso, as famílias de
menor poder aquisitivo instalaram-se nos lotes menores, constituindo
espaço representativo para a agricultura familiar.
Esses agricultores apresentam cultura agrícola enraizada, pois há
relação de acúmulo de conhecimentos com os fenômenos da natureza e
expressar conhecimentos sobre cultivo. Contexto bem marcante na his-
tória da cidade com relação aos colonizadores que chegaram a Tangará

 245
da Serra, conhecidos como “os pioneiros”, que, segundo Barroso et al.
(2008, p. 18), conseguiram vencer a serra de Tapirapuã:
Tendo as serras como marcos referenciais de memória e da história
[...] a colonização de Tangará da Serra, local tradicionalmente ocu-
pado pelos índios Paresí. Esta região foi reterritorializada nas déca-
das de sessenta e setenta, especialmente por famílias de lavradores
de várias regiões do Brasil, particularmente naturais do Nordeste e
do Sudoeste do Brasil.

Aspectos históricos dos agricultores


da comunidade Vale do Sol II no
município de Tangará da Serra
A Vale do Sol II localiza-se no município de Tangará da Serra, en-
tre as coordenadas geográficas 83º97’00”N e 45º60’00”E. A comunida-
de é conhecida popularmente pelos habitantes deste município como a
da Fazenda Bezerro Vermelho, por causa do nome da fazenda que lhe
deu origem. A área total do local que deu origem à comunidade é de
963,4002 ha2, onde foram alocados 192 lotes de 4,5 ha, além das áreas de
preservação permanente, reserva legal e estradas (Figura 1).
No processo de formação, a comunidade teve importante parceria
municipal via políticas públicas, que contribuíram na estruturação da
comunidade, construindo pontes e estradas, além da oferta de cursos
de capacitação. Os pequenos produtores puderam contar com o Núcleo
de Participação Social e Economia Solidária (NUPES)3, política pública
criada pela prefeitura municipal de Tangará da Serra a fim de promover
a integração da economia municipal.
A aquisição da área foi financiada pelo Banco do Brasil via crédi-
to fundiário do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PCNF), cuja

2
Fonte: Projeto de parcelamento de imóvel rural fazenda Bezerro Vermelho na gleba
Boa Vista, 09/10/2006.
3
Lei 2.460 de 2005, reconhecida como política pública municipal, sendo município pio-
neiro no Estado de Mato Grosso a propor como lei a economia solidária.

 246
Figura 1 - Projeto de parcelamento de imóvel rural para constituição
da comunidade Vale do Sol II em Tangará da Serra (MT),
financiado pelo Programa Nacional de Crédito Fundiário.
Fonte: Documento particular cedido pela pesquisadora
Prof. DSc. Aparecida de Fátima Alves de Lima.

 247
função é intermediar o acesso a terra e garantir o investimento em infra-
estrutura básica da unidade produtiva. As famílias têm a oportunidade
de adquirir um lote por meio de financiamento com prazo de 20 anos
para o pagamento, com 36 meses de carência. Nesse programa, quem se
encaixa no perfil deve procurar o Sindicato dos Trabalhadores Rurais ou
da Agricultura Familiar para ser cadastrado e receber orientações para
aquisição da terra.
Os produtores que adquirem a terra podem contar com a Rede de
Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) cadastrada, mediante pro-
cesso de contratação feito nos estados por meio das Unidades Técnicas
Estaduais (UTEs) e outros tipos de parcerias, para auxílio em técnicas.
Por meio destas, são determinados os tipos de produção viáveis a serem
cultivados nas comunidades; no caso do Vale do Sol II, predomina o
cultivo de fruticultura, tipo de produção determinado pelas entidades
governamentais na criação do projeto de formação da comunidade.
Para participar do programa PNCF, é necessário que os interessa-
dos sejam agricultores e sem terra, que exerçam atividade de diarista,
assalariado, arrendatário, parceiro, meeiro, agregado, posseiro e que se-
jam proprietários de terras com dimensões inferiores ao módulo rural
do programa, que, no caso, foi de 4,5 ha.
A aquisição de terras para o PNCF não pode ser passível de desa-
propriação para a reforma agrária, e os proprietários devem manifestar
interesse em vendê-las, opção muito usada pelos herdeiros de proprie-
dades rurais no momento da partilha da herança. Os interessados em
vender o imóvel tem que estar com a documentação regular, a fim de
garantir a transferência da propriedade, pois um dos fatores fundamen-
tais é que o imóvel não esteja hipotecado, com problemas jurídicos ou
dívidas com a União, relacionada a encargos trabalhistas de seus respec-
tivos funcionários.
Com o processo de modernização e de resistência camponesa, a
estrutura agrária brasileira, em especial os latifúndios, vive processo di-
nâmico de reestruturação, tanto no sentido da democratização do aces-

 248
so como no da reconcentração. Por meio do PNCF, é possível observar
a reestruturação via partilha como, por exemplo, a compra pelo governo
de grande fazenda para dividi-la em pequenas unidades de produção.
Segundo Moreira (1990, p. 79), “o minifúndio ora se dissolve, ora re-
nasce, segundo o ritmo da marcha da modernização e da resistência
camponesa”. Nesse sentido, tem-se a ideia do que ocorreu na comunida-
de Vale do Sol II, resultante da desconstrução de latifúndio para o sur-
gimento de vários minifúndios para formação da agricultura familiar.
Nessas condições, no ano de 2006, alguns agricultores deixaram de
trabalhar como mão de obra contratada para obter seu lote e iniciar a
agricultura. Alguns afirmam que trabalhavam como peões em fazendas,
ou mesmo por conta própria, prestando serviços diversos como em-
pregados; outros afirmaram que eram funcionários de lojas na cidade;
outros ainda declaram que já se encontravam aposentados.
Existem, entretanto, aqueles agricultores que vieram para o mu-
nicípio de Tangará da Serra (MT) de outras regiões brasileiras na ex-
pectativa de adquirirem terra e desta retirarem as condições necessárias
para sustentarem as famílias. A maioria dos agricultores enfatizou que
foram informados sobre a possibilidade de acesso a terra nessa área por
indicação de parentes e amigos que já viviam ali.
Alguns agricultores, como o senhor JPS, embora enfrentem difi-
culdades, mantêm-se na unidade produtiva e orgulham-se de conseguir
tornar esse sonho realidade. JPS relata que, graças a muito trabalho e
persistência, tem cultivado maracujá, abacaxi, entre outras espécies,
e comercializado esses produtos na região de Tangará da Serra. Seu
otimismo é bastante expressivo: “Desde criança achava bonito aquele
monte de pé-de-fruta no sítio que meus pais trabalhavam, mas nunca
tinha imaginado que ao ter a minha própria terra, que as coisas seriam
tão difíceis de conseguir”. (JPS, 60 anos).
Essa fala remete aos desafios encontrados no início ao adquirir sua
unidade produtiva, pois transformar ambiente de pastagem em sistema
produtivo baseado no policultivo, com a possibilidade de produção para

 249
o autoconsumo e comercialização, depende de aporte financeiro. Recur-
so que essas famílias não tinham, já que dependem de políticas públicas
para efetivar suas conquistas. A morosidade do processo e a escassez de
recursos fizeram que o sucesso da implantação desses sistemas de pro-
dução dependesse do conhecimento individual e da capacidade técnica
de cada agricultor e de sua força de trabalho.
Diferente do agricultor JPS, muitos agricultores deixaram seus lo-
tes, pois os desafios foram maiores que a capacidade de se manter na
terra, havendo necessidade de buscar emprego na cidade ou em outras
áreas rurais. Explica-se: o início do desenvolvimento de sistema de pro-
dução pode representar até períodos de restrição de necessidades bá-
sicas, podendo colocar o agricultor em risco de segurança alimentar e
nutricional. Isso ocorre porque o acesso à terra pela reforma agrária no
século XXI constitui muitas vezes o acesso a áreas já exploradas e, mui-
tas vezes, degradadas.
Outro problema enfrentado pela comunidade é a regularização
da área. Alguns lotes apresentam irregularidade: os produtores que não
efetuaram o registro da área no momento da aquisição do lote não estão
conseguindo por causa de ação judicial impetrada pelo então proprie-
tário da antiga fazenda Bezerro Vermelho, hoje Comunidade Vale do
Sol II.

Os desafios da ocupação territorial na Comunidade


Vale do Sol II
Ao adquirir os lotes rurais, os agricultores tiveram a oportunidade
de exercer a atividade de pequeno produtor rural, com características
familiares, advindas de prática de agricultura em condições espaciais
diferentes da realidade encontrada na Comunidade Vale do Sol II. Na
área em questão, por ser antiga fazenda com atividade econômica liga-
da à pecuária, havia concentração de gramínea brachiaria e cupins em
boa parte dos lotes, o que, de acordo com os agricultores, foi o primeiro
desafio a ser considerado na implantação de seus sistemas de cultivo.

 250
Diante disso e por não possuírem maquinários agrícolas, muitos
produtores desenvolveram as primeiras atividades com ferramentas
manuais, como enxadões, enxadas e foices. O acesso à água do rio Be-
zerro Vermelho para possibilitar a irrigação foi desafio constante, so-
bretudo para as unidades produtivas mais distantes do rio. A irrigação é
primordial para o sucesso da implantação de sistemas hortícolas, pois a
maioria das espécies de interesse comercial necessita da suplementação
de água. A dificuldade de implantar a irrigação trouxe grandes prejuí-
zos, deixando os agricultores em condições mais delicadas por falta de
recursos financeiros.
Vale ressaltar que a fruticultura deveria ser a atividade agrícola
predominante nas unidades produtivas, pois estava prevista no projeto
de aquisição das terras e, aproximadamente dois anos após a ocupação
e reorganização territorial (2006 a 2008), os agricultores que tinham
maior conhecimento sobre o manejo dessas espécies tiveram êxito nos
seus sistemas de cultivo e conseguiram plantar, manejar o solo, as pragas
e as doenças, e colher. Para muitos, a adaptação ao novo ambiente e os
desafios de exercer atividade que necessita de conhecimento acumulado
e desenvolvimento de técnicas adaptadas à realidade local, gerou, no
entanto, desânimo, ampliado pelos insucessos, sobretudo com os danos
causados por pragas e doenças.
Diante das dificuldades e prejuízos, houve a oportunidade de pro-
duzirem novamente com entusiasmo por meio do incentivo de empresa
de processamento de frutos, que propôs, para os agricultores, o cultivo
de maracujá, com o compromisso de comprar a produção da Comuni-
dade Vale do Sol II. Com isso, os agricultores fizeram empréstimos para
investir em infraestrutura adequada para atender as especificidades da
espécie, porém uma doença atingiu de forma severa as plantas, causan-
do redução da produtividade, além de os frutos produzidos apresenta-
rem qualidade abaixo da exigida pela empresa.
Com isso, os agricultores novamente perderam a motivação com
a cultura do maracujá; alguns chegaram a vender suas propriedades e
outros passaram a cultivar outras espécies, visando atender o mercado

 251
local e regional. A comercialização foi realizada via feira municipal ou
por meio de atravessadores, que buscavam os produtos nas unidades
produtivas. Uma das espécies mais cultivadas atualmente é o abacaxi.
A estruturação das unidades produtivas da reforma agrária está
baseada num contexto contraditório, cujo sucesso depende da produção
e sua articulação com a comercialização. A alta necessidade de insumos
externos é outro fator que, muitas vezes, contribui para o insucesso dos
sistemas de produção, ou seja, necessitam de insumos na produção e
comercialização e aquisição de outros produtos para a as necessidades
básicas da famílias, que dependem dessas unidades produtivas.
A extensão agrária e as políticas públicas pouco admitem que pro-
duzir para o autoconsumo e estruturar a qualidade de vida no campo
deveria ser o foco principal, para, posteriormente, produzir para comer-
cialização, respeitando a cultura de cada família. O insucesso está atre-
lado a receber a imposição sobre o que cultivar e políticas insuficientes
com pouca assistência e segurança ao agricultor, fazendo, desse insuces-
so da atividade imposta, limitante para a reprodução da vida no campo.
Segundo Oliveira (1994, p. 55), o campo brasileiro vai no seio das con-
tradições do desenvolvimento capitalista do país, forjando sua unidade
de luta na diversidade de suas origens. E este é o caminho para a com-
preensão e entendimento do diverso e contraditório campo brasileiro.
Portanto, essas áreas rurais destinadas às políticas agrárias, visan-
do ao desenvolvimento da agricultura em pequenas áreas, apresentam
inúmeros problemas a serem enfrentados para a implantação da agri-
cultura familiar, que, por sua vez, desempenha a função de abasteci-
mento interno, especialmente na produção de alimentos.

A política de Economia Solidária na Comunidade Vale


do Sol II: a criação da Lei municipal de Economia Soli-
dária e NUPES
Os moradores da comunidade do Vale do Sol II receberam estí-
mulos para a organização interna sob auxílio de especialistas de órgãos

 252
públicos nas esferas municipal e estadual, visando atender demandas de
interesses comuns dos agricultores familiares.
Com base no processo de formação da Comunidade, e por não
se tratar de assentamento nos moldes tradicionais, há dificuldades em
relação a algumas questões ligadas às políticas públicas. Assim, organi-
zaram-se em associação, na tentativa de trazerem benefícios à Comu-
nidade.
Desse modo, vale destacar os objetivos da política da Economia
Solidária discutida pelos produtores na Comunidade:
A economia solidária comporta consigo um projeto de desenvol-
vimento local sustentável capaz de alavancar pequenos grupos e
localidades esquecidas pelas políticas públicas [...]. A autogestão,
um dos princípios básicos da economia solidária, é uma ferramenta
pedagógica de todos os envolvidos, pois exige a participação dos
sujeitos em relação de igualdade não só no processo de produção,
mas na tomada de decisão do empreendimento, ou, em grau mais
elevado, na sociedade. Daí a necessidade da consolidação do movi-
mento de economia solidária numa perspectiva político-pedagógica
e teórico popular para disputar a hegemonia e emancipar trabalha-
dores. (SGUAREZZI et al., 2011, p.8).

Os agricultores destacaram que, mesmo em meio às dificuldades


e burocracias para ter a própria terra e dela tirar seu sustento, sem au-
xilio técnico adequado, preocuparam-se com questões ambientais e de
sustentabilidade de suas propriedades, buscando alternativas de práticas
agrícolas ecologicamente corretas.
Como exemplo podem ser citadas as alternativas de controle bio-
lógico tradicional, repassadas por gerações de pessoas ligadas à agri-
cultura familiar, ou até mesmo aprendidas da prática que trazem desde
suas regiões de origem. Destaca-se a prática de sistemas agrícolas com
espécies de sua localidade de origem natural ou de outros estados (do
Nordeste e do Sul, em sua grande maioria). A perspectiva de que a vida
no campo é a melhor alternativa para se ter a desejada qualidade de vida
foi mencionada por diversas vezes nas visitas realizadas aos produtores.

 253
Diante disso, durante as entrevistas realizadas com os agricultores,
foi verificado que ao adquirem o pedaço de terra e com ele garantir as
necessidades básicas, principalmente a alimentação e a moradia, simbo-
liza, para eles, a conquista, além de poderem representar, nesse espaço,
a sua cultura e imprimir nesse novo ambiente símbolos que os remetem
ao passado de fartura da agricultura familiar.
Na atualidade, impasses burocráticos e falta de assistência técni-
ca com ênfase agronômica são os principais desafios (do passado e do
presente) em muitas propriedades da Comunidade Vale do Sol II. Nesse
cenário, entendemos que esse descompasso entre distribuição da ter-
ra agrícola e desenvolvimento econômico e social em áreas de assenta-
mentos rurais depende das políticas públicas para ser superado (GON-
ÇALVES, 2014, p. 6).
Desse modo, vale enfatizar a situação da Comunidade in loco com
relação aos agricultores, que financiaram suas terras por meio da polí-
tica pública do crédito fundiário, mesmo com as grandes dificuldades
mencionadas para reproduzir e aplicar seus conhecimentos no cultivo
e produzir alimentos, tem-se luta diária, oportunizando a conquista em
face aos desafios impostos pelo sistema capitalista de produção.
As políticas públicas são, no entanto, a oportunidade para que
o pequeno produtor possa promover o trabalho na terra, mesmo que
com condições mínimas para produzir e inserir-se na economia lo-
cal. Nesse contexto, “o espaço de lugar nesse sentido se caracteriza a
possibilidade de realização de iniciativas e de projetos que promovam
a intervenção social, econômica e epistemológica para a transforma-
ção social” (SGUAREZZI et al., 2011, p.31). A economia solidária tem
sido compreendida como força motora de desenvolvimento no qual o
estabelecimento de novas forças produtivas e a instauração de novas
relações de produção resultem em processo sustentável de crescimen-
to econômico. Nesse processo, a redistribuição dos resultados do cres-
cimento realiza-se de modo a favorecer os trabalhadores e trabalha-
doras que se encontram à margem do modo de produção capitalista
(SINGER, 2004).

 254
Tangará da Serra foi o primeiro município de Mato Grosso a criar
a política pública de economia solidária com todos os marcos regulató-
rios4. Nesse sentido, pode-se afirmar que este é um ponto muito positivo
para o desenvolvimento municipal, o que vem garantir, aos agricultores
(não apenas da Comunidade Vale do Sol II, mas para toda a classe de
agricultores familiares do município de Tangará da Serra), auxílio direto
sobre a organização política.
Em outubro de 2008, criou-se o Conselho Municipal de Economia
Solidária (COMSOL), órgão municipal de caráter deliberativo, consul-
tivo e fiscalizador, com participação da sociedade civil em sua composi-
ção, pela Lei N° 2991, de 1º outubro de 2008:
Art. 1º - Fica instituído o Conselho Municipal de Economia Soli-
dária – COMSOL –, de acordo com as Leis municipais 2.460/2005
e 2.752/2007, ao qual incumbe deliberar em caráter permanente so-
bre a Política Municipal de Fomento à Economia Popular Solidária.
(TANGARÁ DA SERRA, 2008).

