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Três técnicas da verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a

argumentação∗

Francis Wolff, ENS, Paris

“Em toda sociedade”, escreveu Foucault (1971, p. 10-11), “a produção do discurso é


ao mesmo tempo controlada, organizada e redistribuída por um certo número de
procedimentos que têm o papel de exorcizar os poderes e os perigos, dominar o
evento aleatório, esquivar a pesada, a duvidosa materialidade”. Acontece que certos
procedimentos são abertamente instituídos, ou sua eficácia conscientemente buscada
e medida, e o seu poder codificado em regras: eles se tornam, então, verdadeiras
técnicas discursivas dominadas por todos e transmissíveis —de direito— a cada um,
como qualquer outra técnica. Para uma técnica discursiva, um certo tipo de discurso
precioso separa-se da massa indefinida dos discursos possíveis, dotando-se de um
poder legítimo e de reconhecida excelência. As regras que ele enuncia têm por efeito a
rarificação do campo dos discursos socialmente belos ou verdadeiros ou eficazes,
qualificando alguns dentre eles, distinguindo-os por serem discursos admiráveis ou
autorizados.
O século V grego é, sem dúvida, o inventor anônimo de múltiplas técnicas
discursivas, dentre elas pode-se citar a escrita poética, a retórica, a argumentação
dialética e a demonstração científica. Em virtude de uma técnica discursiva,
reconhecida por todos, composta segundo procedimentos que garantiam o valor
insigne, promoveu os discursos do poeta, do orador, do dialético ou do matemático,
alcançando, em um golpe seguro, o objetivo que não se pode alcançar pelo acaso dos
discursos comuns.
Aristóteles marcou um ponto no século da história destas “técnicas discursivas”
//41/ e, ao fazê-lo codificou-as, mais ou menos, definitivamente. A Poética, a Retórica,
os Tópicos e os Analíticos podem, de fato, ser considerados o fruto de um trabalho,
em três tempos, de Aristóteles.1 Ele partiu de um levantamento de todos os discursos
que pertencem a um certo gênero e, neste, os considerados bem sucedidos: as


Trois technique de vérité dans la Grèce classique. Aristotele et l’argumentation.
Paris: CNRS, Hermes 15, Argumentation et Rhétorique I, 1993, pp. 41-71. Tradução:
T. B. Mazzotti, para uso escolar, proibida reprodução comercial, 2003, maio. A
notação //nº/ indica o final de página do original. © CNRS, 1993.
1 O trabalho de Aristóteles sobre estas quatro técnicas discursivas podem ser

comparadas ao que realizou na política (coleção de “constituições” que serviu de base


empírica para a produção escrita de um trabalho denominado a Política); bem como,
em biologia (coleção de fatos concernentes aos seres vivos, História dos animais,
servem de base aos seus tratados biológicos, notadamente Da Alma).
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 2

tragédias dos poetas, os discursos dos oradores na Assembléia ou no Tribunal, as


argumentações dos polemistas que realizam a disputa dialética, as demonstrações dos
matemáticos aos seus alunos. Em seguida, realizou o estudo comparado de sua forma
e investigou os meios discursivos que permitem obter, em cada caso, os melhores
resultados visando o terror e a piedade do público da tragédia (Poética, 6, 1449 b27);
a persuasão dos cidadãos na assembléia (Retórica, I, 1, 1355 b10); a refutação da tese
do interlocutor ou a defesa de sua própria tese em uma disputa (Tópicos I, 1, 100 a,
18-21); a transmissão completa e rigorosa da ciência ao aluno (Analíticos posteriores
I, 1). Finalmente, em um terceiro tempo2, no qual se constitui a “técnica”
propriamente dita, a produção escrita de um “tratado” enunciando as regras de
formação do discurso fundadas em um mínimo de princípios, permitindo, ao mesmo
tempo, compreender a eficácia dos discursos existentes bem como formar ad libitum
novos discursos legítimos.
Destas quatro técnicas discursivas inventadas e depois codificadas na Grécia
clássica, três deles, a retórica, a dialética e a “ciência” giram em torno de uma mesma
perspectiva, a verdade, mesmo estando em quadros institucionais diferentes.

Três técnicas da verdade


Cada um destes três discursos da verdade corresponde a um quadro institucional
de realização fora do qual perdem seu sentido e graças ao qual a produção social do
verdadeiro torna-se possível. Pois, não se pode produzir o verdadeiro “demonstrando”
ou “dialogando” em uma assembléia popular, bem como “persuadir” seu aluno, por
exemplo.
O que antes de tudo define a retórica diz respeito a um certo quadro social. Os
lugares de abordagem: o tribunal, a Assembléia do povo e as reuniões comemorativas,
quer dizer os três lugares chave da democracia, uma vez que são os únicos nos quais

2 No caso da retórica e da dialética, há um trabalho intermediário: o de consulta e


síntese de todos os Tratados existentes depois da época dos Sofistas. Sabe-se que
numerosos tratados retóricos (Technai) existiam e que Aristóteles fez uma resenha
deles em uma obra perdida (“Coleção de Tratados”, σνυαγ ωγη τεχνϖν, que serve de
base empírica para sua Retórica. (Sobre essas coletâneas, ver Platão, Fedro 266 d —
267 d). Em relação à dialética pode-se reportar às observações conclusivas no final
das Refutações Sofísticas (cap. 34, 183 b, 15 seg.), no qual Aristóteles põe em paralelo
seu trabalho sobre a dialética e o da retórica. Pode-se deduzir que existia, desde a
época dos Sofistas, coletâneas destinadas às disputas dialéticas ao lado de coletâneas
de discursos totalmente produzidos para os oradores (183 b37). Temos outros
testemunhos de sua existência, um dos quais é o tratado anônimo dito “Doubles dits”
(Dissoi logoí) é um bom exemplo.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 3

se endereça ao povo 3 Mas, se a unidade do quadro (as reuniões democráticas) e de


situações interlocutórias (a palavra pública) definem a retórica em geral, os três tipos
de reuniões definem seus três gêneros: o tribunal, onde o povo reúne-se para julgar as
infrações das leis dadas (gênero judiciário); a Assembléia deliberativa, onde se reúne
para decidir sobre as decisões futuras (gênero deliberativo); e, enfim, as reuniões
comemorativas, onde se reúne para comunicar os valores presentes que se reconhece
(gênero epidítico4). O que, em seguida, define a retórica são as regras instituídas
referentes àquelas instituições públicas, as do processo, por exemplo, a disputa entre
dois cidadãos-oradores opostos5 ou as da Ekklesia, na qual os cidadãos-oradores
sucedem-se como conselheiros da Cidade. //42/ Mas, a meta regra constitutiva da lide
retórica e comum aos três tipos de lugares retóricos é a do debate contraditório: o
igual direito dado a todos os cidadãos de falar (“isagoria” democrática) deve, de fato,
realizar-se sob a forma da representação de uma luta política entre dois discursos
opostos (“antilogia”6) provenientes, um e outro, do direito e dos meios iguais. A

3 Ver Aristóteles, Retórica I, 1, 1354 b, 16-55; a, 2, e todo o capítulo I, 3. Este liame


indefectível da retórica com os lugares da democracia é reconhecido por Platão (ver
Górgias, notadamente 452 bem como 454 b, 502 d-e etc.). Em compensação, a
intenção do Fedro é estender a dimensão da retórica e mostrar que o que se passa por
uma técnica da palavra pública reservada às assembléias populares poderia ser de
todo direito estendida às reuniões privadas (ver 261 a-b). Este objetivo de Platão é
solidário com o seu projeto mais geral de uma retórica científica: a ciência da
persuasão, enquanto tal, de poder abstrair das condições pragmáticas que tem lugar o
discurso; dever-se-ia, para Platão, poder persuadir da mesma maneira a alma isolada
e o povo como um todo; bastaria conhecer aquele ao qual se endereça. Ver também
Alcebíades, 114 b seg.
4 Esta distinção teorizada por Aristóteles na Retórica I, 3, articula toda a estrutura de

seu Tratado. Segundo Kennedy (1980, p. 72), reconhecia-se até Aristóteles que havia
diversos tipos de discursos, por exemplo “acusação”, “defesa”, “orações fúnebres”,
mas a classificação em três gêneros foi, sem dúvida, por ele produzida e se impôs
desde então como uma aquisição definitiva da teoria retórica.
5 Pois o processo atenienense clássico é concebido como um combate entre dois

adversários e “o papel da autoridade é seguir a lide, de fazer respeitar as regras, de


homologar os resultados” (L. Gernet, 1951, p CXL). Lembremos que um processo se
diz em grego agôn (luta) e seu resultado nikè (vitória).
6 Ver um exemplo de sistematização dessas “antilogias” na Retórica II, 22, 1396 a,24-

29. Ao Tribunal, os deuses logoi opostos, que acusam e defendem, sustentam em


conceito opostos do justo e do injusto; à Assembléia deliberativa, os logoi opostos,
que aconselham e desaconselham, sustentam-se em conceitos opostos do útil e do
prejudicial; nas reuniões comemorativas, os logoi opostos, que louvam e vituperam,
sustentam-se em conceitos opostos do “belo” e do “indecente”.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 4

retórica está, pois, ligada tanto estrutural como historicamente7 às instituições


democráticas.
Um outro quadro institucional define a dialética: as “disputas privadas”. Opondo
assim duas técnicas de “antilogia” ao final do Sofista (286 b), Platão nota que uma
pratica a contradição “em reuniões públicas, em longos discursos frente aos folgazões;
enquanto o outro, em reuniões privadas, cortam seu discurso em argumentos breves,
constrangendo seu interlocutor a contradizer-se”. Ele desenha, ali mesmo, a lista dos
traços da oposição essencial entre retórica e dialética. Esta também é definida por um
lugar: o espaço privado. São as pequenas “reuniões privadas”8, em oposição às
“reuniões públicas”, os lugares nos quais o povo como tal se reúne. Mas, a este lugar
prendem-se também as regras, as regras da lide dialética, que, em um sentido,
reproduzem privatim as da resolução política de conflitos públicos pela retórica: os
dois debatedores da dialética envolvem-se, de fato, em uma prática regulada pela
contradição e ela também é pública (mesmo que este público seja privado); esta lide
comporta suas regras (não pôr questões ambíguas, apenas responder com sim ou não
etc.9). Mas, a meta regra constitutiva da lide dialética (representação privada de uma
luta política entre dois discursos) é conduzida de tal maneira que o adversário
contradiga-se e sem que nunca contradiga a si mesmo.
Por fim, um terceiro quadro define o “discurso da ciência”: a transmissão do saber.
Pois, como o diz com veemência uma passagem da Retórica (I, 1, 1355 a25): “O
discurso da ciência é o do ensino”. Assim se pôde mostrar10 que a teoria apresentada
nos Segundos Analíticos não é uma teoria abstrata da demonstração, mas o modelo
formal da maneira como o professor deveria apresentar e fazer partilhar o saber, uma
teoria da estratégia da transmissão ideal dos conhecimentos. O início do texto
inscreve-se na problemática aberta por Menão: “como é possível aprender o que se
sabe?”. Aliás, ao longo de toda a obra Aristóteles apela aos conceitos tomado do
vocabulário do ensino, notadamente “tese”, “axioma”, “hipótese”, “postulado”. Em
outros termos, Aristóteles permanentemente demarca sua teoria da “demonstração”
daquela da interrogação dialética de tal maneira que mostra claramente que ele

7 Conhece-se um pouco de perto a origem da retórica. Sabe-se, ao menos, por Cícero


(Bruts, 46) que Aristóteles assinalava em sua “Coleção de Tratados” que, após
expulsão dos tiranos da Sicilia, o retorno dos exilados e o advento da democracia com
base no modelo ateniense foram marcados por numerosos conflitos de reivindicação
fundiária. A atividade considerável dos tribunais para regulamentar esses litígios
(usurpações, espoliações…) caminhou ao lado com os primeiros debates políticos na
Assembléia.
8 Ver Sofista 232 c; República VI, 499 a; Fedro, 261 a; Leis XII, 948 e; ver também

Isócrates, Sobre a troca, 136.


