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Vol. 17
Organizadores
Coordenadores
2014
2014 Curitiba
Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
D597
Direito penal e criminologia
Nossos Contatos Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
São Paulo Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira
Rua José Bonifácio, n. 209, / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Nestor Eduardo Araruna Santiago
cj. 603, Centro, São Paulo – SP / Nivaldo dos Santos / Fábio André Guaragni.
CEP: 01.003-001 Título independente - Curitiba - PR . : vol.17 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
516p. :
Acesse: www. editoraclassica.com.br
ISBN 978-85-8433-005-8
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I. Título.
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EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira Luiz Eduardo Gunther
Alexandre Walmott Borges Luisa Moura
Daniel Ferreira Mara Darcanchy
Elizabeth Accioly Massako Shirai
Everton Gonçalves Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Fernando Knoerr Nilson Araújo de Souza
Francisco Cardozo de Oliveira Norma Padilha
Francisval Mendes Paulo Ricardo Opuszka
Ilton Garcia da Costa Roberto Genofre
Ivan Motta Salim Reis
Ivo Dantas Valesca Raizer Borges Moschen
Jonathan Barros Vita Vanessa Caporlingua
José Edmilson Lima Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Juliana Cristina Busnardo de Araujo Vladmir Silveira
Lafayete Pozzoli Wagner Ginotti
Leonardo Rabelo Wagner Menezes
Lívia Gaigher Bósio Campello Willians Franklin Lira dos Santos
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto
Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)
Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)
Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC
Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
Sumário
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 14
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 18
LEGISLAÇÃO .............................................................................................................................................. 23
CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 31
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 32
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 34
CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 47
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 48
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 52
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 72
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 98
A LEGITIMAÇÃO DA ESCOLHA DOS BENS JURÍDICOS DIFUSOS QUE MERECEM A TUTELA PENAL:
TRÊS OUTROS PRINCÍPIOS ....................................................................................................................... 108
POLÍTICA CRIMINAL DAS DROGAS: O PROIBICIONISMO E SEU BEM JURÍDICO (Katie Silene Cáceres
Arguello e Vitor Stegemann Dieter) ............................................................................................................ 127
O ESTADO PREVIDENCIARISTA COMO BASE PARA A CONSOLIDAÇÃO DA NOVA POLÍTICA PENAL ..... 153
REFERÊNCIAS............................................................................................................................................. 214
BENS JURÍDICOS MEDIATOS E IMEDIATOS TUTELADOS NOS TIPOS PENAIS CONTRA A ORDEM
TRIBUTÁRIA (Ariosto Teixeira Neto) .......................................................................................................... 217
BENS JURÍDICOS MEDIATOS E IMEDIATOS DOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA ..................... 221
TEORIA FISCAL APLICADA NO DIREITO PENAL – ALGUMAS OBSERVAÇÕES RELEVANTES ...................... 228
MICHEL FOUCAULT E A ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE PODER NO SISTEMA PUNITIVO ............................... 510
Caríssimo(a) Associado(a),
O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.
Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-
nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores
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selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.
Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.
O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.
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Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.
Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.
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Apresentação
A analogia, obviamente, não foi feita à toa. As discussões dos temas penais e
criminológicos invadiu e invade de tal forma a vida do cidadão que até mesmo a grande mídia,
no intuito de informar (ou seria deformar?), tem dado grande destaque não só a casos notórios
e bárbaros, mas também a crimes “comuns”. Assim, o debate sobre o Direito Penal e demais
Ciências Criminais ganha importância desmedida não só para os leigos, mas, também, para
aqueles que se dedicam à pesquisa e à academia, seja sob o estudo do fenômeno criminoso em
si, seja sob a repercussão penal e processual penal que elas representam.
E esta discussão encontra eco apropriado nos encontros anuais do CONPEDI, que,
sabedor da importância dos estudos criminológicos, de política criminal, de Direito, Processo
Penal e Execução Penal – conjunto formador de um direito penal total, na sempre citada
expressão lisztiana - tem procurado dar vez e voz aos pesquisadores da área, a seu turno
produtores de trabalhos de peso e excelência, trazendo para os encontros material para
profundas reflexões, que se desenvolvem a posteriori, seja formando parcerias para pesquisa,
seja realizando publicações conjuntas.
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RESUMO: A Parte Geral do atual Código Penal brasileiro regula, em seu art. 3º, a aplicação
das leis temporárias e excepcionais, determinando que, para tanto, se abra uma exceção ao
princípio da irretroatividade da lei penal. A partir de uma análise inicial puramente técnica,
indaga-se sobre a recepção desta previsão pela atual Constituição Federal, posterior ao Código
Penal. O presente artigo pretende, a partir de uma orientação voltada a um direito penal
mínimo e garantista, sustentar que as leis temporárias e excepcionais não são uma afronta
somente à Constituição Federal, mas sim uma afronta ao modelo de Estado Social e
Democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: lei penal; leis temporárias e excepcionais; princípio da
irretroatividade; direito penal mínimo.
SUMMARY: The General Part of the current Brazilian Penal Code regulates in his art. 3,
temporary and exceptional legislation, determining that, to make this situation technically
appropriate, is makes an exception to the principle of non-retroactivity of criminal law. From
a initial purely technical analysis, arises a questioning as to the reception of this prediction by
Federal Constitution, that is subsequent to the Criminal Code. This article aims, from a
minimum criminal law perspective and a guarantee orientation, expose the temporary and
exceptional laws are not only an affront to the Constitution, but an affront to the model of the
welfare state and democratic state of law.
1
Professor Assistente-doutor de Direito Penal e Criminologia do Departamento de Direito Público da UNESP; é
Coordenador do PPGDIREITO - Programa de Pós-graduação em Direito da UNESP; é presidente do Conselho
Editorial da Revista de Estudos Jurídicos UNESP (2010/2013); é membro do IBCCRIM, AIDP e MMPD; e é
Promotor de Justiça do MPESP. Foi membro do CONDEP/SP, representando a UNESP; e do CEAC – Conselho
Editorial Acadêmico da Fundação Editora UNESP (2008/2011). E-mail: pauloborges@franca.unesp.br
2
Graduanda do 4º ano do Curso de Direito da UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlia de Mesquita Filho
– Campus de Franca. Bolsista pela CNPq. E-mail: fogacaolivia@gmail.com
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Artigo desenvolvido em co-autoria.
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1. Introdução
O Direito Penal compreendido pela sociedade atual é um direito que sofre limitações
de cunho humanístico, e, sendo assim, sua baliza mais importante é o princípio da legalidade.
Prevista no art. 1º do atual Código Penal Brasileiro e no art. 5º, XXXIX, da Constituição
Federal de 1988, a legalidade é uma garantia fundamental proveniente de um Estado Social e
Democrático de Direito.
O art. 1º, CP, define: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem
prévia cominação legal.”, bem como o art. 5º, XXXIX, CF, prevê que “não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. O princípio da legalidade, nos
textos legais, aparece desdobrado em dois princípios derivados, quais sejam o da
anterioridade e o da reserva legal.
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De acordo com o princípio da reserva legal, somente leis em sentido estrito, ou seja,
emanadas pelo Poder Legislativo, podem definir crimes e penas. E, segundo o princípio da
anterioridade, a lei penal somente atinge fatos posteriores ao início de sua vigência.
A aplicação destes princípios apresenta justificativas tanto lógicas como políticas;
como se pode extrair dos ensinamentos de Hobbes, “se a pena supõe um fato considerado
como transgressão à lei, o dano praticado antes de existir a lei que não o proibia, não é uma
pena, mas um ato de hostilidade, pois antes da lei não existe transgressão à lei” (HOBBES,
apud QUEIROZ, 2001, p. 71), de modo que a anterioridade revela-se como corolário lógico
da reserva legal (QUEIROZ, 2001, p. 71).
