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Esta chegada de Bramante a Roma terá uma importância que OOnvém sublinhar.
Bramante, arquitecto de Urbino, cujas obras executadas até à data, particularmente em
Milão, mais denotavam um gosto muito puro, muito delicado, do que um sentido
pronun-ciado da grandeza, era um homem de mais de cinquenta anos. Ora ele concebeu
para São Pedro uma planta que se pode classificar de radical pela decisão, pela vontade
de romper com o que, no espírito destes homens, representava certamente o falso ou
pelo menos o antiquado. Era uma cruz grega com cúpula, inteiramente simétrica em
relação ao centro. Sabe-se que esta planta não foi executada e que aconteceu a São
Pedro de Roma o que acontece em geral aos edifícios imensos que exigem longos anos
para a sua construção. Mas a própria existência, durante mais de um século, da oficina
de canteiros de São Pedro é essencial para a história da arte, por que serviu de
laboratório a todas as novidades. Não somente vários dos génios já citados, Rafael e
Miguel Angelo (que concebeu a maravilhosa cúpula), estiveram mais ou menos ligados
à construção, mas muitos outros tiveram contacto com ela: Peruzzi, San Gallo o Moço,
autor do Palácio Farnese, Vignola, autor do Castelo de Caprarole, sem contar os que
vieram mais tarde.
Leonardo da Vinci
A idade separa pois Leonardo de Vinci dos outros heróis da Renascença. Era aliás um
indivíduo predestinado a ter um lugar à parte em tudo e até na pintura. Este génio
universal, para quem pintar e modelar constituíam algumas ocupações entre muitas
outras e que não eram porventura até as suas preferidas, aprofundou simultaneamente a
física, a arquitectura, a mecânina, emitiu sobre toda a espécie de problemas ideias
geniais, incompletas e todavia de grande nitidez, embora a forma que lhes deu pareça —
talvez deliberadamente — bastante obscura. Ninguém deixará de lamentar que ele tenha
perdido tanto tempo com estes devaneios, porque, no fundo, que nos importa que ele
tenha tido presciencias acerca da navegaçãon aérea ou submarina ? Preferiríamos sem
dúvida uma obra artística mais completa.
Esta foi tocada pela desgraça. Destruído o gesso do cavalo que ele modelara para a
estátua de Francisco Sforza. Destruída a Batalha de Anghiari, que pintou numa parede
do Palácio Velho de Florença e que ali emparelhou com uma obra de Miguel Angelo. A
Ceia do refeitório de Santa Maria das Graças em Milão, conquanto não seja mais do que
uma pálida imagem do que foi, compreende-se sem surpresa que tenha causado o
deslumbramento dos seus comtemporâneos, de tal maneira aqui imperam — desde 1495
— essa liberdade divina, essa naturalidade sem par que não deixam sentir o esforço. A
bem dizer, só é possível ter hoje uma ideia exacta do pintor no Museu do Louvre, em
presença de dois quadros, um dos quais bastantes estragos sofreu: o retrato de Mona
Lisa, a Gioconda, que seduz pelas suas qualidades exteriores, dum doce modelado, pelo
incomparável desenho das mãos e pelo valor poético duma paisagem ao mesmo tempo
real e fantástica; depois, a Santa Ana, miraculosamente composta, como uma espécie de
brasão, com o perfeito recorte das linhas das duas mulheres. Talvez Vinci pareça
contudo maior ainda nos seus desenhos, duma autoridade magistral e que denotam, na
facilidade do movimento, o conhecimento de todas as molas secretas do corpo humano.
Estes desenhos lembram oportunamente que, pelo berço, Leonardo era quase florentino,
e, pela educação, discípulo de Verrochio.
Ora, precisamente, este aspecto do seu génio não parece ser o que mais impressionou os
seus discípulos e os seus émulos. O que todos mais admiraram nele foi antes o halo
poético, o «sfu-mato» em que ele submerge as formas e que, noutros menos grandes,
servirá de pretexto a muitas molezas de contorno. Sobretudo em Milão, a sua influência
foi considerável. Os que o seguiram com menos dano não foram os seus discípulos: o
Sienês Bazzi, conhecido por Sódoma, cujas Núpcias de Alexandre e de Roxana, na
Farne-sina de Roma, salvaguardam o seu carácter voluptuoso ao lado das obras-primas
de Rafael e da sua escola, assim como as suas composições do Convento de Monte
Oliveto Maggiore não são ofuscadas em demasia pôr Signorelli. Luini (1480-1530) tem
um sentido da composição e um encanto que desculpam, até certo ponto, o seu
amaneiramento. Em Saronno, onde estão alguns dos seus melhores frescos, é lícito
compará-lo ao seu companheiro Gaudenzio Ferrari, cujo grafismo é mais preciso, mais
voluntarioso.
Miguel Ângelo
No sentido em que o gênio, dom de Deus, se entende como contrário do simples talento,
assume todos os direitos, se permite todas as licenças e vive em permanência no
sublime, Miguel Angelo constitui a própria encarnação do génio. Este grande homem
criou — previlégio excepcional e que não foi talvez concedido no mesmo grau a
nenhum outro — três ou quatro dessas obras-primas que confundem de admiração tanto
os especialistas como a turba e cuja inspiração e execução atingem a mesma altura. Se
essas obras-primas pairam a uma altitude inacessível ao comum, dão no entanto a todos
os homens de boa vontade a ilusão de que acedem até elas e de que são por elas
arrancados à vida cotidiana: os túmulos dos Médicis em Florença, obra completa; os
restos do imenso conjunto que devia ser o túmulo do Papa Júlio II: Moisés e os
Escravos; enfim, o tecto da Sistina. E talvez se pudesse acrescentar-lhes essa obra de
juventude, milagre de frescor, que é o David.
Mais evidente ainda que a de Leonardo é a mestria de Miguel Angelo no que respeita ao
corpo humano. Ele trata-o, ousaríamos quase dizer, imperialmente, submete-o a todas as
torsões para exprimir a violência da paixão. Semi-deitada, em equilíbrio quase instável
sobre as faces inclinadas do frontão, a Noite do túmulo de Juliano de Médicis, no
movimento que lhe vira o busto para a frente, enquanto as pernas estão de perfil, vem
apoiar o cotovelo do braço direito sobre a perna esquerda. Do mesmo modo,
temeràriamente apoiados na arquitectura fictícia do tecto da Sistina, os profetas e as
sibilas têm uma gesticulação veemente, cujo poder é tão esmagador como inimitável.
Quanto àquilo a que se poderia chamar a queda abrupta e temerosa do Juízo Final, é
precisa toda a força inerente a cada personagem para o fazer admitir — e aqui a solidão
intelectual de Miguel Angelo é total. O artista quase não tem antenas para comunicar
com o resto do género humano. Entretanto, seria injusto omitir tudo quanto há de
reflectido neste apaixonado. O arquitecto sabe submeter-se às grandes leis da matéria.