Um ano antes, a Lei nº 2.752, de 30 de agosto de 2007, criou o Nú-


cleo de Participação Social e Economia Solidária (NUPES), ligado à Se-
cretaria Municipal de Coordenação e Planejamento. Vale ressaltar que
atualmente o NUPES faz parte da Secretaria Municipal de Agricultura,
Pecuária e Abastecimento, com nível hierárquico de coordenação e com
a denominação de Núcleo de Políticas para a Economia Solidária. No
âmbito da administração municipal ainda falta, no entanto, a inserção
do NUPES como órgão na estrutura administrativa do município. A Se-
cretaria de Agricultura vem trabalhando para concluir essa organização.
Desse modo, a política de economia solidária, por meio do COM-
SOL e do NUPES, representa a política pública que desenvolve ativida-
des de apoio junto às agricultoras que produzem doces e conservas na
Comunidade Vale do Sol II.
Com a atuação e apoio das políticas públicas na Comunidade, um
grupo formado por cerca de oito mulheres buscou alternativas para me-
4
Neuri Eliezer Senger, coordenador do Núcleo de Políticas para Economia Solidária -
NUPES.

 255
lhorar suas rendas junto à Associação de Moradores da Comunidade,
mas, como não obtiveram nenhum apoio, fundaram a Associação de
Produtoras de Doces e Conservas Frutos do Vale (AMFRUVALE). Com
a formação dessa nova Associação, as produtoras relataram as dificul-
dades que enfrentaram – no início, enfrentaram até a falta de apoio de
familiares – para dar continuidade ao projeto, que só foi possível com
parcerias de instituição públicas:
A maioria dos esposos das mulheres da associação falavam para elas
largarem mão da produção de doces porque não ia dar certo, mas
agora com as coisas encaminhadas, passaram a nos ajudar buscando
as frutas e levando os doces nas feiras. (ECS, 40 anos).

A produção de doces e conservas depende diretamente das frutas


e hortaliças cultivadas pelos agricultores da comunidade e, de acordo
com o período da safra, as mulheres compram a matéria-prima para
o preparo. A venda de seus produtos é efetuada na cidade e sob enco-
mendas que os clientes fazem diretamente a elas ou por intermédio do
NUPES, ou, ainda, quando convidadas para a participação em feiras de
produtos artesanais, no geral em espaços públicos.
Esse empreendimento é produto de esforço coletivo, visando à
melhoria da infraestrutura física do empreendimento, à organização
das atividades e à capacitação por meio de cursos profissionalizantes de
culinária, que contribuem para a qualidade e a variedade de produtos.
O selo de certificação de qualidade dos produtos foi obtido com auxílio
do NUPES, e esta é considerada, pelas mulheres, a conquista, pois acre-
ditam que o selo aumenta a credibilidade do consumidor ao adquirir o
produto e, consequentemente, impulsiona a venda.
Segundo as associadas, há dificuldade de envolvimento de outras
mulheres da comunidade, em especial as mais jovens, que geralmente
revelam pouco interesse em residir no campo. Outra questão é o veto à
participação de jovens com idade inferior a 18 anos nas atividades pro-
dutivas da associação. Destacam ainda as dificuldades financeiras que já
passaram na Associação para garantir a produção de doces: algumas ve-
zes tiraram do próprio bolso recursos financeiros para ser investido na

 256
produção. No início, usaram matéria-prima das próprias propriedades,
além das adquiridas de outros agricultores da Comunidade.
Mesmo com as dificuldades apontadas, como o transporte, falta de
alguns equipamentos, mão de obra, entre outros, essas mulheres estão
empenhadas em melhorar cada vez mais a qualidade da fabricação dos
produtos e também planejam transformar a associação em cooperativa,
sem perder o foco da economia solidária.
Oriundas, em geral, de Minas Gerais, Paraná, São Paulo e Ceará,
elas já possuem forte ligação com o município, pois já vivem em Tanga-
rá da Serra há cerca de trinta e cinco anos.

Contexto histórico brasileiro a partir da análise espa-


cial agrária da Comunidade Vale do Sol II no município
de Tangará da Serra
Com a garantia de acesso a terra e de trabalho, amplia-se a possibi-
lidade de conquista de cidadania por parte das famílias, já que faz parte
da política de reforma agrária, à medida que são executadas estas políti-
cas públicas de desenvolvimento, a concessão de diferentes linhas de fi-
nanciamento da produção (créditos de fomento à produção e de investi-
mento em infraestrutura concedidos no âmbito do Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar - Pronaf), a construção de
moradia (por meio do crédito de habitação), o acesso à energia elétrica
rural (Programa Luz para Todos), entre outros (GONÇALVES, 2004).
Na Comunidade Vale do Sol II, os produtores conseguiram iniciar,
por meio do Crédito Fundiário, a implantação de sistema de produção,
e os desafios impostos como barreiras foram, a passos lentos, superados.
Os produtores conseguiram, de certo modo, concretizar, sob a forma
de trabalho na terra, um meio de produzir e de atender às necessidades
básicas da família, contribuindo para certa autonomia. Nesse sentido,
Almeida (1999, p. 13) afirma:
Essa autonomia camponesa, que se liga estreitamente ao trabalho,
apresenta três dimensões essenciais: I) a busca, por parte do tra-

 257
balhador-agricultor, de uma autonomia na sua estrutura de produ-
ção, através de uma combinação entre energia e informação [...],
aqui entendida no seu sentido mais amplo, reagrupando as atitudes
do agricultor e os conhecimentos necessários à produção; II) uma
autonomia baseada no espaço ou território específico, que permite
certo conhecimento e domínio da situação e que abre a possibilida-
de de invenção do próprio trabalho e da aplicação dos conhecimen-
tos acumulados em um lugar determinado; e III) a possibilidade de
gerir o próprio tempo de trabalho segundo as diferentes modali-
dades, o que significa em última instância restituir ao agricultor a
dimensão essencial da existência que é o domínio do tempo.

Durante o período conhecido como Estado Novo (1937-1945),


implantou-se o processo de centralização político-administrativa ini-
ciado em 1930. Foi então inaugurada a fase de intervenção do Estado
brasileiro na economia. Nesse momento, o campo passou a ter nova
função: fornecer matéria-prima para a indústria e abastecer os centros
urbanos com alimentos a baixos preços. Foi o tempo da “Marcha para o
Oeste”, política territorial de integração dos “espaços vazios” à economia
nacional (MORENO, 2005, p. 35).
Portanto, a inserção de Mato Grosso na economia brasileira no sé-
culo XX se deu, num primeiro momento, no contexto da expansão cafe-
eira e de crescimento dos centros urbanos da região Sudeste, sobretudo
de São Paulo e das cidades do oeste paulista (1920-1930).
A estratégia de integração nacional – iniciada na década de 1940
com a Marcha para o Oeste – só teria, no entanto, impulso definitivo
com a intensificação do processo de modernização industrial no Cen-
tro-Sul, articulado às ações de expansão agrícola para o Centro–Oeste e
Amazônia durante os governos militares (1964-1985). Nesse contexto,
Mato Grosso ocupou posição peculiar, verificando-se a expansão ace-
lerada dos espaços ocupados pela atividade agropecuária, enquanto se
dava, ao mesmo tempo, acentuada “modernização” do setor agrícola
(MORENO, 2005, p. 37).
Assim, o crescimento da pecuária extensiva e a expansão de mono-
culturas têm ocasionado degradação ambiental e consolidado a concen-

 258
tração da terra. Pode-se dizer que, decorridos mais de trinta anos de in-
tensa movimentação humana e de capital na fronteira mato-grossense,
a convivência do tradicional e do “moderno”, nas diferentes formas de
viver e produzir, marca novo reordenamento do território, em processo
ainda em formação.
Assim, o projeto geopolítico apoiou-se, sobretudo, em estratégias
territoriais que favoreceram a ocupação regional e transformação do es-
paço natural associado ao trabalho, que segundo Santos (2006, p. 86):
A diversificação da natureza é processo e resultado. A divisão in-
ternacional do trabalho é processo cujo resultado é a divisão ter-
ritorial do trabalho. Sem dúvida, as duas situações se aparentam,
embora mude a energia que as move. Por outro lado, a natureza é
um processo repetitivo, enquanto a divisão do trabalho é um pro-
cesso progressivo.

A agricultura familiar pode ser definida como o conjunto das uni-


dades produtivas agropecuárias com exploração em regime de econo-
mia familiar, compreendendo aquelas atividades realizadas em peque-
nas e médias propriedades, com mão de obra da própria família. Nesse
sentido, a Comunidade Vale do Sol II apresenta exatamente essas carac-
terísticas nas suas unidades produtivas.
De acordo com Hecht (2000, p. 52), a agricultura familiar caracte-
riza a forma de organização da produção em que os critérios utilizados
para orientar as decisões relativas à exploração não são vistos unica-
mente pelo ângulo da produção/rentabilidade econômica, mas consi-
deram também as necessidades objetivas da família. Ao contrário do
modelo patronal, no qual há completa separação entre gestão e trabalho,
no modelo familiar esses fatores estão intimamente relacionados.
A agricultura familiar é fundamental para o desenvolvimento eco-
nômico sustentável do espaço rural. A produção familiar é a principal
atividade econômica de diversas regiões brasileiras e precisa ser fortale-
cida, pois o potencial dos agricultores familiares na geração de emprego
e renda é muito importante. É exatamente nessa direção que deve cami-
nhar a Comunidade Vale do Sol II, no município de Tangará da Serra.

 259
E, para isso, os agricultores, em sua maioria, necessitam de sistema de
produção agrícola que subsidie o autoconsumo e a comercialização.

Considerações finais
Com base no processo de formação agrária em Mato Grosso,
observou-se que, ao longo do processo histórico na formação dos lati-
fúndios, não foram respeitados os direitos dos agricultores familiares.
Exemplo disso é o Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroes-
te do Brasil – Polonoroeste, criado na década de 1980, em que é visível,
conforme estudos já realizados sobre o Programa, a falta de planeja-
mento para expansão da fronteira agrícola no Brasil.
Em especial em Mato Grosso, com a implantação do Polonoroeste,
houve contribuição para a apropriação capitalista da terra por meio de
abertura de estradas, facilitando a instalação de mineradoras, madei-
reiras, empresas agropecuárias e a invasão por garimpeiros. Todo esse
processo favoreceu o desrespeito aos direitos dos indígenas, que tiveram
suas terras invadidas por posseiros, colonos e garimpeiros, incentivados
por corporações do ramo imobiliário e madeireira.
Por meio do processo histórico, pode-se entender a desigualdade
social do direito à terra. Por meio da pesquisa que originou este traba-
lho, analisou-se a área que estava nas mãos de único dono e que passou
a beneficiar grande número de famílias, mesmo tendo sido adquirida
por financiamento. Observa-se também um novo modelo de rearranjo
da estrutura agrária. Diferente da reforma agrária, quando famílias es-
peram por ordem judicial ou pela boa vontade do governo para trans-
formar a terra improdutiva em assentamento rural, no PNCF, os bene-
ficiários contam com o interesse na comercialização da terra por parte
de grandes latifundiários.
Todavia, analisando o texto do PNCF, é possível ver que a estrutura
oferecida aos agricultores que adquirem a terra por meio do Programa
não foi consolidada no caso da Vale do Sol II, pois os agricultores re-
latam grandes dificuldades de acesso a assistência técnica, estrutura e
 260
políticas públicas que auxiliem no desenvolvimento efetivo do sistema
de produção.
Com isso, há conflitos ideológicos gerados entre os próprios agri-
cultores, pois, ao mesmo tempo em que vencem todos os obstáculos
para ter acesso a terra, deparam com novos obstáculos para se man-
terem nos lotes. Além disso, o financiamento gera endividamento dos
agricultores, que muitas vezes torna a atividade inviável e faz com que
muitos optem por vender as benfeitorias realizadas na unidade produti-
va e passem novamente a fazer parte do êxodo rural.
A problemática no repasse da terra para um novo proprietário im-
plica a dificuldade de transferência do imóvel, tendo em vista o fato de a
terra ser financiada; porém o perfil do comprador nem sempre é o exigido
pelo banco, para que este possa repassar o financiamento. Com isso e sem
alternativas, os agricultores ficam desassistidos pelas políticas públicas.
No perfil histórico da formação do espaço agrário brasileiro, ob-
serva-se que os verdadeiros favorecidos são os grandes produtores, que
contam com a força política de representantes no Congresso Nacional, a
bancada ruralista, que tende a aprovar leis e projetos que favorecem essa
categoria. Um exemplo disso é o PNCF, que facilita a venda de terras
de grandes produtores ao governo federal, e o verdadeiro beneficiado é
esse grande latifundiário, que recebe quantia considerável de dinheiro
do Estado arrecadado por meio de impostos.
Por outro lado, por mais que o agricultor familiar consiga as terras,
ele terá enorme dificuldade em torná-las produtivas, como é o caso da
Comunidade Vale do Sol II, pois muitas são originárias de pastagem de-
gradada. Neste caso, os créditos disponibilizados pelo programa foram
insuficientes para transformar os lotes em sistemas de produção com
base na fruticultura, especialmente pela dificuldade de acesso à irriga-
ção e adubação necessárias para esse sistema, além da alta necessidade
de força de trabalho para transformação do ambiente.
Visamos, por meio deste capítulo, buscar a compreensão do poder
público quanto aos desafios na proposição e execução de projeto de tal

 261
magnitude, em que não basta só dividir as terras, mas também garantir
que essa terra se torne produtiva, com assistência técnica, disponibili-
zação de água e infraestrutura capaz de garantir a produção e seu esco-
amento até as cidades, além das garantias de serviços educacionais e de
saúde.
Fornecer as condições básicas ao agricultor familiar é fundamental
para o abastecimento da população dos centros urbanos. Por sua vez, o
agricultor pode encontrar, no seu trabalho, a dignidade e o orgulho de
ser alguém que faz a diferença no bem-estar social da população, pro-
duzindo alimentos de qualidade.

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 263
 264
Agricultura Familiar
e a Produção de Hortaliças
no Município de Cáceres-MT

Andréia Gonçalves Ladeia


Graduada em Agronomia

Ronaldo José Neves


Doutor em Geografia. Docente na Universidade do Estado de Mato Grosso.

Sandra Mara Alves da Silva Neves


Doutora em Geografia. Docente na Universidade do Estado de Mato Grosso.

Introdução
O presente capítulo baseia-se nas informações derivadas do pro-
jeto de pesquisa “Questão agrária e transformações socioterritoriais
nas microrregiões do Alto Pantanal e Tangará da Serra/MT - REDE
ASA”, financiada no âmbito do edital MCT/CNPq/FNDCT/FAPs/MEC/
CAPES/PRO-CENTRO-OESTE Nº 031/2010, e do projeto de exten-
são “Realidades socioculturais, econômicas, politicas e ambientais dos
agricultores familiares da região sudoeste mato-grossense”, integrante
do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura familiar na
região sudoeste mato-grossense de planejamento (Programa PADA), fi-
nanciado pelo edital Proext 2014-Programa de extensão universitária
MEC/SESu.

 265
As hortaliças têm destacada importância na agricultura familiar
no Brasil, estimando-se que a área cultivada seja de 808 mil hectares,
com produção de 23 a 25 milhões de toneladas, gerando cerca de 2,4
milhões de empregos diretos (EMBRAPA, 2011). As espécies são ge-
ralmente cultivadas em pequenas propriedades, que respondem por
aproximadamente 95% das hortaliças consumidas no país (ROCHA
et al., 2009). Servem como meio de autoconsumo, contribuindo para o
fortalecimento do homem no campo e garantindo sua sustentabilidade
(FAULIN; AZEVEDO, 2003).
A produção de hortaliças é a atividade que mais se identifica como
opção de comercialização para os agricultores familiares, em virtude de
não exigir grandes áreas, de demandar mão de obra familiar e de ha-
ver diferentes canais de mercado, já que as hortaliças são normalmente
comercializadas em mercados formais (quitandas, mercadinho, super-
mercados, restaurantes, CONAB) e informais (atravessadores, feiras li-
vres, pontos em vias urbanas) e pequena parcela é vendida diretamente
pelo produtor (FONTES, 2005).
Desse modo, o interesse pela abordagem do tema no município
de Cáceres foi decorrente de sua importância social e do fato de essa
atividade atuar na geração de renda por meio do trabalho na terra. Se-
gundo Lovato (2001), os cultivos hortícolas chegam a complementar em
cerca de 70% a receita salarial familiar, além de contribuírem para o
abastecimento das cidades, proporcionando maior segurança alimentar
e nutricional à população.
Em face do exposto, este capítulo tem como escopo realizar a
caracterização social da produção de hortaliças pelos agricultores fa-
miliares do município de Cáceres (MT), visando à geração de subsí-
dios para o planejamento e o desenvolvimento da atividade em âmbito
municipal.
O município de Cáceres está situado na região sudoeste do estado
de Mato Grosso, com área territorial de 24.351 km2 (Figura 1), que abri-
ga 87.942 habitantes, dos quais 76.568 vivem na zona urbana e 11.374

 266
na zona rural. (IBGE, 2013). A sede municipal está situada a 215 km da
capital do Estado (Cuiabá).

Figura 1 - Cáceres (MT): área de estudo.


Fonte: Adaptado de Neves et al. (2011).

O clima de Cáceres é o tropical quente, terceiro megatérmico (a


temperatura média do mês mais frio é superior a 18ºC), com inverno
seco, de maio a outubro e chuvas no verão, de novembro a abril (NE-
VES et al., 2011). A vegetação que recobre o município é de Cerrado e,
no entorno dos canais fluviais, ocorre a Floresta Estacional. Apresenta
o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH-M) de 0,737, abaixo da
média do estado de Mato Grosso, que é de 0,773, que, por sua vez, se
encontra abaixo da média da região centro-oeste do país, com 0,788
(PNUD, 2013).
A pesquisa foi conduzida em dois assentamentos, dos vinte exis-
tentes no município; em um distrito, dos quatro presentes em Cáceres e
em duas comunidades rurais (Figura 1), no período de fevereiro a julho
 267
de 2012. As unidades produtivas foram identificadas e catalogadas por
meio de informações do INCRA e EMPAER e indicação de agricultores
de acordo com a metodologia Bola de Neve (BAILEY, 1994).
Os agricultores foram entrevistados por meio de formulário, cons-
tituído por questões abertas e de múltipla escolha, relacionadas com as-
pectos sociais e produtivos. Os dados registrados foram tabulados, sen-
do realizada a estatística descritiva, mais especificamente a frequência
relativa (Fr), no software R.
As representações cartográficas das áreas de cultivo de hortaliças
de cada propriedade foram delimitadas em campo, por meio de passeio
dirigido com uso de GPS e acompanhamento do agricultor. Também
foram mapeados os locais de comercialização das hortaliças indicados
pelos agricultores. A elaboração dos mapas foi no ArcGis, versão 9.2,
havendo a inserção das informações coletadas em campo no Banco de
Dados Geográficos.