Já, de acordo com Mir Puig, o princípio da legalidade é, além de uma concatenação
lógica, “uma ‘garantia política’ de que o cidadão não poderá ser submetido, seja pelo Estado,
seja pelos juízes, a penas não aprovadas pelo povo.” (MIR PUIG, 2007, p. 88).
Tais garantias, no entanto, nem sempre existiram. Conforme anteriormente
mencionado, a legalidade é amparada pela CF/88 como uma garantia fundamental, isto é, uma
ideologia desenvolvida somente no Iluminismo. A origem e contexto histórico dessas
garantias serão mais bem abordados no próximo tópico.
2.1. Histórico
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poder punitivo do Estado, dotado de sentido de garantia para a liberdade do cidadão.” (MIR
PUIG, 2007, p. 87). Surgem, então, os Estados de Direito.
Deve-se ressaltar que a legalidade pode ser encontrada como princípio tutelado por
nações anteriores ao Século das Luzes, como a Magna Carta inglesa, de 1215, e a Constitutio
Criminalis Carolina, de 1532, mas sua conotação não é a mesma, visto que a primeira admitia
o costume como fonte de Direito, e a segunda não proibia a analogia em desfavor do réu
(MIR PUIG, 2007, p. 87).
Com efeito, a legalidade como proteção dos cidadãos contra o poder punitivo do
Estado surge somente com o famoso aforismo elaborado por Feuerbach, qual seja, nullum
crimen, nulla poena sine lege (MIR PUIG, 2007, p. 87).
No mesmo sentido, Beccaria, ao publicar a obra “Dos delitos e das penas” em 1764,
é o primeiro a sistematizar o princípio da estrita legalidade dos crimes e das penas em três
postulados fundamentais: “legalidade penal, estrita necessidade das incriminações e uma
penologia utilitária.” (PRADO, 2010, p. 88). A partir desses pensamentos, Beccaria se torna
o precursor da Escola Clássica, a qual considera “o Direito Penal não tanto em função do
Estado, quanto em função do indivíduo, que deve ser garantido contra toda intervenção estatal
não predisposta pela lei e, consequentemente, contra toda limitação arbitrária da liberdade”
(PRADO, 2010, p. 89).
Desde a Escola Clássica até os dias atuais, a teoria do delito transformou-se
intensamente, desenvolvendo novas ideias, até atingir o que se sustenta por Estado Social e
Democrático de Direito, surgido, por excelência, em resposta à grande depressão, crise
econômica iniciada nos Estados Unidos no ano de 1929 devido, entre outras razões, à política
de não intervenção do Estado na economia, e que atingiu o mundo todo.
Um Estado que se diz de Direito, portanto, é aquele pautado pela legalidade, e que
surge no Séc. XVIII, o Século das Luzes, como reação ao absolutismo da época; um Estado
Social quer dizer que a intervenção política somente se justifica na medida em que tutela os
interesses da sociedade como um todo; e a expressão “Estado Democrático” corresponde
àquele Estado que se põe a serviço do cidadão (MIR PUIG, 2007, p. 86).
2.1.1. Brasil
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países, por assim dizer, “subdesenvolvidos”, que seguem os modelos e referenciais dos países
centrais.
A sociedade primitiva brasileira, isto é, a existente antes da chegada dos
colonizadores portugueses no Séc. XVI, caracterizava-se pela vingança privada (PRADO,
2010, p. 122). Já, no período colonial, vigorou no Brasil a legislação portuguesa, incluindo,
naturalmente, a legislação penal lusa. As primeiras duas décadas desde o descobrimento
foram regidas pelas Ordenações Afonsinas, consideradas o primeiro código europeu
completo. Em 1521, a legislação foi substituída pelas Ordenações Filipinas, tidas como uma
cópia piorada das ordenações anteriores, considerados os erros gramaticais do texto
legislativo (PRADO, 2010, p. 122 et. seq.).
O Código Criminal do Império surgiu em 1830, como o primeiro código autônomo
não somente do Brasil, como de toda a América Latina (HUNGRIA apud PRADO, 2010, p.
125). Orientado pelas diretrizes da Carta Magna brasileira de 1824, foi o primeiro documento
que imperou no Brasil protegendo direitos e interesses individuais, de acordo com as
tendências liberais do Iluminismo. Inclusive, foi a primeira legislação a garantir a legalidade
como um direito fundamental, visto que as ordenações, elaboradas em um contexto
absolutista, não previam o princípio da legalidade (PRADO, 2010, p. 124-125).
Pode-se notar, então, que, tanto no Brasil como no mundo, o princípio da legalidade,
como forma de garantir direitos individuais fundamentais, em especial a liberdade dos
cidadãos, se concretizou na sociedade muito recentemente. Compreende-se, assim, que a
legalidade não surgiu isoladamente, mas sim acompanhada de um rol de outros princípios,
com o escopo de transformar o sistema jurídico da época. Ocorre que, quando da aplicação do
princípio da legalidade e de seus derivados – anterioridade e reserva legal, surgem conflitos
de ordem temporal. Esses conflitos e as soluções adotadas serão estudados a seguir.
A aplicação da lei penal no tempo sofre alguns conflitos, no que tange à incidência
da legislação em situações de revogação de leis. Em um caso como este, surge a indagação
acerca de qual legislação deve ser aplicada em crimes que foram cometidos sob a vigência de
uma legislação e passam a ser julgados sob a vigência de outra. A solução encontrada pelo
CP, em seu art. 1º, e em acordo com a CF/88, em seu art. 5º, XL, é a aplicação do princípio da
irretroatividade da lei penal, que consiste na não incidência de uma lei a fatos anteriores à sua
vigência.
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3. Legislação
O artigo do CP que regula as leis temporárias é o art. 3º, que diz: “A lei excepcional
ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a
determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.” Atente-se para o fato de que
a redação do texto apresenta-se confusa, visto que “decorrido o período de sua duração”, que
vem em primeiro lugar, refere-se à lei temporária, que está em segundo lugar, e “cessadas as
circunstâncias que a determinaram”, que vem ao final, é referente à lei excepcional, que se
localiza no início do texto legislativo.
Deixadas as irregularidades técnicas à parte, o art. 3º dispõe sobre uma exceção ao
princípio da irretroatividade da lei penal combinado com o da retroatividade da lei penal mais
benéfica, contido no art. 2º e parágrafo único, que preveem: “Art. 2º Ninguém pode ser
punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a
execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único. A lei posterior, que
de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por
sentença condenatória transitada em julgado”.
Da análise da CF/88 acerca do tema, encontra-se o art. 5º, XL, que prevê: “a lei penal
não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Esta disposição é a única existente na Magna
Carta, e incisivamente não admite qualquer exceção ao princípio da irretroatividade da lei
penal e da retroatividade da lei penal mais benéfica.
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temporárias ou excepcionais tratarem de hipóteses especiais não implica que o fato a ser
regulado é diferente daquele em situação de normalidade.
Partindo do pressuposto de que a exceção contida no art. 3º, CP é de flagrante
inconstitucionalidade, deduz-se que as leis temporárias e excepcionais devem incidir somente
nas hipóteses de julgamento anterior à autorrevogação. Tal entendimento implica em evidente
injustiça, dado que os delitos julgados até a autorrevogação levam à punição do agente,
enquanto aqueles julgados em momento posterior levam à absolvição do indivíduo. O escopo
a seguir, portanto, é desconstruir o instituto das leis temporárias e excepcionais através da
análise dos motivos políticos de sua existência.
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agência judicial penal e o sistema penal como um todo. “Porque não há exercício de poder
estatal que não seja político: ou é político ou não é poder.” (ZAFFARONI, 1991, p. 207). Em
consonância, porém sob uma ótica mais voltada às agências criminais, BARATTA aponta: “o
poder de atribuir a qualidade de criminoso é detido por um grupo específico de funcionários
que [...] exprimem certos estratos sociais e determinadas constelações de interesses.” (2002, p.
