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Resumo: O CPC/2015, em que pesem os grandes e inegaveis avanços, mormente à Advocacia Pública,
traz dispositivos que adentraram em seara que o extindo CPC não abordava, qual seja, na chamada
requisições de pequeno valor (RPV), acabando por ferir sistemáticas procedimentais previstas em leis
estaduais que, autorizadas pela EC nº 37 e pelo art. 87 da ADCT, tratavam do assunto, emergindo conflito
constitucional a ser decido pelo STF.
Palavras-chave: Novo Código de Processo Civil. Requisições de pequeno valor. Erário.
Sumário: 1 Introdução – 2 Tutela executiva de obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública.
Aspectos gerais – 3 Meios de satisfação da obrigação de pagar contra o erário – 4 Edição de leis estaduais.
Edição da Lei nº 6.624/2004 pelo Estado do Pará regulamentando expressamente a RPV – 5 Da (in)
constitucionalidade do item i do §3º e §4º do artigo 535 da Lei Federal nº 13.105/2015 (Código de
Processo Civil) – 6 Conclusão – Referências
1 Introdução
A aprovação do novo Código de Processo Civil (NCPC) deve ser comemorada
pela sociedade brasileira, em especial pela comunidade jurídica, como um marco
histórico, pois representa o amadurecimento do Estado Democrático de Direito.
Isso pôde ser observado desde sua fase embrionária até seu nascedouro,
já que a comissão de juristas que iniciou os debates tinha origem eclética (juízes,
advogados públicos e privados, doutrinadores, etc.) percorrendo os diversos Estados
da Federação em audiências públicas, debates e seminários, os quais oportunizaram
a oitiva de todos os seguimentos da sociedade, além de receber, inclusive,
contribuições pelas redes sociais.
Restou consagrado em diversos pontos não só o mais amplo respeito aos
princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, mas, também, a clara
intenção de solucionar de forma mais ágil e eficaz os conflitos, seja por incentivo a
meios autocompositivos de solução (mediação e arbitragem), seja prestigiando a
tutela de direitos coletivos.
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Em que pese alguma variação nos termos utilizados, percebe-se que o conceito
de execução é exposto pela doutrina quase sem divergência, pois todos concordam
com a finalidade satisfativa (que busca o resultado prático almejado) da execução,
sendo ela uma atividade jurisdicional praticada em face do devedor/executado.
Por outro lado, de maneira geral, a tutela executiva, além de obedecer aos
princípios gerais de processo (ampla defesa, contraditório, etc.), possui – com alguma
variação na doutrina – princípios próprios, quais sejam:
a) Princípio da patrimonialidade: segundo o qual a execução será sempre de
direito real, incidindo exclusivamente sobre o patrimônio do executado.
b) Princípio da efetividade da execução ou do resultado: sob o qual deve ser
assegurado ao credor precisamente aquilo que ele tem de direito, nada mais,
nada menos. E quando isto não for possível, dever ser garantido ao credor
a possibilidade de conversão do direito em perdas e danos, quando couber.
1
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v. II. 19. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2011, p. 148.
2
MARINONI, Luis Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz. Curso de Processo Civil. v. III. São Paulo: RT, 2007, p. 70.
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3
Privilégio é instituído visando à proteção de interesses pessoais, enquanto a prerrogativa decorre do interesse
público (GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios Constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José
Bushatsky, 1975, p. 31).
4
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. 4. tir. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 158.
5
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. 17. tiragem. São
Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 35.
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Dito isto, não se pode analisar o princípio da isonomia sob a ótica meramente
formal, pois restritiva. Deve-se buscar a igualdade material, o que torna injusto impor
o mesmo ônus ou conferir os mesmos direitos sem fazer qualquer ponderação entre
sujeitos ou situações diferentes.
Entretanto, para que uma diferenciação não viole o princípio da igualdade ou da
isonomia, é indispensável que exista uma justificativa objetiva e racional, isto é, uma
conexão lógica entre o fator escolhido e o tratamento jurídico diferenciado.
No caso da Fazenda Pública (União, Estados, DF e Municípios, além das
autarquias e fundações públicas de direito público), mister reconhecer que possui
uma estrutura administrativa complexa, cujas informações e comunicações entre
departamentos e unidades administrativas são naturalmente lentas e burocráticas.