Tanto na cúpula de São Pedro como na escadaria de São Lourenço, ele não se primite
qualquer extravagância e constituiria um estudo bastante frutuoso comparar, quanto a
ele, a arquitectura «gratuita», a que to] pintada na Sistina ou a dos túmulos dos Médicis,
com a Arquitectura destinada à construção monumental. Notar-se-ia sem dúvida que os
seus imitadores seguiram apenas uma parte dos seus ensinamentos.
Rafael Faça-se o que se fizer, é difícil evitar o paralelo entre Miguel Angelo e Rafael: os
próprios contemporâneos começaram a fazê-lo, quando os dois artistas trabalhavam
concorrentemente em Roma. Rafael possuía uma destas naturezas felizes que têm o dom
de se apropriar de tudo o que passa ao seu alcance e de o transformar imperceptível mas
seguramente, para o tornar seu. Estas naturezas evitam a oposição, dobram-se a todas as
tarefas e conseguem sempre triunfar. O seu encontro com o meio romano e com Miguel
Angelo foi decisivo para ele. Rafael só pintara até então obras requintadas e um pouco
irritantes, aparentadas com a miniatura e dum género de que a sua Úmbria natal lhe
fornecia abundantes modelos, ou então numerosos quadros mais ou menos imitados do
Perugino, seu mestre, ou ainda algumas dessas madonas cuja suavidade nos parece hoje
enjoativa, depois de ter encantado os nossos pais. Toda a sua obra que verdadeiramente
conta, executou-a Rafael em doze anos, de 1508, data da sua instalação em Roma, até
1520, data da sua morto. Ela compreende antes de tudo os frescos das Stanze do
Vaticano, pelo menos aqueles que são quase inteiramente da sua mão. A Disputa do
Santíssimo Sacramento, a Escola de Atenas, pela habilidade da composição, pela luz
calma e simples que lhes dá unidade, pela qualidade das personagens e sua variedade,
pela pura atmosfera que respiram, contam-se entre as obras humanas em que o homem
se encontra no mesmo plano do artista, docemente encantado e sem sombra de
violência. E que inspiração sublime no Heliodoro, modelo perante o qual Delacroix teve
a sabedoria de compreender que não havia outra coisa a fazer senão dar-se por vencido!
Quantas riquezas de cor na Missa de Bol-sena ! Nas Loggie, do mesmo palácio, há
apenas que admirar uma decoração infinitamente graciosa, inspirada nos motivos dos
monumentos antigos recentemente explorados e que alcançou, sob o nome de
«grotesco», prodigioso êxito. Quanto aos quadrinhos que ali se encontram e a que se
chamou a Bíblia de Rafael, bene-ficiam duma reputação que não merecem inteiramente.
Agradam, sem dúvida, mas em vão se procuraria neles um só dos sublimes voos de
Miguel Angelo, essa Criação do Mundo, por exemplo, em que Adão tende para Deus
que o anima com o braço já cansado. No fundo, Rafael sentia-se ainda mais à vontade
na mitologia sorri-dente da Farnesina, na História de Psique, que foi, como as Loggie,
executada por alunos, mas cujo desenho não engana de forma alguma quanto ao seu
autor.
Embora o fresco seja a técnica preferida do artista e ele tenha Peito certos quadros a
óleo de grande secura e de cor desagradável (dos quais por certo os seus discípulos
executaram uma parte importante), não deixou de pintar alguns retratos em que o
desenho preciso, a parecença evidentemente alucinante e também por vezes a finura da
cor — como no Baltazar Castiglione, todo em negros e cinzentos — nada ficam a dever
às obras mais ilustres dos Venezianos.
E geralmente conhecida a anedota. Um dia em que Miguel Angelo encontrou o seu feliz
rival elegantemente vestido e rodeado pela multidão dos seus discípulos, interpelou-o
assim: «Vais com a tua corte, como um príncipe», ao que Rafael respondeu: «E tu, só,
como o carrasco».
Corregió
Inteiramente à parte deste movimento romano, antes aparentado com Leonardo pelo
invólucro que deu às suas criaturas, mas no fundo plenamente original, surge um pintor
em Parma, cidade que se não distinguira até então pelos seus artistas e que aliás não
mais tornou a fazer-se notar neste domínio. Ninguém ousaria colocar Corregió a par dos
grandes mestres: ele padece, na verdade, de excessivas fraquezas, de excessiva moleza
sobretudo. Mas esquecem-no precisamente porque não tenta rivalizar com os outros no
terreno que eles escolheram. No seu próprio, é único. Não pode dizer-se por certo um
desenhador muito seguro, mas não é menos exacto que se mostra mais hábil que
ninguém para decorar de figuras um tecto sem sombra de esforço e que a sua cúpula da
Igreja de São João, pintada dum só jacto, pareceu uma grande novidade. Os
maledicentes compararam esta cúpula a um cozinhado de rãs; chamemos-lhe antes,
indulgentemente, um guisado de anjos. Demais, Corregió é mestre num claro-escuro de
leves sombreados e as suas mulheres e as suas crianças rechonchudas, todas às
covinhas, deslumbraram o nosso século xvill.
Veneza
«Que pena que em Veneza se não aprenda a desenhar!», dizia o velho Miguel Angelo,
que não se enfeitava para ser injusto. Não tinha razão quando se recusava a reconhecer
num Giorgione ou num Ticiano um desenho diferentíssimo do desenho de contorno dos
Florentinos. A linha florentina houvera sido incompatível com a técnica veneziana.
Com efeito, Giorgione ou Ticiano poderiam passar por ser os verdadeiros inventores de
pintura a óleo tal como nós a entendemos hoje, isto é, duma pintura cuja própria matéria
é o óleo, o que permite efeitos mais gordos, empastamentos, uma certa separação das
pinceladas, que torna a superfície mais rica de grão e autoriza modulações inteiramente
novas.
Embora a crítica tenha tomado estranhas liberdades com a obra de Giorgione, indo ao
ponto de a reduzir a quase nada, parece fora de dúvida a existência duma poesia
giorgiónica, que toma corpo sobretudo na Tempestade (Academia de Veneza) e nó
Concerto campestre (Museu do Louvre), contestado sem fundamento; a par dum
sentido bucólico e musical da pintura, com formas femininas um tanto redondas, um
tanto moles talvez, duma volúpia mais sonhadora que sensual. Parece irrecusável que
Ticiano passou por uma fase giorgiónica — e quadros como ó Amor sagrado e o Amor
profano (Galeria Borghese, Roma) mostram-no à evidência, mas isso não basta para
confundir a sensibilidade de Ticiano, mais máscula, menos fina, duma sexualidade mais
directa, com a de Giorgione.
Por maior valor que se atribua a alguns admiráveis nus de Ticiano, às suas Bacanais,
cuja composição no-lo mostra sob um aspecto imprevisto, são os retratos que
constituem e constituirão sempre o melhor da sua glória. Dever-se-á falar de penetração
psicológica ou duma tal perfeição na imitação que o problema psicológico não tenha
sequer razão de ser? Quantas máscaras inesquecíveis! desde os anónimos, como o
Homem da luva, duma elegância de grande raça, que se encontra no Louvre, até aos
homens célebres, como o alegre e inquietante Aretino ou como o Auto-retrato do Museu
de Madrid, velho de olhos avermelhados à força de terem tanto e tão intensamente
olhado, ou enfim como esse prodigioso Carlos V na batalha de Mühlberga, retrato
equestre ao mesmo tempo oficial e humano, figura espectaculosa em cujos traços se lê
tanta gravidade triste.