111). Este grupo de funcionários, destaca o autor mais adiante, é um grupo que tem o poder
de influir sobre os processos de criminalização, de modo que a criminalidade passa a ser
compreendida como uma realidade social forjada, ou seja, tem sempre natureza política
(BARATTA, 2002, p. 119).
A admissão, portanto, do sistema repressivo do Estado como um ente político traz
três implicações diretas: primeiramente, que esse sistema, nele incluindo o órgão legislativo, o
judiciário, bem como as agências executórias e até mesmo a mídia, atua em função de um
interesse parcial, ou seja, de um interesse tendencioso, político. A segunda implicação,
decorrente da primeira, consiste em que a elaboração dos textos normativos penais é feita
visando atender o interesse político existente. Em terceiro lugar, estabelece-se, através de uma
simples verificação histórica, que o interesse político que move o sistema penal não se altera,
ainda que se alterem os partidos políticos, e busca, através do sistema repressivo do Estado,
manter o status quo vigente, e que esse interesse político consiste na proteção do sistema
econômico capitalista.
A inserção do elemento econômico é descrita por ROBERTI: “Em busca de um
‘culpado’, pela presença em nossa sociedade da crescente violência individual, começa-se a
explorar a existência da pobreza que, à primeira vista, nos parece ser conseqüência inevitável
de uma certa ‘ordem natural’ que comanda as relações entre os homens.” (2001, p. 110).
Evidentemente, a exploração da pobreza como causa da violência não é feita por acaso, e a
existência dela não provém de uma ordem “natural”, mas sim forjada, e ambas essas situações
são o escopo final do interesse político do Estado.
Desse modo, infere-se que os institutos penais existentes estão a serviço de um
interesse político, e, dentre tais institutos, as figuras das leis penais temporárias e
excepcionais.
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código remete à implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas, em que foi adotado um
regime ditatorial e, portanto, antidemocrático. Inclusive, foi sob esse regime que foi outorgada
a Constituição Federal de 1937, a única na história do Brasil, até o presente momento, que não
previu em seu texto o princípio da retroatividade da lei penal mais benigna, de modo a
permitir a ultra-atividade das leis temporárias ou excepcionais. (BORGES, 2005, p. 128-130).
Durante a vigência da Constituição Federal de 1937, o instituto das leis penais
excepcionais e temporárias, e sua qualidade de ultra-atividade, apresentava-se, no plano
lógico-formal, como constitucional. No entanto, a partir da aprovação da Constituição Federal
de 1946, ocasião em que a retroatividade da lei penal mais benigna foi restabelecida em seu
art. 141, parágrafo 294, juntamente com o regime político democrático (BORGES, 2005, p.
130), aquele instituto não foi recepcionado e sua aplicação subsequente passou à
inconstitucionalidade, permanecendo irregular até os dias atuais5.
Ressalta-se aqui que a hipótese de simples impedimento da ultra-atividade dessas
leis, mas a perpetuação dessa modalidade, incidindo somente naqueles casos julgados durante
sua vigência, é igualmente inaceitável, visto que, em concordância com a maioria doutrinária,
tal norma seria injusta (JOPPERT, 2006, p. 57), ao punir somente parcela dos infratores, e
também perderia sua eficácia (JUNQUEIRA, 2005, p. 41).
A partir de uma análise para além da inconstitucionalidade do art. 3º do atual Código
Penal6, e retomando o contexto histórico-político da outorga da Constituição Federal de 1937
e da elaboração do Código Penal de 1940, extrai-se a verdadeira razão de ser das leis
temporárias e excepcionais: estas leis sempre irão prever uma situação legal mais severa do
que a anterior, sempre irão criar tipos penais para ocasiões que se pretendem de urgência e
fora da normalidade, para regular a atuação dos membros da sociedade de acordo com os
interesses políticos do Estado. Uma norma que possa enrijecer o ordenamento jurídico penal
de forma rápida e aos moldes dos interesses dos detentores de poder revela-se extremamente
conveniente, mas tal possibilidade somente pode ser admissível em um regime político
totalitário, como aquele vigente à época de sua criação. Uma vez restabelecida a democracia,
este instrumento deveria ter sido aniquilado do sistema penal, dada sua flagrante
arbitrariedade.
4
CF/46, art. 141, parágrafo 29: A lei penal regulará a individualização da pena e só retroagirá quando
beneficiar o réu.
5
CF/88, art. 5º, XL: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
6
Art. 3º, CP: A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas
as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.
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crítica é a admissão de que o direito penal, contrariamente ao postulado na Magna Carta, não
é igual para todos, de maneira que a condição de criminoso é atribuída de forma desigual e
não aleatória ao longo da sociedade. Por fim, a terceira proposição estabelece que o grau de
punição exercido sobre os crimes efetivamente averiguados não corresponde ao grau de
danosidade social, mas sim de danosidade àqueles bens de interesse das classes detentoras do
poder político (BARATTA, 2002, p. 162).
Admitindo a crise de legitimidade do sistema penal, como exposto no item 4.1.,
observa-se um ordenamento jurídico penal inchado, em que ocorre o “fenômeno da
hipercriminalização”. Este fenômeno acaba por atingir uma tipificação excessiva dos atos
praticados pelos cidadãos, tendo como consequência a perda da generalidade, da
impessoalidade e da abstração (ROBERTI, 2001, p. 120-121), ou seja, a especificidade dos
tipos penais é tamanha que impede sejam eles dirigidos a toda a sociedade, acabando por se
canalizar a determinados setores sociais, isto é, aos setores de baixa renda.
Uma solução proposta é a do direito penal mínimo, isto é, a retração do direito penal
para a diminuição da criminalidade (ROBERTI, 2001, p. 138). Pode parecer, em um primeiro
momento, que tal aferição é lógica, afinal, uma vez desconstituindo tipos penais, ainda que
tais atos continuem sendo cometidos, eles deixam de ser considerados como delitos. Ocorre
que a retração do direito penal vai além, implica na reflexão sobre os tipos penais existentes,
questionando o real valor dos bens jurídicos tutelados por aqueles tipos para o interesse
social, e verificando a desnecessidade da tutela das chamadas “bagatelas criminais”. Implica,
ainda, na não inserção do infrator na prisão carcerária, evitando, com isso, em grande medida,
a reincidência, e, através de penas alternativas, ou até mesmo de sanções de âmbito
administrativo, possibilitando uma verdadeira reinserção social do indivíduo.
Tendo a proposta de um direito penal mínimo em mente, faz-se a análise do instituto
das leis penais temporárias e excepcionais. Admitindo que estas sejam criadas para
regulamentar uma situação de emergência passageira e anormal, é imprescindível o
questionamento acerca da necessidade de se fazer tal regulamentação por meio do direito
penal, e não por meio do direito administrativo, por exemplo. Ao se aceitar que essa
adequação legislativa seja feita por meio do direito penal, abre-se uma brecha para a
arbitrariedade do poder punitivo do Estado, sendo assim uma afronta à própria democracia.
Frear as possibilidades que ensejam as leis penais temporárias e excepcionais é um início
rumo à superação da crise de legitimidade por que passa o sistema penal brasileiro, e a
eliminação dessa modalidade de leis do ordenamento jurídico brasileiro promete somente a
30
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5. Conclusão
O estudo das leis penais temporárias e excepcionais e sua aplicação, regulada no art.