Caracterização dos agricultores familiares produtores


de hortaliças no município de Cáceres
Os locais em que são cultivadas hortaliças para comercialização no
município de Cáceres têm em comum a localização, próxima à cidade
de Cáceres, conforme segue: o assentamento Facão (12 km), dividido
em três furnas (unidades): Boa Esperança (15 km), São José (13 km) e
Bom Jardim (12 km); o Cinturão Verde (12 Km); a comunidade Tarumã
(12 Km); o assentamento Sadia (60 Km) e o distrito de Santo Antô-
nio do Caramujo (31 Km). A situação de proximidade com o local de
comercialização favorece a produção hortícola, pois as condições am-
bientais de Cáceres (altas temperaturas) não favorecem a conservação
em ambiente natural da maioria das hortaliças, que são transportadas e
comercializadas ao ar livre, na feira e no mercado do produtor.
Para Dias et al. (2012), a produção é feita geralmente em torno das
cidades, ou seja, próximo aos locais de comercialização, em razão de
sua alta perecibilidade e do rápido e eficaz escoamento de sua produ-

 268
ção, evitando assim grandes perdas e contribuindo para que o estoque
nos supermercados e feiras livres seja renovado praticamente todos os
dias.
Dos trinta e um agricultores entrevistados, quatro residem no dis-
trito de Santo Antônio do Caramujo e vinte e sete em assentamentos e
comunidades rurais. Destes, 61,3% pertencem ao gênero masculino e
38,7% ao feminino; 26% são nascidos no estado de Mato Grosso e 74%
são imigrantes de outros estados brasileiros, dentre os quais se destacam
os de origem paulista, correspondendo a 22,5% (Tabela 1).
A maior parte dos agricultores (64,5%) tem idade entre 41 e 60
anos. Ao se analisar a faixa etária de 20 a 40 anos, o maior percentual
foi de mulheres (83,3%); na faixa etária de 41 a 60 anos, o percentu-
al de homens foi superior (70%), enquanto na faixa etária de 81 a 100
anos, o percentual de homens foi de 100%. Situação diferente do que
foi constatado por Sant’Ana et al. (2007), em estudo sobre a produção
e comercialização dos assentados da região de Andradina (SP), em que
os pesquisadores verificaram que há maior percentual de mulheres nas
faixas de até 30 anos, de 41 a 50 e de 51 a 60 anos, enquanto na faixa aci-
ma de 60 anos, o percentual de homens foi de 23,8% e o das mulheres,
de apenas 11,4%.
Pertinente ao estado civil dos sujeitos pesquisados, 90,3% são ca-
sados e 64,5% têm de 2 a 3 filhos. Os filhos dos entrevistados totalizam
vinte e dois, dos quais 66,3% têm idade entre 11 e 20 anos. Destes, 59,1%
são homens e 40,9% são mulheres.
No que tange à escolaridade dos agricultores, 54,8% não concluí-
ram o ensino fundamental; do total, 52,9% pertencem ao gênero mascu-
lino e 47,1% ao feminino. Situação diferente ocorre entre os entrevista-
dos com ensino médio completo, que totalizam 22,6%, dos quais 57,1%
são mulheres. Já o analfabetismo, que totaliza 3,2%, ocorre no gênero
masculino. Somente 3,2% dos agricultores declaram ter concluído curso
técnico em agropecuária, sendo todos pertencentes ao gênero feminino
e tendo idade na faixa de 61 a 80 anos.

 269
Tabela 1. Cáceres (MT): Informações dos agricultores produtores de hortaliças na zona rural.

 270
Distância Principal fonte Tempo de Ocupação
Agricultores Localidade Área (ha) Gênero2 Idade Origem Escolaridade
Cáceres1 de renda cultivo3 Anterior
01 Bom Jardim 12 25,00 F 57 Mandioca SP 13 Pecuarista Ensino M. Completo
02 Bom Jardim 12 19,36 M 48 Limão MT 10 Pescador Ensino M. Completo
03 Bom Jardim 12 12,10 F 65 Leite CE 11 Agricultora Ensino F. Incompleto
04 Bom Jardim 12 24,20 F 38 Leite PR 23 Agricultora Ensino F. Incompleto
05 Bom Jardim 12 12,10 F 61 Hortaliças MT 13 Agricultora Téc. em Agropecuária
06 Bom Jardim 12 12,10 F 46 Leite SP 06 Doméstica Ensino F. Incompleto
07 Bom Jardim 12 16,94 F 27 Hortaliças MT 08 Agricultora Ensino F. Incompleto
08 Bom Jardim 12 12,10 M 55 Hortaliças PR 03 Func. Público Ensino F. Completo
09 Bom Jardim 12 19,36 M 46 Leite MG 25 Agricultor Ensino F. Incompleto
10 Caramujo 31 1,2 M 68 Aposentadoria RN 05 Agricultor Ensino M. Incompleto
11 Caramujo 31 29,00 M 43 Vassoura e leite PR 06 meses Pecuarista Ensino F. Incompleto
12 Caramujo 31 29,00 M 60 Aposentadoria PE 20 Agricultor Analfabeto
13 Caramujo 31 12,00 M 86 Aposentadoria BA 30 Agricultor Ensino F. Incompleto
14 Cinturão Verde 12 3,60 M 50 Hortaliças SP 33 Agricultor Ensino F. Completo
15 Cinturão Verde 12 5,00 M 44 Granja PR 03 - Ensino F. Incompleto
16 Cinturão Verde 12 4,84 M 53 Hortaliças MT 02 Agricultor Ensino F. Incompleto
17 Cinturão Verde 12 4,84 M 51 Hortaliças SP 02 Pecuarista Ensino M. Incompleto
18 Cinturão Verde 12 4,84 F 39 Hortaliças MT 30 Agricultor Ensino F. Incompleto
19 Facão 10 6,00 M 58 Hortaliças SP 10 Agricultor Ensino F. Incompleto
20 Facão 10 8,00 M 38 Hortaliças MS 05 meses Comerciante Ensino M. Completo
21 Sadia 60 26,50 F 53 Hortaliças BA 17 Agricultora Ensino F. Incompleto
22 Sadia 60 24,20 F 43 Hortaliças MT 02 Agricultora Ensino M. Completo
23 Sadia 60 26,66 M 46 Hortaliças RS 32 Agricultor Ensino M. Incompleto
24 Sadia 60 27,00 F 47 Hortaliças PE 05 Agricultora Ensino M. Completo
25 Sadia 60 25,00 F 47 Hortaliças MT 40 Agricultora Ensino F. Incompleto
26 Sadia 60 25,00 F 37 Hortaliças BA 05 Agricultora Ensino F. Incompleto
27 Bom Jardim 12 21,78 M 34 Hortaliças MT 05 Do lar Ensino F. Completo
28 Bom Jardim 12 27,00 M 54 Venda de gado SP 03 Agricultor Ensino M. Completo
29 Bom Jardim 12 24,00 M 64 Hortaliças SP 04 Agricultor Ensino F. Incompleto
30 Tarumã 12 10,00 M 60 Mamão MG 01 Agricultor Ensino F. Incompleto
31 Tarumã 12 10,00 M 51 Hortaliças MS 12 Agricultor Ensino F. Incompleto
1
Distância em Km. 2 F= Feminino e M= Masculino. 3 Em anos.
Fonte: organizada pelos autores (2015).

 271
Quando analisada a escolaridade no contexto familiar, que totali-
zou 63 pessoas, incluindo o entrevistado, constatou-se que 52,4% não
concluíram o ensino fundamental; destes, 63,6% pertencem ao gênero
masculino. Situação diferente, relativa ao gênero, ocorre ao se analisa-
rem os índices pertinentes ao nível ensino médio completo: este totaliza
20,6%, dos quais 69,2% dos concluintes são mulheres. No nível ensino
médio incompleto, que totaliza 12,7%, houve predomínio do gênero
masculino (62,5%). Essa situação apresentada pode ser decorrente do
ingresso dos jovens no mercado de trabalho.
Dos 11,1% da classe analfabetos, predominou o gênero feminino
(71,4%), na faixa etária de 61 a 80 anos (60%), fato este possivelmente
decorrente das diferenças entre gerações, pois as mulheres mais velhas
tiveram poucas oportunidades de acesso à escola, ao contrário das mais
jovens, que tendem a estudar mais do que os homens, como forma de
se prepararem para assumir outras profissões (SILVESTRO et al., 2001).
Relativo à quantidade de membros por família, 45,2% das famílias
dos 31 agricultores entrevistados são constituídas por dois membros,
correspondendo ao esposo e esposa, ou seja, são poucos os filhos mo-
rando com a família (em média, menos de um por família). Isso se deve
a um círculo vicioso: a insuficiência de renda leva os jovens a buscar
alternativas de trabalho fora do assentamento (SANT’ANA et al., 2007).
Os resultados diferem do que foi constatado por Mazzini (2009) em seu
estudo sobre os impactos sociais, políticos, econômicos e ambientais dos
assentamentos rurais no pontal do Paranapanema/SP: ali, as famílias
dos assentados entrevistados possuem estrutura nuclear (pais e filhos) e,
em média, de 4 a 5 membros morando no lote em 56% dos casos.
A renda média mensal aferida por 38,7% das famílias é de 1 a 2
salários mínimos e, para 54,8% das famílias, varia entre 2 a 6 salários
mínimos. A principal fonte de renda de 58% das famílias analisadas
provém da venda das hortaliças. Quase metade das famílias dos agri-
cultores (48,4%) declararam não ser contempladas com nenhum tipo
de auxílio financeiro externo (aposentadoria, bolsa família, auxílio para
deficiente, entre outros).

 272
Relativo ao comprometimento da renda para pagamento de algum
tipo de financiamento, 51,6% dos agricultores quitaram suas dívidas em
relação à terra e 48,4% ainda pagam algum tipo de financiamento, como
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRO-
NAF-MT), fomento ou financiamento de automóveis.

Produção e comercialização das hortaliças produzidas


pela agricultura familiar no município de Cáceres
Em 52,2% das propriedades, o trabalho é realizado somente pelo
agricultor familiar, ficando a esposa responsável por cuidar da casa; em
47,8%, o agricultor conta com a colaboração de familiares. Em ambos
os casos, não há nenhum tipo de ajuda assalariada, sendo os recursos
derivados exclusivamente da força de trabalho familiar.
Constatou-se que 45,3% dos agricultores moram na terra com sua
família há aproximadamente 10 anos e que 71,1% produzem hortaliças
desde quando adquiriram/receberam a propriedade.
A maioria deles (58,1%) produzia hortaliças em outros locais, nos
últimos dez anos. Leite et al. (2004), em pesquisa que abrangeu 92 pro-
jetos de assentamentos rurais em várias regiões do país, constataram
que 94% dos responsáveis pelos lotes tinham tido experiência agrícola
ao longo da vida.
No tocante à renda, 87,1% dos agricultores vivem e obtêm a
renda principal por meio da produção olerícola, que é utilizada na
alimentação da família, sendo comercializado o excedente. Segundo
Filgueira (2007), é por meio da produção olerícola que se estabele-
ce a relação do agricultor com a terra, sustentação familiar e cultura
alimentar, fatores importantes para o desenvolvimento econômico e
social da família.
A quase totalidade dos entrevistados (71%) sempre foram agricul-
tores, ou seja, em algum momento de sua trajetória de vida, tiveram
ocupação rural, seja como assalariados, parceiros, arrendatários, ex-

 273
-proprietários de pequenas glebas, seja em terras da família, desenvol-
vendo atividades agrícolas.
Dos agricultores, 93,6% são donos das terras e estão nelas desde a
sua aquisição. Os tamanhos dos lotes variam de 10,0 a 30,0 ha, diferente
da situação encontrada no distrito de Santo Antônio do Caramujo, onde
três agricultores produzem na faixa de domínio da rodovia federal, BR-
174, cujas áreas não ultrapassam quatro hectares.
Nos locais de produção, além do cultivo de hortaliças, plantam-
-se mandioca e milho, destinados, em sua maior parte, para o consumo
familiar e para a alimentação de animais.
No espaço da casa-quintal, em 67,7% das propriedades há pomar
com variedade de frutas (laranja, banana, goiaba, limão, caju, manga,
abacaxi, maracujá, acerola, entre outras). Essa produção é realizada com
adubação à base de esterco de bovinos e de aves do próprio assentamen-
to, ou seja, sem o uso de defensivos e adubos químicos (SILVA et al.,
2012).
Relativo à adubação nas áreas de produção hortícola, a maioria
dos entrevistados (70%) afirmou utilizar apenas tortas, para controle
das pragas, e esterco bovino sem nenhuma contaminação com defen-
sivo. Essa questão requer maior aprofundamento investigativo, pois o
uso demasiado (curativo) de agrotóxicos requer precaução, uma vez
que esses produtos contaminam o local de trabalho do agricultor, ou
seja, o próprio ambiente agrícola, a natureza, e podem pôr em risco a
saúde do trabalhador rural e dos consumidores dos produtos hortí-
colas.
Foi constatada, em todas as propriedades, a criação de bovinos,
com objetivo de venda do animal vivo, e de animais de pequeno porte
(galinhas e porcos), além da produção de leite. Os animais são de fun-
damental importância para a economia doméstica dos agricultores, pois
a sua comercialização está “diretamente relacionada aos momentos de
precisão, quando é necessário saldar dívidas ou resolver problemas de
saúde” (SILVA et al., 2012, p. 74), funcionando, de acordo com Almeida

 274
(2006), como espécie de poupança a ser utilizada para sanar momentos
de dificuldade das famílias camponesas.
No estudo realizado por Silva et al. (2012), foi verificado que, em
média, 70% das áreas dos assentamentos de Cáceres são ocupados por
pastagens, prevalecendo a criação bovina de corte e leiteira, porém com
criação de pequenos animais: suínos, caprinos e ovinos.
Dos locais que produzem hortaliças no município de Cáceres,
o que se destaca em produção é o assentamento Facão/Furna Bom
Jardim, com 25,8% dos assentados dedicados a produção hortícola
(Tabela 02). Segundo Seabra Junior et al. (2012), isto se deve, espe-
cialmente, ao acesso ao mercado consumidor, facilitado pela rodovia
BR-070 e pela proximidade com o centro urbano de Cáceres, situado
a aproximadamente 20 km. Já em Santo Antônio do Caramujo, situ-
ado num trecho ao longo da BR-174 próximo à cidade de Cáceres, a
produção é inferior aos demais locais, pois três agricultores cultivam
na faixa de domínio da rodovia federal, numa área menor que quatro
hectares.

Tabela 2 – Cáceres (MT): Produção de hortaliças na área rural.


Localidades Famílias Produtores de hortaliças
Cinturão Verde 98 05
Facão/Bom Jardim 168 14
Sadia/ Vale Verde 423 06
Tarumã 19 02
Total 708 27
Fonte: organizada pelos autores (2015).

Pode-se atribuir a baixa participação dos assentados na atividade


hortícola municipal à distância que há entre os assentamentos e os lo-
cais de comercialização, pois 78,3% afirmaram que o acesso limitado
à cidade decorre do estado precário de conservação das estradas, que
compromete o transporte, sobretudo das hortaliças folhosas, que po-
dem perder a qualidade por sua alta perecibilidade.

 275
A incipiente assistência técnica e, em alguns assentamentos, a difi-
culdade de acesso à água, especialmente os situados na faixa de fronteira
Brasil-Bolívia, constituem impeditivos ao desenvolvimento da produ-
ção olerícola pela agricultura familiar nos assentamentos de Cáceres.
Heredia et al. (2002), em sua análise dos impactos regionais da reforma
agrária no Brasil, mostram que 46% dos lotes enfrentavam problemas
com a água (falta ou baixa qualidade) e somente em 18% dos assenta-
mentos todos os lotes são acessíveis o ano todo.
Em relação aos maquinários, equipamentos e implementos exis-
tentes nos assentamentos em que há cultivo de hortaliças, constatou-
-se que, em 54,8% destes, não há nenhum tipo de maquinário e 25,8%
utilizam equipamentos como tratores e grades, que são alugados pelos
agricultores familiares para prestação de serviços, sendo o pagamento
feito em espécie, a preço vigente no mercado.
Relativo ainda aos equipamentos e implementos, algumas famílias
assentadas (19,4%) declararam ter arado, foice, roçadeira manual, en-
xada e equipamentos com tração animal. Esse resultado corrobora ao
exposto por Souza et al. (2011): entre os agricultores familiares, predo-
mina o uso de tecnologias tradicionais, pouco intensivas em insumos e
recursos financeiros.
A assistência técnica constitui um dos maiores problemas, confor-
me relataram os agricultores, dos quais 67,7% declararam não receber
nenhum tipo de assistência, o que comprova a afirmação de Guanziroli
et al. (2001) de que esta é inexistente ou insuficiente nos assentamentos
da reforma agrária.
Segundo estudo da Federação da Agricultura do estado de São
Paulo – FAFSP/CUT (2013), a assistência técnica e o apoio à comer-
cialização de produtos da agricultura familiar são alguns dos principais
desafios para garantir o desenvolvimento dos assentamentos brasileiros
e qualidade de vida aos assentados, bem como a produção de alimentos
à sociedade brasileira.
Mesmo diante das dificuldades enfrentadas no cultivo das horta-
liças, 67,8% dos agricultores produzem o ano todo, e o período mais
 276
crítico no município ocorre entre os meses de novembro a março, em
decorrência dos altos índices pluviométricos (NEVES et al., 2011).
Quanto à organização social das famílias entrevistadas, constatou-
-se que 44,5% participam de cooperativas ou associações, trabalhando
em conjunto para a comercialização de seus produtos via programas de
incentivo à agricultura familiar. De acordo com Machado et al. (2009),
as associações facilitam o processo de compra de maquinários ou insu-
mos e a venda dos produtos agrícolas, possibilitando a reprodução do
modo de vida.
A área de cultivo destinada à produção de hortaliças variou de 300
a 48.400 m2, e 54,6% dos agricultores realizaram nelas análise do solo,
embora esta não seja prática frequente. Dentre as espécies cultivadas
(Tabela 03), as que recebem melhores cuidados são o tomate e o quiabo.
Segundo Heredia et al. (2001), essa escolha tem importância estratégica,
pois estes são produtos ao mesmo tempo facilmente comercializáveis
e cruciais na alimentação da família e que os assentados consideram
importantes.
Assim como no município de Cáceres, foi constatado, na pesqui-
sa de Queiroz (2014), que, na municipalidade vizinha, Curvelândia, os

Tabela 3 – Cáceres (MT): hortaliças produzidas nas áreas de estudo.