Isso é mais evidente para tomadas de decisão e no pagamento de compromissos
financeiros (ainda que de baixo valor). Esse quadro de complexidade afetaria decisiva
e negativamente a posição na atuação judicial dos entes públicos se estes não
tivessem as prerrogativas contempladas na legislação pátria.
Desse modo, faz-se necessário sopesar os princípios da isonomia e da
supremacia do interesse público sobre o interesse privado para compreender a
necessidade de existência do arcabouço de prerrogativas processuais conferidas à
Fazenda como forma de possibilitar sua atuação igualitária nas demandas judiciais.
6
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 11. ed. São Paulo. Método, 2007, p. 701.
7
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 10. ed. São Paulo: Método,
2013, p. 122.
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Assim, para que Fazenda Pública possa atuar de forma eficiente em prol de
toda a coletividade, ela é dotada de condições especiais de atuação, as chamadas
“prerrogativas processuais”, sempre conferidas expressamente pelo legislador
como necessárias para a defesa do erário, podendo-se citar como exemplo dessas
prerrogativas processuais, todas abarcadas pelo novo CPC, o reexame necessário
(art. 496), a não aplicação da multa prevista no §1º do art. 523 (art. 534, §2º) e o
prazo em dobro e intimação pessoal (art. 183).
Outrossim, visando à satisfação do crédito do autor, mas seguindo os comandos
legais que impõem prerrogativas processuais à Fazenda Pública, após a fase de
conhecimento e diante da provocação do autor visando ao cumprimento de sentença
para receber quantia certa, aaquela é intimada para, havendo motivo, impugnar a
pretensão executiva, e não diretamente para pagar.
Prova disso que o art. 534, §2º, do NCPC é expresso ao afirmar que “a multa
prevista no §1º do art. 5238 não se aplica à Fazenda Pública”, isso porque o art. 100
da Constituição Federal determina que os pagamentos devidos pelo erário, em virtude
de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente por meio de precatórios ou requisição
de pequeno valor, os quais possuem sistemática própria e prazo de pagamento muito
superior aos 15 dias fixados pelo NCPC para pagamento.
Reforço dessa tese é o registro que, mesmo antes dessa expressa previsão
no NCPC, a doutrina e a jurisprudência já haviam sedimentado o entendimento pela
inaplicabilidade da multa pelo atraso no pagamento (artigo 475-J do CPC/73) à
Fazenda Pública:
8
Art. 523. No caso de condenação em quantia certa, ou já fixada em liquidação, e no caso de decisão sobre
parcela incontroversa, o cumprimento definitivo da sentença far-se-á a requerimento do exequente, sendo o
executado intimado para pagar o débito, no prazo de 15 (quinze) dias, acrescido de custas, se houver.
(...)
§1º Não ocorrendo pagamento voluntário no prazo do caput, o débito será acrescido de multa de dez por cento
e, também, de honorários de advogado de dez por cento.
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Em razão disso, a União disciplinou o limite da RPV para débitos por ela devidos
em demandas judiciais, por meio do art. 17, §1º, da Lei nº 10.259/2001,9 igualando
ao valor previsto com o teto para a competência dos Juizados Especiais Federais:10
9
Também o fez na edição da Lei nº 10.099/2000, que introduziu nova redação ao art. 128 da Lei nº 8.213/91
para as causas contra a Previdência Social.
10
Art. 3º Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da
Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.
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11
Disponível em: <http://www.seplan.pa.gov.br/lei-de-diretrizes-orçamentárias-ldo-0#>.
12
Lei nº 6.371, de 12.07.2001 – Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para o exercício financeiro de 2002.