Na geração seguinte surgem dois pintores que mantêm a glória de Veneza a uma altura
que não foi atingida pelo resto da [tá lia durante a segunda metade do século: Tintoreto
e Veronoso.
Perante o Tintoreto, o difícil Miguel Ângelo teria sido forçado a convir em que se sabia
também desenhar em Veneza e isto tanto mais certamente quanto é certo que ele teria
achado aqui alguma coisa do seu espírito, não na técnica, pois o Tintoreto procede por
massas, por <sacs de noix» muito curiosos, mas no conhecimento do corpo humano.
Tintoreto é daqueles que dão plena satisfação ao voto de Delacroix, para quem um
pintor deve ser capaz de esboçar um homem que caia de um sexto andar durante o
tempo que ele leva a chegar ao solo. Tintoreto é ainda bastante aparen-tado com Miguel
Angelo por uma tertibilitá sem nada de comum com o génio do Ticiano, cuja
sensibilidade é muito mais estática, muito mais pictural e se satisfaz com os sumptuosos
espectáculos da sua pátria. Um dos últimos grandes ciclos cristãos da história da arte é
constituído pelo conjunto da escola de San Rocco, ordenado segundo as regras da mais
pura escolástica e que tem a coroá-lo a tumultuosa e trágica Crucifixão em que emoção
e movimento se encontram tão estreitamente unidos que parecem indivisíveis. Nas
criações do Tintoreto, os corpos exprimem mais do que os rostos. A sua obra é imensa e
menos conhecida do que deveria ser, porque está quase toda concentrada em Veneza.
Ela compreende quadros religiosos, alguns de formato imenso, quadros mitológicos
animados por nus femininos de beleza sublime e guerreira, retratos enfim de magnífico
estilo, mas a que falta, para igualarem os do Ticiano, um sentido tão profundo da
diferenciação individual. O colorista, enfim, tem surdas harmonias de sonoridade
profunda.
E pelo colorido que Veronese conservará eternamente a sua reputação. Porque a alma
não é de nenhum modo da têmpera da do Tintoreto. Veronese olhava a pintura como um
jogo, um jogo muitíssimo excitante em que se comprazia. Xada de mais sincero, de
mais espontâneo a este respeito do que as suas respostas aos juízes da Santa Inquisição,
que lhe censuravam — a justo título — as personagens frívolas, as extravagâncias que
ele introduzia nas cenas sagradas. Acima de tudo decorador, e decorador alegre, é de
fecundidade inesgotável e sabe animar uma superfície, que cobre de personagens
vestidas de elegantes trajes, empenhadas numa acção animada, sem excesso, e que
mergulha no banho mágico da cor, que não é nem surda nem gritante, mas de harmónica
leveza, muito nova na escola veneziana. A sua pureza è por vezes cristalina. E-se aliás
injusto para com ele, julgando-o exclusivamente capaz de vastas telas: nas pequenas
obras, tem o fulgor das jóias.
Ao invés do que sucede no resto da Península, não se verifica em Veneza uma distância
tão grande como noutras regiões entre os maiores mestres e os outros pintores. Em volta
dos génios, pululam os talentos. Renova-se aqui, num plano diferente, o milagre da
escola florentina no século precedente. São belíssimos artistas um Palma Vecchio, que
sempre viveu na esteira do Ticiano, um Pordenone, decorador eminente, um Sebastiano
dei Piombo, sobre o qual a influência de Miguel Angelo se exerceu talvez
desfavoravelmente, se se tiver em conta as suas primeiras obras de carácter giorgiónico.
Quanto aos Bassanos, cujo chefe, Jacopo, ocupa de direito o seu lugar aqui, são artistas
por vezes fatigantes e por vezes admiráveis: soberbos coloristas como toda a escola, têm
um sentido da vida aldeã que não é vulgar na sua época, na qual se prestaria por certo
mais facilmente justiça às suas qualidades de movimento, se, por uma mania que se
torna por fim insuportável, eles se não julgassem obrigados a curvar todas as suas
personagens, que nunca se endireitam completamente.
Pelo seu amor do campo, os Bassanos não são estritamente venezianos: são de facto
homens da terra firme. Os territórios anexos da terra firme não devem ser nunca
menosprezados na pintura veneziana, à qual trouxeram, além de um contributo que não
é para desprezar, um vinco especial. Do mesmo modo, há que ligar a Veneza Brescia,
com Moretto, e Bérgamo, onde Moroni manteve com firmeza a sua personalidade de
retratista, a despeito dos seus temíveis vizinhos: é, com efeito, fácil de reconhecer pela
sua distinção e por preferir tons de prata aos tons de oiro — factos que constituem a
especial sedução das suas obras.
E é à terra firme também, à terra firme vizinha de Veneza, que esta parte da Itália deve
uma parte importante do seu património arquitectónico. A cidade aquática propriamente
dita não o tinha enriquecido muito, mas apareceu em Vicência um mestre genial, cujas
tendências se opõem formalmente às de Miguel Angelo e dos que o seguiram: Andrea
Paládio. Dir-se-a que Paládio é o herdeiro do estilo severo e apurado dos primeiros
arquitetos florentinos. Mais do que eles e de mais perto ainda, estudou o antigo; mas
ao antigo foi buscar não só as formas, não apenas tipos de edifícios (a ponto de construir
em Vicência uma basílica c um teatro à romana), mas sobretudo um espírito, o espí-rito
de sobriedade, bem como a ciência de tirar partido das massas. O seu gosto
naturalmente puro manifesta-se menos ainda nas construções imponentes do que em
algumas casas campestres verdadeiramente impecáveis, como a Rotonda ou a
Malcontenta, nas margens do Brenta. Sem nada de rico, de ornamentado, deve ser afinal
facílimo de fazer, pretendem porventura os ignorantes! Mas os espíritos delicados
encantam-se com o maravilhoso equilíbrio dos volumes, com as proporções em que
parece se não pode bulir, com as colunas tão pouco numerosas, com os frontões tão
raros, que verdadeiramente cantam. Uma escola rodeia Paládio e basta seguir o curso do
Brenta, que de Pádua vai até Veneza, para ali reconhecer facilmente o seu mestrado. O
seu discípulo mais célebre, já mais amigo dos ornatos do que ele, Scamozzi, enriqueceu
também a sua pátria de Vicência. Mas, em fim de contas, na sua época, o gosto
paladiano não passou de uma região bastante limitada. Só quando, após muitos anos de
barroco, a Europa experimentou a necessidade de voltar a um estilo mais severo, é que
descobriu Paládio — e a sua influência, singularmente em Inglaterra, foi considerável.