Hortaliças Quantidade de agricultores
Abobora 14
Alface 10
Almeirão 03
Batata doce 05
Berinjela 05
Cebolinha 09
Couve 11
Feijão catador 05
Feijão de vagem 03
Jiló 08
Melancia 03
Pepino 04
Quiabo 10
Rúcula 08
Salsinha 01
Tomate 06
Fonte: organizada pelo autores (2015).

 277
principais alimentos cultivados nas hortas em 2013 foram: quiabo, alfa-
ce, rúcula, mandioca, cebolinha, pepino e abóbora.
No que concerne à tecnificação para otimizar a produção de mu-
das de hortaliças, 48,4% dos agricultores utilizam irrigação mecanizada,
80,6% produzem mudas em bandejas, 9,7% cultivam em ambiente pro-
tegido e 9,7% em viveiro e estufas.
Dos 15 agricultores que empregavam a irrigação mecanizada,
66,7% irrigam via aspersão, 20% por sistemas de microaspersão suspen-
sa e 33,3% utilizam irrigação via gotejamento. Esses dados permitem
afirmar o quanto é importante a irrigação no processo de produção de
hortaliças. Conforme Marouelli e Silva (2011), de modo geral, as espé-
cies olerícolas têm o seu desenvolvimento afetado pelas condições da
umidade do solo, e, para adoção de sistema de irrigação ideal, devem ser
considerados fatores econômicos, sociais, técnicos, entre outros, pois a
forma como a água é aplicada pode influenciar a qualidade do produto.
Relativo às mudas, 93,5% dos agricultores produzem-nas em can-
teiro, realizando a repicagem das mudas; método que é empregado por
dificuldade financeira. Eles plantam as sementes em bacias plásticas,
tambores cortados ou até mesmo no próprio canteiro e, passados os
dias, eles as transplantam para o canteiro definitivo na área produtiva.
No tocante ao cultivo protegido, 80,6% dos entrevistados não o
utilizam em nenhuma fase do processo de produção das olerícolas. O
uso simultâneo de todos os recursos apresentados é realizado somente
por 6,5% dos agricultores familiares.
Das pragas, a de maior incidência é o pulgão, que ocorreu em
41,9% das propriedades olerícolas; as culturas infestadas foram: couve,
abobora e quiabo. Vários tipos de lagartas ocorreram em 38,7% das pro-
priedades, especialmente nas culturas da melancia e tomate. A cocho-
nilha ocorreu em 12,9% das propriedades, atacando mais a cultura do
tomate, enquanto a mosca-branca ocorreu em 6,5% das propriedades,
danificando as hortaliças folhosas. Em 45,1% das propriedades, ocorre-
ram simultaneamente todas as pragas citadas.

 278
As principais modalidades para comercialização das hortaliças
no município de Cáceres são: feira livre; mercados; venda direta na
propriedade; mercado do produtor (ambiente coberto disponibilizado
pela prefeitura); entrega das hortaliças para a Companhia Nacional
de Abastecimento (CONAB), por meio do programa de incentivo à
agricultura familiar nos assentamentos; ponto próprio de venda (qui-
tandas); e por intermediários (serviços terceirizados), uma vez que o
escoamento de produção é deficiente e poucos agricultores possuem
veículos adequados para o transporte das hortaliças até os pontos de
comércio.
Silva (2014) aponta que, apesar de toda diversidade dos assenta-
mentos de Cáceres, os produtos muitas vezes não se apresentavam tão
competitivos em outros mercados, em decorrência das dificuldades de
acesso, em especial o transporte para os centros urbanos, tornando os
custos atuais de produção e escoamento quase inviáveis.
Para o agricultor, é mais interessante vender no pequeno vare-
jo (feiras, quitandas, mercadinhos e supermercados), pois contabiliza
custos menores de transportes. Sato et al. (2006), em seu estudo do
fluxo de comercialização de hortaliças produzidas na região das Alto
Cabeceiras do Tietê/SP, verificaram que a comercialização ocorre nas
localidades mais próximas, pois gera custos de frete menores. Esses
canais são denominados diferenciados, por serem predominantemente
informais, no sentido dado por Wilkinson e Mior (1999), e por permi-
tirem, mesmo quando não processam o produto, melhor remuneração
do produtor.
A venda de hortaliças no atacado não é realizada, por serem as
áreas de produção de pequena escala, pelas dificuldades de cultivo, re-
lacionadas diretamente às variáveis climáticas e à falta de assistência
técnica, e pelo fato de o estado de Mato Grosso não possuir locais para
escoamento da produção, como centrais de abastecimento.
A comercialização de 48,4% da produção olerícola gerada nos
assentamentos é destinada ao Programa de Aquisição de Alimentos

 279
(PAA); 25,8%, aos mercados privados; 9,7%, à feira; 16,1%, a outros lo-
cais. Por meio dos programas federais, a exemplo dos comercializados
via PAA-CONAB, a agricultura familiar passou a ser fortalecida, e re-
conhecida, perante o poder público, como importante ator na produção
de alimentos, contribuindo com a segurança alimentar da sociedade
brasileira (SDRC/RS, 2015).
De acordo com Mazzini et al. (2010), os programas da CONAB
promovem o desenvolvimento local ao possibilitar a melhoria da renda
das famílias, incentivar o consumo local e destinar para merenda esco-
lar os alimentos produzidos no município, a partir do modelo de eco-
nomia familiar. De acordo com Schultz et al. (2001), a comercialização
direta, nas feiras livres, propicia a aproximação dos produtores rurais
com os consumidores finais, proporcionando, para ambas as partes, tro-
cas de experiências, que estimulam nova forma de ver a produção e a
comercialização agrícola.
Alguns dos agricultores preferem não utilizar apenas os merca-
dos privados para a comercialização, por apresentarem instabilidade
no fechamento de contrato. Assim, 22,4% preferem comercializar seus
produtos em sua propriedade, facilitando a aproximação com o consu-
midor.
Em todas as 31 áreas produtivas visitadas não há instalações ade-
quadas para beneficiamento das hortaliças, sendo os locais rústicos e
sem cobertura adequada para proteção. Dos agricultores, apenas 68%
lavam e selecionam as hortaliças e 32% não fazem nenhum tipo de la-
vagem nem seleção. Quanto ao tipo de embalagem, 35,5% dos entrevis-
tados utilizam sacos plásticos para transportar e comercializar as hor-
taliças.
Os seguintes desafios pertinentes à produção foram citados: falta
de água para produção, incidência de pragas (com destaque para mosca-
-branca e pulgão), ausência de assistência técnica, adubação inadequa-
da, por falta de conhecimento técnico, e infestação de animais silvestres
em alguns assentamentos.

 280
Considerações Finais
A pesquisa que originou este trabalho permitiu-nos afirmar que
a produção de hortaliças na área rural de Cáceres ocorre em dois as-
sentamentos, duas comunidades e em um distrito, com área de plantio
inferior a 4,8 ha, distando no máximo 60 km da sede municipal.
A produção hortícola gerada no município de Cáceres tem como
principal canal de comercialização o Programa de Aquisição de Ali-
mentos (PAA) e, em menor escala, os mercados privados e a feira do
espaço urbano.
Quanto às limitações, constataram-se as seguintes situações que se
configuram como desafios à produção: condições climáticas (alta tem-
peraturas e precipitação), implicando sazonalidade na produção; com-
petição dos produtos locais com os advindos de outras regiões do país;
e baixo emprego de tecnologias no sistema de produção.
Destacam-se, entretanto, como potencialidades, a demanda por
hortaliças no mercado local; a identificação de potencial de cultivo para
hortaliças pouco exploradas; políticas públicas voltadas à agricultura
familiar (PAA e PNAE); mão de obra familiar, cujo acesso a terra, via
reforma agrária, trouxe melhoria nas condições de vida, pois os sujei-
tos pesquisados vinham exercendo trabalhos de baixa remuneração ou
precários, como o de assalariado temporário ou de empregado rural em
fazendas do município.

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 284
Comunicação e Agricultura Familiar
na Comunidade Vale do Sol II
- Tangará da Serra-MT

Kelly Sinara Alves de Carvalho


Mestranda em Ambiente e Sistemas de Produção Agrícola – UNEMAT.
Ana Cristina Peron Domingues
Mestranda em Ambiente e Sistemas de Produção Agrícola – UNEMAT.
Raimundo Nonato Cunha de França
Doutor em Ciências Sociais. Docente na Universidade do Estado de Mato Grosso –
UNEMAT.
Santino Seabra Júnior
Doutor em Agronomia. Docente na Universidade do Estado de Mato Grosso.

Introdução
O capítulo articula-se ao projeto de pesquisa intitulado: “Ques-
tão Agrária e Transformações Socioterritoriais nas microrregiões do
Alto Pantanal e Tangará da Serra/MT na última década censitária”
da Rede Centro-Oeste de Pós-graduação, Pesquisa e Inovação (Edital
MCT/CNPq/FNDCT/FAPs/MEC/CAPES/PRO-CENTRO-OESTE nº
31/2010).
A abordagem da comunicação dentro da estrutura de pequena co-
operativa rural no Brasil é proposta que faz pensar nos tempos de crise

 285
da Europa pós-Revolução Industrial em que viveram os pioneiros de
Rochdale, quando, em Manchester, cidade ao norte da Inglaterra, pes-
soas viviam em deplorável estado de miséria, sem ter o que comer e sob
o jugo do desemprego.
Ali, articulados dentro de um grupo e com “certo” entrosamen-
to comunicacional, 28 tecelões e uma mulher registraram, em 1844, a
Frendly Society, onde vendiam farinha, manteiga, aveia e açúcar e ti-
nham o princípio básico da melhora das condições sociais e humanas
dos membros da cooperativa (ABRANTES, 2004). Assim, com o obje-
tivo de construir suas moradias com os valores arrecadados, desenvol-
veram um armazém para a venda de suas mercadorias, que variavam
entre alimentos e roupas, manufaturavam produtos, geravam empregos,
arrendavam e compravam terras, distribuíam os produtos e realizaram
educação associativa. Estes também buscavam ajudar outras pessoas,
além de promover campanha educativa contra o alcoolismo, abrindo
um estabelecimento de temperança. Isso trouxe, em pleno século XVIII,
uma luz ao fim do túnel para aquela população, que hoje seus descen-
dentes desfrutam de altos níveis de desenvolvimento do trabalho em
grupo (LUZ FILHO, 1961).
O uso da comunicação e os princípios do associativismo e coopera-
tivismo nesse contexto foram determinantes para que houvesse o cresci-
mento daquele que foi, inicialmente, um empreendimento comunitário.
Com a visão além-fronteiras do conhecimento, dedicaram-se em prol da
independência da exploração patronal e falta de emprego, configurando
assim tecnologias sociais, partindo-se das ideias de camada da sociedade
que necessitava de mudança. Na concepção de Bava (2004, p. 106): “Tec-
nologia social são técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvi-
das na interação com a população, que representam soluções para a inclu-
são social”. Uma coisa era certa e eles entenderam isto: havia mão de obra
e havia matéria-prima e, com isso, era preciso pensar em como organizar
o empreendimento que atendesse a todos os necessitados.
Embora a introdução do modelo de produção capitalista tenha
trazido ao mundo a ideia positiva de acumulação das riquezas como

 286
solução de problemas sociais, ela sempre esteve limitada àqueles que
são os “detentores” da produção. Em decorrência disso, muitos, como
foi o caso da Europa moderna, por exemplo, sofreram com a perda dos
seus empregos, o que culminou em pobreza generalizada e fonte de
preocupação constante, conforme aponta Schwartzman (2004, p. 88).
Hoje não é tão raro imaginar-se no Brasil uma situação como esta, no
meio rural, pois a “revolução verde” cada vez mais valoriza a utilização
das máquinas em detrimento da mão de obra humana. Assim, os tra-
balhadores rurais perdem seus empregos e buscam novas alternativas
de sustento.
Mas e os agricultores familiares, em qual contexto estão eles na
“Babilônia ruralista brasileira”? Marginalizados. É o que se compreende
ao se analisarem as estatísticas. Ao passo que a agricultura familiar em
toda a sua conjuntura seja a base de sustentação alimentícia do mundo1
e cerca de 94% das propriedades agrícolas do globo tenham menos de
5 hectares (VON BRAUN, 2003), refletir sobre os sistemas agrícolas e
seus desdobramentos é debate que se tem revelado complexo na con-
juntura econômica do Brasil rural. Sabe-se que, embora o volume da
agroindústria brasileira engrosse os dados da economia nacional, essa
renda é destinada a poucos, que são os detentores do capital.
Nesse sentido, a agricultura familiar traz em si a responsabilida-
de, não só de alimentar todas as camadas populacionais, mas também
de gerar trabalho e renda, oriundos do manejo do agroecossistema em
que está inserido o agricultor, que tem nessa prática o conhecimento
acumulado sobre o ambiente, a produção agrícola e sua sustentabilida-
de, cabendo-lhe produzir na terra e deixá-la para futuras gerações. Isso
especialmente quando os laços de cooperação são a base da resistência
ao contexto competitivo das commodities, sobretudo quando as trans-

1
Há hoje 1,5 bilhão de pessoas em 380 milhões de estabelecimentos rurais, 800 milhões
com hortas urbanas, 410 milhões em florestas e savanas, 190 milhões de pequenos pecu-
aristas, e mais de 100 milhões de pescadores camponeses. Dentre todos estes, ao menos
370 milhões são indígenas. Juntos, estes três bilhões de agricultores familiares campone-
ses e indígenas constituem mais de um terço da humanidade e produzem cerca de 70%
dos alimentos no mundo (AIAF, 2014).

 287
formações por que passa a sociedade, notadamente nos setores comuni-
cacionais, impõem às estruturas agrícolas de tipo familiar a criação de
mecanismos próprios ou adaptados de comunicação como forma alter-
nativa de se fazer presente na própria dinâmica produtiva.
Diante disso, foi realizado o estudo de caso com objetivo analisar
o trânsito de informações no sistema cooperativado da Comunidade
Vale do Sol II, localizada no município de Tangará da Serra2, no estado
brasileiro de Mato Grosso.

Metodologia
A Comunidade Rural Vale do Sol II possui área total de 9.630 km2
(TANGARÁ DA SERRA, 2006) e está localizada a 20 quilômetros da
área urbana municipal, local onde corre o rio Bezerro Vermelho. Foi
criada no ano de 2007, a partir de projeto de financiamento de crédi-
to fundiário, realizado por meio de política pública para assistência ao
pequeno produtor rural. O projeto foi implantado na fazenda Bezerro
Vermelho, que foi dividida em 191 lotes. As famílias que conseguiam o
crédito mudavam para o local e encontravam apenas uma área de pas-
tagem.
A proposta inicial era desenvolver o cultivo de espécies frutíferas,
mas, ao longo dos últimos sete anos, muitos agricultores, especialmente
em decorrência da morosidade do processo de liberação de recursos
e da falta de assistência técnica, não conseguiram desenvolver as ati-
vidades propostas e acabaram vendendo os lotes, ou, simplesmente os
deixando e voltando a morar na cidade. Conforme dados da Prefeitura
Municipal, restaram, todavia, ainda em torno de 70 estabelecimentos
rurais com famílias habitando. Desse total, a Comunidade criou a Coo-
perativa de Produtores Rurais Bezerro Vermelho - COOBEVER, a qual
possui 22 associados que veem, no cooperativismo, oportunidade de

2
Tangará da Serra é considerado um município com alto potencial de desenvolvimento
agrícola e está inserido nos biomas Cerrado e Amazônia; tem cerca de 92 mil habitantes
e área territorial de 11.324 Km2 (IBGE, 2014).

 288
fortalecimento da busca de recursos e canais de comercialização para
seus produtos, conduzindo a maior competitividade e melhoria de con-
dições de vida.
Em face do permanente processo de desruralização3 que acomete o
nosso país, essa comunidade insiste em permanecer no campo, mesmo
atravessando inúmeras dificuldades, tais como a falta de água (mesmo
com a presença de um rio) e escassez de incentivos ao pequeno pro-
dutor rural, buscando assim se fortalecer como grupo que se apoia na
comunicação como alternativa para organização social e resolução de
seus problemas.
O estudo de caso foi realizado a partir da COOBEVER. Segundo
Yin (2010), o procedimento de Estudo de Caso é método de pesquisa
que pode ser usado em muitas situações para contribuir com fenômenos
individuais, grupais, organizacionais, sociais e relacionados, permitindo
aos investigadores reter as características holísticas e significativas dos
eventos da vida real. Trata-se de pesquisa descritiva-exploratória, com
abordagem qualitativa. A abordagem qualitativa de um problema justi-
fica-se por ser forma adequada para entender a natureza de fenômeno
social e vale-se de diferentes estratégias de investigação (CRESWELL,
2010; RICHARDSON, 2012).
A amostra foi constituída de maneira intencional: o próprio pes-
quisador escolheu os elementos que a compuseram, por julgá-los repre-
sentativos. Segundo a perspectiva teórica de Turato (2003); Aaker e Day
(2004), a amostragem não probabilística intencional relaciona-se à ho-
mogeneidade fundamental presente na amostra, tendo como atributos
essenciais um conjunto de características gerais. Esse tipo de pesquisa
é necessário quando se precisa incluir pequeno número de unidades na
amostra, e pode produzir resultados satisfatórios mais rápidos e com
menor custo.