9 Sobre estas regras ver J. Brunschwig (Introdução, 1967) e P. Moraux (1968).
10 Notadamente J. Barnes (1975).
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 5

fundamentalmente concebe estes dois tipos de discursos como partes de um mesmo


quadro: o do diálogo. O diálogo em sentido único com o aluno, distinguindo-se tanto
do diálogo assimétrico com o “respondente” (dialética) quanto do monólogo frente a
um auditório (retórica). Este quadro institucional da transmissão do saber impõe
também suas regras ao discurso epistêmico que, como veremos, são as do discurso
axiomatizado.
Os quadros institucionais distintos nos quais jogam essas verdades determinam
evidentemente uma diferença tanto dos papéis dos dois parceiros da troca discursiva
quanto das funções //43/ do efeito de verdade buscado pelo discurso. Na retórica, o
locutor (orador) tenta persuadir de tal ou qual verdade o auditório (povo em
assembléia), o qual deve julgar em seguida a verdade ou a falsidade do discurso. Na
dialética o locutor (o “questionador”) tenta refutar a tese do interlocutor (o
“respondente”, que tenta sustentar uma verdade), por meio de questões destinadas a
pô-lo em contradição consigo mesmo. Na ciência, o locutor (o professor) tenta
demonstrar ao seu auditório (os alunos) a verdade de tal proposição pertencente a um
domínio determinado do saber por meio apenas de proposições anteriores, ou
daquelas que os alunos não podem ignorar (os “axiomas”).
Entretanto, a despeito destas diferenças de quadro institucional e de modalidade
de interlocução, a retórica, a dialética e a “ciência” pertencem a um gênero comum:
todas podem ser tomadas por “técnicas discursivas da verdade”. Elas põem em ação
os três elementos de todo discurso assertivo (aquele que fala, o locutor; aquele para
quem se fala, o interlocutor; e o que se fala, o objeto do discurso11) e uma mesma
perspectiva da verdade. O discurso do orador, o do debatedor e o do matemático
devem ser —entre outros, justamente graças à técnica discursiva— tomados por
verdadeiros por aqueles aos quais são endereçados: os juizes do tribunal; o adversário
e o público da lide; o aluno que “aprende” as matemáticas. (Um discurso poético, ao
contrário, deve ser tomado por belo, pelos destinatários12). Nos três casos, o locutor
produz, por seu discurso, as verdades destinadas a um interlocutor. Sem dúvida a
finalidade e o sentido dessas verdades não são as mesmas e a inscrição dessas três
técnicas em diferentes instituições funcionam cada qual segundo as normas próprias
suficientes para fundar esta diferença: umas pertencem ao “espaço público”, outras ao

11 “Pode-se distinguir três elementos constitutivo de todo enunciado: aquele que fala,
o quê se fala, aquele para quem se fala” (Aristóteles, Retórica I, 3, 1358 a, 37—b1).
12 Ver o início da Poética: “Nos vamos falar da arte poética … da maneira de compor a

fábula caso se queira que a composição poética seja bela (χαλϖς εξειν)”. A verdade
tem seu lugar (secundário e subordinado) na poética (ver Poética, 1451 b, 1-11),
exatamente como a beleza pode ter também seu lugar no discurso do orador (ver as
considerações sobre o estilo no livro III da Retórica, notadamente III, 2, 1404 b, 12-
25).
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 6

campo das convicções privadas, outras à ordem do saber. No entanto, todas repousam
sobre o que se pode chamar o mesmo “regime de verdade”: o regime democrático.
Nos três casos, de fato, a produção do verdadeiro só é possível no e pelo acordo do
outro (o interlocutor), definido apenas pelo fato de serem todos os outros um outro —
um outro como os outros, sem outra qualificação. Estas três técnicas repousam sobre
o mesmo princípio: todo homem, qualquer que seja, pode ser um locutor qualificado
suscetível de enunciar um discurso da verdade e um auditor qualificado suscetível de
julgar a verdade de um discurso, o que é a dupla condição própria regime
democrático. Certamente o acordo do auditor com o locutor (condição sine qua non
de seu veridicção) realiza-se a cada vez nas instituições e segundo modalidades
diferentes pelas quais justamente as técnicas da verdade diferenciam-se. Permanece
que elas estão todas na dependência deste acordo e obedecem, por consequência —
elas e apenas elas sem dúvida— ao que se pode chamar um “regime democrático da
verdade”; inversamente, por oposição aos poderes e às modalidade de veridicção dos
antigos “mestres da verdade13”, é sem dúvida o regime democrático que
historicamente está na origem dessas técnicas.
Retórica, dialética e ciência têm pois em comum serem técnicas discursivas da
verdade. Como técnicas, visam esta verdade “democraticamente”, //44/uma vez que
uma técnica não é reservada a qualquer indivíduo excepcional, mas se define pelas
condições de sua trasmissibilidade. O que as distingue é, de início, o lugar de inscrição
institucional dessas verdades e que determina o modo de interlocução na troca
discursiva. Mas, sendo discursivas, elas visam esta verdade sem qualquer meio que
não seja o discursivo; eis porque elas se distinguem também, evidentemente, pelos
procedimentos formais que permitem transmitir as verdades apenas pelo discurso, as
“formas de veridicção” que aí são legítimas e eficazes. Queremos mostrar que estas
diferenças também se explicam por diferenças institucionais. O que é mostrar
novamente que os diferentes tipos de argumentação (da demonstração científica ao
raciocínio retórico) não se diferenciam essencialmente nem pela forma, nem segundo
o grau de validade, nem segundo a modalidade lógica, mas segundo o lugar de
inscrição e a figura de seus destinatários.
Mas, antes de ver estas diferenças, é necessário mostrar que há uma forma geral de
veridicção que é comum e que se pode denominar “argumentação”.

Técnica da verdade e “argumentação”


Falar de técnica discursiva da verdade é necessariamente dizer que o modo pelo
qual se transmite ou se faz admitir as verdades é “argumentativa”, quer dizer, de fato,
que a veridicção depende exclusivamente do que, no discurso, erige-se da técnica e o

13 Emprestamos este conceito do belo livro de Détienne (1967).


Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 7

que, na técnica, concerne ao discurso enquanto tal. Ora, estes dois traços podem
definir a argumentação.
Dizer que a veridicção depende do que no discurso erige-se da técnica significa, de
início, que a verdade não depende do que está fora do discurso ou do que nele erigirá
de um poder verídico de sua referência. Em outras palavras: exclui das técnicas de
verdade qualquer apelo à evidência empírica sobre a qual se fundamenta comumente
a transmissão das verdades. Estas podem sempre, sob certas condições muito
restritivas e variáveis segundo as técnicas, apelar ao acordo com o outro sobre um fato
e tomar este acordo por ponto de partida de um raciocínio; mas não pode, em alguma
de nossas três técnicas, nem ultrapassar este acordo e estabelecer que o fato impõe-se
por si mesmo sua verdade dispensando todo discurso; nem admitir que ele erige-se da
técnica. Mesmos os “exemplos” evocados pelo orador não valem como elementos de
prova, uma vez que eles já são conhecidos do auditor. Este enquadramento muito
restritivo do papel da experiência pelas regras da discursividade é comum às três
técnicas: o discurso da ciência supõe justamente que a transmissão do saber deve
evitar, ainda que se possa fazer, o apelo à evidência sensível e que a suposta força
persuasiva própria a esta não dispense a demonstração. A dialética exclui que um
debatedor deva submeter-se à autoridade dos fatos, ela supõe mesmo que ele possa
tomar uma posição que lhe pareça contrária ao que estima justamente dispor o
discurso que lhe permitindo ou julgar que //45/ seu adversário não possa dispor de
discurso para o refutar14. Assim, o discurso matemático e o discurso dialético excluem
que a verdade possa manifestar-se pela imediatez empírica (“veja bem”), mas também
pela mediação de “testemunhas” exteriores ( “X sabe bem que” 15). Quanto à retórica,
se a instituição, notadamente a judiciária, reconhece um lugar para esses modos de
veridicção não discursivas, estas estão, por definição, fora do campo da técnica
retórica, é o que Aristóteles nomeia, conforme uma distinção inscrita no Direito
grego, os “meios de provas extra técnicos” e que ele exclui, por consequência, da
retórica, sem dúvida como todos os autores dos Tratados16.

14 Assim se segue por teses paradoxais (Tópicos I, 10, 104 a, 10): pode-se, por
exemplo, sustentar que o movimento não existe caso se estime que esta posição
inexpugnável em todo o discurso.
15 É sobre isto que Platão insiste, por exemplo, em Górgias: um e apenas um

“testemunho”, aquele da interlocução dialética, vale mais do que numerosos


testemunhos aos quais os oradores apelam. Ver 472 b, 474 a e 475 e. Sobre esta
preferência e as razões avançadas por Sócrates de preferir a dialética à retórica, ver
também República I, 348 a-b ; e Robinson (1953), p. 15-17.
16 O Direito grego clássico reconhece seis “provas extra técnicas”, quer dizer que não

dependem da arte retórica, se bem que sua leitura pelo escrivão seja geralmente
integrada no discurso de defesa do orador. Sobre esta questão das provas ver R. J.
Bonne e G. Smith (1930) II, p. 117 e seg.; e A. R. W. Harrison (1971), p. 134 e seg. Para
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 8

Dizer que a veridicção depende do que na técnica concerne ao discurso enquanto


tal, significa que ela depende do que é dito e não daquele que o diz (a posição extra
discursiva do locutor) nem daquele ao qual se diz (a posição extra discursiva do
auditor). Em outros termos: em uma técnica de verdade a forma essencial da
veridicção exclui de início todo “mestre da verdade17 e sobre as quais se fundamenta
usualmente a transmissão das verdades. Nem o matemático nem o dialético podem
arguir o que são, o que sabem ou o que podem, para fazer admitir a verdade do que
dizem. Eles não podem, sem sair de seu papel de “sábio” ou de “dialéticos”, procurar
emocionar seu aluno para melhor ensinar, ou impressionar o adversário para melhor
refutar. Quanto ao orador, ele pode certamente esforçar-se por parecer dotado de
qualidades, de saber ou de poder que o torne confiável aos olhos de seus auditores,
pode também esforçar-se por fazer nascer em seus auditores as paixões que os
disponham favoravelmente às suas teses, na medida em que aí chegue apenas pelo
discurso, isto erige-se da retórica, e a persuasão efetiva-se por “meios técnicos”.18 No
mínimo, permanece que na retórica uma parte essencial da técnica reside no que diz o
discurso e este é o que Aristóteles denomina a parte propriamente lógica da retórica, o
“corpo dos meios da prova”19
Pode-se chamar “argumentação” o fruto desta dupla exclusão: a exclusão de toda
forma de transmissão da verdade por meios extra discursivos, seja porque ele não

a cinco “provas” estudadas por Aristóteles na Retórica I, 15 (leis, testemunhos,


convenções, tortura de escravos, juramento dos homens livres), convêm agregar as
“notificações” (Aristóteles, Constituição de Atenas, LII, 2). Anaximene de Lampsaque
(IV ), o autor presumido da Retórica para Alexandre, faz uma distinção comparável
(VII, 1428 a17) entre as provas que se tiram dos discursos e das ações (as “provas
técnicas” de Aristóteles) e as “provas auxiliares”: testemunhos, torturas, juramentos.
17 “Mestre da ‘verdade’ ”, o rei da justiça é possuidor do mesmo privilégio de eficácia

[do divino e do poeta]: seus ditos de justiça, seus themistes são, de fato, espécie de
oráculos” (Détienne, 1967, p. 56).
18 Aristóteles na Retórica I, 2, 1356 a, 1 e seg., distingue três tipos de “provas

técnicas”: as que consistem para o orador determinar pelo discurso as paixões


favoráveis à causa em seus auditores (ele estuda essas provas para o pathos em II, 2-
11); aquelas pelas quais o orador aparece aos seus auditores como dotado de um
caráter honesto (ethos, estudadas em I, 1 e II, 12-17); e, por fim, as “provas pelo logos”
propriamente dito (quer dizer, as argumentações, estudadas em I, 4—14 e II, 18-26).
Lembremos que o ethos do orador deve ser estabelecido tecnicamente e nada tem a
ver com sua autoridade ou sua reputação prévias; isto é explicitamente excluído (ver I,
12, 1356 a, 9-10).
19 Aristóteles lastima, no início da Retórica (I, 1, 1354 a, 11 seg.), que os autores

habituais dos Tratados concentram-se no acessório, sobretudo na maneira de


mobilizar as paixões do auditor (mesma reprovação em I, 2, 1356 a, 16-19) e não nos
entimemas (toscamente, a argumentação) que são o “corpo de prova” (1354 a, 15) e
aos quais consagra uma parte importante de seu próprio Tratado.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 9

emergem do discurso (e. g. a violência ou o apelo à evidência), seja porque eles


emergem do que é estranho ao que se diz (autoridade do locutor, sentimentos do
auditório).
Destes dois traços definidores talvez seja possível tirar outras determinações
essenciais a toda argumentação.
Em oposição às outras formas de veridicção (notadamente as de um “mestre da
verdade”, por exemplo), a argumentação distingue-se pelo fato de que visa um acordo
do interlocutor (acordo necessário, percebe-se, em toda técnica da verdade) que seja
uma adesão ao discurso e não uma adesão ao locutor. Em outras palavras, o discurso
argumentado não será tomado por verdadeiro porque o locutor é veraz mas, ao
contrário, porque o discurso será aceito como verdadeiro (“convincente”) que o
locutor será tido por veraz (ou “convincente” 20).
Em oposição ao que se passa em outras formas de veridicção, na argumentação
//47/ nenhuma asserção saberia ser suficiente para impor sua própria verdade. De
fato, uma vez que a argumentação distingue-se pelo encerramento da veridicção na
asserção, a verdade de uma asserção não pode depender de nada, a não ser de uma
outra asserção. Em toda argumentação há sempre, pelo menos, duas asserções
ligadas, a que quer transmitir (ou impor) a verdade ao interlocutor e aquela(s) sobre
a qual (as quais) se apóia a primeira. Reciprocamente, desde que uma asserção não se
sustente, ou não autorize apenas de sua única enunciação, ela apela a outros modos de
veridicção que não a argumentação. Sua verdade só pode ser reenviada à autoridade
do fato que ela enuncia, ou à autoridade daquele que enuncia, por definição a
argumentação exclui uma e outra. Em outras palavras: desde que a veracidade dos
locutores socialmente legitimados torne-se discutível (o que é a condição da
constituição histórica de toda técnica da verdade), desde que eles somente podem ser
falíveis e enganadores —desde que, pois, rompe-se com uma concepção de veridicção
ligada ao estatuto daquele que fala (e. g. um “mestre da verdade”)—, a enunciação de
alguma asserção não pode ser suficiente para impor (ou transmitir) a verdade; é
preciso uma ligação mais ou menos necessária entre as asserções, das quais algumas
já são admitidas pelo destinatário e as outras são precisamente as que se esforça para
se fazer admitidas. Eis o que explica que, se a asserção pode ser tomada pela forma

