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O Verdugo, peça escrita por Hilda Hilst em 1969 é dividida em dois atos,

cada um deles em um espaço (a casa da família do verdugo e a praça da


aldeia), as personagens não se encontram bem individualizadas, mas só
aparentemente. Designadas pelas suas funções sociais, Mulher, Filho, Juízes,
Verdugo, somente a personagem Homem, com o único atributo didascálico de
ser uma pessoa alta, sugere a possibilidade de se tratar de qualquer homem,
mas não de um homem qualquer. Seu atributo tem significação ambígua: altura
podendo referir-se a estatura física, mas também a estatura metafísica, que é
sugerida nas cenas da obra dramatúrgica.

A profissão que dá título à peça e nomeia o protagonista, é incomum


para os tempos modernos. Esse aspecto unido à localização da aldeia onde se
passa o drama remete a um tempo mítico, sem precisar o lugar onde se
desenrola a ação, nem o tempo, somente caracterizados como uma “vila do
interior” em “algum lugar triste do mundo”. A negação ao realismo ou à
associação imediata à realidade concreta é parte do contexto objetivo
selecionado intencionalmente pela autora para estruturar o microcosmo
dramatúrgico.

O conflito básico, pincelado anteriormente é engendrado logo no início


da peça, sem grandes explicações de sua origem: um home foi condenado à
morte, mas o seu executor reluta em assassiná-lo, apesar de esta ser sua
função, e de não haver sinais de que tenha sofrido esse impasse
anteriormente. O que o desestimula a cumprir a sentença é o fato de ele ter
sido tomado pelas palavras do Homem, palavras essas que o leitor/espectador
não as lê/ouve, mas que são caracterizadas como falas de agitação, proposta
de uma revolução. O poder instituído, não se sabe exatamente quem está no
comando, mas entrevê-se nas falas dos Juízes que existem instâncias de
poder superiores a eles e contra as quais não se pode lutar, condenou o
Homem por incitar ideias contrárias à ordem vigente. Por esse motivo, antes de
vê-lo silenciado pela morte, Hilda Hilst coloca-o em cena já silenciado em vida,
e o que se pode conhecer da personagem é somente o que os outros falam
dela. Ou seja, o Homem nos é apresentado como um anônimo, a quem a
história não nos dará a conhecer, só o conheceremos de ouvir falar. (Talvez
esse Homem possa ser comparado a todos os desaparecidos políticos, que,
uma vez enredados, não possuem voz e não possuirão história).

Esse Homem é sentenciado à morte porque falou de amor, de revolução,


de “saber o que nos oprime” e isto faz dele um fora da lei e um condenado à
morte. Morte que é adiada ao máximo pelo executor, talvez numa tirada irônica
da autora, pois imaginariamente tem-se o carrasco por pessoa cruel, fria. No
caso de O Verdugo, o carrasco paradoxalmente e dotado de uma sensibilidade
ímpar, que o impede de agir contra seus princípios. Para ele o Homem é
inocente e, mesmo sendo seu dever social, profissional, executá-lo, não o
pode, porque as palavras do Homem entraram nele.

Mas para que conflito se efetue é necessário que a outras personagens


sejam dadas percepções de mundo distintas. A Mulher do Verdugo,
caracterizada pelas didascálias como amarga, porta uma concepção diferente
do marido. Para ela o Homem já está morto, porque condenado. E quem mata
não é o Verdugo, afinal, “é a lei que mata”. Procura isentar-se da
responsabilidade de investir contra sangue inocente, jogando a
responsabilidade para a lei. Não se sabe se ela, assim como os opositores ao
Homem ouviram as palavras que ele disse, ou tiveram algum tipo de contato
com o condenado. O que interessa é que para ela, como para a Filha e o Noivo
da Filha, o Homem não ajudou em nada, falou coisas bonitas, mas que “não
enchem a barriga”. A preocupação pós-industrial de viver para trabalhar, ganhar
dinheiro, de consumir bens materiais embruteceu as pessoas, fazendo com
que elas só pensem nisso, em como tirar proveito das situações, muito embora
através do prejuízo de outro ser humano. É assim que há grande alvoroço na
casa do Verdugo quando os Juízes – vendo que o Verdugo não ia fazer o
serviço – oferecem milhões para que ele cumpra o seu dever, dever que ele
não cumpre. Os juízes permanecem nervosos e ansiosos, porque na rua o
Carcereiro ouve palavras de protesto à morte desse Homem, e um medo
iminente de revolta toma conta das autoridades. Com a proposta de mudança
de vida – mudança financeira, diga-se de passagem, a Mulher resolve substituir
o Verdugo no cumprimento da sentença. Veste-se como ele, capa preta, luvas,
sapatos e, depois de amarrarem o Verdugo e o Filho, partem Mulher, Filha e
Noivo da Filha com os Juízes para a praça, para o evento final.
Na praça cidadãos gritam “a vida!, a vida!” e o tumulto encontra seu
ápice quando, em meio às explicações dos Juízes e da Filha do Verdugo, os
cidadão descobrem que há muito dinheiro envolvido no processo, o que faz
com que se exacerbem e mudem de ideia a respeito da execução do Homem.
Enquanto Filho e Verdugo tentam se desamarrar e correr em ajuda ao Homem,
os cidadãos já foram tomados pelas cifras dos milhões oferecidos como
pagamento ao silenciamento do Homem. Ao final, os cidadãos são os
executores, que assassinam não só o Homem, mas também o Verdugo, num
ato grotesco.