3
Compreende-se “desruralização” como o processo de saída das populações das áreas
rurais para as cidades, mas sem serem de fato introduzidas ao modo de vida urbano,
tendo assim que se adaptar à habitações precárias, comparando-se àquelas tipicamente
urbanas. O termo é usado por Abramovay; Sachs, 2000).

 289
Assim, os dados foram coletados com o grupo de mulheres as-
sociadas, que produzem e comercializam doces, uma vez que, dos 22
associados, apenas elas estão em atividade efetiva na Cooperativa. Foi
incluído também na pesquisa o Coordenador responsável pelo Projeto
“Apoio a organização e gestão de empreendimentos rurais de base fami-
liar em Tangará da Serra”, vinculado à Universidade do Estado de Mato
Grosso/UNEMAT, por este possuir vínculo permanente com a comu-
nidade e cooperativa e deter informações significativas para o resultado
do estudo. Também fez parte da amostra o Coordenador do Núcleo de
Políticas em Economia Solidária - NEPES, por acompanhar e assessorar
os integrantes da Cooperativa desde sua fundação. De forma aleatória,
foram inclusos 14 produtores rurais da Comunidade Vale do Sol II, no
intuito de se investigar a comunicação e a participação destes com a/na
cooperativa.
As técnicas para coleta dos dados foram, primordialmente, entre-
vistas semiestruturadas, com auxílio de formulário contendo perguntas
abertas e fechadas. As entrevistas foram conduzidas por meio de: rotei-
ro contendo 18 questões, aplicado para 04 (cinco) mulheres associadas
da COOBEVER e para o coordenador do NUPES, realizada na sede da
Associação da Comunidade Vale do Sol II; formulário com 9 questões
abertas, aplicado à Coordenadora do Projeto “Apoio a organização e
gestão de empreendimentos rurais de base familiar em Tangará da Ser-
ra”. Também se utilizou dados secundários e a técnica da observação.
A aplicação da técnica de entrevista semiestruturada facilita a ob-
tenção de dados mais precisos e reduz a incidência de perguntas sem
respostas, facilitando a conversação informal e permitindo, assim, ex-
plorar ao máximo cada resposta até esgotar a questão (DUARTE; BAR-
ROS, 2011). Da mesma forma, para Santos (2012), o formulário com
questões abertas permite ao informante dar respostas livremente, com
maior teor de detalhes, fornecendo mais profundidade sobre a realidade
do estudo.
Para garantir que a identidade dos entrevistados não fosse revela-
da, foi feita a opção de identificar os respondentes da Cooperativa com

 290
letras (A, B, C, D, E), a Coordenadora do Projeto com (F) e o Coorde-
nador do NUPES com (N).

Quadro 1- Perfil dos respondentes


Identificação do Cargo do Local da entrevista
Respondente respondente e/ou do questionário
A Associada Sede da Cooperativa
B Vice Secretária Sede da Cooperativa
C Associada Sede da Cooperativa
D Associada Sede da Cooperativa
E Agricultor que atua como Titular do Conselho Fiscal Sede da Cooperativa
F Coordenadora Projeto UNEMAT Escritório particular
N Coordenador do NUPES Sede da Cooperativa
Fonte: Dados da Pesquisa, 2015. As fontes secundárias pesquisadas foram o
jornal Diário da Serra, Editais e Atas das reuniões, além do embasamento teórico
por meio da bibliografia especializada.

Comunicação, consumo e comunidade


Dentro das teorias comunicacionais, existem diversos modelos
que estudam uma variedade de processos de comunicação: desde os
que são relacionados às massas, àqueles ligados à comunicação po-
pular. Sobre o gênero na comunicação, Barbero (2002) comenta: “o
gênero hoje é um lugar-chave da relação entre matrizes culturais e for-
matos industriais e comerciais”. Há vários universos culturais que se
entrelaçam e estes são formados a partir de caracterizações de gênero,
ou seja, o que se consome está diretamente ligado à identidade daque-
le que fabrica, que, por sua vez, interage com o consumidor, pois se
constituem “afinidades” que levam ao encontro desses dois gêneros
culturais. Isso faz com que haja comunicação entre os povos, Estados,
nações.
Observa-se, nesse sentido, a fragmentação do consumo, que se di-
vidiu para atender às necessidades de certos grupos sociais, os quais
representam nichos de consumidores de determinada produção. São
processos que analisam a dinâmica do homem por meio de sua fala e

 291
de suas ações, levando em consideração a cultura dele, enxergando o
sujeito não como passivo, mas como o receptor, reorganizador e difusor
das informações mediadas. Canclini (2005) e Hall (2006) corroboram
essa mesma perspectiva ao abordarem o conceito de culturas híbridas,
identidades mutantes e suas formações. Para os autores, as identidades
devem ser tratadas observando-se o “cruzamento” das culturas na for-
mação dos sujeitos.
Ao analisar a sociedade, Castells (2009, p 52), à luz de seu conceito
de redes sociais, aponta que:
A comunicação simbólica entre os seres humanos e o relacionamen-
to entre esses e a natureza, com base na produção (e o seu comple-
mento, o consumo), experiência e poder cristalizam-se ao longo da
história em territórios específicos, e assim geram culturas e identi-
dades coletivas.

Reitera o autor que estas relações possibilitam à sociedade a for-


mação de grupos sociais, os quais são difusores de suas técnicas de pro-
dução e comercialização, conforme os seus modos de vida, estes se en-
contram entrelaçados a outros grupos com suas ideologias reafirmadas
pelas identidades culturais, tal processo toma-se como base a produção
do capital. Ao tratar a comunicação popular nas comunidades e suas
relações de poder, Peruzzo (2006, p 2) afirma que:
A comunicação popular foi também denominada de alternativa,
participativa, horizontal, comunitária e dialógica, dependendo do
lugar social e do tipo de prática em questão. Porém, o sentido po-
lítico é o mesmo, ou seja, o fato de tratar-se de uma forma de ex-
pressão de segmentos excluídos da população, mas em processo de
mobilização visando atingir seus interesses e suprir necessidades de
sobrevivência e de participação política.

Nessa perspectiva, a autora traz à reflexão a comunicação em po-


der de todos, como forma de inclusão social, capaz de agregar valor às
relações de cidadania, ou seja, todos têm voz e vez no exercício de seus
direitos e deveres, para utilizar a fala como instrumento dialógico para
interesse comum e mobilização de um grupo.

 292
Neste trabalho, enfatizam-se especificamente dois tipos de comu-
nicação, os quais perpassam os estudos do objeto aqui pesquisado: tra-
ta-se da comunicação organizacional e da comunicação participativa.

Comunicação organizacional
Assumindo a posição de interdependência, as organizações neces-
sitam comunicar-se. Dessa forma, o sistema organizacional viabiliza-se
por meio do sistema de comunicação nele existente, que tornará possí-
vel sua contínua realimentação e sobrevivência. Assim, a comunicação
torna-se imprescindível para a organização social (KUNSCH, 2003).
Cardoso (2006) enfatiza que o início do século XXI aponta para a
nova relação homem/organização/mundo. Essa relação leva à compre-
ensão do homem como ser integral e integrado, de modo que a organi-
zação deve renovar-se e reconstruir-se para garantir espaço de interação
dialógica e disseminar a visão macroambiental, proporcionando cresci-
mento e desenvolvimento pessoal constante, em que a qualidade de vida
seja objetivo primordial.
Nesse sentido, conforme Kunsch (1997 apud TAVARES, 2005), tra-
balhar a comunicação integrada, composto da comunicação organiza-
cional, que interage sinergicamente envolvendo todos os segmentos da
comunicação, é fundamental, devendo ser aplicada nas seguintes áreas:
- Comunicação administrativa – refere-se à rede formal e informal
e aos diferentes fluxos;
- Comunicação institucional – envolve as atividades técnicas, de
relações públicas, jornalismo, editoração, propaganda institucio-
nal, identidade visual, marketing social e cultural;
- Comunicação mercadológica – relacionada a propaganda comer-
cial, promoção de vendas, merchandising; venda pessoal, demons-
trações de produtos, exposições e feiras comerciais, treinamento
de vendedores, assessoria aos clientes e assistência pós-venda.

 293
Dessa maneira, a comunicação interna vista como comunicação
integrada será muito mais eficiente e eficaz se voltada para a política
global estabelecida, estratégias delineadas e programas de ação voltados
para todo o pessoal interno. A autora complementa ainda que, em orga-
nizações flexíveis, a tendência é permitir que a comunicação ultrapasse
as fronteiras tradicionais do tráfego das informações, pois, nessas orga-
nizações, é incentivada a gestão mais participativa, criando-se condi-
ções para que as pessoas interajam em diferentes áreas.
A comunicação desempenha mudanças gerenciais e organizacio-
nais, especialmente em ambiente de complexidade, pois envolve a troca
consciente de mensagens entre interlocutores, sendo fator preponde-
rante de convivência e objeto elementar das formas segundo as quais a
sociabilidade humana acontece. Assim, precisa ser desenvolvida nas or-
ganizações por meio de estratégias que agreguem valores, possibilitan-
do a integração de grupos e pessoas e mediando o relacionamento das
organizações com seus diferentes públicos. Deve possibilitar também
que as pessoas se tornem “atores” de processo que se realiza pelas múl-
tiplas mediações que se manifestam nas relações do(s) sujeito(s) com a
organização e desta com a sociedade. Nesse sentido, conforme Genelot
(2001 apud CARDOSO, 2006), a comunicação precisa ser repensada
com cautela, levando-se em consideração sua linearidade e flexibilidade
nas organizações.

Comunicação participativa, cooperativismo e socioe-


conomia solidária
Os conceitos de comunicação participativa e de cooperativismo es-
tão intrinsecamente ligados nas relações entre os sujeitos e no modo como
elas acontecem. A comunicação, na condição de participação social, con-
figura importante ferramenta de interação entre os grupos. Bordenave
(1983) afirma que a questão central a ser discutida ao abordar a expressão
“comunicação popular” é compreender a real possibilidade de se exer-
cer a cidadania nos meios populares. Para tal, busca-se, a partir da fala

 294
dos sujeitos, o sentido de participação no exercício das ações realizadas.
Assim, poder-se-ia construir a sociedade participativa pensando-se nas
microparticipações. As cooperativas de trabalho constituiriam a apren-
dizagem e o caminho para a participação em nível macro na sociedade,
de modo que não haja mais setores ou pessoas que vivam marginalizadas.
Considerando-se os sistemas educativos, formais e não formais, poder-
-se-iam desenvolver mentalidades participativas pela prática constante e
refletida da participação. Segundo Bordenave (1983, p. 26):
O interessante é que a luta pela participação social envolve ela mes-
ma processos participatórios, isto é, atividades organizadas dos
grupos com o objetivo de expressar necessidades ou demandas, de-
fender interesses comuns, alcançar determinados objetivos econô-
micos, sociais ou políticos, ou influir de maneira direta nos poderes
públicos.

Pode-se afirmar que o que vai definir a organização do grupo em


cooperativa é o quanto mais os participantes desse processo tomarem
efetivamente parte dele. Estudos de Freire sobre educação e autono-
mia refletem sobre a busca de libertação, a qual estabelece o homem na
aprendizagem: “As dimensões do sentido e da prática humana encon-
tram-se solidárias em seus fundamentos. E assim a visão educacional
não pode deixar de ser ao mesmo tempo uma crítica da opressão real
em que vivem os homens e uma expressão de sua luta por libertar-se.”
(FREIRE, 1967, p. 8).
Ao se refletir sobre a emancipação do trabalho por meio do coope-
rativismo e suas relações, observa-se que, nos dias atuais, tem-se desta-
cado o conceito da socioeconomia solidária, que, por meio de estudos
filosófico-sociológicos, aponta a constituição de atividades que podem
expressar mudanças de pensamentos e paradigmas. A partir de refe-
renciais de Marx (2008), Castells (1999), Singer (2005) e Santos (2007),
entre outros, pode-se compreender que a socioeconomia solidária apre-
senta-se como movimento social traduzido pelas ações coletivas, tendo
como referência a construção de práticas sociais que contrapõem a ide-
ologia fundamentada no capital, a partir de reflexão para o campo da
organização econômica:
 295
Desta perspectiva podemos aferir que a socioeconomia solidária é
um campo em que os trabalhadores se organizam para gerar uma
identidade que se traduz em termos econômicos, políticos e cul-
turais. Há um adversário forte a ser enfrentado, que é a sociedade
do capital com todas as suas artimanhas ideológicas e também dos
desafios de superação da sociedade do ‘reino da necessidade’ para a
construção do ‘reino da liberdade’. (ZART, 2011, p. 48)

Ao se discutir a comunicação que envolve todo esse processo,


compreende-se que ela deve ser tal como fator preponderante para a
disseminação das ideias que perpassarão todo esse contexto econômico,
filosófico, sociocultural e participativo. As relações de poder são discu-
tidas na organização de todo sistema, onde a comunicação dá a vez para
a participação popular.

Resultados
A fabricação e comercialização de doces no empreendimento “Fru-
tos do Vale” realizava-se informalmente desde 2011. Este era formado
por mulheres, trabalhadoras rurais que viviam na comunidade Vale do
Sol II e foram beneficiadas pelo Programa Nacional do Crédito Fundi-
ário para aquisição das suas unidades produtivas. Em 2013, fundou-se
a Associação de Mulheres Rurais Frutos do Vale - AMFRUVALE, com-
posta por 12 mulheres. Esse fato marcou o primeiro passo do empre-
endimento rumo à emancipação do negócio. Desde então, o grupo de
mulheres está apto a produzir, expor e comercializar seus produtos nas
feiras de eventos culturais do município de Tangará da Serra e concorrer
nos editais de fomento.
Compreendendo que a Associação não mais atendia à expectati-
va de comercialização em maior escala e em outras praças comerciais,
criou-se, em 2014, a COOBEVER, que conta com 22 associados e, atual-
mente, está em processo de registro, tendo por objetivo congregar agri-
cultores em sua área de atuação, por meio das seguintes atividades (o
que pode ser visualizado nos recortes de relatos dos respondentes A, F
e N, transcritos adiante):

 296
I) Fortalecer a organização produtiva, econômica e social dos pe-
quenos produtores rurais do município de Tangará da Serra e mi-
crorregião;
II) Beneficiar e industrializar das mercadorias produzidas pelos as-
sociados da cooperativa, como: frutas, hortaliças, cana de açúcar,
mel, milho, carnes, ovos, aves, amendoim, leite, mandioca e outros
produtos agrícolas;
III) Adquirir e repassar, aos associados, insumos para produção
específica e embalagens para os produtos industrializados;
IV) Comercializar os produtos na área permitida conforme a le-
gislação, como queijo e derivados, geleias, chimias, compotas,
conservas, melado, açúcar mascavo, farinha, doces em geral, pães,
massas, biscoitos, rapadura, mandioca descascada, frango, embu-
tidos, ovos e outros;
V) Racionalizar as atividades desenvolvendo formas de coopera-
ção que auxiliem os associados na expansão de mercados, facili-
tando a comercialização dos produtos.
A cooperativa surgiu da necessidade de produzir e vender, pois
muitos produtos se perdiam nas lavouras (Respondente A). A ade-
são à cooperativa se dá num segundo estágio do empreendimento
Frutos do Vale, quando a Associação das Mulheres não consegue
atender à expectativa de comercialização em maior escala e em ou-
tras praças comerciais (Respondente F). A forma jurídica de Asso-
ciação não atende às necessidades de comercialização dos produtos
(Respondente N).

O trabalho com a comunidade para implantação da Cooperativa


iniciou-se em janeiro de 2014, conforme consta em Ata de 09-01-2014
da Associação de Produtores da Comunidade Vale do Sol II, por meio
do proponente do Projeto “Apoio a organização e gestão de empreendi-
mentos rurais de base familiar em Tangará da Serra”, vinculado à Uni-
versidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT, e pelo NUPES, ligado
ao poder público.

 297
O Núcleo configurou o processo de amadurecimento da ideia do
Cooperativismo, ou seja, primeiro houve amadurecimento de cunho
social para, na sequência, ocorrer a transição de Associação para Coo-
perativa. Esse processo se deu por meio de reuniões em que os membros
da comunidade foram sendo sensibilizados pelo diálogo sobre o papel
da cooperativa e de seus associados, por experiências em grupo e capa-
citação para o trabalho por meio da participação em cursos e palestras
organizadas pelo projeto da UNEMAT e do NUPES. A convocação for-
mal (Edital 002/2014) teve como pauta: a transformação da AMFRU-
VALE em Cooperativa; aprovação dos estatutos sociais; integralização
de quotas partes; eleição da diretoria; dentre outros, foi publicada no
Jornal Diário da Serra em 30 de julho de 2014, realizando-se a reunião
em 04 de agosto de 2014 (TANGARÁ DA SERRA, 2014).
Após esse processo, as “Mulheres Doceiras”, junto com um grupo
de produtores, buscaram, no Coordenador do NUPES e na Coordena-
dora do Projeto da UNEMAT, parceria de assessoria para constituição
da Cooperativa. Os relatos dos informantes A e N demonstram isso:
“Uniu-se a necessidade das mulheres com um grupo de produtores
e formou-se a Cooperativa” (Respondente N). “O grupo visitou os
produtores, passaram nas casas falando sobre a cooperativa” (Respon-
dente A).
Assim, esse processo de assessoria, que é oferecido de forma geral
para os pequenos produtores da Comunidade Vale do Sol II, esteve pre-
sente desde o início da Cooperativa, por meio da organização da docu-
mentação exigida e com ações que concorreram para que os produtores
obtivessem o desenvolvimento de habilidades gerenciais e organizacio-
nais. Estas propiciaram a melhoria do processo cooperativado a partir
da adoção de novas ferramentas na gestão e comercialização de produ-
tos da agricultura familiar e, consequentemente, aumento na renda dos
agricultores e de suas famílias.
Dessa forma, o apoio recebido vem especialmente do NUPES e
do Projeto da UNEMAT, por meio dos quais foi oportunizado aos in-
tegrantes realizar cursos de capacitação e participar de feiras fora do

 298
município, bem como terem acesso a informações e novidades da área.
Estes relatam que, nos últimos tempos, têm recebido colaboração tam-
bém da Incubadora da UNEMAT e que não têm conhecimento nem
possuem incentivo de outras políticas públicas. Isso pode ser observado
na fala do Coordenador do NUPES e da Coordenadora do Projeto da
UNEMAT.
Nosso trabalho limita-se a intermediar algumas questões com enti-
dades públicas, instituições financeiras e etc. No caso do Frutos do
Vale, todas as decisões são tomadas pelo grupo de mulheres. Nosso
trabalho tem sido estimular o desenvolvimento de habilidades para
que as mulheres possam conduzir o negócio (Respondente F). As
professoras do Projeto sempre buscaram envolver os integrantes da
cooperativa em todo processo de formação da mesma para que pu-
dessem conhecer e aprender [...] A Professora do Projeto da UNE-
MAT utiliza verdadeiramente de um processo de autonomia junto
às cooperadas (Respondente N). Nós do NUPES apenas fazemos
um trabalho de assessoria, prestando apoio nas capacitações e no
suporte para participação nas feiras (Respondente N).