Maneirismo
Nesta revista da arte de Veneza e das suas vizinhanças, pudemos caminhar até ao fim do
século sem que houvesse sintomas de afrouxamento: era um desenvolvimento
harmonioso, uma grandeza, ao que parece, tranquila. Ora não sucede de forma nenhuma
o mesmo no resto da Itália, em que a idade de oiro apenas vai até meados do século, e
ainda a custo. Durante a sua segunda metade, domina uma concepção curiosa, não
desprovida de sabor, sem dúvida, e pela qual o nosso tempo nutre uma afeição secreta: o
maneirismo. Este fenómeno não é isolado e produz-se duma forma ou de outra depois
de todos os apogeus, sob a acção dum quase desespero dos artistas perante obras
demasiado bem sucedidas e, ao que supõem, inimitáveis. Eles procuram nervosamente
as razões que, sob uma aparente simplicidade, produziram tal resultado. Perscrutando
com dobrada atenção a obra de arte, querem reduzi-la a receitas, esquecer esse génio do
natural que liga tudo e tudo unifica. Quando o modelo em vista apresenta exageros tão
flagrantes como Miguel Angelo, é fatal que a imitação sistemática dos seus métodos
conduza a singulares excessos. Ele está nas origens desse barroco que encontraremos
mais tarde e se caracteriza por uma espécie de violência, de arrebatamento, uma
musculatura nodosa, uma loucura da grandeza que se torna entumecimento, como em
Pontormo. Entretanto, a escola de Corrégio engendrou outro maneirismo, que na época,
obteve êxito talvez superior. Esse maneirismo, cujo pai é o Parmesão, discípulo de
Corrégio, manifesta-se sobretudo por formas femininas alongadas e melífluas, de
elegância afectada e aliás deliciosa. Estes maneiristas têm tanta mais importância quanto
é certo que transmitiram muitas vezes ao estrangeiro uma ideia bastante bafienta dos
grandes renascentistas: o Rosso será um discípulo maneirista de Miguel Angelo, o
Primatice um discípulo não menos maneirista de Rafael, familiarizado além disso com a
pintura de Parma.
A conquista da Europa
Esta .conquista da Europa inteira pela arte italiana operou-se segundo modalidades
muito diversas. Observam-se casos curiosos. Umas vezes, a arte transportada do país de
origem para outro país é na realidade a que reinava vinte ou trinta anos antes no
primeiro deles: assim a França, no começo do século xvi, apaixona-se pela escultura de
arabescos que era a do quattrocento milanês. Em contrapartida, quando o Rosso e o
Primatice vierem a França, trarão com eles a arte duma fase posterior à dos grandes
renascentistas, mas sem que estes sejam intercalados no seu devido lugar. Enfim, por
vezes, estes grandes renascentistas actuam directamente. E observar-se-ão ainda grandes
diferenças, consoante se tratar de arquitectura, de pintura ou de escultura.
Os escultores manifestam também mais boa vontade do que génio. O único lugar em
que se está verdadeiramente em dia com a moda é a velha oficina dos Vischer, onde
Peter Vischer o Antigo é então secundado e depois substituído por seus filhos; mas até
esta oficina escapa raramente ao defeito alemão. O célebre Relicario de São Sebaldo, na
igreja do mesmo nome, as grades quase miraculosamente encontradas no Castelo de
Montrottier são obras de ourivesaria, conquanto as estatuetas do relicário sejam
encantadoras. Todavia, as figuras de pé que ornam o túmulo do Imperador Maximiliano
em Innsbrück denotam ambições mais altas. Em Augsburgo, onde se estava por certo
em melhor posição para apreciar as modas ultramontanas, Daucher não se afirma
infelizmente escultor famoso.
E, no entanto, essa Alemanha possui os dois pintores que, em toda a Europa, exceptuada
a Itália, mais fortemente compreenderam o espírito da Renascença: Albert Dürer de
Nuremberga e Hans Holbein de Basileia; estes dois homens reagiram aliás muito
diversamente.
Pela sua formação de artífice na escola do medíocre Wolge-mut, depois dos irmãos de
Martin Schongauer, por um pendor do seu temperamento, Albert Dürer liga-se, sem
nenhuma dúvida, aos gravadores e aos escultores alemães da época precedente. Da sua
primeira grande série de gravuras em madeira, o Apocalipse (1497), Woelfflin escreveu
que o seu desenho «ferve». Mas toda a sua carreira, as suas viagens em Itália mostram
vontade de simplificar, de aclarar as formas, servindo-se do nu e do antigo, coroada na
sua última obra, pintada na hora suprema, Os Quatro Apóstolos do Museu de Munique,
de majestade, estável, maciça, trajados como estátuas, em suas amplas roupagens. Um
dos vincos essenciais deste artista é a sua obstinação em dominar as proporções do
corpo humano que a Renascença pensava ter descoberto e que lhe foram reveladas
primeiro por um curioso artista meio alemão e meio veneziano: Jacopo de Barbari, o
mestre do caduceu. Pode duvidar-se de que este estudo, levado até aos limites da
superstição científica, haja sido vantajoso ao pintor alemão; não se pode no entanto
desprezá-lo como tendência. O certo é que Dürer foi imediatamente bem acolhido na
Itália, onde contudo se era pouco indulgente para com os estrangeiros, e Marco
António, o rafaelesco tirou bom proveito com a falsificação das suas gravuras.
Não é contudo de maneira frívola que se deve considerar um dos maiores artistas de
todos os tempos. O dom do desenhador tem alguma coisa de mágico. Acaso possuiu
alguém em maior grau dô que ele a faculdade de tornar sempre expressivo o mais
pequeno traço ? O desenho de uma pálpebra é para o amador da sua arte qualquer coisa
de inimitável. Que ele seja também necessariamente um grande gravador, isso não
oferece dúvidas, porque uma coisa implica a outra; além disso, uma habilidade manual
prodigiosa para abrir o.cobre permite-lhe dar gradações infinitas às gravuras sobre
metal, as únicas que ele trabalha pessoalmente, de tal maneira que consegue emprestar-
lhes o brilho argênteo que os amadores tanto apreciam. Depois, há a alma ao serviço da
qual todos esses factores estão empenhados. Uma alma um pouco complicada, não sem
mistério, muito religiosa. Em Dürer, a Reforma achou um terreno excepcionalmente
favorável. Mesmo nesta época, em que floresciam as mais complicadas alegorias, as
suas têm um fundo contra o qual dir-se-ia que vêm naufragar as explicações racionais.
Interpretar-se-á talvez exactamente a Melancolia ou O Cavaleiro, A Morte e o Diabo,
mas estas estampas hão-de sempre transcender pelas intenções o seu próprio motivo.