20 “Não é porque estamos na verdade dizendo que sois branco que sois branco, mas o
inverso, porque és branco que, dizendo que sois, estamos na verdade.” (Aristóteles,
Metafísica Φ, 10, 1051 b, 6-9). // Na tradução espanhola de YEBRA (1990) lemos: “Pues
tú no eres blanco porque nosotros pensemos verdaderamente que eres blanco, sino que,
porque tú eres blanco, nosotros, los que o afirmamos, nos ajustamos a la verdad”. Note-se
que há uma diferença importante ao traduzir “dizemos que” e “pensamos que”, uma vez
que no segundo caso a ênfase recai na elocução, enquanto no primeiro permanece no
âmbito daquele que pensa. (N. T.)
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 10

discursiva mínima da verdade21, ela não é a forma mínima da veridicção nas técnicas
da verdade: para que haja veridicção é preciso mais do que uma asserção verdadeira,
é preciso pelo menos duas ligadas entre si.
Entretanto, seria preciso fazer uma exceção ao que Aristóteles denomina as
máximas (γνωµαι) que ele parece reter na Retórica como um modo legítimo de
argumentação, como se elas fossem asserções suficientes para que sejam tidas como
verdadeiras? As máximas caracterizam-se, de fato, por se sustentarem no geral e não
no particular (II, 21, 1394 a22-23), que se sustentam no que deve ser escolhido ou
evitado na ação (ibid., 24-25), e, enfim, são asserções simples, sem inferências, logo as
“premissas” ou as “conclusões” de um entimema (ibid., 25-28). No caso comum, de
fato, desde que uma máxima seja justificada (i.e. acompanhada de sua razão, αιτια,
ibid. 31), ela se torna um entimema, então se encontra em uma argumentação
propriamente dita22. Mas, então, como uma máxima propriamente dita, quer dizer
enunciada sem justificação explícita, pode ser “persuasiva” e ainda erigir-se da
veridicção argumentativa (mesmo sob uma forma limitada) — em que sentido ela é
credível ou não pelo locutor? Talvez se possa distinguir três modos nos quais a
verdade de uma máxima impõe-se fora do campo da argumentação: a força
perlocutória própria da asserção faz com que seu auditor espontaneamente confie no
locutor e que as coisas ditas sempre pareçam (um pouco) verdadeira pela simples fato
de que são ditas, notadamente quando, como nas máximas, elas imitam, por sua
generalidade, as conclusões argumentadas dos sábios e dialéticos, tal seria a parte
“extra técnica” da questão. O segundo modo de veridicção da máxima seria seu
caráter implicitamente entinemático (dizendo de outra maneira: argumentado) —uma
vez que a máxima é um entimema “incompleto” //48/, ao qual o auditor reúne
mentalmente sua “justificação” geral subentendida23. Finalmente, a força persuasiva
própria somente da máxima e dela apenas (i. e. sem sua justificação, mesmo
subentendida) sem dúvida teria origem na soma implícita das experiências diversas e
da prudência que parecem aí encontrarem-se cristalizadas para todos e cada um, em
um domínio, o da ação humana, no qual, precisamente por se erigir da experiência e
da prudência, não permite o enunciado de proposições necessárias: a máxima

21 Ver Platão, Sofista 262 c –263 b ; e Aristóteles Da Interpretação 4, 17 a,3-5; e 5, 17


a,9-10, Primeiro Analíticos I, 1, 24 a,16.
22 No entanto, Aristóteles parece admitir que se também se denomine “máxima” uma

tal proposição complexa (máxima—justificação), apesar se seu caráter “entimemático”


(Retórica II, 21, 1394 b, 2026).
23 Caso se tome o exemplo de Aristóteles “Nenhum homem é perfeitamente feliz”, tal a

máxima sem sua justificação (Retórica II, 21, 1394 b, 2); “pois ele é escravo ou do
dinheiro ou do acaso” (ibid. 1394 b, 6), tal justificação torna-a entimemática.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 11

mimetiza o universal e o necessário em um domínio que parece os excluir24. Assim, as


máximas não são exceção à regra: o que nelas há de tecnicamente persuasivo emerge
de um modo (certamente limitado) de argumentação, no qual a proposição enunciada
está ligada, pelos menos no espírito do auditor, ao que enunciaria seja sua justificação
mais geral (como se ela fosse deduzida), seja dos exemplos conhecidos do auditor por
experiência (como se fosse induzida).
Uma técnica da verdade caracteriza-se, então, pelo fato de que se liga a asserções
entre as quais algumas já são consideradas pelo locutor como sendo admitidas por seu
interlocutor e outras são as que ele se esforça por fazer admitir. Tal é a
“argumentação”, e ela caracteriza nossas três técnicas da verdade. Esta argumentação
e estas técnicas, daqui por diante vamos estudá-las do ponto de vista de Aristóteles,
uma vez que, contrariamente aos seus predecessores25, é principalmente pelo ângulo
da argumentação que estas técnicas retiveram a atenção nos Analíticos, nos Tópicos e
na Retórica.
Apoiando-se nas práticas de sua época Aristóteles separou todas as maneiras
legítimas (e ilegítimas 26) de argumentar, quer dizer, para um locutor de ligar as
asserções que ele tem com as que o auditor tem por verdadeira (premissas) àquela
que tem que fazer considerar verdadeira (a conclusão). É claro que a ordem entre as
“premissas” e a “conclusão” é inversa para o locutor (o mestre do conhecimento
científico, o questionador da dialética, o orador da retórica) e para o auditor (o aluno,
o respondente e o povo), quer dizer no discurso mesmo. O locutor parte
evidentemente da tese que ele sabe (ou finge acreditar) verdadeira e procura ligá-la ao
que ele sabe (ou acredita) ser conforme à situação dialógica na qual ele se encontra,
que o auditor já admite. Ao inverso, o sistema axiomatizado da ciência, a refutação
dialética e o discurso do orador partem, conforme o ponto de vista do auditor, das

24 Veja a este propósito as observações muito interessante da Retórica II, 21, 1395 a, 2-
8, sobre o lugar das máximas entre os velhos, e em 1395 b, 2-3, sobre as razões pelas
quais os auditores sente prazer em entender as máximas: “Eles regogizam-se ao
entender um orador que pronuncia uma fórmula geral que reencontra com as
opiniões que eles mesmo têm em um caso particular”.
25 Aristóteles censura seus predecessores em dialética (notadamente os Sofistas) por

não terem suficientemente explicitado as regras da argumentação válida, por “não


ensinar a técnica mas apenas seus resultados” (Refutações Sofísticas, 34, 184 a, 1);
admoestação comparável ao que fez aos seus predecessores em retórica (ver acima a
nota 19).
26 O estudo das normas nunca se separa da patologia. Os Primeiros Analíticos

duplicam sempre o estudo dos modos do “silogismo demonstrativos” legítimos e os de


modos ilegítimos; nas Refutações Sofísticas completam o estudo das refutações
dialéticas legítimas estudadas nos Tópicos; o capítulo II, 24 da Retórica (“entimemas
aparentes”) complete os capítulo III, 22 e 23 (“verdadeiros entimemas”).
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 12

“premissas” tidas por verdadeiras respectivamente pelo aluno, pelo respondente e


pelo povo, para a “conclusão”, verdade nova que se tira das precedentes27. A diferença
entre as argumentações científica, dialética e retórica, tem e não tem a ver com esta
matéria das premissas do ponto de vista do destinatário, quer dizer a natureza do que
deve ser tido a priori por admitido por um aluno em situação de aprender uma
ciência, por um adversário em situação de defender sua tese, e pelo povo em
assembleia em situação de julgamento28 da verdade do discurso.

Três modos de argumentação


Aristóteles não tem um conceito exatamente correspondente à “argumentação”, no
entanto, quando utiliza o conceito de “prova” (πιστις), restringindo-o à “prova pelo
//49/ discurso”, ele dispõe de um conceito equivalente ao nosso conceito de
argumentação. Ora, há, em Aristóteles, dois e somente dois grandes gêneros de
“provas por meio do discurso”, os mesmos para as três técnicas da verdade,
correspondendo grosso modo ao que denominamos dedução (tradição que adotamos
para σνλλογισµος 29) e indução. As definições mais flexíveis destes dois
encaminhamentos encontram-se na Retórica (I, 2 12356b 14-16): “apoiam-se em
numerosos casos semelhantes para mostrar que se segue o mesmo no caso buscado, é
o que se denomina às vezes de indução (επαηωγη) e aqui [= na Retórica] um exemplo;
em compensação quando, pelo fato de que algumas coisas são postas como resultado
de alguma outra coisa pela virtude das primeiras e além delas, porque são postas
universalmente ou na maior parte do tempo, ocorre o que se denomina uma dedução

27 Esta inversão da ordem tem por consequência compreender mal o papel, por
exemplo, do “silogismo”. Mas o silogismo não é apenas um resultado. Do ponto de
vista do sábio, o trabalho científico consiste não em deduzir novas verdades da que ele
conhece (o silogismo então efetivamente abriria seu flanco à todas as críticas
tradicionais de que foi objeto: esterilidade, redundância), mas a busca das premissas,
quer dizer remontar até ao que fundamenta a razão (“o porquê”) das proposições da
qual ele sabe a verdade (a conclusão). Ver sobre esta questão E. Kapp (1975) que
anota na p. 39 “The syllogism is in fact not a principle of intellectual advance but
rather a principle of intellectual retreat —or, better, in the syllogism the normal order
of dactum and desideratum is turned upside down.”
28 O povo julga a verdade do discurso que lhe é endereçado nos três gêneros, e não

apenas no gênero judiciário. Ver Aristóteles, Retórica II 1, 1377 b, 20-21; II, 18, 1391
b, 7-13 (ver também I, 2, 1357 a, 10-11).
29 Nisto acompanho J. Brunschwig (1967) que traduz por “raciocínio dedutivo”.