Lei nº 6.469, de 31.07.2002 – Dispõe sobre as Diretrizes Orçamentárias para o exercício financeiro de
2003. Lei nº 6.568 de 06.08.2003 (DOE Edição nº 30.003 de 07.08.2003) – Dispõe sobre as diretrizes
orçamentárias para o exercício financeiro de 2004. Lei nº 6.666 de 26.07.2004 – Dispõe sobre as diretrizes
orçamentárias para exercício financeiro de 2005. Lei nº 6.771 de 21.07.2005 (DOE nº 30.485 de 22.07.2005) –
Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para o exercício financeiro de 2006. Lei nº 6.892 de 13.07.2006
(DOE nº 30.729 de 21.07.2006) – Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para o exercício financeiro de
2007. Lei 7.010 de 23.07.2007 (DOE nº 30.971 de 24.07.2007) – Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias
para o exercício financeiro de 2008. Lei nº 7.193 de 5.08.2008 – Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias
para o exercício financeiro de 2009. Lei nº 7.291 de 27.07.2009 (DOE nº 31.554 de 27.11.2009) – Dispõe
sobre as diretrizes orçamentárias para o exercício financeiro de 2010. Lei nº 7.453 de 30.07.2010 (DOE nº
31.723 de 04.08.2010) – Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para o exercício financeiro de 2011. Lei
nº 7.544 de 21.07.2011 (DOE nº 31.962, DE 22.07.2011) – Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para o
exercício financeiro de 2012. Lei nº 7.650 de 25.07.2012 – Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para o
exercício financeiro de 2013. Lei nº 7.722 de 15.07.2013 – Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para o
exercício financeiro de 2014. Lei nº 8.031 de 23.07.2014 – Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para o
exercício financeiro de 2015. Lei nº 8.232 de 15.07.2015 (DOE nº 32.932, de 21.07.2015) – Dispõe sobre
as diretrizes orçamentárias para o exercício financeiro de 2016.
13
Lei nº 8.232, de 15.07.2015 (DOE nº 32.932, de 21.07.2015) – Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias
para o exercício financeiro de 2016 e dá outras providências.
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Dados fornecidos pelo Departamento Financeiro da Procuradoria-Geral do Estado do Pará
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O artigo §1º do art. 910 do CPC prevê que “não opostos embargos ou transitada em
julgado a decisão que os rejeitar, expedir-se-á precatório ou requisição de pequeno valor
em favor do exequente, observando-se o disposto no art. 100 da Constituição Federal”.
Como antes já dito, a criação da requisição, ou obrigação, de pequeno valor
(RPV) resultou das Emendas Constitucionais nº 20/1998 e 30/2000, sendo
regulamentada provisoriamente pela EC nº 37/2002 (art. 86 e 87 da ADCT).
Salienta-se, mais uma vez, que, no art. 87 do ADCT, está previsto que os valores
nela descritos só teriam validade “até que se dê a publicação oficial das respectivas
leis definidoras pelos entes da Federação”
Com efeito, autorizado pela Constituição Federal, quando do novo CPC, o Estado
do Pará já havia editado a Lei Estadual nº 6624/2004 regulando o pagamento de
requisições de pequeno valor.
Outrossim, interessante observar o que ocorreu no julgamento da ADI nº 2.868/
PI, onde foi julgada a constitucionalidade de lei do Estado do Piauí que fixou o valor
da obrigação de pequeno valor em 05 (cinco) salários mínimos.
Nela, o relator, Ministro Carlos Britto, entendeu que a legislação piauiense
violava a Constituição observando que:
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Precatórios. Obrigações de pequeno valor. CF, art. 100, §3º. ADCT, art.
87. Possibilidade de fixação, pelos Estados membros, de valor referen-
cial inferior ao do art. 87 do ADCT, com a redação dada pela EC 37/2002
(ADI 2.868, Rel. p/ o ac. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 2-6-
2004, Plenário, DJ de 12-11-2004.) (Grifado)
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§4º Para os fins do disposto no §3º, poderão ser fixados, por leis pró-
prias, valores distintos às entidades de direito público, segundo as dife-
rentes capacidades econômicas, sendo o mínimo igual ao valor do maior
benefício do regime geral de previdência social. (Destacamos)
Art. 24- Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar con-
correntemente sobre:
(...)
XI – procedimentos em matéria processual;
O prazo para pagamento da RPV é matéria procedimental que visa dar plena
eficácia à previsão Estadual do seu valor e da forma de seu pagamento.
15
Consulta feita ao site do STF (www.stf.jus.br) em 07.07.2016.