Ao lado dele, Holbein, muito mais novo, parece extraordinariamente simples. E certo
que compôs algumas decorações — muito pouco arquitectónicas — que ilustrou livros
com veia feliz, em que os motivos antigos se misturam aos motivos populares, que
pintou até quadros religiosos, no fundo bastante frios, como o seu Cristo Morto: tudo se
desvanece ante os seus retratos. São eles de perfeição e de segurança tais que dispensam
comentários. Nem a gente sabe por que ângulo os há-de estudar nem tampouco qual é o
segredo da sua qualidade. Neles, a arte é tão pouco aparente que parece por vezes que
não existe e que o homem não teve de intervir para obter esta semelhança com o real
que dir-se-ia resultar duma técnica de reprodução mecânica e inelutável. Mas, se os
olharmos de mais perto, notaremos que, embora manifestando uma personalidade
menos evidente que a de Dürer, o desenho de Holbein nada fica a dever ao do seu
primogénito. A assimilação dos princípios da Renascença fez-se tão facilmente neste
artista que não ocorre a ninguém perguntar como ela se operou. Demais, o homem
parece não ter tido outras curiosidades senão as da sua arte e haver ficado isento de toda
e qualquer inquietação. Tal como o concebeu e sem que se possa dizer que tenha sido
propriamente o inventor dessa moda, o chamado retrato «à Holbein» espalhou-se tanto
nas Flandres como em França, embora ninguém tenha atingido tal perfeição, tal
infalibilidade gráfica.
São muitos os pintores alemães que se agruparam em torno de Albert Dürer e mais ou
menos sofreram a sua influência. Hans Baldung, mais conhecido por Grien, tinha só
menos nove anos do que ele e, pela rebusca do colorido, é por certo mais pintor. Neste
aspecto, tem curiosidades que o aproximariam antes de Grunewald: gosta das
combinações acres um pouco falsas; se compararmos o seu registo cromático com um
registo sonoro, diremos que ele escolhe as notas mais ásperas, quase gritantes, carecidas
de harmonia. Não tem nem o lado misterioso e profundo de Dürer, nem o lado místico e
trágico de Grunewald. A sua extravagância pesada e sensual assusta um pouco, a
despeito da sua predilecção pelas bruxas que voam nas sessões nocturnas de feitiçaria e
do motivo, que tantas vezes repetiu, da Morte que abraça uma rapariga de formas
demasiado roliças.
O menos singular destes Alemães não é sem dúvida Lucas Cranach o Velho. Este artista
começou a sua carreira com gravu-ras cuja amplidão e até cujo patético anunciavam um
digno suces-sor de Dürer. Mas, na corte de Frederico o Prudente, Eleitor de Saxe,
deleitou-se em singulares caprichos, como se tivesse a peito fazer esquecer os seus
conhecimentos. Não que haja desdenhado os motivos dos Italianos: pelo contrário,
repete indefinida mento Vénus nuas ou cobertas dum véu transparente que faz aos
sentidos um apelo nada equívoco. No entanto, industria-se em as transformar em
manequins: corpos alongados, pequenas cabeças de feições infantis mas de olhos
enrugados à maneira china, seios muito altos e redondos. Na verdade, torna-se difícil
explicar o abuso desta chapa e a afectação de certa inabilidade. E no entanto Cranach,
na sua vida, não parece de modo nenhum um estria. Muito religioso, devotado ao
luteranismo, soube sofrer pela sua fé. como o seu amo, o Eleitor.
Países Baixos
Nos Países Baixos, Lucas de Leyde tem uma carreira que apresenta alguma semelhança,
guardadas as devidas proporções, com a de Dürer, do qual aliás não se coibiu de copiar
numerosas obras. A bem dizer, a pintura flamenga sofre de carência de «motivos»,
embora a moda dos últimos tempos procure reabilitar aqueles que anteriormente
cobriram de censuras, qualificando quase de traição à pátria o seu romanismo. São
indivíduos hábeis que não tiveram talento bastante para assimilar as lições italianas.
Mas as Flandres produziram no século xvi — o seu nascimento ocorre cerca de 1525 —
um grandíssimo pintor cuja reputação não é talvez, o que deveria ser, porque dá muitas
vezes a impressão dum artista jocoso e porque os homens são incuravelmente sisudos e
não se dignam atribuir génio àqueles que os divertem: Brueghel o Velho. A bem dizer,
Brueghel mostra uma veia quase especificamente flamenga e tem por predecessor um
artista curiosíssimo, mas talvez elogiado em demasia no nosso tempo, Jerónimo Bosch.
Porque Bosch e Brueghel gostam das brincadeiras triviais e por vezes até escatológicas
do seu país, porque representam com prazer em sua arte os provérbios nacionais,
porque têm uma veia camponesa e jocunda, quase os assimilaram um ao outro. Ora eles
são no fundo muito diferentes. A zombaria de Bosch é muito mais intelectual; mas,
como pintor, não pode comparar-se ao seu camarada mais novo. Muito menos grotesco,
menos rico de extravagâncias, este é sempre inteligível, e, dando o devido desconto a
uma certa «actualidade* de época que hoje ignoramos, os seus quadros não são
especialmente difíceis de interpretar: cenas religiosas transpostas para a vida cotidiana,
provérbios figurados, alusões até — por exemplo, na trágica Margot a Desesperada —
às guerras que desolavam as Flandres. Para bem observar o abismo que separa os dois
pintores, há que ouvir aqueles que são mais sensíveis aos valores cromáticos do que à
historia narrada. Não concebem eles que se possa pôr em paralelo a secura de Bosch
com a alta qualidade de Brueghel. Um dos seus quadros conservados em Viena, o
Caçador de Ninhos, denota rara justeza e uma distinção que contrasta com o carácter
rústico do motivo; por outro lado, a paisagem não fora nunca traduzida com um
sentimento tão forte, tão emotivo como nas Estações do Ano. Cometer--se-ia aliás um
grave erro procurando, como já muitas vezes se fez, estabelecer uma oposição entre
Brueghel e a Itália. Exagerou-se nestes últimos anos, fazendo dele um humanista, mas
não resta dúvida de que ele não desdenhou em nada as aquisições ultramontanas.
Franca
A França não pode opor às Flandres nenhum pintor da estatura de Brueghel e os
episódios da conquista italiana assinalam-se antes, neste país, na arquitectura e na
escultura. Pode aliás precisar-se a data do início desta conquista : 1494, cavalgada de
Carlos VIII na Itália. O Rei e os seus companheiros ficam maravilhados com tudo o que
descobrem. Trazem consigo artistas, mas — fenómeno bastante de impressionar —
admiram sobretudo uma arte já antiquada no país de origem. Isto compreende-se
muitíssimo bem, se se considerar que as regiões com as quais eles estão mais em
contacto são as do Norte e especialmente o Milanês O bordado de arabescos da Cartuxa
de Pavia parece-lhes um ideal e eles mandam vir, como Georges d'Amboise para o seu
castelo de Gaillon, decoradores que possam evocá-la. Arquitectos como Fra Giocondo e
o Boccador acompanham-nos. Da sua conjunção com os mestres pedreiros franceses
nasce um estilo compósito que se tem gabado muito e que floresce sobretudo nos
Castelos de Loire. Neste domínio, é Chambord a obra-prima. O antigo castelo francês
de grossas torres e até muitas vezes rematado por um torreão serve de estrutura; depois
recobre-se de finas esculturas, orna-se de pequenos campanários. Os telhados,
frequentemente muito altos e inclinados, casam-se por vezes harmoniosamente com
algum terraço. A bem dizer, não é somente a forma que faz de Chambord um edifício
diferentíssimo dos edifícios antigos: é também a simetria, até então quase desconhecida.