Reservamos a tradução “silogismo” para os casos —raros— nos quais


σνλλογιαµος remete ao silogismo dos Primeiros Analíticos, teoria de todas as
deduções elementares válidas.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 13

(σϖλλογισµος), e aqui [= na Retórica] um entimema30”. Estes dois modos de


argumentação são, pois, essencialmente os mesmos nas três técnicas. Vamos mostrar
que se realizam sobre três modos, adaptando-se à situação de interlocução
modelando-se em um suposto saber de seu destinatário. Para o fazer, limitaremos
nossa análise à vertente “dedutiva” da argumentação.
Fazer um ‘sylogismos” nada mais é do que deduzir qualquer coisa de qualquer
(quaisquer) outra(s) coisa(s)31. Em uma situação epistêmica tem-se o que Aristóteles
denominou um “syllogismos apodeiktikos”, não um “silogismo apodítico”, mais uma
“dedução demonstrativa”; em uma situação dialética, é uma “dedução dialética”, e na
situação retórica, é um “entimema”, dizendo de outra maneira uma “dedução
retórica”. Enquanto dedução (σνλλογισµοι), estes três procedimentos são exatamente
idênticos. Mas, o quadro institucional e a situação de interlocução, nas quais se
realizam, determinam o que já é tido por admitido pelo interlocutor. Em outras
palavras, os três modos de dedução devem poder distinguir-se pela “natureza das
premissas”: uma premissa científica poderá ser definida como a que é tida por
verdadeira por um aluno em situação de aprendizagem da ciência (o que já é
necessariamente conhecido por ele dado que já demonstrada ou necessária à
aprendizagem); uma premissa dialética, como ao se requerer o “de acordo” de um
adversário em uma lide dialética (que ele não deveria poder recusar dado que já a
admitiu ou porque é geralmente admitida por todos e cada um); uma premissa
retórica, como a que supõe admitida pela multidão popular à qual aquela se endereça
(o que ela deveria aceitar sem dificuldades dado que faz parte das evidências
partilhadas pela comunidade). Não uma há outra diferença entre estes três modos de
dedução. O que significa, em particular, que os outros traços que se pode servir para
distinguir estes três tipos de “silogismos”, por exemplo o critério de modalidade
(distinção entre o necessário e o provável), o critério formal (distinção entre a
validade e a não validade), pseudoformal (distinção da completude e da não

30 A mesma oposição e juntar definições comparáveis encontram-se nos Tópicos I, 12,


105 a, 10-19, texto que afirma explicitamente (como o dos Primeiros Analíticos II, 23,
68 b, 14) que não há outras “formas de discurso” (λογων ειοη), quer dizer de
argumentos, a não ser aqueles dois. Sobre a oposição ‘indução’ / ‘dedução’ ver
também Tópicos I, 8, 103 b, 2-19; Refutações Sofísticas, 165 b, 27-28; Segundo
Analíticos, I, 1, 71 a, 6; a, 24 etc. Ver também J. Brunschwig (1967), n. 2, p. 113.
31 À definição citada acima, pode-se juntar definições comparáveis do Tópicos 1, 1, 100

a, 25-7 e dos Primeiros Analíticos I, 1, 24 b, 19-21. Ligeiras diferenças entre estas três
definições pode explicar-se pelo fato de que a da Retórica compara situações retórica
e dialética enquanto que a dos Tópicos (e implicitamente a dos Analíticos) compara
situações dialética e científica. Assim, o conceito de necessidade (necessitas
consequentiae) não aparece na definição da Retórica, uma vez que as deduções não
são todas necessárias, como o mostramos acima.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 14

completude), seja apenas pertinentes, seja apenas consequências indiretas da


distinção das três situações de interlocução.
Tomemos a dedução demonstrativa. Segundo Aristóteles, ela não difere
formalmente da dedução dialética, difere apenas pela natureza das premissas32. As
premissas //49/ científicas são “verdadeira e primeiras”, ou ao menos são “afirmações
tais que o conhecimento que delas temos nasce por meio de certas afirmações
primeiras e verdadeiras” (Tópicos I, 1, 100 a 27-30)∗. Esta distinção remete aos dois
tipos de situação nas quais se encontra o mestre no momento de sua demonstração.
Para demonstrar P, ele pode seja remontar às proposições Q, R, S que já foram
demonstradas (e que, por consequência, o aluno já sabe), seja às proposições A, B, C,
absolutamente primeiras (e que, por consequência, o aluno já deveria saber antes de
aprender). Mas, como mostra Aristóteles nos Segundos Analíticos (1, 3), isto reenvia
fundamentalmente ao mesmo, uma vez que não há qualquer outro meio de conhecer
(dedutivamente) Q, R, S a não ser pelo remontar às proposições absolutamente
primeiras, verdadeiras e necessárias (os axiomas). Donde o fato de que as premissas
reais de toda dedução demonstrativa respondem ao conjunto dos critérios dados no
Segundos Analíticos (I, 2, 71 b21-23): elas são “verdadeiras, primeiras, imediatas,
mais conhecidas do que a conclusão e elas dão a explicação (αιτια)”.
Esta lista de critérios nos dá exatamente as determinações do saber inicial
requerido do aluno mais ignorante possível. Se um aluno ignora absolutamente tudo,
ele nada poderá aprender, pois nos recorda a primeira frase dos Segundos Analíticos,
“Todo ensino e toda aprendizagem racional procede de um conhecimento pré
existente”. Na situação ideal do ensino, do qual o texto faz a teoria, deve-se supor um
auditor que saberia tudo e somente o requerido para que se lhe ensine um domínio de
conhecimentos (e. g. a aritmética ou a ótica, quer dizer as “definições” e os “axiomas”
—“o que é verdadeiro necessariamente por si e ao qual [o aluno] deve
necessariamente dar seu assentimento [δοχειν]” I, 10, 76 b, 24). De fato, às vezes
Aristóteles considera que o mestre está obrigado a servir-se de proposições não
demonstradas e que não são conhecidas por si: o mestre as explicita e pede o
assentimento do aluno; se o obtém, elas são as “hipóteses”; senão, são simples
“requisitos” (ou “postulados”, I, 10, 76 b, 24-34). A dedução demonstrativa sempre
parte, pois, de um saber idealmente reduzido que o aluno não pode ignorar.
A dedução dialética parte de premissas que são admitidas, não por um aluno que
quer aprender metodicamente um conhecimento, mas por um adversário em uma

32 É o que diz Aristóteles nos Primeiros Analíticos I, 1, 25-28.



Na tradução portuguesa lemos: “O silogismo é uma demonstração quando parte de
premissas evidentes e primeiras, ou de premissas tais que, o conhecimento que dela
temos, radica nas premissas primeiras e evidentes”. Esta tradução é devida a Pinharanda
Gomes, para o Organon, publicado por Guimarães Editores, Lisboa, 1987.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 15

lide. Elas diferem, de início, das premissas científicas pelo assunto que é o seu: a
dialética é, como a retórica, um método de argumentação universal, “transgenérico”,
uma vez que a ciência está limitada a um domínio determinado –e. g. a aritmética ou
a ótica33 . Mas, elas diferem em duas outras maneiras das premissas “científicas”: são
interrogativas34 (uma vez que se trata de saber se o adversário concorda ou não), em
lugar daquilo com o que o mestre se satisfaz, em geral35, o de apresentar
assertoricamente as premissas absolutamente primeiras que terá necessidade. Elas
não são verdadeiras absolutamente, mas apenas tidas como verdadeiras por aquele
que responde, dizendo de outra maneira, admitidas pelo que responde. Tal como nas
premissas científicas, pode-se pois distinguir entre as premissas que o interlocutor
admite necessariamente porque já são admitidas, e as premissas primeiras que
depende de toda dedução. Estas são, pois, as proposições Q, R, S, não necessárias,
mas que o adversário dificilmente pode recusar (salvo //50/ se ele julgar-se capaz de
sustentar um “paradoxo”) e são “as opiniões partilhadas por todos os homens ou por
quase todos, ou por aqueles que representam a opinião esclarecida, e por todos estes
últimos, ou pelos mais conhecidos e os melhores admitidos como autoridades”
(Tópicos, I, 1, 100 b19-21). A dedução dialética sempre parte, então, de um corpus de
convicções idealmente reduzidas àquelas para as quais um adversário não pode
recusar seu assentimento.
Passemos ao modo de dedução mais discutido: o entimema. Vamos mostrar que se
dá para o entimema na interlocução retórica, o mesmo que se dá nas interlocuções
dialética e epistêmica, na dedução dialética e demonstrativa.

33 A dimensão de uma ciência é limitada a um gênero (Segundos Analíticos I, 7 e 9)


enquanto que a dialética, sendo universal (Tópicos I, 1, 100 a, 19; Retórica I, 1, 1334 a,
1-3; Metafísica I, 2, 1004 b, 17-21), estende-se a todos os gêneros (Segundos
Analíticos I, 11, 77 a, 26-35). Quanto à retórica, sabe-se, aos menos depois do Górgias,
que sua dimensão é, de direito, também universal quanto a vida pública (o retor é,
segundo Górgias, “capaz de falar contra todo adversário sobre qualquer assunto”, 457
a). Aristóteles distingue, no entanto (Retórica I, 2, 1358 a, 1-10), os entimemas
fundados em premissas limitadas a um dos gêneros retóricos (estudados na Retórica
I, 4-14), daqueles que, transgenéricos, fundam-se nos lugares (topoi, estudados na
Retórica II, 18-26). Mas esta diferença é muito flexível e concerne muito mais a duas
maneira diferentes, para o autor de um Tratado, de perspectivas que é
frequentemente, a do orador, um mesmo entimema. Em todo caso, esta distinção
nada tem de comparável com o grande princípio epistemológico aristoteleciano da
incomunicabilidade dos gêneros de conhecimento.
34 Ver Primeiros Analíticos I, 1, 24 a ,21 — b, 12; Segundos Analíticos I, 2, 72 a, 8-11 e

Teopicos I, 10, 104 a, 8-12.


35 Ver, no entanto, as observações dos Segundos Analíticos sobre “a interrogação

científica”.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 16

Problemas gerais postos pelo entimema36


Sabe-se que a definição moderna de entimema como “silogismo incompleto” —quer
dizer, no qual uma premissa, geralmente a maior, é subentendida— não se encontra
em Aristóteles. A expressão “silogismo incompleto ou imperfeito” (ατελης),
significando “onde falta um elemento, por exemplo, uma premissa”, é, de fato,
corrente nos Analíticos aristotelecianos37 mas nunca se refere ao entimema;
reciprocamente, aquele nunca é definido ou caracterizado como silogismo
incompleto38. É verdade que numerosos exemplos de entimemas apresentam-se como
silogismos “incompletos” na Retórica quer dizer, nos quais uma premissa não
controversa não é explicitamente enunciada. Mas, para Aristóteles, esta determinação
não pertence à essência do entimema. Ela pode parecer essencial —e pois definidora
do entimema— desde que as forma aristotelecianas da dedução sejam consideradas
como inferências puras, independentes de seu contexto dialógico.
Se o entimema não é, aos olhos de Aristóteles, um silogismo incompleto, então o
que é? Aristóteles nos dá duas definições. Uma definição geral por seu quadro
institucional (o entimema é a dedução retórica) e uma definição que o diferencia da
dedução dialética e da dedução demonstrativa pela natureza das premissas (um
entimema é uma dedução que se apoia nos verosímeis e nos signos). Uma e outra são
igualmente, ainda que diferentemente, instrutivas.
De fato, a definição geral é “demonstração (αποδειξις) retórica” (Retórica I, 1, 1355
a, 6) ou, mais frequentemente e mais precisamente, “dedução (ανλλογισµος)
retórica39”. Esta caracterização geral do entimema não permite ainda compreender o
que o diferencia das duas outras formas de deduções, no entanto permite resolver o
problema da “completude” do entimema.

36 A redação destas páginas já estavam acabadas quando tomamos conhecimento de


importante artigo do Sr. Burneyat sobre o entimema (1994). Ficamos muito felizes em
constatar uma convergência entre o seu trabalho e o nosso sobre mais de um ponto
essencial, ainda que ele recuse a definição do entimema pela natureza das premissas
(por razões que merecem exame). Sr. Burneyat chega, por outra vias, à conclusões
vizinhas das nossas sobre os problemas da completude e validade dos entimemas.
37 Ver Bonitz (1955) s. v. ατελης que remete aos Primeiros Analíticos I, 1, 24 a, 13; b,

24; I, 5, 28a, 4; I, 6, 29 a, 15; I, 15, 34 a, 4; 35 a, 16; 36 b, 24; I, 19, 30 a, 2; I, 22, 40 b,


15.
38 Nos Segundos Analíticos II, 27, 70 a, 10 a adição de ατελνς depois de σνλλογσµος,

significa para Aristóteles em Tópicos VIII, 1, 156 b, 28-30: nunca é preciso solicitar ao
adversário que concorde com a proposição que nos servirá de premissa, mas uma
outra que lhe é consequência dedutivel.
39 Ver Retórica I, 2, 1356 b, 3; ver também I, 1, 1355 a, 8; II, 22, 1395 b, 22-23 e

Segundos Analíticos I, 1, 71 a, 8-10.


Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 17

O entimema é o silogismo da retórica e a retórica é a arte de encontrar o que, em


cada caso, é o mais próprio para persuadir (Retórica I, 2, 1358 b25). Resulta que o
valor //51/ de um entimema encontra-se, antes de tudo, em sua eficácia persuasiva40.
Ora, encontrar os melhores meios para persuadir uma multidão reunida é, em muitos
aspectos, oposto aos meios para vencer um adversário. Para vencer na dialética é
necessário, de um lado, partir das premissas mais afastadas da conclusão e, de outro,
não omitir qualquer das etapas intermediárias, qualquer liame da cadeia dedutiva. A
primeira condição explica-se, entre outras, por razões táticas: quanto mais distantes
forem as premissas menos o adversário poderá perceber que a ligação com a
conclusão arruina sua tese, e mais aceitável serão para ele. É o que explica Aristóteles
no capítulo VIII, 1, dos Tópicos, o que ele denomina “o método da dissimulação41”. Ele
tem o feito da tendência fundamentadora da dialética: frequentemente o dialético é
levado a remontar o mais longe possível aos princípios42, quer dizer para proposições
tão gerais e tão comumente admitidas que parecem inofensivas à tese em discussão.
A segunda explica-se por razões estratégicas: o adversário nada concedendo a
priori (uma vez que um adversário!), requer que tudo deva ser claramente dito, sob a
pena de a dedução não se concluir; pois o adversário revelará a falha43. Não há lugar
para o não dito nem para o evidente: o adversário não concede nada a priori, ele
defende sua tese. Por outro lado, a dedução dialética consiste em uma série de
questões que o adversário responde sucessivamente por sim ou não; o tempo lógico é
decomposto em uma série de momentos independentes, em certa medida, uns dos
outros, mesmo que sua ligação na continuidade geral da argumentação esteja
perfeitamente assegurada pela dedução construída pelo questionador. Assim é
sempre possível, em uma lide dialética, considerar a aceitabilidade de cada premissa
tomada à parte, e às vezes voltar atrás, para uma premissa mais rapidamente
concedida. Estas duas características da dedução dialética (ela deve ser fundamental e
completa) deduzem-se da situação dialética. Elas se completam para dar à
argumentação dialética a característica de uma longa cadeia de razões, de

40 Convém persuadir o mais eficazmente —mais, acrescentemos, sem trapacear. Ver


mais abaixo as observações sobre os “entimemas aparentes”: a deontologia retórica os
condena, como a deontologia dialética exclui os sofismas.
41 Dissimulação = χρνψις , ver Tópicos VIII, 1, 155 b, 26; 156 a, 7; a, 13; 157 a, 6.
42 Seria apenas aplicando uma das consequências da “dissimulação” assinalada por

Aristóteles em Tópicos VIII 1, 156 b, 28-30: nunca é preciso requerer do adversário


que concorde com a proposição que nos servirá de premissa, mas uma outra que seja
sua consequência dedutível.
43 Eis porque no mesmo capítulo VII, 1, Aristóteles aconselha ao questionador não

admitir qualquer ligação da dedução e mesmo usar um grande número de etapas


possíveis.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 18

encadeamento necessário e formalizável, partindo de premissas as mais fundamentais


e chegam até as conseqüências as mais afastadas.
A situação demonstrativa é inteiramente outra. Por certo na dedução “científica” o
tempo lógico também é recortado em uma série de asserções do mestre e aprovadas
pelo aluno. Porém tudo o mais é oposto nas duas situações: não se fala a um
adversário desconfiado que se refuta, mas a um aluno confiante ao qual se expõe os
conhecimentos verdadeiros. Formalmente, no entanto, estas situações opostas
culminam exatamente no mesmo ponto. A tendência fundamentadora da dedução
científica explica-se não pelo fato de que se tem o interesse de partir de premissas
menos conhecidas e mais distantes da conclusão (é exatamente o contrário: o mestre
tem interesse de partir das premissas as mais conhecidas e as mais próximas, ver
Tópicos VIII, 1, 135 b12-16), mas pela situação inicial ideal do discurso da ciência: o
estado de ignorância quase-absoluta do aluno. A completude da “demonstração” (em
geral tem-se o interesse de não omitir qualquer premissa ou qualquer etapa44)
explica-se pelo fato de que a parte da evidência deve ser a mais fraca possível na
demonstração, não (como na dialética) porque o adversário nada conceda, mas
porque o aluno deve adquirir uma ciência “racionalmente” //53/ apenas pela técnica da
verdade discursiva45, quer dizer passo a passo e, se possível, apenas por meio de
proposições que sabia inicialmente, quando nada sabia.
Vê-se, então, como situações opostas da ciência e da dialética têm uma mesma
consequência, a exclusão, tanto quanto possível, de qualquer recurso à evidência no
encaminhamento dedutivo: tudo deve ser geralmente explícito e, se possível, a partir
de princípios primeiros. Uma dedução demonstrativa e uma demonstração dialética
legítimas têm pois em comum o de serem igualmente válidas: a conclusão se deduz
necessariamente das premissas; é impossível (ao aluno ou ao adversário), caso a
dedução seja legítima, recusar a conclusão depois de ter aceito as premissas
(necessitas consequentiae); os alunos, por outro lado, ao contrário do adversário, não
podem recusar as premissas, elas são necessárias em outro sentido (necessitas
consequentis46). Em todo caso, a necessitas consequentiae comum às situações
científica e dialética47 explica que uma e outra tem servido de base ao formalismo, ao
qual se entregou Aristóteles, uma vez que ele elabora a teoria do atualmente nós

44 Ainda que, de fato, que o mestre possa subentender tal ou qual ligação evidente,
ver Segundo Analíticos I, 10, 76 b, 16-21.
45 Ver a primeira frase citada dos Segundos Analíticos: “Todo ensino e toda

aprendizagem racional (διανοητχη) vem de um conhecimento pré existente”. Um


escoliarca anônimo comente este διανοητιξη da seguinte maneira: “por oposição ao
que vem do conhecimento sensível” (ver Bonitz, 1955, 185 b, 3).
46 Segundo Analíticos I, 4, 73 a, 23; 73 b, 26.
47 Ver as definições dos Tópicos I, 1, 100 a, 25-27 e dos Primeiros Analíticos I, 1, 24 b,

19-21; e acima a nota 31.


Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 19

chamamos “silogismos”: a silogística nada mais é, como se pode mostrar48, do que um


teste universal da validade dos argumentos dedutivos que todos devem poder analisar
por meio de um número reduzido de figuras elementares válidas, as que Aristóteles
estudou nos Primeiros Analíticos.
Completamente outra é a situação retórica. Não se fala mais a um adversário e nem
a um aluno, mas aos cidadãos com os quais partilha-se um certo número de
conhecimentos, de convicções e de valores próprios da vida comum. A identidade
comunicacional entre o locutor e o auditor torna-os cúmplices das mesmas
evidências49. Por consequência, o que seria geralmente qualidade no caso da dialética
ou da ciência (explicitar todas as etapas, remontando às premissas as mais
fundamentais) tornar-se-á defeito (lentidão quase absurda) no caso da situação
retórica. É necessário e suficiente, para persuadir eficazmente, começar a dedução
pelas premissas as mais próximas, e é permitido saltar todas as etapas evidentes da
argumentação, precavendo-se para que o conjunto permaneça claro e que alguma
mediação omitida não seja controversa. Como anota Aristóteles (Retórica I, 2, 1357 a,
17-19; e II, 22, 1395 b, 22-27), remontar muito longe tornaria a argumentação
confusa, explicitar tudo tornaria loquaz e penoso.
Não remontar aos princípios, saltar as ligações, seriam defeitos graves de
argumentação epistêmica ou dialética, mas se tornam qualidades, do ponto de vista
da eficácia persuasiva. Não é, como frequentemente se diz, apenas pelos defeitos
(incultura, estupidez)50 do auditório popular da retórica que se deve o pequeno
número de liames das deduções retóricas. Aristóteles fala que “os auditores que não
têm a possibilidade de inferir por numerosos degraus de um ponto de partida
distante” (Retórica I, 2, 357 a, 3-4), esta impossibilidade deve-se, antes de mais nada,
à situação. A discursividade oratória é, por definição, oral e contínua (“macrologia”), o
que torna impossível qualquer recorte do tempo lógico: a argumentação formulada
frente a uma multidão interdita a descontinuidade pela qual se faz a dialética e a
ciência, nas quais a série de questões —ou de asserções— breves (“braquilogia”) tem

48 Ver Barnes (1981).


49 É o que mostra o exemplo de Aristóteles: “Para concluir que Dorieus recebeu um
coroa em recompensa de sua vitória, basta dizer: ele venceu a Olimpíada”; é inútil
agregar “na Olimpíada, o vencedor recebe um coroa, todo mundo sabe” (Retórica I,2,
1357 a, 20-21). Este “todo mundo” remete aos da Cidade na qual o orador forma uma
comunidade —e não o auditor ao mesmo tempo único e no entanto universal da
dialética. Não é o “todo homem”, fantasmático da dialética, mas é o co-cidadão; como
nota corretamente P. Ricouer (1986, p. 145), na retórica, “o orador parte das idéias
admitidas que partilha com [o auditório]” e “a argumentação transfere para as
conclusões a adesão acordada nas premissas”.
50 Ver Retórica I,2, 1357 a, 10-12; II, 21, 1295 b, 1-2 e III, 18, a, 16-18.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 20

por efeito fixar sucessivamente cada uma das premissas sem apelar à memória de
todos as ligações intermediários. //53/
Talvez exista mesmo uma razão ainda mais fundamental na qual a omissão do
evidente dá ao entimema uma eficácia persuasiva superior em relação às deduções
completas; talvez também o torne “mais claro e intuitivamente mais acessível”, como
diz Aristóteles (a propósito da superioridade da indução em relação à dedução,
Tópicos I, 12, 105 a16-17)51. Pois, ao omitir as premissas, a argumentação talvez dê
menos a conhecer as razões que fundamentam a conclusão, mas também dá mais
razões para se acreditar nela. Eis porque toda teoria que reconhece um lugar para a
certeza no estabelecimento da verdade recomendaria as deduções elípticas. Assim,
para Descartes, vale mais procurar omitir ao máximo os liames evidentes para poder
enlaçar uno intuitu uma cadeia mais longa e, assim, mais penetrar na verdade de sua
conclusão, sem apelar para as incertezas da memória dedutiva52. A incompletude, por
mais defeituosa que possa parecer em relação ao critério de formalização, parece
muito superior em qualquer situação na qual se valoriza a persuasão e a certeza.
Em suma, não é tanto da essência do entimema omitir uma premissa quanto é da
essência da dedução dialética ou científica exprimir tudo. Mas, é da essência do
entimema ser retórico e persuasivo, como é da essência da dedução científica
demonstrar, ou da dedução dialética refutar; e quanto mais conciso, mais eficazmente
se demonstra ou refuta, mais eficazmente se persuade. Neste sentido, a concisão
caracteriza muito bem o entimema, como Aristóteles recorda ao menos três vezes53 e
como o autor da Retórica para Alexandre o confirma54. Caracteriza-o nem pelo
acidente, nem essencialmente, o que é próprio, no sentido mesmo que Aristóteles da
ao termo “próprio” nos Tópicos (I, 5, 102 a 18-20): “é próprio o que, sem exprimir o
essencial da essência de seu sujeito, apenas a ele pertence e pode trocar-se com ele
em posição de um predicado do sujeito concreto”. Autores posteriores definiram,
então, o entimema por esta propriedade, não tinham então razão completa (uma vez
que o próprio é excluído da essência, logo da definição) nem verdadeiramente errado
(uma vez que, como a definição, o próprio é co-extensivo ao seu sujeito).

51 Sem dúvida as mesmas razões que tornam a indução mais clara do que a dedução
também tornam o entimema mais claro do que a dedução completa; a indução é mais
modesta em ratio essendi e mais prolixa em ratio credenti; inversamente as
inferioridades são as mesmas, sem dúvidas: a dedução é mais constrangedora e mais
eficaz contra os debatedores profissionais do que a indução (Tópicos I, 12, 105 a, 19-
20) e, agregamos, que o entimema retórico.
52 Ver Descartes, a regra III nas Regras para a direção do espírito.
53 Retórica I, 2, 1357a, 10-21; II, 22, 1395 b, 25-27; e III, 19, 1419 a, 18-19. (Ver

também II, 24, 1401 a, 4-5).


54 Ver a Retórica a Alexandre X, 1430 a, 35-39 (a propósito do entimema), XI,1430 b

4-6 (a propósito da máxima).


Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 21

Não se dá o mesmo com o critério de validade (lógica). As deduções legítimas são


necessariamente válidas quando são epistêmicas e dialéticas: pois a situação de
transmissão do saber exige que, a cada passo, o aluno apenas admita o que se deduz
necessariamente do que precede (esta necessidade deduz-se das regras da técnica
epistêmica). Da mesma maneira, a situação dialética exige que se encontre as
premissas aceitáveis pelo adversário, que refutarão necessariamente sua tese (esta
necessidade deduz-se das regras da técnica dialética) —salvo na trapaça, que recorre
às deduções ilegítimas, às “refutações sofísticas”. Em compensação, as deduções
legítimas são apenas acidentalmente válidas quando se trata de retórica: o que
significa que se pode argumentar retoricamente de maneira concreta sem argumentar
de maneira válida55. Isto aparecerá mais claramente caso se incline para a segunda
definição, mais precisa, do entimema.