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Outrossim, o mesmo art. 24, em seu inciso II, prevê a competência do Estado
para legislar sobre seu orçamento, sendo a imposição de valores ou prazos, os
quais têm inegável impacto no orçamento e no fluxo de caixa do Estado, uma clara
interferência (indevida) na competência constitucional do Estado em dizer sua
capacidade orçamentário-financeira, ou seja, o Estado do Pará afirmou que não tem
capacidade financeira de adimplir com RPV em prazo máximo inferior a 120 dias,
sendo inconstitucional a União impor isso por legislação própria.
Não é demais lembrar que o artigo 25 da CF/88 expressamente prevê:
No caso do tema RPV, a Constituição não só não veda aos Estados e Municípios
tratarem dessa matéria, como ainda expressamente outorgou a eles – por meio do
art. 87 da ADCT – competência para tanto, sendo, assim, inconstitucional que a
União, por lei própria, altere o que o Estado ou Município fixaram por meio de lei local.
No caso do Estado do Pará, o art. 2º, §1º, da Lei Estadual nº 6.624/2004
fixou o prazo para pagamento das obrigações de pequeno valor em, no máximo,
120 dias a partir do recebimento da requisição, possibilidade legal que deriva da
ordem constitucional vigente como já acentuado, enquanto o novo CPC fixa prazo
de apenas 60 dias, ou seja, o Estado fixou prazo de acordo com sua realidade
administrativa, econômica e orçamentária, tendo a União fixado a metade do prazo
para um procedimento já consolidado há mais de 10 anos!
Importa reconhecer e registrar que o orçamento público, via princípio do
orçamento, obriga a Administração a planejar a execução de suas políticas públicas
com o estabelecimento de metas e programas, com o objetivo de melhor executar
os serviços públicos visando ao bem da coletividade local em estrita observância de
suas forças e dos limites dos orçamentos previamente fixados.
No modelo federativo atual, onde a União detém grande concentração das
receitas tributárias, além de reiniciar novo movimento de recentralização da riqueza
nacional, muitas políticas publicas foram definidas como competências dos Estados-
Membros e municípios, principalmente no que toca à saúde, educação, desporto,
lazer, segurança, previdência social, assistência social etc.16
O atendimento dessas demandas e carências deverá ser suportado pelas
receitas tributárias definidas na Constituição, obedecido ao modelo de repartição e
vinculação.
16
Vide, exemplificativamente, a resistência dos estados nas ACOs nº 2.847 e 2.854 perante o STF.
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Por isso, é necessário reconhecer que a competência para fixar o valor das
obrigações de pequeno valor e, por consequência, o prazo de pagamento é medida
delegada aos Estados e Municípios, eis que derivam de modelo constitucional a
permitir a melhor execução possível dos orçamentos públicos estaduais e municipais,
consideradas as respectivas características locais, principalmente de carências
econômicas e financeiras.
Nessa linha, compete privativamente à União (art. 22, I, da CF/88) estabelecer
regras processuais centrais da relação jurídica, suas formas e efeitos, cabendo
aos Estados competência residual para estabelecer normas procedimentais
suplementares como se extrai do art. 24, XI e §3º da CF/88, situando-se a definição
do prazo de pagamento das RPVs nesta última.
Enquadra-se ao caso perfeitamente a situação do Estado do Pará, pois fixou
por meio do art. 2º, §1º, da Lei nº 6.624/2004 o prazo compatível com “suas
17
É um mecanismo que permite ao Governo Federal usar livremente 20% de todos os tributos federais vinculados
por lei a fundos ou despesas. A principal fonte de recursos da DRU são as contribuições sociais, que
respondem a cerca de 90% do montante desvinculado (portal Senado Federal: <www.senado.gov.br>).
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forças financeiras” (Min. Gilmar Mendes), bem como estabeleceu condições para
“compatibilizar o valor que estabeleça com as disponibilidades orçamentárias” (Min.
Cezar Peluso) fazendo uso de sua liberdade e autonomia para “definição política da
própria unidade” e, sobretudo, “diante da realidade e das finanças do próprio Estado”
(Min. Marco Aurélio).18
Não há de prosperar eventual argumentação de que as Leis Federais nº
10.099/00 e 10.259/01 definiram o prazo de 60 dias para pagamento e, por isso
mesmo, as regras do art. 535, I, §3º, do CPC devem, ou deveriam, com elas se
harmonizar, eis que o C. STF, na ADI nº 2.868, já assentou o entendimento de que a
autonomia dos Estados na fixação dos valores de RPVs é plena, não sendo admitida
nenhuma vinculação com valores e prazos estabelecidos nas referidas leis federais,
como se observa dos motivos determinantes estabelecidos em seu julgado. Verbis:
• “A norma do art. 87 tem caráter nitidamente transitório e abre margem a que
as unidades da Federação disponham livremente sobre essa matéria” (Min.