No entanto, este monumento inabitável que se ergue nos confins dos pântanos de
Sologne, ordenado em torno duma escadaria gigântea, não passa duma espécie de
monstro. Mais aprazíveis são Azay--le-Rideau e Blois, que muito beneficiam da
paisagem circunvizinha e das reminiscências de uma civilização e de uma literatura
excepcionalmente brilhantes.
No entanto, os escultores então vindos da Itália ou ali formados não são geniais. Os
Juste ergueram com pompa em Saint-Denis o túmulo de Luís xii e fixaram desse modo
um tipo de monumento funerário destinado aos grandes da Terra. O Francês mais
notável desta geração é Michel Colombe, que trabalhou em Gaillon e que fez o túmulo
não destituído de mérito do Duque de Bretanha, hoje na Catedral de Nantes. Quanto aos
pintores, é de surpreender a sua atonia, se se atender sobretudo a que o Rei Francisco i
mandou vir da Itália Leonardo de Vinci, mas este, durante os seus derradeiros anos,
passados no Castelo de Cloux, não parece haver-se preocupado muito em fazer
proselitismo: envelhecia consagrando-se cada vez mais a passatempos científicos.
Tudo muda em meados do século. Chega* então a França uma nova vaga de artistas
italianos chamados pelo Rei, com o objectivo especial de transformar a sua residência
de Fontainebleau. São homens familiarizados com a grande Renascença Italiana e
também com o seu declínio. Ao mesmo tempo, aparece uma geração de artistas
franceses que difere muito da precedente pela sua formação: foram eles à Itália,
observaram e apreciaram em Roma os edifícios antigos. Um dos Italianos é o arquitecto
Serlio de Bolonha, discípulo de Balthazar Peruzzi, o qual era, por sua vez, discípulo de
Rafael. Até há poucos anos, havia tendência para menosprezar o contributo de Serlio.
Ora os documentos recentemente descobertos mostram que a sua função de consultor
deve ter tido muita importância — e, quanto à sua capacidade, o Castelo de Ancy-le-
Franc constitui um testemunho decisivo. Os manuscritos que deixou têm, além disso, a
vantagem de mostrar como ele era pouco sectário em presença das singularidades que
lhe apresentava a arquitectura francesa. Os pintores mais importantes foram Rosso,
florentino, cujo estilo eloquente e até grandiloqüente tira a sua inspiração de Miguel
Angelo, e o Primatice, igualmente florentino, formado por Júlio Romano, sob cuja
direcção trabalhou na decoração do Palácio do Tê. Rosso superintendeu na execução do
sumptuoso conjunto de pinturas e estuques da galeria de Francisco i, obra que marca
uma data e que nunca foi esquecida em França. Quanto ao Primatice, o seu talento
fecundo, feliz e sorridente mostrou-se à altura de todas as empresas a seu cargo.
Instalado em França, onde morreu abade de Saint-Martin, desempenhou neste país o
papel dum director de Belas-Artes, ordenando tão bem as obras de pintura como as de
arquitectura e fornecendo modelos aos escultores. O tempo não poupou as suas
produções, de cujo mérito se pode ajuizar sobretudo pelos seus desenhos, de grande
facilidade, de gosto superior e que, isentos do que há de pesado em Júlio Romano,
atingem muitas vezes a encantadora leveza do Corregió.
A julgar os homens pelo testemunho que eles deixam de si próprios, o mais importante
destes emigrados teria sido o escultor Benvenuto Cellini, mas não oferecem dúvida as
fanfarronadas do memorialista. Na realidade, Benvenuto Cellini demorou-se pouco em
França e teve de partir em virtude de histórias de dinheiro um tanto equívocas. No
entanto, uma obra como o seu bronze da Ninfa de Fontainebleau, que sofreu no Louvre
um fracasso, não pode deixar de ser referida, pois contribuiu largamente para formar o
gosto da época, não só quanto à técnica do baixo-relevo como também quanto ao ideal
feminino dos artistas.
Atribuíu-se com obstinação a Jean Goujon uma estátua encantadora mais pelo seu
sentimento geral do que pelas suas qualidades plásticas, a Diana do Castelo de Anet,
cujas proporções muito alongadas correspondem muito mais à moda da época do que ao
génio pessoal do artista. Demais, este, constantemente associado a Lescot, não parece
haver trabalhado para Philibert Delorme, o arquitecto de Anet e das Tulherias. Philibert
Delorme é um habi-líssimo construtor: a capela de Anet com a sua cúpula, monumento
pequeno mas perfeito, basta para o fazer enfileirar entre os mestres. Mais do que os
outros artistas, ele esforça-se por criar um estilo francês inspirado no antigo e pretende
para isso, como alguns outros, desenhar uma nova ordem. Quanto a Bullant, torna-se
difícil discernir a parte que lhe cabe na construção do Castelo de Ecouen e pode muito
bem acontecer que o seu papel tenha sido muito exagerado.
A Jean Goujon sucede como escultor Germain Pilon, cuja longa carreira vai até 1590 e
o põe em contacto com outra França, a do fim das guerras de religião. Muito mais do
que Goujon, cuja arte purista dá um tanto a impressão dum corpo estranho na história da
nossa escultura, Pilon, cujo pai era aliás imaginário, continua a linhagem dos
imaginários franceses. As suas obras, que estão longe de ter a distinção das de Goujon,
patenteiam uma desigualdade flagrante. Com efeito, o artista, sobretudo no fim da vida,
tornara-se uma espécie de empreiteiro carregado de encomendas e não pôde trabalhar
por sua mão muitas obras saídas da sua oficina. Há que ajuizar do seu valor por obras
como as três estátuas que sustentavam o coração de Henrique ir ou como essoutras, de
madeira, que suportavam o relicário de Santa Genoveva ou ainda como alguns bustos de
factura seguríssima.
Pela mesma época, na Lorena, faz-se notar Ligier Richier, que trabalhou sob a direcção
do Primatice no túmulo dos Guises. Decepciona por vezes, a despeito das suas
qualidades de bom artífice, e o seu Sepulcro de Saint-Mihiel não é isento da vulgaridade
nem de ênfase. Em contrapartida, possui um sentido dramático pronunciado. Apesar de
um naturalismo extremo, o túmulo de Phi-lippe de Gueldre, de mármore de duas cores,
emociona — e, uma vez na sua vida. Richier descobriu uma atitude sublime, a da figura
inteiriçada do túmulo de Rene de Chalons, em Bar-le-Duc, que ergue o coração para o
céu.
Assim, quase até ao fim do século, conserva a escultura francesa um justo renome. Que
não suceda o mesmo com a arquitectura, é coisa natural, pois as perturbações resultantes
das guerras de religião não permitiram os grandes empreendimentos. Mas a pintura, sem
que as mesmas razões que devam ser forçosamente invocadas, não é muito mais
brilhante. O exemplo do Primatice não teve fecundidade imediata. Os que o imitam e
estão hoje reunidos sob o nome da Escola de Fontainebleau não saem da mediocridade,
embora tenham tido abundantes e rendosas encomendas. A lição dos Italianos mais ou
menos afrancesados parece ter sido até mais bem compreendido pelos Flamengos do
que pelos Franceses. Foi nas fileiras daqueles que o Primatice encontrou os seus
melhores gravadores, os quais forneceram um importante contingente à chamada
segunda Escola de Fontainebleau, que floresce no final do século.