O entimema como dedução a partir do verosímel ou dos


signos
Esta segunda definição apoia-se na natureza das premissas do entimema e enuncia
a diferença específica do silogismo retórico, em comparação com o demonstrativo e o
dialético: “o entimema é a dedução a partir do verosímel ou dos signos (Primeiros
Analíticos II, 27, 70 a10; e Retórica I, 2, 1357 a32)56. Esta definição é desenvolvida em
um capítulo dos Primeiros Analíticos e em um outro da Retórica.
O conceito de “verosímel” (ειχος) remonta aos primeiros tempos da retórica
siciliana57. Sabe-se que Tísias e Corax, que foram os primeiros a codificar a
apresentação eficaz da argumentação nos tribunais, elaboraram uma teoria do

55 Esta tese é aqui mostrada a propósito apenas da dedução. Mas seria evidentemente
(mais) fácil mostrar que mesmo se dá para a vertente da argumentação. Se uma
indução deve ser completa para ser válida, logo “científica” (Primeiros Analíticos II,
23), a argumentação, por exemplo, utilizada na retórica (estudada por Aristóteles nos
Primeiros Analíticos II, 24 e Retórica II, 20) distingue-se justamente da indução
naquilo que não é completa (ver Primeiros Analíticos II, 24, 69 a, 15-19) e não é pois
formalizável.
56 Ver também Retórica I, 3, 1359 a, 7-8: “Os tekemeria, os verosímeis e os signos são

as premissas retóricas. De uma maneira geral, de fato, uma dedução se conduz a


partir de premissas, e o entimema é a dedução conduzida a partir de premissas
supraditas”. Vê-se que o tekemerion é uma espécie de signo tomado no sentido
extenso. Em Retórica II, 25, 1402 a, 13-24, Aristóteles enumera quatro fontes para os
entimemas: o verosímel (eikos), o exemplo, o tekemerion e o signo. Alhures (Retórica
I, 2, 1356 b, 2-25 e Problemas XVIII, 919 b, 27-36), o exemplo (παρδιγµα) é oposto ao
entimema como a indução para a dedução, mas pode também vir a ser, notadamente
na refutação, a fonte de entimemas (é o que se chama contra-exemplo) como nota
Kannedy (1991) n. 259, ad. loc. p. 221.
57 Ver Navarre (1990, p. 9 e seg.) e Kennedy (1980, p. 20 e seg.).
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 22

verosível que Platão e Aristóteles58 conservaram duas versões muito próximas. Depois
todos os autores do Tratado reservaram um lugar importante à teoria do eikos59. Dos
quais os discursos judiciários de Antifon contêm boas aplicações. Assim, na primeira
Tetralogia, o acusador passa em revista e absolve, ponto por ponto, todas as pessoas
que poderiam ser suspeitas, salvo o acusado; não é verosímel que os assassinos sejam
bandidos, pois teriam roubado os bens dos cadáveres etc.. O acusado retoma em
seguida os mesmos argumentos para apresentar outros aspectos: “que a vítima não
fora roubada nada prova: se os malfeitores não tiveram tempo para isto; se eles
fugiram graças aos gritos dos passantes, seria sabedoria de sua parte e não loucura,
preferir a saúde ao ganho” (II, 6) etc. Estas argumentações ilustram o que Aristóteles
denominou “verosível absoluto”, diverso do “verosímel relativo”60 que o mesmo texto
de Antifon nos dá um belo exemplo (II, 6): “aqueles que apenas odeiam a vítima
cuidam menos do que eu —e há muitos— não são, com mais verosimilhança do que
eu, seus assassinos? É evidente para eles, de fato, que a suspeita recairia sobre mim,
enquanto que eu bem sabia que seria incriminado em seu lugar”61.
Todos estes exemplos, assim como os dado por Aristóteles (II. 25, 1402 b 24sg),
mostram que a teoria do eikos é, de início e antes de tudo, desenvolvida nos quadros
da retórica judiciária. O eikos consiste em apoiar, para imputar um acto a qualquer
um ou para o desculpar, sobre o que teria feito, na mesma circunstância, aqueles aos
quais se endereça. É apenas uma definição mais geral que propõe a Retórica para
Alexandre62: “um eikos é um enunciado que se apoia nos exemples presentes no

58 Platão, Fedro 273 b-c; Aristóteles, Retórica II, 24, 1402 a, 13-24.
59 O Fedro, ecoando a retórica dos antigos Tratados, notadamente o de Teodoro de
Bizâncio, faz dos eikota a quarta parte do discurso judiciário (266 e). Sobre a prática
oratória e a teoria do eikos à época de Platão e o juízo que elas inspiraram ver o texto
muito significativa de Fedon 92 c e seg.; ver também Timeu 40 e, 2; Teeteto 162 e 163
a.
60 Sobre esta distinção e “o entimema aparente” ao qual dá lugar, ver Retórica II, 24 a,

3-24. Segundo este texto, o recenseamento deste modo de argumentação remonta à


Technè de Corax.
61 Encontrar-se-á em nosso dias outros exemplos dessa “verosimilhança de segundo

grau” nas histórias policiais, que as Tetralogias de Antifon são, de certa maneira, o
ancestral: se X é tão verosimelmente culpado, ele é verosimelmente inocente, pois ele
sabia muito bem que as verosimilhanças seriam contra ele. Notemos que certos
romances policiais têm mesmo uma estrutura que se aparentaria com uma
“verosimilhança de terceiro grau”: S sabia que parecerá inocente quanto mais parecer
culpado, mas precisamente ele é o culpado (ver L’heure zéro de A. Christie).
62 A Retórica a Alexandre mantém os eikota como uma das cinco “provas lógicas”

(dizendo de outra maneira, cinco tipos de argumentação): os “verosímeis", os


“exemplos”, os tekemeria, os entimemas, as “máximas”, os signos e as refutações
(ελεγχοι).
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 23

espírito dos auditores” (VII, 1428 a 26-27). O autor explica que o orador deve sempre
perguntar-se se seus auditores podem ter consciência de eles mesmos terem provado
os sentimentos, desejos, emoções para os quais apela para explicar, justificar e
conjurar a conduta humana. É isto pois, em geral, o que define o quadro do eikos
antes de Aristóteles: o que cada um, dada a experiência que tem de sua própria
conduta, pode conjecturar sobre a conduta humana nas circunstâncias dadas.
Aristóteles não é exceção. A maior parte dos exemplo que toma para eikos são
extraídos //55/ da conduta. Entretanto, ele alargará o quadro do eikos, o que lhe
permite cobrir o conjunto do campo da argumentação retórica. Mesmo assim, no
entanto, o eikos conserva as duas características que lhe foi dado pela retórica antiga:
ser um enunciado que concerne a um domínio (como é a conduta humana) que não é
governado pela necessidade, ou nada absolutamente previsível, mas na qual se
observa, todavia, regularidades; ser um enunciado que se apoia na experiência para os
quais se endereça afim de que eles infiram espontaneamente, das circunstâncias
dadas, a ocorrência de um ser ou de um evento ignorado. O “verosímel” (eikos) é
assim definido (Primeiros Analíticos II, 27, 70 a 2): “uma premissa geralmente
admitida (εδπξος)” que exprime “o que se sabe (ιδασιν) chegar ou não chegar, ser ou
não ser, a maior parte do tempo (ως επι το πολν)”.
As diferenças entre o signo e o verosímel são definida em pouco mais longe:
enquanto que signo é uma proposição geralmente admitida ou necessária (70 a8-9) —
para reservar o caso do telmerion— o verosímel é sempre uma premissa geralmente
admitida (70 a4); enquanto o signo exprime uma ligação (necessária ou admitida)
entre duas coisas ou dois estado de coisas, o eikos exprime apenas “o que se sabe
chegar e não chegar, ser ou não ser, o mais frequentemente” (70 a 4-6). Os exemplos
(“o que inveja, detesta”; “quando se é objeto de desejo, se ama”) são extraídos da
conduta humana, mas a definição é mais ampla e apela à noção de “a maior parte do
tempo” que tem um papel central na física aristoteleciana. Sabe-se que, para
Aristóteles, a natureza no mundo sublunar não obedece a qualquer necessidade
absoluta, mas a uma simples regularidade, nem necessária nem constante, que é o
substituto, o que ele designa pela expressão “a maior parte do tempo”63. Compreende-
se, assim, como esta noção pode servir-lhe para generalizar a do eikos, que seus
predecessores em retórica acantonaram na conduta humana: sua física deu-lhe os
meios para pensar o contingente parcialmente previsível da conduta humana como
um caso particular dos eventos do nosso mundo.
O texto da Retórica (I, 2, 1357 a 34 seg.) apresenta alguma precisão ao eikos: “O
verosímel é o que chega a maior parte do tempo, não absolutamente como certos

63 Ver Física II, 5, 196 b, 6; Metafísica E, 30, 1025 a, 15; E, 3, 1026 b, 24; 1027 a, 27
etc.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 24

definem, mas o que, entre as coisas que podem ser de outra maneira do que são, se
encontra ser, em relação às circunstâncias nas quais ele é verosímel na relação do
universal no singular”∗. Texto difícil que se pode compreender assim: o verosímel é
uma proposição que trata do domínio contingente da ação ou da conduta humana (ou
da física sublunar) e que exprime sob uma forma universal, como se fosse necessária e
constante, o que de fato nunca chega a ser nem necessariamente; a precisão “não
absolutamente”, permite compreender o que diferencia o simples enunciado de um
evento repetido ou de um estado de coisas considerado habitual (e. g. “o homem é um
lobo para o homem”; “todos os dias são quentes”), de uma proposição denominada
eikos suscetível de servir de premissa a um raciocínio (e. g. “os homens detestam
quando são invejosos”; “os homens amam quando são objeto de desejo
(φιλειϖ τονς ερωµενονς)”; “faz calor durante a canícula”64): o verosímel exprime um
estado de coisas ou um evento reconhecido como frequente não por ele mesmo, o que
nada quer dizer, mas pelas condições ou nas circunstâncias dadas. //56/
Mas, o ponto essencial é que o eikos exprime não esta regularidade mesma, mas o
que se estima ser uma aos olhos para os quais se endereça65. É o que explica o uso do
eikos na Poética, na qual o eikos também se opõe ao necessário66 e designa a idéia que
o autor da tragédia deve ter sobre o que o espectador tem para chegar geralmente em
tal ou qual circunstância. Vê-se muito bem, também na Poética, como o eikos
concerne, como na Retórica, a dois tipos de regularidades contingentes, aquela das
condutas humanas e aquela dos eventos deste mundo onde vivem os homens: nestas


Na tradução brasileira devida a Antônio Pinto de Carvalho, lemos: “Pois que o verosímil
é o que acontece as mais das vezes, mas não absolutamente, consoante a definição de
alguns; mas é também o que, entre as coisas contingentes se acha, a respeito daquilo em
relação ao qual é verosímel, na mesma relação que o universal para o particular” (Arte
Retórica e Arte Poética. S. Paulo: Ediouro, s. d., 14ª edição. N. T.).
64 Este último exemplo é tomado da Metafísica E, 2, 1026 b, 32-34. Os dois outros são

do texto dos Primeiros Analíticos já citados (II, 27, 70 a, 6); mas a Retórica faz um
uso constante de semelhantes regularidades psicológicas: tem-se exemplos em todas a
linhas, ou quase, deste pequeno “Tratado das paixões”) que constitui a Retórica II, 1-
11. A Ética a Nicômaco frequentemente proporciona observações semelhantes da
expressão “a maior parte do tempo”, e. g. III, 1, 1110 a, 32; 1161 a, 27; IX, 2, 1164 b, 31
etc.
65 Ver o texto já citado dos Primeiros Analíticos II, 27, 70 a, 2-3: “o que se sabe chega,

etc.” Ver também este outro texto da Retórica II, 25, 1402 b, 14-16, que define os
entimemas conduzidos a partir dos verossímeis “como sendo os que procedem a
partir do que chega em realidade ou parece chegar a maior parte do tempo”
(εχ επι το πολν η οντον η δοχονντων).
66 Sobre esta oposição na Poética, ver 7, 1425 a, 12; 9, 1451 a, 28; 9, 1451 a, 38, b,9, 35,

10, 1452 a, 20, 24, 15, 1454 a, 34, 36. Levantamento estabelecido com o auxílio do
“Index des notions” de R. Dupont-Roc e J. Lallot (1980).
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 25

duas técnicas discursivas, que são a retórica e a poética, o autor (da tragédia ou do
drama) deve agenciar discursivamente as condutas humanas no curso do mundo, de
sorte que elas apareçam conforme a experiência que tem o destinatário (a multidão
reunida de espectadores ou a de “juizes”), em um caso para que seja transtornado
(como se os eventos tivessem sido verdadeiramente como apresentados), no outro
caso para que seja persuadido (que eles são verdadeiramente tal como apresentados).
Mas, esta distinção, essencial para a teoria do eikos na Retórica, entre a
regularidade empírica “em si” e “para o auditor”, talvez permita também resolver uma
questio vexata: o eikos designa uma “probabilidade objetiva” ou “subjetiva”, uma
modalidade de re ou de dicto? Na realidade, três níveis são sem dúvida destinguidos,
que correspondem ao mesmo tempo aos três sentidos da modalidade “não
necessária”: o do evento que se produz “na maior parte do tempo”, o do eikos, o da
premissa “endoxal” (geralmente admitido). No primeiro nível, a expressão “a maior
parte do tempo” remete incontestavelmente a uma regularidade empírica (de re).
Mas, o eikos mesmo não é o simples enunciado de uma tal regularidade, caso
contrário não seria uma premissa retórica, mas um enunciado físico. O que constitui o
eikos como tal, é o enunciado de tal regularidade sob uma forma universal e do ponto
de vista do conhecimento das circunstâncias aos quais se endereça. Não é, por
exemplo, a asserção (verdadeira) “[a maior parte do tempo], faz calor durante a
canícula”, mas o enunciando “então sendo canícula [circunstância dada], você sabe
como faz calor nesta época [sendo dada a experiência de canícula que você tem]”. O
eikos, é o enunciado daquilo que o auditório pode razoavelmente chegar considerando
uma parte de seu conhecimento das circunstâncias do evento, e, de outro lado, sua
experiência sobre os homens e o mundo. Donde o fato de que a premissa de uma
dedução enuncia um eikos é necessariamente “endoxal” (e este é o terceiro nível): ela
não é científica, apenas expressa a opinião do maior número. Em suma, reportando à
suas circunstâncias o evento se produz “a maior parte do tempo” (não sempre, nem
necessariamente); reportando ao conhecimento que os auditores têm, o enunciado do
evento, ainda que sob uma forma universal, aparece-lhe como estando frente ao que
razoavelmente se produz (é “verosímel” e não necessário); reportando ao uso que faz
o orador, o enunciado não é necessariamente verdadeiro, é apenas geralmente
admitido pelos que ele se endereça. Mas, é porque também é refutável por outro
orador, aquele que tem o discurso contraditório frente ao mesmo auditório, poderá
sempre encontrar contra-exemplos67.
Tudo isto não impede de ser válido o entimema fundado sobre o eikos. O que não é
//57/necessário, é o eikos mesmo e, em consequência, a conclusão que se tira
(necessitas consequentis), mas não a ligação entre aqueles que permanece necessário
(necessitas consequentiae). O mesmo se dá com entimema fundado em um signo.