3º do Código Penal, fez emergir a discussão acerca de sua constitucionalidade. Em esfera
doutrinária, constatou-se a manifestação de opiniões no sentido de admitir sua
constitucionalidade, a despeito de argumentos minoritários. A dedicação dos autores ao
assunto era mínima e sem qualquer aprofundamento no assunto, de modo a transmitir a ideia
de que, ainda que houvesse pequenas divergências, o assunto era pacífico. A apatia política
perante o objeto ora estudado, ao invés de emitir aceitação, gerou desconforto. Uma
averiguação mais detalhada das origens das leis temporárias e excepcionais revelou um dado
importante: elas surgiram em meio a um regime ditatorial. A reunião dessa informação com
leituras críticas de criminologia e sociologia fez despertar a indagação a respeito da
verdadeira função que tais leis exercem no sistema penal brasileiro, de modo que a
indiferença dos doutrinadores diante do tema simplesmente reiterava o desejo de manutenção
da ordem como ela está, ou seja, de uma criminalidade imensurável, os órgãos carcerários
compostos quase exclusivamente por membros das classes econômicas mais baixas,
garantindo o afastamento desses indesejáveis. As leis temporárias e excepcionais
eventualmente criadas, invariavelmente hão de ser destinadas a proteger bens jurídicos como
a propriedade privada, atendendo somente os interesses dos detentores de poder.
As leis previstas no art. 3º do Código Penal, mais do que serem uma afronta à
Constituição Federal, são uma afronta à democracia e aos limites do jus puniendi do Estado,
e, portanto, devem ser eliminadas do ordenamento jurídico penal brasileiro, como um passo
em direção à retração do direito penal, com vistas a concretizar os verdadeiros valores de
igualdade, democracia e interesse social.
31
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
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32
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
RESUMO
O presente trabalho analisa de que modo o direito penal na era da globalização pode
intervir de maneira legítima para a proteção de bens jurídicos supra-individuais
internacionalmente reconhecidos. Além disso, busca-se verificar se o direito brasileiro,
diante das ameaças globais e transfronteiriças e da revisão do conceito de soberania, pode
assumir a tutela penal de bens jurídicos supra-individuais a partir da aplicação imediata dos
tratados internacionais no âmbito interno e de que forma pode fazê-lo e com quais limites.
São analisados os diferentes caminhos adotados pelo legislador pátrio para atender à
obrigação de dar cumprimento à norma internacional e preservar a reserva legal em
matéria penal.
PALAVRAS-CHAVE: Globalização; Direito Penal; Bem jurídico supra-individual;
Princípio da reserva legal; Direito Internacional Público; Direito Internacional Penal;
Convenções internacionais
ABSTRACT
This paper analyzes how the criminal law in the era of globalization can legitimately
intervene to protect supraindividual interests internationally recognized. Furthermore, this
work seeks to verify if the Brazilian law, considering the global and transnational threats
and the revision of the concept of sovereignty, can assume the criminal protection of the
supraindividual interests by the immediate application of international treaties in the
domestic level and in which way it can do it and whit what limitations. It analyzes the
different paths taken by the national legislator to meet the obligation to comply with
international law and preserve the principle of legality in criminal matters.
KEYWORDS: Globalization; Criminal law; Supraindividual interests; The principle of
legality; Public International law; International Criminal Law; International conventions
1
O autor é Advogado, Professor de Direito e mestrando vinculado ao programa de Mestrado em Direito
Empresarial e Cidadania, do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).
2
O autor é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais
(UFPR). É Professor de Direito Penal Econômico do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). É Professor de Direito Penal do
UNICURITIBA, FEMPAR, ESMAE, CEJUR e LFG.
33
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1. Introdução
34
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3
Defensor do liberalismo econômico, Hayek sustenta que as forças da concorrência devem ser empregadas
como um meio de coordenar os esforços humanos (individuais). Para ele, só a livre concorrência pode
favorecer o ajustamento das atividades humanas umas as outras, sem necessitar de intervenção coercitiva e
arbitrária de alguma autoridade, o que colocaria em xeque a ideia de liberdade. Ver HAYEK, Friedrich
Auguste. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura: Instituto Liberal, 1987.
4
Friedman retomou o ideário liberal de Hayek nos anos 1960, e defendeu de maneira aguerrida a liberdade
dos mercados e redução da interferência do Estado nas atividades humanas. Segundo o autor, cabe ao Poder
Público intervir na economia somente para garantir o bom funcionamento do mercado. A partir da defesa
intransigente da autorregulação do mercado Friedman forneceu o substrato teórico ao neoliberalismo,
encampado pelo FMI e pela Cartilha de Washington. Ver FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade.
São Paulo: Artenova, 1977.
35
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36
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leva os agentes econômicos a adotarem práticas que são vistas como economicamente
eficientes, mas que são lesivas à sociedade, como, por exemplo, a degradação do meio
ambiente (vista, durante décadas, como “externalidade”, i.é, problema derivado da
atividade econômica cuja resolução é externo à unidade fabril) e a exploração do trabalho
escravo, notadamente em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como é o caso
do Brasil)5.
A partir da perspectiva do mercado global autorregulado, os recursos naturais e o
trabalho humano passam a ser tratados como meras mercadorias (commodities passíveis de
variação de preço, dependendo das necessidades do mercado, e que podem ser compradas
onde forem mais baratas) e como um custo da atividade empresarial que precisa ser
aplacado. Com o intuito de “reduzir os custos operacionais” e aumentar o lucro, as
empresas descentralizam a produção, transferindo-a em parte ou no todo para locais onde
podem explorar recursos naturais e mão-de-obra livremente e, assim, ganhar
competividade no mercado: “livrar-se da responsabilidade pelas consequências é o ganho
mais cobiçado e ansiado que a nova mobilidade propicia ao capital” (BAUMAN, 1999, P.
16).
Da análise dessa realidade intrincada, PUREZA (2002, p. 240) identifica as
características do paradigma hegemônico da globalização econômica, entre elas: a
prevalência do princípio do mercado sobre o princípio do Estado; a total subordinação dos
interesses do trabalho aos interesses do capital; o protagonismo incondicional das empresas
transnacionais; e o enfraquecimento dos Estados nacionais.
O enfraquecimento do poder de regulação estatal, o intenso desenvolvimento da
tecnologia da informação, o movimento contínuo de abertura das fronteiras, a facilidade de
deslocamentos de pessoas e mercadorias e a acirrada competição econômica em nível
global: todos estes traços essenciais da economia se unem pelo signo da
desterritorialização e atingem diretamente a eficácia do poder punitivo estatal. O motivo é
claro: o Estado atua como agência de poder territorial, ao passo que a criminalidade
usualmente praticada no bojo da atividade empresarial – acompanhada das circunstâncias
elencadas - afeta bens jurídicos supra-individuais (como o meio ambiente, a organização
do trabalho, as relações de consumo) de maneira supraterritorial. Assim, há necessidade de
fundar um novo modelo persecutório de tais delitos. Principia pela cooperação interestatal.
5
Para ambos os aspectos, o documentário canadense The Corporation, de 2003, direção de Mark Achbar e
Jennifer Abbott, é de inestimável valia.
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É claro que o Direito Penal não realizará sozinho a tarefa de por a salvo os bens
jurídicos coletivos, mas pode, respeitada a proporcionalidade da intervenção penal
(subsidiariedade), reforçar a tutela dos bens jurídicos socioeconômicos que se encontram
vulnerados na era da globalização econômica (PÉREZ, 1998, p. 63).
Segundo PALAZZO (1989, p. 86-87) e FERRAJOLI (2006, p. 37), o Direito
Penal só será considerado democrático se estiver permeado pelos valores constitucionais
da ordem jurídica em que está inserido. Diante disso, é possível afirmar que o
cumprimento dos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil que impõem
a tutela penal de bens jurídicos deve estar em harmonia com o princípio da reserva legal
(art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988). Esta imposição dá-se mediante
indicações convencionais criminalizadoras, nome paralelo às indicações constitucionais
criminalizadoras.