Entretanto, à margem desta arte ávida de grandes superfícies a decorar, possui a França
uma belíssima escola de retratistas. Dever-se-á dizer propriamente a França ? O
problema é em extremo complexo, porque se trata sobretudo duma corrente
internacional cujo mais ilustre representante foi certamente o alemão Holbein (de tal
sorte que lhe atribuíram uma colecção de desenhos devidos certamente a Franceses).
Quanto ao primeiro desta escola em França, a Jean Clouet, por alcunha Janet, era de
origem estrangeira e con-jectura-se que a sua terra natal eram as Flandres. A sua família
afrancesou-se aliás inteiramente e ninguém põe em dúvida a qualidade francesa de seu
filho, igualmente conhecido por Janet. As personalidades dos artistas são muito difíceis
de discernir nesta produção, em que se apagam perante o modelo. O seu mérito reside
sobretudo no grafismo e o que fizeram de mais sedutor são sem dúvida os desenhos
geralmente realçados a cores em que fixaram do natural quase todas as grandes
personagens do tempo — desenhos esses de cada um dos quais existem várias réplicas,
que vão em geral perdendo tanto mais o vigor quanto mais se afastam do original. São
de traço agudo e preciso e no entanto plenos de vida, à força de consciência. Mas, a
cada artista, pouco se lhe dá de marcar nos seus trabalhos algo de pessoal, uma espécie
de assinatura destinada ao menos aos iniciados. Com alguma verosimilhança, atribuíu-
se uma obra a Jean, a François Clouet e a vários outros ainda, mas a última palavra não
foi dita e não o será talvez nunca. Possuímos um quadro que é certamente obra de
François Clouet: o retrato do médico Pièrre Quthe; ora este retrato não se distingue
pelas qualidades raras que caracterizam os desenhos atribuídos ao mesmo artista.
Espanha
Os êxitos da Renascença italiana em Espanha,foram tão acentuados como nos outros
países e apresentam na origem o mesmo carácter de artifício: a vontade dos príncipes e
as suas iniciativas determinaram a vinda dos artistas ou a importação das suas obras.
Carlos v encarrega o arquitecto Pedro Machuca de erguer em Granada, perto da
Alhambra, um palácio que nunca foi acabado e cujas ruínas são olhadas com menos
atenção do que mereciam pelos amadores do mourisco. Quando Filipe ii decide, em
1563, construir o giganteo Mosteiro do Escurial para dele fazer o túmulo da sua raça,
dirige-se sem dúvida a arquitectos espanhóis, Juan Bautista de Toledo, depois Juan de
Herrera, para o construir, mas a estrangeiros para o decorar. Não acharia aliás, neste
domínio, grandes recursos no país. O seu principal escultor é Pompeo Leoni, cujos
bronzes doirados, na capela do Escurial, têm majestosa dignidade. No entanto, a
devoção popular da Andaluzia, satisfaz-se melhor com obras doutro italiano, Torrigiani,
condiscípulo de Miguel Angelo. Não julguemos contudo que a Espanha haja sofrido
com esta injecção de arte estrangeira. Um espanhol, Berruguete (1480--1561), cujo
valor não é suficientemente reconhecido fora da sua terrra, soube adaptar a maneira de
Miguel Angelo a uma técnica essencialmente popular no seu país, a escultura de
madeira policromada.
E é um discípulo dos Italianos que passa por encarnar o mais profundo do génio
espanhol: Domênico Theotocopuli, o Greco.
Assim, das Colunas de Hércules aos confins orientais da Europa — porque, nesse
tempo, os artífices italianos trabalhavam no Kremi de Moscovo — espalhara-se a nova
arte, que se apre sentava apenas como a directa herdeira da arte antiga, mas que
representava na verdade algo de muito diferente e de muito mais completo.
OBRAS CARACTERÍSTICAS
PINTURA
ITALIA — Leonardo de Vinci.— Milão (S. Maria das Graças: Ceia) / Florença
(Adoração dos Magos, Anunciação / Roma 'S.Jerónimo) / Viena (R.) / Paris (Virgem
dos Rochedos, Santa Ana, Belo Diadema, Gioconda) / Leninegrado (Madona Benois).
Bernardino Luini. — Milão (M. B.: frescos; S. Maurício: frescos) / Lugano (S. Maria
degli Angeli: Crucifixão (frescos) / Saronno (frescos) / Luino (Adoração dos Magos
(frescos) / Como (Cat.: frescos) / Berlim (frescos) / Paris (fresco, Salomé).
Rafael Sanzio. — Roma (Vaticano; f. dos Stanze, f. das Loggie executados por
discípulos, Virgem do Foligno, Transfiguração, Tapeçarias; S. Maria da Paz: Sibilas
(frescos); S. Maria-del--Populo: Cúpula da Capela Chigi (frescos); Farnesina: Triunfo
de Galatéia, História de Psique (frescos executados por discípulos) / Florença (Virgem
do Grão-Duque, Virgem da cadeira, R. R.) / Milão (Casamento da Virgem) / Bolonha
(Santa Cecília) / Nápoles (R. R.) / Berlim / Dresda (Virgem de S. Sisto) / Londres
(Sonho do Cavaleiro); M. V. e A: (Cartões de tapeçarias) / Madrid J Paris (S. Jorge, S.
Miguel, Bela Jardineira, Santa Família de Francisco I, R. R.) / Chantilly (Três Graças,
Virgem da Casa de Orleães) / Budapeste / Lisboa / Leninegrado.
Tintoreto (Jacopo Robusti). — Veneza (M. A.: Caim e Abel, Adão e Eva, Milagre de
S. Marcos, Elevação do corpo de S. Marcos, Milagre do Sarraceno, Deposição da Cruz,
Santos Luís e Jorge, Santos André e Jerónimo, R. R.; Palácio dos Doges: Mitologias do
Anti-colégio, Paraíso, Tectos e batalhas; Santa Maria dei 1'Orto, Juízo Final, Bezerro
de Oiro, Apresentação da Virgem, Martírio de S. Inês; S. Roque: Piscina de Betseda,
História de S. Roque; Escola de S. Roque: Ciclo de pinturas; S. Jorge Maior: Ceia,
Maná; S. Zacarias: Nascimento de S. João Baptista; S. Lázaro--dei-Mendicanti:
Retábulo de Santa Úrsula; S. Cassiano; Crucifixão ; S. Trovaso: Ceia) / Florença
(Vénus, Vulcano e Cupido R. R.) / Milão (Invenção do corpo de S. Marcos, Pieta) /
Roma (M. Corsini: Mulher adúltera; Gal. Colonna: Narciso, / Berlim (Anunciação,
Vénus e Vulcano, Lua e Horas) / Dresda (Alegoria da música, Libertação d'Arsinoé) /
Munique (Jesus em casa de Marta) / Viena (Suzana e os Velhos) / Londres (S. Jorge,
Via Láctea) / Hampton Court (Ester diante de Assuero, R. R.) / Madrid (Judite e
Holofernes, Salomão e a Rainha do Sabá, José e mulher de Putífar, R. R.) / Escurial
(Lava-pés) / Paris (Auto-retrato, Suzana e os Velhos, Paraíso esq.) / Lião (Danai) /
Cacn \ Lille (R.).