67 Ver, por exemplo, a discussão e as referência de E. Ryan (184), p. 59-66.


Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 26

Parece claramente que o uso e a teoria do “signo” na retórica, notadamente no


discurso judiciário, remonta à época dos Sofistas. A distinção entre “signo” e
tekmerion talvez date de Antifon e os outros oradores da época também conheciam a
distinção entre os signos (ou os tekmeria) e as “verosimilhanças”68. Sem dúvida
Aristóteles, neste ponto como em outros, retomou este ponto dos Tratados e propôs
definições rigorosas.
Os Primeiros Analíticos (II, 27, 70 a,7-9) dão uma definição de signo utilizada no
entimema: “O signo é uma premissa demonstrativa, seja necessária seja geralmente
admitida69 (ενδοξος), se ele existe, a coisa existe, ou tem lugar, a coisa tem lugar,
antes ou depois; tal é o signo”. A análise precisa do signo no texto da Retórica (I, 2,
1357 b,10-21) é feita segundo dois critérios: a modalidade que liga o signo à coisa
(necessária/não necessária) e a relação de extensão entre elas (do universal ao
singular, do singular ao universal). A combinação destes dois critérios permite, em
realidade, distinguir três tipos de signos: aquele que vai do singular ao universal e que
nunca é necessário, e é pois refutável (exemplo: “um signo que os sábios são justos, é
que Sócrates foi justo”). O que vai do universal ao singular divide-se em duas
espécies: o que não é necessário e é pois refutável (exemplo: “um signo que tem a
febre, é que sua respiração é rápida”); e o que é necessário, pois só é “irrefutável
(αλντον), se é verdadeiro” (1357 b,17), que Aristóteles denomina (1357 b, 3-4 e 16),
depois de outros sem dúvida70, tekmerion (exemplo: “um signo que ela deu à luz, é
que tem leite”).
Encontra-se exatamente a mesma teoria e a mesma classificação, ilustrada por
exemplos muito próximos, nos Primeiros Analíticos (II, 27). A única diferença é que
as três espécies são relacionadas com as três figuras do “silogismo”, para o qual
Aristóteles fez a teoria no primeiro livro. “Um signo pode ser tomado em três
sentidos, correspondendo à posição do termo médio nas figuras”. O signo necessário
(mais a premissa conhecida e subentendida, 70 a,19 e 25) dá um silogismo “irrefutável
se é verdadeiro” (70 a,30). O exemplo é o mesmo da Retórica: “Um signo de que ela
deu à luz, é que ela tem leite”. Tem-se, assim, um silogismo da primeira figura, cuja
conclusão é singular (“esta mulher deu à luz”) e cujo termo médio (“tem leite”) é
sucessivamente sujeito na maior —(Toda mulher que tem leite deu à luz) e predicado

68 Sobre a maneira de refutar um entimema fundado em um eikos, ver Retórica II, 25,
1402 b, 24-1403 a, 1. Notemos também que o orador pode se servir do fato de que há a
verossimilhança contra ele. Ver o topos II da Retórica II, 23, 1400 a, 6 – 15:
“inverossímel mas verdadeiro, eu não teria acreditado caso eu não tivesse visto com
meus próprios olhos” etc..
69 Ver Platão, Fedro 266 e.
70 Lembremos que, como mostrou J. Brunschwig (1967, nota 3 p. 113), uma

proposição ενδοξος, enuncia uma “idéia admitida” (por opinião comum ou


esclarecida) mais do que “provável”.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 27

na menor (“esta mulher tem leite”). O signo não necessário, adicionado da premissa
subentendida, dá nascimento a dois pseudos silogismos, respectivamente da terceira
figura (o termo médio é duas vezes sujeito: “Pitacus é sábio”, “Pitacus é justo”, logo
“os sábios são justos”) e da segunda figura (o termo médio é duas vezes predicado; o
exemplo aqui é: “toda mulher que deu a luz é pálida”, “esta mulher está pálida”),
segundo a ligação entre os termos do signo //58/ correspondente vá do singular ao
universal (“um signo que os sábios são justos, é que Pitacus é justo”) ou do universal
ao singular (“um signo de que ela deu à luz, é que está pálida”).
A comparação atenta destes dois textos nos dá uma das chaves da teoria do
entimema. Pois, se Aristóteles nos diz que os três signos dão origem à três
argumentações, que uma só, a que repousa no tekmerion, é um silogismo stricto
sensu, nos diz no entanto que as três argumentações são verdadeiros entimemas.
Compreende-se porque. De fato, seja a seguinte argumentação: “Toda mulher que deu
à luz é pálida; ora, ela está pálida; logo deu à luz”.
Há aí duas maneira de considerar. A primeira análise, “análise lógica”. Trata-se
evidentemente de uma argumentação não válida, um pseudo silogismo da segunda
figura: para que a conclusão seja cientificamente estabelecida, é necessário que ela
repouse seja na maior (evidentemente falsa) segundo a qual “toda pessoa pálida deu à
luz”; seja em uma outra menor (“esta mulher deu à luz”), mas então a relação entre a
menor e a conclusão (“ela está pálida porque deu à luz”) não seria mais aquela do
signo do que ela indica! Com esta menor transformada, tem-se muito mais um
verdadeiro silogismo (“toda mulher que de à luz é pálida, ora esta mulher deu à luz,
então é pálida”), cujo termo médio indicará não um signo, mas, como em toda
“dedução científica”, o porquê, a causa: dar à luz causa a palidez.
Segunda análise, “análise retórica”. Trata-se evidentemente de um verdadeiro
entimema —em oposição ao que Aristóteles denomina um entimema “aparente”71 —
que é perfeitamente legítimo utilizar: “O signo que ela deu à luz, é que está pálida”,
diz o orador que tenta persuadir seu auditório de que a mulher aqui presente acaba de
dar à luz e que, por isto, se serve de todos os signos à sua disposição. Sem dúvida, isto
não prova rigorosamente que ela deu à luz, mas é, no entanto, um argumento
aceitável, ainda que refutável. Aliás, é o que o orador oponente se esforçará por
mostrar dizendo, por exemplo, que esta mesma mulher não tem filho; esforçar-se-á de
o fazer pela argumentação de mesmo tipo72: “não creia em meu adversário quando ele

71 A teoria dos tekemeria deve ter sido feita pelos primeiros autores dos Tratados
retóricos, que lhe atribuíram a terceira parte do discurso judiciário, como testemunha
uma passagem de Platão, Fedro 266 e.
72. “Uma vez que uma argumentação pode ser uma verdadeira dedução ou não o ser,

mas parecer simplesmente o assemelhar, ela pode ser um verdadeiro entimema ou


Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 28

diz que o signo de que esta mulher está no puerpério, é que está pálida; de fato, se ela
está pálida, é simplesmente porque a acusação que fazem a ela magoa-a
profundamente etc.”. É o mesmo entimema que o precedente, fundado em um signo
não necessário do universal ao singular: [maior subentendida: todo mundo sabe
muito bem que “ser profundamente magoado empalidece”73]; menor: “esta mulher
está pálida”; conclusão: “esta mulher está profundamente magoada”. O que conta,
neste tipo de entimema, é que a relação entre os termos permite estabelecer a
conclusão, não uma relação de causalidade entre as coisas às quais estes termos
remetem, mas uma relação de indicação: a palidez é o signo (não necessário) da
emoção, mesmo que a emoção seja a causa (necessária) da palidez.
Estas duas análises permitem separar com nitidez uma oposição entre dois modos
da argumentação legítima: uma, é utilizada por aquele que sabe para explicar a
estrutura do real segundo a ordem de suas razões ao que ignora (argumentação
epistêmica); a outra, é utilizada por aquele que pesquisa, nas estruturas do real, as
manifestações presentes indiscutíveis //59/ que permitem concluir a existência de uma
coisa (ou de um estado de coisas) contestada (argumentação retórica). O caráter
heurístico desta última argumentação explica porque ela e não outra é utilizada de
fato nos tratados científicos de Aristóteles, os quais se sabe que ele não as apresentam
segundo a ordem “sintética” preconizado pelos Analíticos. Consideremos, por
exemplo, o início da Metafísica: “Todos os homens desejam, por natureza, o saber.
Um signo (σηµειον) é seu prazer nas sensações…” Entimema perfeitamente rigoroso:
o prazer que os homens provam em certos modos de saber como a sensação é o signo
de sua tendência natural ao saber em geral74. Considerada “formalmente”, esta
argumentação seria evidentemente um sofisma: “Toda sensação é um saber; ora,
todos os homens tem uma tendência natural para sentir; então, todos os homens têm
uma tendência natural ao saber”.
O que distingue, pois, o entimema fundado em um signo da dedução científica ou
dialética, é uma relação de indicação expressa em uma premissa, e esta relação se faz

não ser, mas simplesmente parecer; isto é necessário, já que o entimema é um tipo de
dedução” (Retórica II, 24, 1400 b, 37-40)
73 Sobre a maneira de refutar (λνσις) um entimema fundado no signo, ver Retórica II,

25, 1403 a, 2-4. Aristóteles nota que os entimemas fundados nos signos se refutam
mesmo se são reais (νπαρχοντα); e ele remete à sua demonstração dos Primeiros
Analíticos que prova que não se integram à teoria silogística. Em outras palavras, um
verdadeiro signo, sobre o qual se fundamenta um verdadeiro entimema, é refutável
utilizando a falha do pseudosilogismo ao qual ele se aparenta.
74 Aristóteles anota como exemplos típicos de signos as relações entre estados do

corpo e da alma: “É possível julgar a partir das aparências corporais, caso se admita
que as afecções naturais provocam uma mudança simultânea no corpo e na alma”
(Primeiros Analíticos II, 27, 10 b, 6-8).
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 29

(ao contrário, e. g. de uma relação de causalidade) segundo a ordem da pesquisa, quer


dizer do signo do que ele indica (talvez) —o que é claramente o ponto de vista dos
auditores aos quais se endereça o discurso75. O caráter implícito ou não das
premissas não entra em consideração76.. Ao contrário, Aristóteles nota mesmo aqui
(Primeiros Analíticos 70 a23-25): “caso se exprima uma única premissa, tem-se um
signo, caso se exprima a outra, tem-se uma dedução” —entendido aqui em sentido
extenso compreendendo os entimemas. Dizendo de outra maneira, quando o orador
diz simplesmente “ela está pálida, signo de que ela está magoada”, ele enuncia um
signo; mas quando diz algo como “você sabe muito bem que as pessoas magoadas
ficam pálidas; olhe esta mulher, como ela está pálida; convirá que ela está
seguramente magoada”, ele argumenta dedutivamente e produz um entimema. Logo,
a legitimidade (ou correção) do entimema, por não depender da omissão de uma
premissa, não reside em sua validade formal; e é por isto mesmo que ocorre
utilizações “fraudulentas” (ilegítimas) do signo: é o caso do orador que tenta fazer
passar sua argumentação por uma dedução necessária (um silogismo stricto sensu),
ou quando sua conclusão, que só tem valor particular, para uma concepção universal.
(Aristóteles assinala essas falcatruas a propósito do signo quando faz a lista dos
“entimemas aparentes” 77)
Ao contrário da diferença entre “silogismos” e “sofismas” que é formalizável, a
existente entre entimemas legítimos e ilegítimos não é formal 78e não reside na
validade de uns e invalidade de outros. Ela não reside nem mesmo na simples eficácia
persuasiva, pois se pode enganar multidões persuadindo-as por meio de
argumentações inadequadas (que pretendem, por exemplo, provar mais do que
podem). Um entimema é legítimo se expõe ao auditor —sem pretender muito mais—
as boas razões que se tem para admitir a conclusão, dadas as premissas —o que não
significa que estas razões sejam constrangedoras: o argumento razoável não é
irrefutável. Da mesma maneira que em uma dedução demonstrativa é
verdadeiramente demonstrativa se a conclusão se tira necessariamente das premissas