A indicação constitucional criminalizadora ocorre quando a Constituição elege
certos setores de criminalidade para impor-lhes tratamento jurídico mais gravoso. Foi o
que a Constituição de 1988 fez, v.g., para os crimes ambientais (art. 225, 3º), inclusive no
tocante à subjetividade ativa delitiva dos entes coletivos. Explicando o fenômeno da
indicação constitucional criminalizadora, LUISI sustentava que:
6
Acerca do mesmo tema, v. a dissertação de Mestrado Mandados de Criminalização decorrentes de
tratados de direitos humanos, de JACEGUARA DANTAS DA SILVA PASSOS, junto à PUC-SP, de
01.10.11.
40
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internacional; b) incorporar o texto dos tratados internacionais aos tipos penais por meio da
técnica legislativa do uso de elementares normativas jurídicas, quando tais tipos abrigarem
a indicação criminalizadora derivada da normativa internacional, ainda que parcialmente.
Em atenção à segunda opção, cabe sintetizar os contornos da técnica legislativa
sugerida. O trabalho classificatório dos elementos do tipo objetivo deu-se no marco do
neokantismo, que reorientou o direito penal para o universo dos valores e intensificou os
estudos de teoria da norma. Aqui, MAYER, GRÜNHUT e MEZGER são referências
obrigatórias.
Em 1915, o trabalho de MAYER foi fundamental para a futura compreensão da
tipicidade como juízo de desvalor, enquanto “indício da antijuridicidade” (2007, p. 64) e
não como mera descrição do comportamento interessante para o direito penal. Apontava a
existência frequente de elementos normativos nos tipos (como “coisa alheia”, no furto),
evidenciando com isso a dificuldade de conceber o tipo como estrutura analítica avalorada,
na forma proposta por BELING (1944, p. 55-56).7 Daí derivou a noção de que os escalões
analíticos da tipicidade e antijuridicidade não são independentes, embora separados,
mantendo uma relação “como a fumaça e o fogo” (MAYER, 2007, p. 12), alegoria que se
tornou famosa na história da dogmática penal. A tipicidade atua como indiciária da
ilicitude8 (servindo como “fundamentos do reconhecimento da antijuridicidade” (MAYER,
2007, p. 227), ou sua ratio cognoscendi) nos tipos que contém somente elementos
descritivos; quando contêm elementos normativos, que “não lhe são autênticos”, mas
“impróprios”, o tipo se mostra como ratio essendi da ilicitude (MAYER, 2007, p. 230-
231).9
De GRÜNHUT (um pouco antes de MEZGER) veio a contraposição entre
elementos factuais e normativos: atento aos limites do uso da liberdade, pelos juízes, no ato
decisório, o autor exortava-os a sentirem-se como um “servidor do ordenamento jurídico”,
e não como seus artífices, mesmo quando o legislador deixasse-lhes espaços de liberdade
valorativa (GATTA, 2008, p. 31). Os elementos factuais, referidos “imediatamente a
objetos do concreto mundo real, descrevem uma ação, ou representam o desenvolvimento
de um evento” (GATTA, 2008, p. 32). Opor-se-iam aos normativos, voltados a “estruturas
de pensamento da ordem normativa positivada” (GRÜNHUT apud GATTA, 2008, p. 31),
7
Ainda Cf. ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I. Madrid: Civitas, 1997, p. 281.
8
Curiosamente, MAYER (2007) considerava que, neste caso, o tipo continuava descritivo. Porém, um tipo
que “indicia ilicitude” não contém mera descrição, mas já encerra juízo de valor. Logo, valora.
9
Ver também ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I. Madrid: Civitas, 1997, p. 281.
42
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10
Na verdade, ERIK WOLF (apud ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I. Madrid: Civitas,
1997, p. 282) criticava a existência de puros elementos descritivos, no sentido acima explicitado. É que todos
os elementos, em situações limite, exigem juízos de valor. A definição de quando ocorre um “matar”, por
exemplo, exige prévia definição cultural ou mesmo jurídica de quando a vida acaba. Assim, uma pessoa com
morte cardíaca pode ser vítima de homicídio num país em que a morte seja encefálica e, não obstante a morte
cardíaca, suas funções vitais sejam mantidas com aparelhos. Também definir o que é consumo em
determinadas situações exigiria juízo de valor. Outro exemplo de MEZGER (op. cit., p. 147), “homem”,
exige juízos de valor, por ex., em situações em que houve cirurgia para troca de sexo, ou transexuais com
registros civis alterados. Todavia, com vistas à crítica de WOLF, o próprio MEZGER (Diritto Penale. Trad.
Filippo Mandalari. PADOVA: Cedam, 1935, p. 211) assinalou a conveniência de destacar elementos
descritivos para diminuir o campo de juízos de valor, por razões de direito público, já que tais juízos são
passíveis de “indeterminação e subjetivismo, que frequentemente não são isentos de perigo”.
11
Tais normas podem ser de raiz técnica ou científica, cf. MANTOVANI, Ferrando. Diritto Penale: parte
generale. 6ª. ed. Padova: CEDAM, 2009, p. 66.
43
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12
GATTA, Gian Luigi. Abolitio Criminis e successione di norme ‘ integratrici´: teoria e prassi. Milano:
Guiffrè, 2008, p. 93. O autor chama estas normas de “realmente integradoras”, grupo a que pertencem
também as que integram a norma penal em branco. Porém, entende que os tipos, ao convocarem-nas, não o
fazem mediante elementos normativos. Estes, quando compõem o tipo, reclamam normas “não integradoras”.
Optamos por uma via diversa: ora os elementos normativos do tipo reclamam definições jurídicas penais ou
extrapenais (normas definitórias), ora reportam-se a contextos delineados por outras normas que, porém, não
integram o tipo. Porém, sempre são elementos normativos do tipo. Noutros termos: quando um elemento do
tipo convoca uma definição dada em lei diversa, continua sendo normativo. Trata-se de detalhe em relação ao
consistente trabalho do professor de Milão que, de toda forma, identifica na questão da integração ou não de
normas externas ao tipo penal um elemento crucial para definir consequências acerca da incidência do
princípio da reserva legal.
13
Ficariam entre os descritivos e normativos os “elementos cognoscitivos de valoração”, próprios de
situações nas quais a “experiência” e o “conhecimento experimental” permitem “uma determinada
valoração”, como o juízo sobre “a verdade ou inverdade de uma afirmação”, conforme MEZGER, Edmund.
Diritto Penale. (trad. Filippo Mandalari). PADOVA: Cedam, 1935, p. 212.
44
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14
Neste sentido, PADILHA FILHO, Valmor Antonio. Corrupção e a atividade empresarial. Dissertação
apresentada junto ao Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA.
Curitiba: 2010, p. 152.
15
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a
jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer
meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei
nº 10.803, de 11.12.2003)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela
Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
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I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de
trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I - contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de
11.12.2003)
16
Antes da entrada em vigor da Lei n° 10.803/2003, o artigo 149 do Código Penal contava com a seguinte
redação: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos”.
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organizações criminosas deveria ser feito a partir da subsunção, quando possível, ao tipo
penal do artigo 288 do Código Penal.17
Anote-se que, mesmo com a edição da Lei n° 12.694, publicada em 25 de julho de
2012, esta exegese tende a ser mantida. Afinal, o texto legal previu norma definitória de
organizações criminosas no art. 2º. Porém, não o fez mediante a previsão de tipo penal
(norma penal incriminadora), de maneira que o mandado derivado da Convenção continua
sem específica contemplação na normativa penal interna.
No que toca à Convenção sobre Combate da Corrupção de Funcionários Públicos
Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, ratificada pelo Brasil e promulgada
pelo Decreto n° 3.678/2000, optou o legislador brasileiro por se valer da técnica de uso de
elemento normativo jurídico no tipo para dar cumprimento à obrigação imposta pelo art. 1º
de reprimir penalmente as condutas previstas no tratado (também uma indicação
convencional criminalizadora).