Na formação da COOBEVER, a maioria das mulheres optou por


deixar os cargos do Conselho Administrativo com os homens, manten-
do algumas representações, como é o caso da 2ª Secretária e da 1ª Ti-
tular do Conselho Fiscal. Quando questionadas sobre quais trabalhos
são desenvolvidos na Cooperativa, como os organizam e como decidem
sobre os horários e dias, as respondentes afirmaram que os trabalhos
principais são a fabricação e comercialização dos doces; porém, antes
disso, ainda na propriedade de cada uma, há a produção das frutas e,
na falta destas, são ofertadas também frutas de outros agricultores da
comunidade.
Observou-se que, assim, cada uma fornece o que cultiva, e a pro-
dução dos doces tem sua matéria-prima garantida na comunidade se-
manalmente. Com relação à organização dos trabalhos, relataram que
todas possuem conhecimentos para executar as funções e que decidem,
em reuniões, as atividades da semana e respectivos dias e horários. O
critério utilizado é a disponibilidade de cada uma. Isso fica claro na fala

 299
seguinte, da Coordenadora do Projeto da Unemat: “As reuniões são
semanais, neste dia são tratados assuntos de interesse do grupo, como
programação para participar de feiras, decisão de investimentos e pro-
dução de doces.” (Respondente F).
As informações entram na cooperativa por meio dos cursos, como
do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), sobre boas prá-
ticas de produção e receitas; pelo Projeto da UNEMAT e também pelo
Sindicato Rural e pelo NUPES. O receptor das informações então se
incumbe de repassá-las ao grupo, o que é praticado de maneira formal,
por meio das reuniões, ou mesmo informalmente, durante o processo
de produção dos doces, que ocorre duas vezes na semana. Relatam que
uma das dificuldades é não terem acesso à internet. Dos instrumentos
de comunicação utilizados pelo grupo, em relação à comercialização,
possuem cartão de visita e percebem a necessidade de construir um
banner e panfletos. Foram também divulgadas informações sobre o tra-
balho nas redes de televisão locais, TV Centro América e Bandeirantes.
Um instrumento bastante utilizado é o celular, porém existe muita troca
de informações por meio de reuniões, conversas formais e informais
com a Coordenadora do Projeto da UNEMAT e nas feiras de que par-
ticipam. Esse trânsito de informações é apresentado na fala dos respon-
dentes A, B, E e N:
A economia solidária contribui abrindo portas, apontando cami-
nhos, através de reuniões, bate papo. Utiliza da tecnologia social’
(Respondente N). Aqui no nosso grupo três pessoas recebem com
mais frequência as informações que vem de fora através destas reu-
niões externas (Respondente B). Uso principalmente o celular para
contato com os clientes (Respondente A). Assisto o canal Futura
e Globo Rural, são os canais onde encontro mais informações. O
rádio, apenas para notícias do dia a dia mesmo [...] Nas feiras tro-
camos informações, conhecemos outras pessoas que passam pelas
mesmas situações que nós [...]. A participação na Conferência Na-
cional da Economia Solidária foi ótima, levamos propostas para a
conferência e trocamos informações (Respondente E). As profes-
soras e o coordenador do NUPES também nos trazem informações
externas, novidades (Respondente B).

 300
Com relação à comercialização dos produtos, normalmente acon-
tece em feiras culturais, em eventos regionais (Exposserra e Arraiá da
Serra) e na feira cultural em Cuiabá, na Assembleia Legislativa. Tam-
bém se efetiva por meio da demanda local continuada de doces e con-
servas sob encomenda. Buscam os clientes por meio de parentes, vizi-
nhos, processo realizado com informações “boca a boca”. Não possuem
carteira de clientes, mas cada uma das mulheres possui seus próprios
clientes, e não detêm informações sobre os clientes umas das outras.
Também possuem 02 (dois) revendedores, aos quais concedem 30% de
comissão sobre as vendas. Informações sobre as vendas são anotadas
em caderno e, todo dia 30 de cada mês, fazem o fechamento do caixa. O
preço de venda dos produtos é decidido em grupo, conforme demons-
tram os relatos dos informantes B, E e F:
Nossa venda é para parentes e na comunidade, boca a boca. (Res-
pondente E). A quantidade de vendas é anotada no caderno. Todo
dia 30 fechamos o caixa, verificando o que cada uma vendeu e ti-
rando as despesas [...] Os preços que determinamos para vender os
produtos são decididos em grupo. Nós calculamos mais ou menos
o custo dos produtos e calculamos a que preço vamos vender (Res-
pondente B). Com base nos custos de produção acrescido de mar-
gem de ganho estabelecida pelo grupo (Respondente F). Estamos
aguardando um curso que a Professora da UNEMAT ficou de trazer
pra nós sobre essa parte de preços (Respondente E).

Quando questionadas sobre como fazem a gestão das informações,


responderam que, em situação de problema, quando não conseguem
resolver, as líderes buscam apoio e informações com a coordenadora do
Projeto da UNEMAT ou com o Coordenador do NUPES, pois assim se
comunicam em busca de orientação para tomada de decisões. As infor-
mações externas ou as relacionadas à Cooperativa são armazenadas por
meio de anotações ou ficam em poder de cada uma; muitas vezes, não
são repassadas ao grupo. Declararam ainda que as informações são con-
seguidas facilmente por meio dessas pessoas. Os relatos apresentados
pelos informantes E e N demonstram isso:
O correto seria sempre fazer uma reunião para o repasse dessas in-
formações, mas isso nem sempre acontece, muitas vezes a informa-

 301
ção se perde (Respondente E). Em uma situação problema as líderes
ligam pra mim ou para a Professora da UNEMAT e nós orientamos
onde buscar a informação. O grupo já está maduro para solucio-
nar os problemas e buscar informações. Não fazemos nada por elas,
apenas indicamos, abrimos portas (Respondente N). Pretendo fa-
zer uma capacitação de formação para o Conselho Fiscal da Coo-
perativa, assim poderão resolver a grande maioria dos problemas
financeiros (Respondente N).

A busca da certificação dos produtos foi motivada pela Coorde-


nadora do Projeto da UNEMAT, que levou o grupo de mulheres da co-
operativa a conhecer o assunto, por meio de curso de boas práticas de
manipulação de alimentos, composto de estudos, aulas práticas, teóricas
e palestras ilustrativas.
O objetivo foi enfatizar as vantagens de produzir dentro de padrão
de qualidade estabelecido. Ao todo, as seis etapas consistiram na orien-
tação e esclarecimentos sobre os cuidados com a manipulação de ali-
mentos; estudos sobre a legislação pertinente e adequação de cartilhas;
acompanhamento na elaboração do Procedimento Operacional Padrão
(POP); estruturação e formatação do manual de boas práticas; revisão e
correção de possíveis divergências nas formulações existentes (receitas);
verificação e adequações da cozinha para receber a visita do técnico da
vigilância sanitária para a certificação municipal. Após, a Coordenado-
ra do Projeto encarregou-se de trabalhar no processo, organizar toda
a documentação e realizar a adequação necessária para a certificação
Serviço de Inspeção Municipal (SIM). Para cobrir os custos, o grupo
recebeu doações da comunidade e também investiu o lucro dos doces.
Na sequência, o relato dos respondentes A, B, E e F:
Exatamente 40 dias após o curso, solicitamos a visita dos técnicos da
Secretaria da Saúde e órgãos correlacionados para obtenção do SIM
e logo após foi concedido o alvará de funcionamento para a pro-
dução de doces e conservas do empreendimento [...]. Houve maior
conscientização das mulheres quanto à segurança do alimento, os
produtos foram identificados de acordo com os padrões técnicos e
tiveram maior aceitação dos consumidores (Respondente F). Co-
nhecemos a certificação por meio da professora, fomos na reunião

 302
junto com ela [...] A professora mexeu com a papelada, foram ne-
cessárias muitas coisas [...] Para poder adaptar todas as exigências a
Professora bateu de porta em porta pedindo doações e o lucro dos
doces também foi utilizado (Respondente E). Precisou da aprovação
do local, recebemos a visita dos bombeiros e vigilância sanitária,
tivemos que fazer dedetização, colocar extintores, fazer exames mé-
dicos (Respondente A). Colocamos telinha nas janelas, fizemos o
curso de boas práticas, colocamos o extintor de incêndio, trocamos
pia, colocamos clorador de água e tudo isso só foi possível porque
juntamos todo o dinheiro da produção de doces e aplicamos neste
processo da cooperativa. Após tudo pronto fizemos um laudo final
e assinamos (Respondente B).

Quando inquiridas sobre os benefícios alcançados pela certifica-


ção dos produtos, o grupo de mulheres respondeu:
Conseguimos mais clientes, serviu para a divulgação. A TV se
interessou, foram feitas várias reportagens [...] Os clientes co-
mentam conosco sobre as reportagens (Respondente E). Trouxe
segurança para os clientes (Respondente B). Outra visão por parte
dos consumidores (Respondente A). Eles compram o rótulo (Res-
pondente E).

Observou- se, nesse sentido, que as mulheres entendem que houve


benefícios trazidos pelo processo da certificação e que este agregou va-
lor aos produtos fabricados. Dos produtores rurais pesquisados54, 50%
disseram que são associados da Cooperativa e fornecem frutos ou leite;
30% disseram que fornecem ou já forneceram frutos e/ou leite para a
cooperativa, mas não são associados; 15% disseram não participar da
Cooperativa, mas que gostariam de participar; e 9% não gostariam de
participar da cooperativa.

Discussão
A comunicação, na condição de ferramenta de ensino abordada
por Freire (1996) – “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar
as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE,
1996, p. 26) – aponta para a autonomia da informação. Conforme o

 303
grupo de mulheres conseguia realizar as atividades corriqueiras da co-
operativa, tais como a “verificação de documentos”, observou-se que
houve avanço no processo de aprendizado, o que trouxe independên-
cia ao grupo.
Na prática, o grupo se desenvolveu conseguindo resolver proble-
mas durante as reuniões realizadas para a discussão dos interesses co-
muns. Esse processo se deu a partir do momento em que o grupo se
identificou com a sua autonomia de gestão e começou a participar das
ações realizadas pelos detentores das informações externas à comuni-
dade. Dessa forma, o trabalho da UNEMAT (projeto da professora em
questão) e o NUPES deram forma ao processo denominado de incu-
bação, em que a instituição realiza o passo a passo de como criar uma
cooperativa, orientando e assessorando os associados desde o processo
inicial, que pode ser desencadeado pelo pedido de ajuda da comunida-
de, ou mesmo a partir de pesquisa/investigação realizada pela institui-
ção que se propõe realizar a incubação.
Conforme estudos de Economia Solidária, este trabalho vem sen-
do realizado por instituições de ensino, como, por exemplo, as univer-
sidades, que propõem projetos de extensão para promover esse con-
tato com a sociedade por meio dos trabalhos sociais, conhecendo-se
assim as realidades dos trabalhadores. Teixeira (2012) afirma que a
incubadora trabalha para o desenvolvimento da Economia Solidária,
o que estimula a organização autogestionária por meio da incubação
de empreendimentos e fomento à construção de redes e arranjos polí-
ticos, econômicos e culturais. Assim, são projetos específicos que já se
intitulam “incubação”. Desse mesmo prisma compartilha Zart (2011,
p. 48), ao citar o processo de formação da Rede de estudos sobre Eco-
nomia Solidária:
É sob este princípio que se organiza a fundação Interuniversitária de
Estudos e Pesquisas sobre o trabalho (Rede Unitrabalho), entidade
que hoje reúne 92 universidades brasileiras (públicas e comunitá-
rias) e que tem o compromisso de consolidar uma forma de fazer
ciência, tecnologia e implantar um processo formativo que esteja
em consonância com os desafios da socioeconomia solidária.

 304
Neste caso específico, o projeto da UNEMAT, na Comunidade
Vale do Sol II, não era um projeto de incubação, mas fazia esse papel,
pois estava vinculado à Economia Solidária, por se tratar da abordagem
a “empreendimentos rurais de base familiar”. O NUPES, por seu turno,
configurou-o como trabalho de assessoria por ser “núcleo de políticas
em economia solidária”, e o poder público assume também papel de
incubador neste caso específico, a serviço da Prefeitura Municipal.
A partir deste trabalho, compreendeu- se que o trânsito das infor-
mações externas se deu de forma linear, ao passo que as atividades que
eram realizadas pelo grupo vinham de informações que passavam pelo
processo de instrução às pessoas interessadas e disponíveis à participa-
ção nas reuniões externas, que, por sua vez, ocorriam na Prefeitura do
município (Figura 2). Estas eram realizadas de forma aberta (acessível
a quem quisesse participar, pois o grupo sempre delegava um membro
para fazer parte delas) e com o conhecimento de todos os participantes
da Cooperativa.

Figura 2 – Tangará da Serra (MT): trânsito comunicacional na


COOBEVER da comunidade Vale do Sol II.
Fonte: Elaborada pelos autores, 2015.

 305
Embora nem todas as cooperadas participassem das reuniões ex-
ternas à comunidade e não houvesse qualquer pauta que tivesse deixa-
do de ser discutida pelo grupo, observou-se que a comunicação flui de
forma horizontalizada, tendo as cooperadas total liberdade de contato
com os seus “incubadores”. Observou-se, sobre a gestão da informação
a partir da fala da respondente “E”, que: “O correto seria sempre fazer
uma reunião para o repasse dessas informações, mas isso nem sempre
acontece, muitas vezes a informação se perde”; o grupo está consciente
de que a organização das informações de maneira adequada faz com
que elas não se percam e, se não houver reuniões, não há informações.
Logo, tem-se a necessidade de armazenamento dessas informações e da
organização de reuniões específicas para o repasse ao grupo. Essa forma
de reivindicação tem seu papel na comunicação comunitária, onde as
relações são estabelecidas por meio do diálogo e o questionamento é o
que fortalece a perspectiva de mobilização social do grupo.
Também o fluxo de informações que circula entre o grupo das
cooperadas, enquanto discutem obrigações e ações realizadas por elas,
bem como a participação dos produtores rurais da comunidade na co-
operativa e as informações captadas pela Universidade e pelo NUPES
são assim entendidos como papéis sociais que cada um exercita tanto
na Cooperativa quanto na Comunidade, e isso ocorre de forma cíclica
(Figura 3). Conforme apontam Sousa et al. (2014 p 12), tal modelo
corresponde a via de mão dupla, que promove comunicação e intera-
ção entre os sujeitos, o que culmina na transformação permanente do
receptor em transmissor e vice-versa, permitindo reajuste constante
do processo.
De acordo com a abordagem de Paiva (1998), pode-se refletir so-
bre a forma como se estabelece tal fluxo das informações Cooperativa-
-Produtores rurais, seja quanto ao processo de compra e venda das ma-
térias-primas realizadas na fabricação dos doces, seja na sensibilização
realizada pelo NUPES e pela Universidade. Essa interação compreende
a troca de informações culturais que se estabelece no contexto social
comunitário, onde todos participam:

 306
A proposta da comunicação comunitária passa necessariamente
pela revisão do conceito de comunidade, bem como pela análise da
possibilidade de inserção dessa estrutura na atualidade. Cidadania
e solidariedade transformam-se em paradigmas que permitem ima-
ginar uma ordem com objetivos diferentes da premissa econômica
universalizante, esta mesma que pretende instaurar de maneira ge-
nérica a globalização. (PAIVA, 1998, p. 20).

Figura 3 - Fluxo de informações entre a cooperativa,


comunidade, NUPES e Universidade.
Fonte: Elaborada pelos autores, 2015.

Ao discutir sobre comunidades, Bauman (2003) reflete que, ain-


da que haja o reconhecimento dessa sensação positiva em relação à co-
munidade, deve-se entender que qualquer que seja a comunidade que
imaginamos, ela não está ao nosso alcance. O autor reitera que viver
em comunidade configura privilégio que tem preço e que comunidade
implica ambivalência:
Não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comuni-
dade, se isso ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade.
A segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e
desejados que possa ser bem ou mal equilibrados, mas nunca intei-
ramente ajustados e sem atrito (BAUMAN, 2003, p.10).