75 Há aqui, por outro lado, um entimema implícito fundado em um eikos: “caso se


concorde fazer do prazer a realização de uma tendência natural; ora os homens
provam o prazer ao sentir” etc.
76 Pode-se dizer (ver MacBurney, 1936, p. 56) que em um “silogismo científico” a

menor explica o porquê de um fato (o da conclusão) é verdadeiro (ratio essendi),


enquanto que em um entimema a menor explica o porquê de uma opinião (a da
conclusão) é crivel (ratio cognoscendi). Esta fórmula é verdadeira em todos os casos
de entimema fundado em um signo.
77 Ver Retórica II,24, 1401 b, 9 seg.; 4º topos, o do signo.
78 É o que observa Ryan (1984, p. 74), após uma análise comparativa dos capítulos II,

23 e 25 da Retórica: não há regra de inferência que possa ser tirada da distinção entre
verdadeiros entimemas (II, 23) e aparentes (II, 24).
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 30

que, por outro lado, fornecem ao aluno a explicação, uma dedução retórica é
verdadeiramente persuasiva se ela fornece ao auditório os motivos razoáveis para
aderir à conclusão. O que não impede de o entimema, o verdadeiro entimema, ser
forçosamente sempre refutável 79. (salvo, é claro, no caso //60/ particular no qual o
signo é um tekmerion) porque é da essência do raciocínio retórico ser discutível80.
De fato, permanece claramente um caso, justamente o do tekmerion, no qual o uso
do signo no raciocínio dá lugar a um entimema correspondente a um silogismo, o da
primeira figura: “o signo que ela pariu, é que ela tem leite”. Isto não significa de
maneira alguma que o entimema seja um silogismo da primeira figura. Aristóteles
escreve somente: “o signo pode ser considerado de três maneiras, exatamente como o
termo médio nas figuras [do silogismo], seja como na primeira, seja como na segunda,
seja como na terceira” (70 a, 11-13). Consideremos pois uma “dedução” (=um
entimema) fundado sobre o signo necessário e o “silogismo” (demonstrativo) da
primeira figura que lhe corresponderia:

Entimema (silogismo retórico) Silogismo demonstrativo (1ª figura)


Toda mulher que tem leite, deu à luz Toda mulher que deu à luz tem leite
Esta mulher tem leite (signo) Esta mulher deu à luz (causa)
Então, ela deu à luz Então, ela tem leite

Por ser dotado de sua maior expressada, o signo forma um entimema completo;
mas, por mais completo que seja, por mais bem formado e válido que seja, continua
sendo retórico e não científico, pois o termo médio nada explica, como deveria fazer
se a dedução fosse “demonstrativa”. Limita-se a dar um argumento irrefutável (um
tekemerion) que permite concluir (necessariamente) a existência de um estado de
coisas não perceptível (o parto) nas circunstâncias nas quais tem lugar o discurso.
Para obter um “silogismo científico”, deve-se fazer aparecer um termo médio que dê
ao aluno a razão explicativa de um fenômeno e não apenas a razão para acreditar
em sua existência: o leite é causado pelo dar à luz e é aliás o que explica que seja o
signo (infalível) deste. Vê-se pois que, quando o signo é um tekmerion, ele é signo de
uma coisa que por seu turno é o mais frequentemente a causa de sua existência. Eis
porque Aristóteles pode escrever a propósito do tekemerion: “a palavra tekmerion é

79 Por uma contra-dedução, ou mais simplesmente uma objeção (ενστασις), ver


Retórica I,1, 1355a, 29-36 e 2, 1357 a, 4-7.
80 A retórica fundamentada sobre a possibilidade da oposição de dois logoi antitéticos,

ver Retórica I, 1, 1355 a, 29-36; e 2, 1357 a, 4-7..


Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 31

dada ao que nos faz saber (ειδεναι) e isto é precisamente o caso do termo médio”
(Primeiros Analíticos, II, 27, 70 b, 2).
O signo e o tekmerion têm em comum expressar um mesmo tipo de relação de
indicação (inversa da relação causal). Mas, estes dois tipos de signos (no sentido
extenso) distinguem-se das premissas do entimema: “o signo é uma premissa
demonstrativa, seja necessária seja geralmente admitida” (Primeiros Analíticos, II,
27, 70 b, 7-8). Se a premissa é um signo comum, ela é “endoxal”, do mesmo modo que
um eikos ou uma premissa dialética. Se a premissa é um tekmerion, ela é necessária,
no mesmo sentido de uma premissa científica (o orador que tem sucesso em construir
um argumento sobre uma tal premissa irrefutável marca um ponto seguro sobre seu
adversário 81). Mas as modalidades dos entimemas são diferentes: apenas o entimema
fundado no signo (stricto sensu) não é necessário (necessitas consequentiae),
enquanto que aquele fundado em um eikos é também necessário quando o fundado
em um tekmerion ou em uma dedução (dialética ou científica). //61/
Logo, vê-se o desembaraçar destas análises dos maus critérios para se distinguir os
entimemas entre os argumentos dedutivos e um bom. Os maus critérios recaem sobre
a modalidade, quer seja a das premissas ou da dedução mesmo: certos entimemas
corretos estão fundamentados em premissas necessárias (tekmeria), outros em
premissas “endoxais” (os outros); alguns entimemas corretos são deduções não
necessárias (formalmente válidas, os fundados nos signos), outras são necessárias
(formalmente válidas). O bom critério concernentes às premissas é que elas sempre
adotam o ponto de vista do auditor: o que conta, para o orador, é construir
argumentações cujos pontos de partida correspondem ao ponto de vista do auditor
na questão disputada. Em todos os casos, trata-se, de fato, de fazer com que o
auditório admita a existência de um estado de coisas ausente (futuro e pois incerto em
uma arenga; presente mais discutível em um discurso epidítico; passado, mas oculto
em um discurso de defesa). Em todos os casos é preciso apoiar-se no que a situação
presente para o auditório, e, em outro, sobre uma premissa que possa estabelecer um
liame existente, aos olhos do auditório, entre esta situação e o estado de coisas (ou o
evento) disputado. Se o orador apoia-se na experiência da situação presente que ele
imputa ao seu auditório, da qual o estado das coisas (ou o evento) disputado aparece a
maior parte do tempo como uma de suas consequências, ele deduz o que está em
questão a partir de um eikos; se, ao inverso, apoia-se na situação presente para
construir a ligação existente, para seu auditório82, com o estado de coisas (ou evento)

81 Sobre a irrefutabilidade dos entimemas fundados nos tekemeria, ver Retórica II,
25, 1403a, 9-14, em particular: “Se é evidente que o fato é real e que é um tekemeria,
então a tese adversa torna-se irrefutável”
82 Observemos, de fato, que, para Aristóteles, como o eikos, o signo enuncia menos

uma ligação natural considerada nela mesma do que uma ligação admitida por
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 32

em disputa a partir de como se fosse seu princípio, ele deduz o que está em questão a
partir de um signo. Da mesma maneira, pois, que Aristóteles reagrupou todas as
“provas pelo logos” (as argumentações) em dois grandes gêneros (indutivo e
dedutivo), ele reagrupou todas as argumentações dedutivas utilizadas na retórica em
dois grandes gêneros: em todos os casos em que se busca persuadir dedutivamente
seu auditório quanto a uma tese, é preciso apoiar-se em alguma coisa particular que é
dada ao auditório pela situação presente e alguma coisa geral que faça parte do
alicerce das evidências partilhadas (verosimilhança ou signos). E, então, seja a
proposição geral que servirá para remontar da situação presente àquela que se trata
de estabelecer, contrariamente à ordem natural (caso do signo), seja a que servirá a
descer da situação presente àquele que se trata de estabelecer, conforme a ordem
natural (caso do eikos).
A dedução retórica (entimema) não é exceção. Ela obedece essencialmente às
mesmas exigências formais da dedução dialética e científica. Como estas, apoia-se em
verdades supostas admitidas pelo interlocutor para fazê-lo admitir uma outra
verdade; como elas, visam aumentar o saber (ou as crenças) do outro partindo ao
mesmo tempo do estado atual de seu saber (ou de suas crenças) e do saber (ou da
crença) que não podem deixar de ser as suas em uma dada situação interlocução.
Encontra-se somente que o quadro da argumentação e as situações de interlocução
fazem variar o tipo de saber (ou de crença) requerido (ou suposto) naquele ao qual se
endereça. A dedução demonstrativa apoia-se no saber possuído pelo aluno e ele se
reduz ao que já está //62/ demonstrado em um dado momento da transmissão dos
conhecimentos e ao que, desde o princípio, ele não pode ignorar. A dedução dialética
apoia-se nas opiniões admitidas pelo adversário e elas reduzem-se ao que já se admite
em um dado momento da disputa e ao corpus de convicções às quais os homens em
geral dão seu assentimento. A dedução retórica apoia-se nas opiniões que o orador
estima estar “do espírito” (εν ϕνµϖ) da multidão à qual se endereça e que se reduzem
ao estado de sua informação em um dado momento e ao corpus de convicções aos
quais os homens desta comunidade em geral dão seu assentimento.
A argumentação talvez seja co-extensiva à existência da linguagem, mas a
codificação da reflexão sobre a argumentação remonta ao aparecimento das técnicas
de verdade no pensamento grego clássico. De uma reflexão sobre os primeiros passos,
talvez seja possível extrair duas lições gerais sobre a argumentação.
Toda argumentação suporia o copertencimento de dois interlocutores a uma
comunidade (real ou ideal) funcionando com base em princípios universalizáveis que

aqueles aos quais se endereça, ver Primeiros Analíticos II, 27, 70 a, 22-23: “os
homens pensam que foi mostrado que esta mulher pariu”.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 33

permita a emergência de um pensamento democrático 83—dizendo de outra maneira,


sobre os “máximos de um senso comum” (Kant, Critique du Jugement § 40). “Pensar
por si mesmo” —porque cada membro desta comunidade pode argumentar depois de
cada um, quer dizer que qualquer um pode dizer as verdade e julgar as que lhe são
ditas. “Pensar colocando-se no lugar do outro” —porque não se pode, na
argumentação, fazer admitir outras verdade a não ser aquelas que se teria por
admitida na mesma situação. “Sempre pensar de acordo consigo mesmo” —porque
argumentar é, sem nunca se contradizer, mostrar aquelas verdades admitidas pelo
fato de se admitir outras.
A segunda lição seria bem mais modesta, mas talvez mais fecunda. Não há
argumentação pura, quer dizer argumentação fora de um quadro social e das
condições reguladas de uma interlocução. Assim, o projeto (remontando ao Fedro de
Platão) de uma argumentação “científica” ou absoluta modelada, por exemplo, na
transmissão de conhecimentos, independente do tipo de verdades (saber? convicções?
opiniões?) que se quer transmitir e de seu modo de existência, seria ilusório. Assim, a
idéia de que a argumentação retórica (por exemplo) seria um tipo de amaciamento, à
vezes de degeneração, da demonstração (científica), também seria completamente
ilusória —e ilusória também, por consequência, o único critério de validade formal
para legitimar uma argumentação. Se os gregos inventaram, um pouco próximos no
mesmo tempo e nas mesmas condições, três técnicas da verdade, é que talvez existam
três —e somente três— modos de argumentação autônomos também completamente
legítimos. Um, a demonstração, corresponde à esfera da transmissão ideal dos
conhecimentos (e ela é, em suma, ao menos sob sua forma axiomatizada, apenas uma
excrescência, fascinante mas monstruosa, dos modos de argumentação natural). O
outro, o modo dialético, corresponde à esfera das convicções pessoais e às regras
ideais do debate ideal. O último, o modo retórico, corresponde à esfera do espaço
público e às regras que permitem partilhar verdades sociais e o debate jurídico ou
político.

Referências bibliográficas
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Brunschwig (1967), traduzimos todas as citações de Aristóteles.

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Berti, Pádua, Antenore, 1981.

83É esta comunidade universal ideal suporta pela argumentação que K. O. Apel e J.
Haebrmas evocam para fundar a ética.
Três técnicas de verdade na Grécia clássica: Aristóteles e a argumentação, Francis Wolff — 34

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