Ao editar a Lei n° 10.467/2002, o legislador pátrio fez uso dos dois caminhos
acima delineados. Inseriu no Título XI (“Dos crimes contra a Administração Pública”) do
Código Penal o Capítulo II-A (“Dos crimes praticados por particular contra Administração
Pública estrangeira”), contendo novos tipos penais. Em segundo lugar, incorporou neles -
os artigos 337-B e 337-C - elementos normativos reproduzidos pela mencionada
Convenção (inclusive no que toca à definição de “funcionário público estrangeiro”,
constante do artigo 337-D). Atendeu, dessa forma, à obrigação de dar cumprimento à
norma internacional e preservou a reserva legal em matéria penal.
5. Conclusões
A globalização tem trazido aos Estados o desafio de proteger bens jurídicos supra-
individuais das ameaças globais e transfronteiriças. A concorrência de centros de poder
privados tem exigido do Estado uma revisão do conceito tradicional de soberania e um
novo modo de regulação. A intervenção penal através da aplicação de tratados
internacionais que impõem a repressão e prevenção de ofensas a bens jurídicos supra-
17
Ver os precedentes Extradição 633 (Rel. Min. Celso de Mello, DJ 06/04/2001), Habeas Corpus 88.914
(Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 05/10/2007), Habeas Corpus 92.958 (Rel. Min. Menezes Direito, DJ
01/08/2008) e Habeas Corpus 94.404 (Rel. Min. Celso de Mello, DJ 26/08/2008). Tese também defendida
por parte da doutrina brasileira, conforme ESTELLITA, Heloisa. Criminalidade de empresa, quadrilha e
organização criminosa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p 44-49.
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individuais pode ser a maneira mais eficaz para esses fins. Para tanto, porém, o princípio
da reserva legal não pode ser sobrepujado, pena de haver a derrocada do direito penal de
cunho democrático.
Dessa maneira, indicações criminalizadoras contidas em normativas
internacionais (tratados, convenções) das quais o Brasil seja signatário implicarão na
necessária adoção de dois caminhos alternativos, destinados a conciliar a obrigação de
criminalização com o princípio da reserva legal. (A) O primeiro é a criação de novos tipos
penais (processo de criminalização primária, mediante “novatio legis” incriminadora). É a
alternativa adequada para indicações convencionais sem qualquer contemplação pretérita
no ordenamento jurídico interno. (B) Outro caminho é constituído pela incorporação de
elementos normativos jurídicos nos tipos que já tratem, total ou parcialmente, da conduta
cuja criminalização é indicada na normativa internacional. Nesta hipótese, os elementos
normativos jurídicos devem coincidir com as redações convencionais internacionais,
sobretudo quando estas contêm normas definitórias de conceitos, institutos, etc. O caráter
valorativo dos elementos normativos do tipo torna eficazes, no plano do direito interno, os
tratados internacionais em matéria penal, ratificados pelo Brasil. Além disso, os elementos
normativos dos tipos adaptam-se à novas definições, necessárias tanto quanto mais
flexíveis são os contornos dos bens supra-individuais protegidos e, mesmo, dos modos de
ofendê-los no bojo da atividade empresária.
Ambos os caminhos apresentam-se como adequados para que o Estado brasileiro
cumpra a obrigação de dar eficácia no plano interno às normas internacionais a que está
sujeito, sem violar o princípio constitucional da reserva legal, que deve ser sempre
invocado por conta do grau de restrição aos direitos fundamentais que representa a
imposição de uma sanção penal.
Referências
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ABSTRACT
The peculiar moment in which the Society called global risk passes today causes the need for
readjustment of a basic ideological framework of the modern state, the concept of
sovereignty. Thus, this is not a weakness, although several authors but well put a real
transfiguration to better suit the desires of a society eager for safety. This article focuses, from
the reflections of specialized doctrine, in perform a link to confirm the consistency of that
transfiguration, namely, its changing contours, of goals also will be reflected in the Criminal
Law, considered by some as the last redoubt of State Sovereignty.
1
Doutoranda em Ciências Criminais na Universidade do Minho, UMINHO, Portugal. Mestre em Ciências
Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí, UNIVALI. Especialista em Direito Penal Empresarial pela
Universidade do Vale do Itajaí, UNIVALI.
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INTRODUÇÃO
O Direito Penal, intacto refúgio de Soberania, diante desse novo paradigma pós-
moderno poderá acarretar numa transfiguração da própria Soberania nacional que, muito
embora a princípio pareça um enfraquecimento, é na verdade, uma mudança impelindo os
Estados para além de suas fronteiras na proteção dos chamados riscos globais.
O objetivo geral deste trabalho é efetivar um estudo dos atuais fatores que a
Sociedade do risco pode ocasionar ao longo do Século XXI no Direito Penal determinando
uma reavaliação racional de sua função.
Na França do final do século XVI, pairava um clima hostil com relação à supremacia
do poder político. Bem como pela disputa religiosa entre católicos e protestantes em prol da
unicidade da religião, pois ambos não aceitavam a dualidade e exigiam um posicionamento do
rei. Em 1573, o jurista François Hotman divulgou um estudo denominado Franco-Gália, onde
contestou o fortalecimento do poder real em favor de um governo misto, no qual, a
aristocracia seria a intermediária entre a autoridade real e a autoridade popular. Em defesa ao
Poder absoluto do rei estava um partido denominado “Políticos” e em conformidade aos seus
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A sujeição às leis naturais, que são as leis humanas comuns a todos os povos
garantiria que o soberano não possuísse um poder arbitrário. A lei divina também é
fundamental na teoria bodiniana, porque o detentor da soberania está a ela submetido e deve,
no exercício de seu poder, observá-la8.
O termo Soberania, portanto, surge no fim do século XVI, juntamente com o Estado
Moderno, sendo este, decorrente da necessidade de neutralizar um contexto de instabilidade
política, econômica e social presente no final da Idade Média. Neste sentido, o Estado estava
personificado no monarca, ou seja, o poder soberano do Estado se estendia à pessoa do
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Maria de Fátima (org.). Direito Empresarial Contemporâneo. São Paulo:Arte e Ciência Editora, 2007
7
A construção sistemática do conceito de soberania e a ideia de absolutização e perpetuidade desta, é atribuída a
Jean Bodin. O adjetivo absoluto significa um poder ilimitado no tempo, que não sofre restrições nem pelo cargo
e nem por outro poder. Já o adjetivo ilimitado, significa que a soberania não reconhece nenhum outro poder
acima de si.
8
Conforme BARROS, Alberto Ribeiro de. Direito natural e propriedade em Jean Bodin.Trans/Form/Ação,
São Paulo, v. 1, n. 29, 2006, p. 34, entre estas, estaria o direito de propriedade, uma vez que o soberano não
poderia se apossar dos bens de seus súditos. Neste sentido, o poder absoluto seria aquele acima das leis civis.
53
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
monarca. Situação que pode ser sintetizada em uma frase do rei da França, Luís XIV: “o
Estado sou eu”, sendo expressão máxima da teoria do direito divino do poder do monarca e do
absolutismo.9
Como visto, a idéia do Poder absoluto de Bodin está ligada à sua crença na
necessidade de concentrar o poder totalmente nas mãos do governante; o Poder soberano só
existe quando o povo se despoja do seu Poder soberano e o transfere inteiramente ao
governante. Para esse autor, o Poder conferido ao soberano é o reflexo do Poder divino, e,
assim, os súditos devem obediência ao seu soberano, mas com a evolução da Sociedade, a
concepção de Poder foge dos atributos de outrora e, segundo Cesar Luiz Pasold, o “poder
entendido como a produção dos resultados pretendidos é legítimo quando os meios utilizados
e os efeitos obtidos pelo detentor do poder correspondem aos valores dos que lhe conferiram
o poder”10
9
FERRER, Walkiria Martinez Heinrich; SILVA, Jacqueline Dias da.A soberania no processo de globalização:
tradicionais conceitos e seus novos paradigmas. In: FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; RIBEIRO,
Maria de Fátima (org.). Direito Empresarial Contemporâneo. São Paulo:Arte e Ciência Editora, 2007.