Véronèse (Paolo Caliari). — Veneza (Palácio dos Doges: Rapto de Europa, Decorações
e em particular Triunfo de Veneza; M. A.: Veneza com Hércules e Ceres, Refeição em
casa de Levi; S. Sebastião: Decorações da igreja e da sacristia; Santa Catarina;
Casamento de Santa Catarina : S. Francisco delia Vigna: Santa Família e Santos; S. S.
João e Paulo: Adoração dos pastores; Murano S. Pedro Mártir) / Maser, perto de
trevísio (f. da Vila Giaco-melli) / Milão (Santo António e outros Santos, Refeição em
casa do Fariseu) / Florença (Anunciação, Martírio de Santa Justina; Baptismo de Cristo,
R.): Verona (S. Giorgio in Braida: Martírio de S. Jorge; S. Paulo: Virgem em glória) /
Pádua (S. Justino, Martírio de S. Justino) / Roma (Vila Borghèse : Sermão de S. João
Baptista) / Turim (Refeição em casa de Simão) / Berlim (Alegorias) / Dresda (Adoração
dos Magos, Suzana, Virgem da família Cuccina, Bodas de Caná) / Munique (R. R.) /
Viena (Anunciação; Cristo e a filha de Jairo, Adoração dos Magos) / Londres (Visão de
Santa Helena, Família de Dário, Adoração dos Magos, Alegorias, Consagração de S.
Nicolau) / Madrid (Vénus e Adónis, Moisés salvo das águas,
Andrea del Sarto (Vannuci). — Florença (M. O.; S. Annun-ziata: f.; Chiostro dello
Scalzo : f.: arredores: Poggio e Cajano: f.) / Londres / Madrid / Paris (Caridade,
Virgem e Santos).
Pontormo (Jacopo Carucci). — Florença (M. O.: Vénus e Cupido, Adão e Eva, R. R.;
S. Lorenzzo : Morte de S. Lourenço; S. Felicita: f.; Annunziata: f.; Cartuxa dei Galluzo;
f. do claustro) / Poggio de Cajano (Vila: f.) / Bérgamo / Viena (R. R.) / Paris (S.
Família, R.).
Bronzino (Ângelo Allori). — Florença (M. O.: R. R., Flora: Palácio Velho: f.: Santa
Maria Xovella: Cristo e a filha de Jairo; Refeitório de Santa Croce: Cristo no Limbo) /
Roma (Gal. Colonna: Vénus, Cupido e Sátiro) / Milão / Berlim / Londres (Vénus,
Cupido, o Tempo e a Loucura) / Paris (Noli me tangere, R.) / Besançon (Pieta) / Nova-
lorque (R.).
Bispo de Eichstätt e seus Patronos) / Viena (S. Valentim, Jadite) / Copenhague (Vénus
e o Amor) / Paris (Vénus) / Florença Auto-retrato) / Leninegrado (Vénus). — Obra
gravada.
Hans Baldung Grien.— Berlim (Retábulo dos Magos, Cristo, Pieta, Pirame e Tisbé) /
Munique (Natividade, Música, Vaidade, R. R.) / Friburgo-em-Brisgau (Cat.: Retábulo
principal, Retábulo Schnewlin) / Nuremberga (Repouso durante a fuga para o Egipto,
Virgem do menino) / Carlsruhe / Cassel / Bamberga /carda / Praga (Martírio de Santa
Doroteia) / Londres (Trindade, Virgem e S. João) / Madrid (Três Graças) / Budapeste
(Adão e Eva) / Florença (Morte e Mulher) / Basileia (Natividade, Crucifixão, Morte e
Mulher). — Obra gravada.
Hans Holbein o Moço. — Basileia (Cena da Paixão, Mulher e filhos do artista, Lais,
Ceia, Cristo Morto, Taboleta de Mestre--Escola, R. R.) / Soleure (Virgem e menino,
Bispo e S. Urs) / Berlim (R. R.) / Dresda (R. R.) / Darmstadt (Virgem do Burgo--
mestre Meyer) / F'rancfort f Calsruhe (Santa Úrsula, S. Jorge) / Friburgo-en-Brisgau
(Cat.: Adoração dos Pastores e dos Magos) / Viena (R. R.) / Londres (Embaixadores, R.
R.) / Hampton Court (Noli me tangere) / Windsor (R. R.) / Paris (R. R.) / Florença (R.
R.) / Haia (R, R.) / Nova-Iorque (R.). — Obra gravada.
PAÍSES BAIXOS
Chantilly (Colecção de retratos a lápis) / Vie?ia (R. R.) / Angers (R. R.) / Florença (R.
R.) / Turim (R. R.).
ESCULTURA
Germain Pilon. — Paris (M. L. : Graças conduzindo a urna do coração de Henrique ii,
Figuras do relicário de Santa Genoveva,
Juan de Juni. — Valhadolid (Cristo no Túmulo, N. S. das Angústias, Virgem das Sete
Dores) / Segóvia (Cat.: Descimento da Cruz) / Osuna (Retábulo) / Salamanca (Cat.
Nova: S. Ana e a Virgem).
ARQUITECTURA
ITÁLIA — Bramante. — Milão (Santa Maria — perto de S. Sátiro, Santa Alaria das
Graças) / Roma (S. Pedro, projecto e começo da construção; Vaticano: Pátio de S.
Dâmaso, Belvedere: S. Pietro in Montorio: Tempietto; Palácio da Chancelaria: Pátio;
Santa Maria da Paz: Claustro).
António Vignola. — Roma (Gesu, fach. de Giacomo delia S. André na via Flamínia) /
Caprarole (Castelo). Jacopo Sansovino. — Veneza (Libreria, Zecca, Loggetta).
Sebastiano Serlio.—Veneza (Palácio Zen) / Ancy-le-Franc Castelo).
Júlio Romano (Giulio Pippi). — Mantua (Palácio do Têr ütfácio da Justiça, Casa do
A).
Andrea Palladio. — Vicência (Basílica, Loggia dei Capitano, Chiericati, Thiene, Porto
Colleoni. Valmarana. Porto Bre-çinzz. Teatro Olímpico. Arredores: Vila Rotonda) /
Veneza (Redentor, S. Giorgio Maggiore, S. Francesco delle Vigne) / Maser •Vila
Bárbaro ou Giacomelli) / Malcontcnta, perto de Fusinet .a Foscari) / Lonedo, perto de
Thiene, (Vila Piovene, Vila Godi Porto) / Fanzole (Vila Emo) / Montagnana (Vila
Pisani) / Fratta Polesine (,V\\a Iteàoer).
Região Parisiense. — Paris (Louvre: Ala Pierre Lescot, Palácio Carnavalet, Igreja de
S. Eustáquio). — Castelos: Fontainc-bleau I S. Germain-en-Laye (parte) / Chantilly
(Pequeno Castelo) /