 307
Assim os atritos, quaisquer que sejam, poderão aparecer, pois con-
figuram prática comum do meio comunitário e ocorrem a partir das
relações do grupo. O mesmo autor afirma ainda, sobre os movimentos
pelo direito à diferença, que: “a luta pelos direitos individuais e sua alo-
cação resulta numa intensa construção comunitária” (BAUMAN, 2003,
p. 71). Assim, entende-se que essas relações proporcionam o crescimen-
to e o amadurecimento do grupo social e configuram relações necessá-
rias ao desenvolvimento do grupo como agricultores familiares, confor-
me aponta Gomes (2002).
Sobre a questão da utilização do uso dos veículos de comunicação
de massa para a organização do trabalho, as cooperadas informaram
que assistem a programas de televisão voltados ao trabalho no campo
e que ouvem notícias no rádio para saber dos acontecimentos do dia
a dia na cidade. Pode-se afirmar que umas das principais funções da
mídia, senão a principal, está em educar o cidadão a partir das notícias
e programas veiculados às massas. A mídia utilizada como ferramen-
ta educacional traz inúmeras possibilidades para o ser humano, entre
elas a oportunidade de reproduzir a ideia utilizada na organização de
trabalho em grupo, disseminando experiências particulares e múltiplas
formas de reprodução do conhecimento.
A capacidade de se comunicar, de selecionar e construir a própria
leitura do mundo, bem como a riqueza política, interesse e condições
estruturais que ofereçam oportunidades de desenvolvimento poderiam
ser elementos que contribuiriam para a busca da autonomia de vida.
Nesse contexto, a notícia jornalística comporia a memória sociopolítica
e cultural do indivíduo. Essa memória levaria cada pessoa a fazer dife-
rentes leituras de mundo a partir de experiências particulares (BATIS-
TA, 2007).
As cooperadas informaram que a certificação dos produtos gerou
outra expectativa ao grupo, a de confiança, e que, após a veiculação das
informações sobre a Cooperativa de doces na televisão, receberam re-
sultados positivos (Respondente E). Referente à publicidade da mídia
como forma de credibilidade, podemos citar ainda a veiculação de re-

 308
portagens sobre o grupo de mulheres na TV Centro América e Bandei-
rantes: “trata-se de uma iniciativa incorporada por algumas emissoras
a partir dos anos 1990 no Brasil, dentro de um esforço de transmitir
conteúdos mais próximos às realidades de cada lugar e com cara de
‘utilidade pública’ e assim poderem mostrar certo compromisso social”
(PERUZZO, 2003, p. 12).
Conforme citaram as cooperadas, esta foi a forma de atrair mais
clientes e de divulgar a cooperativa, gerando credibilidade ao grupo.
Ainda neste sentido, sobre a grande mídia, acrescenta a autora que a
veiculação de reportagens locais é realizada dentro de estratégia comer-
cial, tendo por base a segmentação e o interesse pela fatia do “bolo”
publicitário.
Sendo as informações propósito atribuído aos dados de um even-
to, passam pela análise de quem as cria dentro da realidade do evento.
Dessa forma, a informação gerada está propensa à interpretação de seu
criador. Dentro das organizações ela flui, tendo diferentes impactos em
seus receptores, tanto com relação ao grau de importância e validade
quanto às perspectivas que possuem sobre os fatos a que a informação
se refere (DAVENPORT, 1998). Nesse sentido, observa-se que, no pro-
cesso de tomada de decisão, o grupo de mulheres valida as informações
que são repassadas por suas duas fontes principais, o Coordenador do
NUPES e a Coordenadora do Projeto da UNEMAT, tendo esses dois
como parceiros de importância significativa.
Dentro do sistema de obtenção, distribuição e uso das informações
e conhecimento, percebe-se que ainda não existe estrutura formal, po-
rém tanto as informações não estruturadas como notícias quanto ideias,
exemplos e práticas que são utilizados enriquecem os dados, como en-
fatizado por Mecgee e Prusak (1994). Ainda de acordo com os autores, a
gestão da informação só é eficiente quando a obtenção das informações
se dá de forma contínua, o que, na prática, é buscado pelo grupo apenas
em condições de necessidades.
Com relação à distribuição das informações, precisa ser formatada
e disseminada, considerando-se como melhor sistema aquele que en-
 309
volve pessoas, computadores e documentos. Esse processo ainda não
está implantado na Cooperativa, mas é percebido pelo grupo como algo
fundamental, pois muitas informações se perdem quando não são devi-
damente armazenadas e compartilhadas por todos, deixando de viabili-
zar a aprendizagem. As informações na organização, sejam elas geradas
internamente ou não, precisam ser utilizadas e comunicadas de forma
estratégica, propiciando seu desenvolvimento e adequação às inovações
do segmento em que atuam.
A comunicação é utilizada também na certificação dos produtos,
e entrou em cena a partir do momento em que foi percebida como ne-
cessária, primeiramente pela Professora Coordenadora do Projeto da
UNEMAT, e, após, pelo grupo de mulheres. A certificação, como ins-
trumento para o gerenciamento e garantia do nível de qualidade dos
produtos, proporciona também meios mais eficientes de troca de infor-
mações entre o fabricante e o cliente, melhorando a confiabilidade das
relações comerciais. (MARSHALL JUNIOR et al., 2003).
Assim, percebe-se que a certificação é considerada pelas coopera-
das como ferramenta de redução de assimetria informacional, ao apre-
sentar os atributos intrínsecos dos produtos, proporcionando segurança
ao consumidor em relação ao consumo. Nesse mesmo contexto, o rótu-
lo também constitui elemento de comunicação, uma vez que o produto,
possuindo valor simbólico, estimula as sensações humanas, tendo fun-
ção de transferir todas as informações, sejam visuais ou verbais.

Considerações finais
Considera-se, a partir da investigação realizada, que o grupo en-
controu, na comunicação participativa, importante ferramenta de deba-
te para a resolução de problemas na Cooperativa. Também com relação
à comunicação com a Comunidade Vale do Sol II, há interação com os
produtores rurais locais por meio da compra dos produtos que vêm a
ser a matéria-prima para os doces. Essa aproximação traz fortalecimen-
to para o grupo, o que impulsiona a cooperativa ao crescimento.

 310
Quanto à organização, enquanto gestão, pode-se inferir que o
grupo se encontra maduro para permanecer exercendo o seu trabalho
após o encerramento do processo de criação da cooperativa, pois tan-
to o Núcleo de Políticas em Economia Solidária quanto a Universidade
exerceram o papel de “incubação”, apoiando e orientando o grupo para
que este viesse a continuar exercendo suas atividades como empreendi-
mento solidário.
Ao longo do trabalho, foi identificada a importância de novas
abordagens sobre o tema com relação às discussões de gênero, no que
diz respeito à representatividade da mulher na produção dos doces e
sua participação formal na gestão do empreendimento. Observou-se
que as cooperadas buscam informações nos veículos de comunicação
de massa e que isso tem sido mais uma forma de compreender o traba-
lho realizado. Além disso, as viagens para feiras, reuniões e veiculação
de informações na mídia local estão abrindo possibilidades para que o
empreendimento tome maiores proporções.

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 313
 314
Estudo Comparativo das Práticas
de Agroecologia no Assentamento
Roseli Nunes, Mirassol D’Oeste-MT,
e no Assentamento 72, Ladário-MS
Edgar Aparecido da Costa
Doutor em Geografia. Docente na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Rozilene Cuyate
Mestre em Estudos Fronteiriços.

Introdução
Os assentamentos rurais brasileiros, em sua grande maioria, após
a emancipação e até mesmo depois de cinco anos de existência, vão dei-
xando de receber assistência técnica sistemática do governo. A exceção,
quase sempre, ocorre de forma espontânea por intermédio de técnicos
das secretarias/agências estaduais de produção rural que conseguem
aprovar projetos em chamadas públicas. Dessa forma, muitas iniciati-
vas começadas não terminam, causando estranhamento e desconfiança
dos camponeses quanto ao apoio à produção. Costa, Zarate e Macedo
(2012) apontaram que a carência de assistência técnica e a interrupção
das ações públicas são fatores que se repetem no campo e são poten-
ciais estimuladores do processo Territorialização-Desterritorialização-
Reterritorialização (T-D-R).

 315
A ausência de apoio técnico das agências de assistência e extensão
rural tem sido minimizada pela presença, cada vez maior, de pesquisa-
dores das Instituições de Ensino Superior (IES), por meio de projetos
com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq/MCTI). Nos anos mais recentes, esse órgão tem fei-
to importantes parcerias com outros ministérios, tais como Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA), Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS), Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), entre outros, ampliando recursos para pesquisa e induzindo
ações de apoio à agricultura camponesa. Igualmente, algumas organiza-
ções não governamentais (ONGs) e religiosas também têm contribuído
com importantes esforços para resistência dessa agricultura.
Nesse contexto, este capítulo articula-se ao projeto de pesquisa
“Questão agrária e transformações socioterritoriais nas microrregiões
do Alto Pantanal e Tangará da Serra/MT na última década censitária”,
da Rede Centro-Oeste de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação (Edital
MCT/CNPq/FNDCT/FAPs/MEC/CAPES/PRO-CENTRO-OESTE nº
31/2010). Seu objetivo é comparar as induções de desenvolvimento ter-
ritorial e de práticas agroecológicas em dois assentamentos rurais da
Reforma Agrária: o Assentamento Roseli Nunes, no município de Mi-
rassol D’Oeste, na região sudoeste do estado de Mato Grosso, com apoio
da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE),
sediada na cidade de Cáceres (MT); e o assentamento 72, no município
de Ladário, no oeste de Mato Grosso do Sul, com intervenções da Uni-
versidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Câmpus do Panta-
nal, e da Embrapa Pantanal.
A escolha desses assentamentos resultou de trabalhos em parceria
com alguns professores do curso de Geografia da Universidade do Es-
tado de Mato Grosso (UNEMAT/Cáceres-MT) e do interesse em com-
parar os resultados das intervenções na produção camponesa de insti-
tuições de finalidades diferentes. Dessa forma, os trabalhos de campo
com uso da técnica da entrevista foram decisivos para a organização das
informações e discussão desses resultados.

 316
Partiu-se do entendimento do desenvolvimento territorial (por
natureza sustentável) pensado na escala de um assentamento rural, em
conformidade com o proposto por Costa, Zarate e Macedo (2012) como
expressão do processo de empoderamento da comunidade local, ma-
terializando formas que denotem a melhoria da qualidade de vida. Os
atores sociais locais são tornados protagonistas do seu futuro, plane-
jando sua produção individual e coletivamente, aproveitando as opor-
tunidades deixadas pelos agentes da produção do espaço (instituições,
empresas).
O desenvolvimento é visto como a potencialização das liberdades,
e o desenvolvimento da dimensão de liberdade (econômica, política,
social, cultural) potencializa as outras dimensões; a supressão de uma,
igualmente, prejudica as demais (SEN, 2000). Portanto, a abordagem
territorial relacional multidimensional Economia-Política-Cultura-Na-
tureza (E-P-C-N) de Saquet (2007; 2011) torna-se importante condutor
da apresentação dos resultados.
A agroecologia é tratada como alternativa de equilíbrio, buscando
atender de forma integrada a necessidade da humanidade de obter seu
alimento, por meio do cultivo da terra de forma sustentável, utilizando
ao máximo elementos e sabedorias locais e impactando minimamente
os sistemas naturais. Assim, pode ser considerada como ciência recen-
te, adotando estilos sustentáveis e novo caminho para dar suporte ao
desenvolvimento rural sustentável (CAPORAL; COSTABEBER, 2000).
Vale mencionar que a produção agroecológica não se utiliza de agrotó-
xicos ou insumos químicos, como fertilizantes e pesticidas. Assim, esse
sistema, além de apresentar fortes benefícios a quem produz e a quem
consome, contribui para a conservação ambiental, pois evita a poluição
do solo, a contaminação das águas do lençol freático e o aumento do
custo ambiental decorrente da destruição da biodiversidade local e en-
venenamento de espécies animais.
O trabalho foi organizado em três partes. Primeiramente, é apre-
sentada a formação dos assentamentos rurais analisados, com foco nos
processos políticos e sociais. Em seguida, demonstram-se as formas de

 317
indução do desenvolvimento territorial conduzidas pelas instituições
em cada um deles. Por fim, os processos de comercialização, não per-
dendo de vista a perspectiva comparativa dos casos estudados.

A formação dos assentamentos rurais Roseli Nunes e 72


De acordo com Neves (2014, p. 3), localizado no estado de Mato
Grosso, o assentamento Roseli Nunes, criado em 2001, possui “área ter-
ritorial de 101,96 km2, sendo que desta 6,53 km2 (6,40%) está no muni-
cípio de Curvelândia, 77,14 km2 (75,65%) em Mirassol D’Oeste e 18,30
km2 (17,94%) em São José dos Quatro Marcos” (Figura 1).

Figura 1 - Mato Grosso:


Assentamento Roseli Nunes no contexto regional e municipal.
Fonte: LabGeo UNEMAT, 2014. Neves et al (2014, p.4).

Oliveira e Asevedo (2014) indicam que a origem do Assentamento


Roseli Nunes está na ocupação da fazenda Prata, em 1996 (reivindicada
desde 1990), e posterior desapropriação de parte dela, em 2000. Zuchi-

 318
ni, Silva e O’loiola (2013, p. 154) contabilizam “331 famílias, em sua
maioria, organizadas pelo MST, perfazendo o total de 1.200 pessoas em
11 mil hectares”.
Um dos pioneiros do assentamento relatou que, na década de
1970, havia um movimento apoiado pela Igreja Católica, notadamente
pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que incentivava a ocupação
e cultivo em terras devolutas. Fazia-se necessária, entretanto, a con-
quista do sindicato dos trabalhadores rurais, que era comandado por
pessoas ligadas aos fazendeiros e políticos da região que não apoia-
vam a luta pela terra. Assim, no início da década de 1990 nasceram
os sindicatos de Rio Branco (MT) e, posteriormente, com a ajuda da
Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), o sindicato de
Cáceres (MT).
O mesmo pioneiro narra que a ligação ao Movimento dos Traba-
lhadores Rurais Sem Terra (MST) foi decisiva para a formação do assen-
tamento e iniciou-se em seminários de debates com o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) sobre áreas destinadas à
reforma agrária. Após a conquista da terra, iniciou-se outra parte com-
plicada: a permanência nela.
As práticas agroecológicas surgiram como alternativa para bara-
tear os custos de produção. Nascia, desse interesse, a união de algumas
famílias com a Associação Regional de Produtores Agroecológicos
(ARPA). Dassoller (2014) indica que a Arpa foi fundada em 1997 e atua
na porção sudoeste de Mato Grosso, com abrangência de 22 municípios,
inúmeros minifúndios e 63 assentamentos rurais. Portanto, as práticas
agroecológicas não acontecem em todo o assentamento Roseli Nunes,
mas apenas em algumas famílias – e estas formaram parte do objeto
desta análise comparativa.
O Assentamento 72 está localizado no município de Ladário, na
área planáltica da borda oeste do Pantanal, no estado de Mato Grosso do
Sul, a cerca de 20 km do limite internacional entre Brasil-Bolívia (figura
2). Foi criado em 1999 pelo INCRA, a partir da Fazenda Primavera, e

 319
conta com área de 2.341,2996 ha, abrigando 85 unidades rurais familia-
res com tamanho médio de 18,5 ha. Fica a 5 km da cidade de Ladário e a
12 km do centro da cidade de Corumbá (COSTA; ZARATE; MACEDO,
2012).
Boa parte dos camponeses pioneiros do assentamento ficou acam-
pada durante quase dois anos até a partilha das 72 invernadas (daí o
nome 72) da fazenda Primavera. Estavam ligados à Federação dos Tra-
balhadores da Agricultura (Fetagri), por intermédio do Sindicato Rural
de Ladário.

Figura 2. Assentamento 72, Ladário-MS no contexto regional.


Fonte: Costa, Zarate e Macedo (2012, p.128).

Zarate, Santos e Costa (2010) apontaram a população residente


superior a 200 pessoas, com média de 3 pessoas por moradia e predo-
minância do sexo masculino (quase 60%). A maioria sempre morou no
espaço rural e vivia nas proximidades. O estudo indicou predominância
de população adulta (entre 20 e 60 anos) e com baixo grau de escolari-
dade, 13,50% da qual se declararam analfabetos.

 320
Portanto, os assentamentos possuem formação distinta. Um nas-
ceu sob a filosofia de resistência do MST; o outro, do esforço do Sin-
dicato dos Trabalhadores Rurais. As práticas agroecológicas surgiram
desde o início, a partir de sua própria busca, para algumas famílias
do Roseli Nunes; enquanto no 72 aconteceram 10 anos depois de sua
origem a partir de indução externa. Em ambos, não é a totalidade dos
camponeses que praticam a agroecologia, mas apenas uma parte deles.
Não existe perenidade na participação do grupo de produtores agro-
ecológicos, variando conforme interesses pessoais dos próprios cam-
poneses.

A indução do desenvolvimento territorial nos assenta-


mentos estudados
O grupo de camponeses do assentamento Roseli Nunes, desde
1997, alinhou-se com a ARPA, que teve sua criação articulada com
parceria de Organização Não-Governamental (ONG), denominada Fe-
deração de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), com
sede em Cáceres (MT).
De acordo com Souza (2005), a FASE surgiu no Brasil em 1961, fi-
nanciada pelo Catholic Relief Services (CRS), órgão da Conferência dos
Bispos dos EUA para ação social, intermediado pela Cáritas do Brasil
(Instituição ligada à igreja católica). O objetivo inicial era o oferecimen-
to de alimentos aos pobres. A partir dos anos 1990, ampliaria seus esfor-
ços na educação popular, incentivando a participação como ferramenta
do desenvolvimento territorial.
De acordo com Oliveira e Asevedo (2014), no Assentamento Ro-
seli Nunes a FASE vem apoiando a troca de experiências e de sementes
crioulas, ajudando na execução de Projetos Demonstrativos Agroeco-
lógicos (PDAs) e na disponibilização de viveiros de mudas, estimulan-
do processos de autoorganização, além de autonomia financeira das
mulheres. Também assessora projetos de comercialização da produção
rural e elabora mecanismos para a consolidação de associações de pro-

 321
dutores agroecológicos, em especial a ARPA. Os autores apontam para a
elevada rotatividade das famílias componentes da associação:
Iniciou com sete famílias e chegou a contar com mais de 180 filia-
dos. Contribuiu para essa evolução a influência exercida pelas ex-
periências de produção e comercialização bem sucedidas, particu-
larmente com as oportunidades geradas pelos mercados institucio-
nais, como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura
Familiar (PAA). Atualmente, 88 famílias são associadas, sendo 63
do Assentamento Roseli Nunes, 15 do Assentamento Florestan Fer-
nandes (Município de Quatro Marcos) e 10 do Assentamento São
Saturnino (município de Curvelândia). Com princípios e objetivos
claros, os sócios que não cumprem as orientações são afastados e,
eventualmente, readmitidos. Dessa forma, há oscilação no número
de famílias associadas. (OLIVEIRA; ASEVEDO, 2014, p. 23).