Joaquim Barbosa, voto vencedor).
• “O legislador constituinte quis deixar claro ao Estado a possibilidade de
fazer uma avaliação das suas forças financeiras” e reconheceu no caso a
autonomia do Estado do Piauí face “a situação financeira peculiar” (Min.
Gilmar Mendes).
• “O legislador estadual tem, pois, toda a liberdade para, segundo os próprios
critérios constitucionais, compatibilizar o valor que estabeleça com as
disponibilidades orçamentárias da respectiva entidade da Federação” (Min.
Cezar Peluso).
• “Que o estabelecimento de valores foi relegado à definição política da própria
unidade, podendo haver, inclusive, no Estado, variação, considerada a
pessoa jurídica de direito público devedora”, e ainda, “diante da realidade e
das finanças do próprio Estado, não tenho como entender que essa quantia
não é razoável” (Min. Marco Aurélio). (Grifos aqui)
Os mesmos fundamentos vinculantes pontuados na ADI nº 2.868 também
afastam eventual invocação da Lei Federal nº 12.153/2009, que dispôs sobre os
Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos
Territórios e dos Municípios, e que estabeleceu, no art. 13, I, o prazo de pagamento
das RPVs em 60 dias. Isso porque esse mesmo diploma legal estabeleceu no §2º
do art. 13 que “as obrigações definidas como de pequeno valor a serem pagas
independentemente de precatório terão como limite o que for estabelecido na lei
do respectivo ente da Federação”, o que implica o seu não uso como referência
legislativa para determinar a vigência integral do dispositivo do CPC ora questionado.
18
Citações do julgamento da ADI nº 2.868.
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Isso tudo por um motivo muito simples: não se pode igualar a situação financeiro-
orçamentária dos Estados e dos Municípios do país e, muito menos, destes com a
União.
Em suma, considerando que inexiste na Constituição Federal o prazo de
pagamento das obrigações de pequeno valor pelos Estados e Municípios, exsurge
nítida a possibilidade residual de estes legislarem sobre o tema, mormente porque
isso afeta diretamente suas finanças, podendo comprometer a execução de políticas
públicas em áreas prioritárias.
Importante pontuar que a Procuradoria-Geral da República, em parecer da lavra do
atual Exmo. Procurador Geral, Dr. Rodrigo Janot, na Reclamação nº 16.912, de relatoria
do Min. Toffoli, reportando à ADI 2868, cuja ementa e fundamentos determinantes já
foram ao norte citadas, bem observou que, na referida ADI, restou reconhecido aos
entes públicos que tenham legislado a respeito das obrigações de pequeno valor a
possibilidade de fixar o valor a ser pago bem como o prazo para tal pagamento na
medida em que nada deliberou em contrário. Veja-se o seguinte excerto:
Nessa linha, observado que o C. STF na ADI nº 2.868 deliberou por reconhecer
a possibilidade de os entes públicos fixarem os valores livremente, de acordo com
as realidades locais (capacidade orçamentária e financeira), imperioso, também
por esse motivo, reconhecer que o prazo de pagamento também pode ser objeto
de leis locais, seguindo o mesmo raciocínio de realidade local, consideradas as
desigualdades regionais.
Por fim, confirmando a jurisprudência do C. STF em reafirmar a autonomia
federativa, importante ressaltar as manifestações uníssonas e convergentes de
diversos ministros no julgamento da ADI nº 4.060 (maio/2015), destacando-se a do
relator, Min. Fux, que assentou:
Acredito seja momento de a Corte rever sua postura prima facie em ca-
sos de litígios constitucionais em matéria de competência legislativa,
passando a prestigiar as iniciativas regionais e locais, a menos que ofen-
dam norma expressa e inequívoca da Constituição. Essa diretriz parece
ser a que melhor se acomoda à noção de federalismo como sistema que
visa a promover o pluralismo nas formas de organização política.