10
VIVIANI, Maury Roberto. Soberania e Poder do Estado no contexto da Globalização In PASOLD, Cesar Luiz
(org). Primeiros Ensaios de Teoria do Estado e da Constituição. Curitiba:Juruá, 2010.p.78. Itálico conforme
original
11
BLACKSTONE citado por PAUPÉRIO in PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder:
Teoria Democrática da Soberania. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 145-147, 3ed.,vol.2, 1997.p.06.
12
VIVIANI, Maury Roberto. Soberania e Poder do Estado no contexto da Globalização. PASOLD,Cesar Luiz
(org). Primeiros Ensaios de Teoria do Estado e da Constituição. Curitiba: Juruá, 2010. p.79.
54
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
13
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. Trad. Andréa Greppi. Madrid: Alianza,
1999.p.125. Tradução livre.
14
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo : Mestre Jou,1968.
Título original: Staatslehre.
15
SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição
paradigmática, vol.1, 3ªed. São Paulo:Cortez, 2001. p.15 (prefácio)
16
O conceito de paradigma vem da filosofia da ciência de KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções
científicas. São Paulo, Perspectiva, 1994, p. 130. Tal noção apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita
explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da
tematização e explicitação dos aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões de
mundo, consubstanciados, no pano de fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais,
que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a
nossa percepção de nós mesmos e do mundo. Por outro, também padece de óbvias simplificações, que só são
validas à medida que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo
prevalentes e tendencialmente hegemrminônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em
contextos determinados.
55
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
17
Explica Alexandre Werneck, sociólogo e pesquisador de pós-doutorado do Núcleo de Estudos da Cidadania,
Conflito e Violência Urbana da UFRJ,o horizonte de "Sociedade de risco" é o da “sociedade industrial”, ou seja,
ele parte de uma tese sobre a própria modernidade (e, portanto, sobre a própria sociologia), afirmando o papel de
protagonista – que classicamente é apontado por vários autores, como Durkheim – da industrialização na
diferenciação entre os mundos pré-moderno e moderno. E a extensão mais poderosa disso seria o poder da
tecnologia e do desenvolvimento industrial nas próprias relações sociais. Beck afirma que elas foram
profundamente transformadas por seu próprio desenvolvimento, que produziu o risco global. E se na década de
1980 em que o sociólogo escreveu seu livro o cerne desse desenvolvimento era a produção centrada na
transformação de formas de energia (as grandes industrias do século XX são a do automóvel, a da produção de
recursos energéticos e a militar), nesse quarto de século desde o lançamento original, essa transformação se
mudou para o plano informacional, para uma, digamos, sociedade (digital) de risco. São as tecnologias
comunicacionais, a internet, a telefonia móvel, etc. Tudo configurando um conjunto de “incertezas fabricadas”
(aquelas criadas pelo próprio movimento da vida social) ainda mais intensas, que se não aparecem
concretamente descritas no livro, diante dele adquirem uma nova luz.
18
Ulrich Beck denominou em 1986, a sociedade em que vivemos de “sociedade do risco”. Outros autores
conceberam diferentes expressões como: “sociedade pós-moderna”, “sociedade da informação”, “sociedade
tecnológica”, “sociedade pós-industrial”. Anthony Giddens, refere-se a uma “modernidade amadurecida”. O uso
dessas diferentes expressões para designar a sociedade atual justifica-se desde que se queira dar ênfase a uma ou
algumas características, já que estas são as mesmas, independentemente da variação nominativa. Todas, têm em
comum a conexão com a idéia de risco global assim como Beck sustenta.
56
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
O teórico alemão não olvida a existência de diferenças entre níveis sociais distintos
no tocante à exposição aos riscos na vida cotidiana, nos estudos, saúde, e demais aspectos da
vida em geral – aludindo aos riscos específicos de classes. Percebe, da mesma forma, a
existência de novas desigualdades internacionais, registrando neste sentido que as indústrias
geradoras de maior risco se deslocaram para os países em que se pagam os menores salários20
.
Segundo Beck os riscos atuais se diferenciam pela globalização de sua ameaça e por
suas causas modernas, são os riscos da modernização. É um produto global da maquinaria do
progresso industrial e são acentuados sistematicamente por seu desenvolvimento posterior.
São problemas decorrentes do próprio progresso científico. Dessa forma o processo de
modernização se torna reflexivo, e torna a si mesmo como tema e problema.21
Desse modo, as populações locais têm que se preocupar com as ações praticadas em
seus territórios, mas também com as executadas em qualquer outra parte do mundo. Mesmo
em relação aos supostos riscos aos quais não deu causa, a população se sente na obrigação de
ficar alerta. Tem lugar aqui o conceito utilizado por Ulrich Beck22 de glocalidade, que agrega
a possibilidade de riscos simultaneamente sentidos em perspectiva local e global.
19
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A., 2002.
p.25
20
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A., 2002.
p.47
21
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A., 2002.
p.26. Importante destacar que o conceito de modernidade reflexiva é estruturante da obra de Beck e esta, por sua
vez, oferece sustentáculo teórico ao marco doutrinário representado pela sociedade do risco.
22
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A., 2002.
p. 60.
57
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Nesse contexto, a tendência atual é no sentido de que o Estado não pode tomar
qualquer decisão que lhe aprouver, simplesmente levando em consideração os benefícios que
lhe trará; atualmente, ao contrário, o Estado soberano parece dever cada vez mais satisfações
no que concerne às suas decisões, satisfações estas devidas não só à sua população, mas
também a outros Estados soberanos e a órgãos internacionais. O poder de julgar sem ser
julgado – que integra o poder soberano – vem diminuindo consideravelmente.
23
SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e pós-social- (Pós-
Modernidade Constitucional?). In: FERRAZ Jr., Tércio Sampaio (Coord.). Crises e desafios da Constituição
brasileira. Rio de Janeiro, 2002, p. 398
58
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Se as fronteiras são construções artificiais criadas pelos Estados, nos dias de hoje,
mais do que nunca, há necessidade de se enfrentar os desafios decorrentes desse fato e seus
reflexos no direito24.
24
BERARDO, Telma. Soberania, um Novo Conceito?, Revista de Direito Constitucional e Internacional, São
Paulo, n. 40, p. 40, julho/set. 2002.
25
FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999. p.07.
26
FINKELSTEIN, Cláudio. Integração Regional: o Processo de Formação de mercados de Bloco. 2000 p.
65.
27
FINKELSTEIN, Cláudio. Integração Regional: o Processo de Formação de mercados de Bloco.2000 p. 70,
59
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Para Arthur Machado Paupério29 supremo não quer dizer ilimitado, pois não há
nenhum poder que possua tal qualidade e citando Brucculeri, referido autor lembra que o
Estado não é o criador do Direito, ele apenas determina-o e aplica-o, não passa de instrumento
de revelação das normas jurídicas. Assim, essas normas jurídicas estatais obrigam, da mesma
forma, governantes e governados.
28
FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves In: O Estado do Futuro. Martins, Ives Gandra (Coord.), São Paulo:
Pioneira, 1998. p. 102-113.
29
PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, p. 145-147, 3ed., vol.2, 1997
60
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Contudo, percebe-se, por outro lado, não se tratar de uma Soberania simplesmente
enfraquecida32 mas tomando outros contornos, transfigurando-se, como afirmam Everton das
Neves Gonçalves e Joana Stelzer33 na constatação de que a Soberania, com efeito, não se trata
mais do Estado-territorial, referência elementar surgido após a Paz de Vestfália e que se
consolida até o Século XX, viabilizando a emergência do Direito internacional sob amparo da
idéia soberana. Esse é um quadro alterado que se transfigura de internacional (inter-nações) para
transnacional (trans-nações), de soberania absoluta para soberania relativa, de relações
territoriais para relações virtuais, de trânsito entre fronteiras para trânsito em espaço único.