Como vimos nos capítulos anteriores a obra dramatúrgica em questão


estabelece pontos de encontro com a realidade imediata do Brasil, imposta
pelo regime ditatorial. Pessoas foram executadas por serem contrárias ao
regime. Vozes foram silenciadas e desapareceram, permanecendo anônimas.
Muitas obras de arte que foram produzidas nesse período problematizavam
esse estado em que estavam inseridos os brasileiros, dando conta da conexão
do artista ao contexto de sua produção, de onde ele seleciona o material que
se configura como parte da estrutura mesma da obra. Mas esse detalhe
extraliterário é tido como só o início das investigações. Numa leitura horizontal,
a obra é representativa da inconformidade dos artistas brasileiros frente aos
desmandos de uma ditadura cujo processo de censura da liberdade de
expressão é causa de grande indignação.

Quando Peter Szondi analisa a crise do drama em relação à tragédia


grega, à Poética aristotélica, ele define as mudanças e rupturas ocorridas no
interior da obra dramatúrgica dando à historicidade o papel que lhe cabe dentro
dos modelos dramatúrgicos que a estética clássica insistia não serem
históricos. A forma, defendida como atemporal, é vista por Peter Szondi como
indissociável do conteúdo, e se o conteúdo está inscrito na humanidade
historicamente, a forma, por sua vez, acompanha esse processo de
transformação. Dando conta da análise de peças de dramaturgos que
compreende os anos de 1880 até 1950, Szondi revela que, longe já dos
preceitos descrito na Poética de Aristóteles para uma boa tragédia, as peças
que fundam a crise do drama já não possuem a unidade de ação necessária da
peça dita bem feita. Não há mais início, meio e fim da situação dramática, que
formalmente apareciam na divisão em três atos. Esse é um recurso formal
observado por Szondi para caracterizar o tempo de fragmentação, ruína, vazio,
que vivemos e que é tratado dentro dessas obras como elemento interno de
contradição e questionamento. As personagens aparecem em um processo
confuso de sujeito/objeto, em que suas ações são descompassadas e não se
encaminham a uma solução. A fragmentação do sujeito contemporâneo, como
ressaltado por alguns autores, como Zigmunt Bauman, Walter Benjamin –
lidando com o signo alegórico -, Linda Hutcheon na sua Poética do Pós-
Modernismo, assim como outros autores de inclinação pós-modernista.

“Para Benjamin, a imagem emblemática da alegoria


barroca é a caveira. Nela, o mesmo procedimento
alegórico de ruptura da forma canônica aparece, no
interior da obra, atuando sobre o corpo humano. Da
mesma maneira que a composição clássica, tida como
orgânica e completa, sofre a fragmentação
desencadeada pela história, o corpo humano é
desmembrado e, da sua mortificação, resultam pedaços
daquilo que antes se pretendia uma totalidade orgânica:
‘E as personagens do drama trágico morrem porque, só
assim, como cadáver, podem entrar no reino da alegoria.”
(OLIVEIRA, 2013: 7)

Essa fragmentação do indivíduo pode ser tomada no caso da peça O Verdugo


de Hilda Hilst como alegoria?

Para Marcela Oliveira, que faz um balanço sobre a Alegoria no Teatro


Moderno, em artigo de título homônimo, a crise do drama é instaurada em face
da crise do drama burguês, ou da vida moderna da burguesia. E sobre isso ela
afirma:

“É a vida moderna, burguesa, que se torna ‘trágica’, ou


melhor, sem sentido. E isso sobe ao palco. A tragicidade
das peças que anunciam a crise do drama não reside
mais na morte, como ocorria na tragédia antiga, mas na
própria vida. A ‘catástrofe’ aristotélica, como são as
‘mortes em cena, as dores, os ferimentos’, é substituída
por uma vida de constante sofrimento.” (OLIVEIRA, 2013:
6)

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