Entre nós, o resgate do princípio federativo passa pela valorização da
chamada “competência residual” dos estados, consagrada no artigo 25,
§1º, da Constituição Federal: “São reservadas aos Estados as competên-
cias que não lhes sejam vedadas por esta Constituição”.
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A (in)constitucionalidade do novo CPC no trato da requisição de pequeno valor
Da forma que está redigido o referido dispositivo legal, pode ele ser usado para
embasar pleitos de fracionamento de precatório e/ou RPV, afrontando, ao ver desta
tese, a ordem constitucional anotada no §8º do art. 100 da Constituição Federal, que
veda o fracionamento do precatório, salvo na hipótese do §2º do mesmo dispositivo
(pessoas com mais de 60 anos ou doentes graves):
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Angelo Demetrius de Albuquerque Carrascosa, Jose Aloysio Cavalcante Campos
Art. 100.
(...)
§4º São vedados a expedição de precatório complementar ou suplemen-
tar de valor pago, bem como fracionamento, repartição ou quebra do va-
lor da execução, a fim de que seu pagamento não se faça, em parte, na
forma estabelecida no §3º deste artigo e, em parte, mediante expedição
de precatório. (Destacamos)
Verifica-se, assim, que mesmo com a mudança de redação, o atual §8º do art.
100 da CF/88 mantém a intenção de evitar o fracionamento, repartição ou quebra,
salvo a hipótese expressamente prevista no seu §2º (débitos de natureza alimentícia
de maiores de 60 anos de idade ou portadores de doença grave).
Assim, somente são admitidas duas formas autônomas e separadas de
pagamento de dívidas da Fazenda: precatório ou (e não “e”) obrigação de pequeno
valor (RPV).
O objetivo da vedação constitucional de fracionamento tem como finalidade
impedir que o mesmo credor fazendário disponha de duas formas de pagamento
decorrentes de uma mesma condenação.
Contudo, a redação do §4º do art. 535 pode dar azo a interpretações que se
choquem com o comando constitucional e com a jurisprudência pacificada do STJ e
STF, pois permite que a parte incontroversa seja “imediatamente cumprida”.
Não é difícil de imaginar uma situação na qual um credor promova o cumprimento
de sentença para pagar quantia certa postulando um crédito de R$100 mil reais,
podendo o Estado, por não concordar com os critérios de correção – por exemplo –
apresentar impugnação afirmando ser devido apenas o valor de R$30 mil.
Nessa situação, aplicando-se a literalidade do dispositivo do novo CPC, esse
credor poderia receber o valor incontroverso por RPV, pois inferior a 40 vezes o valor
do salário mínimo, e, após julgada a impugnação, receberia os R$70 mil restantes por
meio de precatório, situação esta que o comando constitucional expressamente veda.
6 Conclusão
Como demonstrado ao norte, em que pesem os inegáveis avanços que o novo
Código de Processo Civil trouxe a toda a sociedade e à advocacia (publica e privada),
acabou por cometer, no tema “requisição de pequeno valor”, ato falho que pode
(e já está) prejudicando vários entes federados que, autorizados pela Constituição
Federal, trataram do assunto por meio de lei própria, de acordo com suas realidades
financeiras e administrativas.
Assim, amparado no princípio federativo, bem como nos permissivos
constitucionais que atribuíram aos entes federados a competência para tratar do
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A (in)constitucionalidade do novo CPC no trato da requisição de pequeno valor
tema, espera-se que o STF confira interpretação conforme ao inciso II do §3º do art.
535 do NCPC, de forma que este só prevaleça para casos de omissão de lei local.
Da mesma forma, acredita-se que o excelso pretório deva declarar a
inconstitucionalidade ou dar interpretação adequada ao §4º do mesmo artigo, de
modo que ele não permita que um único credor fazendário receba seus créditos por
duas modalidades diversas de pagamento (RPV e precatório requisitório) oriundo de
uma mesma condenação judicial.
Referências
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PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 10. ed. São Paulo:
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MARINONI, Luis Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz. Curso de Processo Civil. v. III. São Paulo: RT, 2007.
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São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
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