Apesar do quantitativo razoavelmente elevado de filiados, alguns


participam, entretanto, apenas sazonalmente (quando têm produção a
oferecer e o preço pago pelos programas do governo são compensado-
res). Durante a pesquisa de campo, em 2013, foram contabilizadas 32
famílias do assentamento Roseli Nunes efetivamente entregando pro-
dução e participando das reuniões da ARPA.
São, portanto, duas entidades que apoiam o grupo de produtores
agroecológicos do assentamento Roseli Nunes: a ARPA, que atua mais
diretamente na comercialização, tendo como foco os programas do Go-
verno Federal (PAA e PNAE), e nas feiras livres; a FASE, que apresenta
aos camponeses novas tecnologias, objetivando minimizar o impacto
ambiental, mediante cursos de capacitação, dias de campo e oficinas te-
óricas e práticas, quando camponeses e técnicos trocam experiências no
caminho da transição agroecológica.
A FASE e a ARPA trabalham de forma articulada. O forte da
FASE são a captação de recursos e a educação popular. A ARPA tem
a expertise da comercialização, mas, para tanto, faz severas exigên-
cias que, se não forem cumpridas, podem levar à exclusão da par-
ticipação da família no grupo. Dassoller et al (2014, p. 6) destacam
que os camponeses assumem pacto com o Grupo de Intercâmbio em

 322
Agricultura Sustentável durante o curso de formação agroecológica.
A partir de então, uma vez associados, são obrigados a seguir os se-
guintes princípios agroecológicos: manejo do solo de forma ecológica,
recuperando-o; eliminação progressiva do uso dos venenos; diversifi-
cação da produção; valorização e utilização de sementes crioulas; uso
sustentável da água; conservação das matas; capacitação continuada
sobre produção de base agroecológica; difusão da agroecologia como
modo de produção; valorização do trabalho da mulher e dos jovens
rurais; construção da “própria infraestrutura de produção, transporte,
agroindustrialização e gerenciamento, garantindo a independência e a
justa divisão dos benefícios”.
Dassoller et al (2014) apontam que as mudanças são perceptíveis
na paisagem. As hortas foram retiradas das áreas próximas aos cursos
fluviais e as margens, recuperadas. Destacam-se os cultivos consorcia-
dos, com economia de espaço e melhor aproveitamento da água, o sis-
tema de pousio com aproveitamento nos canteiros da cobertura morta
e o controle das pragas com uso de caldas (compostos que combatem as
doenças e os animais indesejados).
Um dos camponeses entrevistados conta que as pragas são comba-
tidas por meio de caldas. Para cada tipo de praga existe uma calda es-
pecífica, mas a preocupação não é extinguir a praga, apenas controlá-la.
Elas precisam ser evitadas, espantadas e o agricultor encontra a forma
de conviver com elas, minimizando suas ações por meio das caldas. Ele
assegura que: “Para o pulgão, pega-se a folha de ninho, deixa ela secar
e bate no liquidificador com água. Para o tomate cereja usa-se a folha
da primavera e põe de molho por oito dias em cinco litro de água! Bota
também uma barra de sabão de coco para fixar a calda”.
A experiência com o assentamento 72 tem a mesma motivação do
Roseli Nunes: ajudar os camponeses a mudar sua postura e forma de
produção. Vale dizer que a situação deles era muito complicada: viviam
há 10 anos no assentamento, praticamente sem assistência técnica, so-
brevivendo da venda de porta em porta de 2 a 10 litros de leite por dia.
Em decorrência disso, emergiria a estigmatização dos camponeses do

 323
72 pela população urbana: eram preguiçosos e só viviam às custas de
recursos públicos (informação oral de vários camponeses).
Neste caso, os indutores foram professores do Campus do Pantanal
da UFMS e pesquisadores da Embrapa Pantanal, portanto instituições
de ensino e pesquisa, respectivamente. A mola propulsora foram dois
projetos aprovados em editais do Conselho Nacional de Desenvolvi-
mento Científico e Tecnológico (CNPq): “Alternativas para o desen-
volvimento territorial rural do Assentamento 72, em Ladário-MS, na
região do Pantanal”, com financiamento pelo CNPq aprovado em de-
zembro de 2010, e “Sistemas agroecológicos na fronteira Brasil-Bolívia:
estudo comparativo das alternativas induzidas no Assentamento 72, em
Ladário-MS, com as práticas do assentamento Roseli Nunes, em Mi-
rassol D’Oeste-MT”, com recursos do MCT/CNPq e FUNDECT/MS.
Este último ligado à rede de Pesquisa Rede de estudos sociais, ambien-
tais e de tecnologias para o sistema produtivo na região sudoeste mato-
-grossense (ASA) e subprojeto do projeto de pesquisa “Questão agrária
e transformações socioterritoriais nas microrregiões do Alto Pantanal e
Tangará da Serra/MT na última década censitária”.
Os projetos de pesquisa buscaram trabalhar, no Assentamento 72,
concepções de desenvolvimento local com base na agroecologia. Havia
o interesse dos camponeses na produção de hortaliças para abastecer
os mercados locais; mas não sabiam como plantar e não sabiam como
vender. Além disso, ainda existia agravante: os bolivianos fronteiriços já
vendiam verduras nas feiras de Ladário e Corumbá há décadas, com pre-
ços relativamente baixos em razão do baixo custo de produção. Assim, a
única forma de produção que se mostrava viável era a de base agroecoló-
gica. Neste caso, os pesquisadores estimularam o rompimento definitivo e
imediato da utilização de venenos. Vale dizer que isso foi muito fácil, pois
eles não tinham recursos para adquirir venenos. As sementes, sombrites,
bandejas de mudas, os substratos para experimentos e telas foram adqui-
ridos com recursos dos projetos e doados aos camponeses.
A proposta do desenvolvimento local busca trazer à tona “capaci-
dades, competências e habilidades [...] o aproveitamento dos potenciais

 324
próprios [...], visando à processual busca de soluções para os problemas,
necessidades e aspirações, de toda ordem e natureza, que mais direta e co-
tidianamente lhe dizem respeito” (AVILA, 2000, p. 68). Como a comuni-
dade de camponeses estava adormecida, seu despertar precisava do apoio
de agentes territoriais externos. Instituiu-se a figura dos animadores ter-
ritoriais (os pesquisadores), discutida em Costa, Zarate e Macedo (2012)
como agente que apoia as ações territoriais, que ajuda nas articulações,
que elabora projetos, avalia e discute avanços e retrocessos.
Foram realizados experimentos em duas hortas-modelo nos lotes
03 e 39 e acompanhamento em vários outros (23, 35, 36, 37, 38, 46 e 47).
Ensinava-se a fazer caldas, utilizando pimentas, fumo, cravo e outros
produtos naturais. Também foram trabalhadas a construção de aduba-
ção verde e experimentação com a plantação de diversas hortaliças num
mesmo canteiro (figura 3), observando os consumos de água, de palha
e de adubação orgânica.

Figura 3 - Assentamento 72: experimento com variedades de


hortaliças sobre cobertura morta no lote 39.
Autor: Costa, E. A., 2012.

A capacitação dos camponeses foi buscada em duas frentes: pri-


meiramente, no entendimento das bases agroecológicas; posteriormen-
 325
te, na administração da propriedade como negócio. As bases da agro-
ecologia foram introduzidas por meio de palestra pelo pesquisador da
Embrapa Pantanal Dr. Alberto Feiden, que, em seguida, ofereceu curso
prático de utilização de caldas para combate a insetos nas hortas.
A formação para administração da propriedade se deu por meio
da parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio a Micros e Pequenas Em-
presas (Sebrae-MS) e deste com o Serviço Nacional de Aprendizagem
Rural (Senar-MS), com o curso “Negócio Certo Rural” e, em seguida
,“Implantação e manejo básico de horta”, todos em 2011. O curso “Ne-
gócio Certo Rural” teve como objetivo melhorar a gestão da proprieda-
de e fazer com que os produtores elaborassem plano de negócios para
as atividades existentes ou desejadas. Com o curso, eles aprenderam a
vender e a valorizar seu trabalho.
O Sebrae-MS, por meio do Programa Mato Grosso do Sul Sem
Fronteiras, ofereceu ainda os seguintes cursos: “Juntos somos for-
tes”, “Metodologia de Resolução de Problemas” e “Cooperativismo
e Associativismo”, desenvolvido em três módulos. O grupo definiu
como Missão: “promover a união dos produtores rurais do assenta-
mento 72 para a produção agropecuária de forma sustentável, com
transparência e seriedade, proporcionando o bem-estar das famílias
e contribuindo com a sociedade”. Como visão, foi definido: “ser uma
associação democrática transparente e unida, com uma sede cons-
truída até 2014”. Foram apontados como valores dessa associação:
União, Transparência, Valorização das Pessoas, Participação de to-
dos e Sustentabilidade.
Cuyate (2015) destaca, entre as práticas coletivas, a partir da inter-
venção dos agentes externos:
a) a reestruturação da Associação local, presidida por um dos cam-
poneses participantes do projeto;
b) o manejo da primeira horta-modelo;
c) o contrato de fornecimento de verduras para empresa de ali-
mentos e para o 6º Distrito Naval da Marinha do Brasil (em

 326
nome de uma família camponesa, mas que contava com a pro-
dução de um grupo de quatro famílias na comercialização);
d) mutirões para construção das hortas;
e) a venda nas feiras livres de Ladário, com várias ações cole-
tivas.
A feira livre de Ladário era palco de atuação dos bolivianos. Os
camponeses não conseguiam entrar, quer pela desconfiança que existia
sobre eles, quer pela baixa capacidade de persuasão que predominava
neles. Nesse cenário, os agentes indutores do desenvolvimento atuaram
decisivamente junto à prefeitura municipal, abrindo espaço na feira
para os camponeses.
A partir de 2015, cerca de 10 camponeses passaram a vender para
os programas governamentais, em especial para a composição da me-
renda escolar (PNAE). Foi necessária a provocação de duas matérias
televisivas pela TV Morena, afiliada da Rede Globo de Televisão, e a
colocação de banners nas feiras livres (figura 4), com a logomarca dos
parceiros, para que a sociedade urbana aceitasse os camponeses como
trabalhadores com honra.

Figura 4 - Camponeses do assentamento 72 na feira livre de Ladário-MS.


Autor: Costa, E. A., 2012.

 327
Depois da reportagem televisiva e da colocação do banner com a
identificação do tipo de produção, as vendas melhoraram significati-
vamente. Um dos camponeses feirantes assim descreve: “Antes a gen-
te chegava e demorava muito para vender nossas verduras. As pesso-
as compravam dos bolivianos. Depois da reportagem, a gente chegava
às oito horas e às nove horas não tinha mais nada. Vendia tudo”. Essas
ações foram decisivas para elevar a autoestima dos camponeses.
A partir de então, aos poucos, começaram a vender, inclusive para
os bolivianos revenderem. Um dos camponeses simplifica essa condição
com os seguintes dizeres:
Tenho maxixe para vender na feira. Preparo a embalagem a qual
venderei por dois reais. Não preciso de mais – isso é suficiente para
pagar o meu trabalho, a minha produção. Os bolivianos pagam esse
preço, dividem a embalagem em duas e vendem. Não me importo
se ganham mais. Já consegui o preço que considero justo. Com isso
sobra mais tempo para mim e minha família.

A base na produção agroecológica permitiu a oferta de produtos


com diferencial em relação àqueles produzidos pelos bolivianos. Dessa
forma, a fronteira que antes poderia significar a restrição começou a
apontar a possibilidade para os camponeses do 72.
Assim, pode-se dizer que a indução do desenvolvimento territorial
assume as mesmas feições, independente das características territoriais
dos camponeses envolvidos e das instituições indutoras. As práticas
agroecológicas mostram-se viáveis em razão da diminuição dos custos
de produção, do apoio à autonomia dos camponeses, da elevação da
autoestima e da felicidade dos grupos familiares em permanecerem no
campo e se mostrarem úteis para a sociedade urbana.

Processos de comercialização
No assentamento Roseli Nunes, todo o sistema de comercialização
das verduras do grupo que trabalha com agroecologia é realizado pela
ARPA. É ela quem negocia onde será entregue a produção: o que será

 328
vendido nas feiras livres, entregue nos supermercados, para a merenda
escolar e para a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB). São
cerca de 20 escolas atendidas na região.
Para conseguir atender a demanda de encomendas, o núcleo local
da ARPA articula o quê e quando será plantado entre os camponeses.
Toda a distribuição dos produtos é controlada por anotações em forma
de planilha num caderno do presidente. Nelas consta o preço de cada
produto e o produtor/fornecedor. Todas as terças e quintas-feiras, quan-
do precisam entregar nas escolas e na Conab, abastecem o caminhão no
dia anterior e, por volta das três horas da manhã, começam a entrega. O
excedente de produtos é vendido a atravessadores, para não ocorrerem
perdas, apesar de o ganho ser menor.
O caminhão refrigerado foi a conquista da Associação. Dessa for-
ma, consegue-se garantir maior qualidade dos produtos. O presidente
informou que, durante o carregamento do caminhão, é anotado o peso
das hortaliças de cada camponês. Sempre colocam verduras a mais, pois
ocorrem perdas de peso durante o transporte. Quando o recurso da
venda dos produtos é passado para a Associação, o presidente distribui
em conformidade com a quantidade entregue por cada um.
Os camponeses do assentamento 72 são produtores individuais.
Existe a associação de produtores rurais, mas com outras finalidades,
sendo a luta pelo abastecimento de água a principal delas. A venda de
produtos nas feiras livres na cidade de Ladário às quartas-feiras e aos
sábados é a principal forma de comercialização. Também vendem para
os supermercados e para o 6º Distrito Naval da Marinha do Brasil. O
transporte ainda não é adequado, pois é feito com veículos particulares,
sem refrigeração.
Recentemente, começaram a entregar para a merenda escolar por
intermédio do PNAE. As entregas também são individuais, contudo,
quando um camponês não tem toda a produção necessária, ele “pega”
do vizinho, repassando o equivalente em dinheiro posteriormente ao
recebimento. Essa condição ocorre espontaneamente, não sendo orga-

 329
nizada, articulada. Os camponeses ainda não conseguiram organizar
o calendário produtivo de modo a garantir oferta continuada de pro-
dutos.
Cuyate (2015) constatou, em sua pesquisa, que a população de
Ladário não possui a cultura de consumir produtos orgânicos/agroe-
cológicos. A preferência de compra se dá em razão dos preços. Nesse
sentido, historicamente a preferência recai nas hortaliças das bancas dos
bolivianos, com preços mais baixos. Logo, a estratégia é acompanhar
os preços praticados nas feiras. Nem sempre é possível praticar o preço
socialmente justo, conforme pensamento da agroecologia.
Comparativamente, percebe-se que os camponeses do assenta-
mento Roseli Nunes são mais organizados, tanto no sistema produtivo
quanto no de comercialização. Além disso, são certificados como pro-
dutores agroecológicos, enquanto os camponeses do assentamento 72
ainda estão em transição agroecológica. A certificação resulta em bônus
nas compras governamentais, como do PNAE.
Por outro lado, existe diferença significativa nos desdobramentos
sociais e políticos dos camponeses desses assentamentos rurais. No Ro-
seli Nunes, o grupo de produtores agroecológicos conseguiu eleger um
vereador para a Câmara Municipal de Mirassol D’Oeste (MT), enquan-
to no PA 72 permanecem as tentativas. É evidente que a população de
entorno é maior, no primeiro caso; contudo verifica-se, na prática, a
candidatura de mais de um indivíduo para vereador no 72, fato que ge-
rou divisão dos votos e consequente derrota coletiva.

Considerações finais
Pode-se perceber que as induções de desenvolvimento territorial e
de práticas agroecológicas no assentamento Roseli Nunes, com apoio da
FASE, e no assentamento 72, com apoio da UFMS e Embrapa Pantanal,
foram eficientes para ampliar e diversificar a produção e comercializa-
ção dos camponeses. As formas intervencionistas foram bastante seme-
lhantes; o diferencial está, fundamentalmente, na divulgação científica
 330
dos resultados, pois a publicação dos resultados científicos faz parte da
prática dos pesquisadores. Além disso, a fronteira é, por si só, consi-
derável diferencial em razão das territorialidades, que frequentemente
extrapolam o limite internacional e tensionam os territórios locais, de
um lado e do outro.
Geograficamente, ambos assentamentos estão próximos ao limite
internacional com a Bolívia; entretanto o adensamento populacional do
lado boliviano é maior nessa porção do estado de Mato Grosso do Sul e
a construção das relações sociais é mais antiga, a ponto de os bolivianos
participarem diariamente das feiras livres de Corumbá e Ladário, ven-
dendo seus produtos.
Finalmente, entende-se que a participação de pesquisadores na
indução de alternativas de desenvolvimento sustentável para a agricul-
tura camponesa representa terreno bastante fértil. Para as instituições
de ensino superior, a investida nas pesquisas-ações resulta na expe-
rimentação dos discentes na aplicação prática dos conteúdos traba-
lhados em sala de aula. Para os docentes e camponeses, representa a
possibilidade de trocas entre os saberes da academia e os saberes po-
pulares, com ganhos inestimáveis para ambos os grupos. Além disso,
iniciativas de Editais articulados com outros ministérios, como esta
do CNPq, permitem a maximização dos recursos e dos resultados para
todos, ampliando a oferta de produtos para a área urbana nos padrões
da segurança alimentar.

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 332

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