30
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Soberania e a proteção internacional dos direitos humanos:dois
fundamentos irreconciliáveis. Revista de Informação Legislativa, n.156, p. 169-177, out/dez., 2002
31
CRUZ, Paulo Márcio. Da soberania à transnacionalidade: Democracia, Direito e Estado no século XXI.
Itajaí: Univali Editora, 2011.p. 97
32
A referência ao enfraquecimento da soberania nesse estudo está sendo de forma unidimensional, pois se
concorda tanto com Ulrich Beck (BECK, Ulrich. O que é globalização. Tradução de André Carone. São Paulo:
Paz e Terra, 1999, p. 230) no que tange ao fortalecimento dos Estados relativamente à ‘soberania inclusiva’,
quanto com Anthony Giddens, quando esse autor lembra o caráter dialético da globalização, ao afirmar: “A
perda de autonomia por parte de alguns Estados ou grupo de Estados tem sido frequentemente concomitante com
um aumento dela por parte de outros, como resultado de alianças, guerras ou mudanças políticas e econômicas
de diversos tipos.” GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São
Paulo: Unesp, 1991, p. 72.
33
GONÇALVES, Everton das Neves e STELZER, Joana. Estado, Globalização e Soberania: fundamentos
político jurídicos do fenômeno da Transnacionalidade. in Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI,
São Paulo – 2009. p.10948 10971
61
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Portanto, a Soberania no atual estágio da Sociedade passa por uma transfiguração para
se adequar às expectativas internas e externas que o devir do Século XXI impõe e o Direito Penal
é um mecanismo importante nesse contexto ao recepcionar e proteger os chamados riscos
globais.
Nesse mesmo sentido sustenta André Luiz Callegari34 ao afirmar que dessa forma,
percebe-se uma alteração na clássica função de limitação e justificação da punição penal pela
proteção de bens jurídicos, fazendo-se com que essa proteção passe a ser vista, pelo contrário,
como um critério de ampliação da intervenção do poder punitivo estatal.
Estes instrumentos moldam a imagem de um Direito Penal que relativiza ou até
mesmo ignora os clássicos princípios de legitimação garantista (exclusiva proteção de bens
jurídicos, subsidiariedade, fragmentariedade, legalidade, ofensividade, causalidade,
responsabilidade subjetiva, culpabilidade, etc.) em favor do atendimento às demandas de
34
Callegari, André Luiz. Op.cit. p.25
62
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
A ação humana, agora, se revela suscetível de produzir riscos, também eles globais.
Apesar disso, não é necessário um maior esforço para constatar o fato de que o "risco", de
certo modo, não é uma expressão nova no âmbito do Direito Penal – tendo em vista os
estudos desenvolvidos pelos penalistas da "primeira geração" do Direito penal do risco, aos
quais CorneliusPrittwitz35 tem denominado os "dogmáticos do risco", na medida em que o
ponto principal de suas reflexões sobre a imputação era a criação ou o aumento do risco.
35
In: SILVA, Pablo Rodrigo Alflenda. O risco da técnica de remissão das leis penais em branco no Direito
Penal da Sociedade do Risco, in Política Criminal, n.º, 2007, A.7. [disponível em
http://www.politicacriminal.cl/n_03/a_7_3.pdf]; um amplo panorama em SILVA, Pablo Rodrigo Alflenda. Leis
penais em branco e o Direito Penal do Risco, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004 Ver: PRITTWITZ, Cornelius.
Strafrecht und Risiko.In:RechtlichesRisikomanagement. Form, Funktion und Leistungsfähigkeit des Rechts in
der Risikogesellschaft. Berlin: Duncker&Humblot, 1999, p. 194; também HERZOG, Felix.
GesellschaftlicheUnsicherheit und strafrechtliche Daseinsvorsorge, 1.ª edição. Heidelberg: Decker’s Verlag,
1991; KUHLEN, Lothar. Zum Strafrecht der Risikogesellschaft. Goltdammer’sArchiv.1994, p. 347-467;
36
Esta orientação encontra-se em: ROXIN, Claus. El legislador no lopuede todo. In: Iter Criminis. Revista de
ciências penales. México, nº. 12, 2004/2005, pp. 321-347; IDEM. ¿Es la protección de bienes jurídicos una
finalidad del Derecho penal? In: TBJ, pp. 443-458; SCHÜNEMANN, Bernd. [nota 2], pp. 11 e ss.; IDEM.
Temas actuales y permanentes del Derecho penal después del milenio. Madrid: Tecnos, 2002, passim;
HEFENDEHL, Roland. El bien jurídico como eje material de la norma penal. In: TBJ, pp. 179-196;
63
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Jesus Maria Silva Sanchez alerta para a proteção demasiada de bens jurídicos
supraindividuais ao ponderar que a combinação da introdução de novos objetos de proteção
com antecipação das fronteiras da proteção penal vem propiciando uma transição rápida do
modelo “delito de lesão de bens individuais” ao modelo “delito de perigo (presumido) para
bens supraindividuais”, passando por todas as modalidades intermediárias. O legislador por
razões como as expostas, vem promulgando numerosas novas leis penais, e as respectivas
ratione legis, que obviamente não deixam de guardar relação – ao menos indireta – com o
contexto ou previas da fruição de bens jurídicos individuais mais clássicos, são elevadas de
modo imediato à condição de bens penalmente protegíveis (dado que estão protegidos).
Assim, junto aos delitos clássicos, aparecem outros muitos, no âmbito socioeconômico de
modo singular, que recordam muito pouco aqueles. Nesse ponto, a doutrina tradicional do
bem jurídico revela que diferentemente do que sucedeu nos processos de despenalização dos
anos 60 e 70, sua capacidade crítica no campo dos processos de criminalização como os que
caracterizam os dias atuais – e certamente o futuro – é sumamente débil.39
TIEDEMANN, Klaus. Derecho penal y nuevas formas de criminalidad. Traducción de Manuel Abanto
Vásquez. Lima: Grijley, 2007, passim; STRATENWERTH, Günther. Desarrolos modernos delDerecho penal
en Europa Central. In: Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia penal. Buenos Aires, nº. 8, 1998, pp. 53-66.
Entre nós: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supra-individual. Interesses difusos. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003, pp. 89
37
Callegari, André Luiz. Op.cit. p.19
38
Albrecht, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervención de la politica populista. In: La
insosteniblesituacióndelderecho penal. Coord. Carlos Maria Romeo Casabona.Granada:EditorialComares, 2000.
P.471-487
39
SILVA SANCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal. Aspectos da politica criminal nas sociedades
pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 2 ed. 2011. p.146
64
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Em relação a isso, Hassemer tem ressaltado ainda o fato de que este moderno Direito
Penal se apresenta na forma de crimes de perigo abstrato, que exigem somente a prova de uma
conduta perigosa, renunciam a todos os pressupostos clássicos de punição, e, com isso,
naturalmente, também reduzem as respectivas possibilidades de defesa e, além disso, no
campo da moderna política criminal, como a criminalidade organizada, o meio ambiente, a
corrupção, o tráfico de drogas ou a criminalidade econômica, encontram-se cada vez mais
novos tipos penais e agravamentos de pena.41
Fica claro que os diversos aspectos que resultaram no "discurso social do risco",
intermediados através deste, levaram ao discurso jurídico-penal e político-criminal do risco.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
40
PRITTWITZ, Cornelius. Sociedaddelriesgo y Derecho penal.In: CJDP, pp. pp. 263 e ss
41
Paradigmático nesse sentido Hassemer, Wilfried. Absehbare Entwicklungen in Strafrechts dogmatik und
Kriminal politik, in Strafrechtsproblemean der Jahrtausendwende. Nomos, 1999. p. 18 (Há tradução portuguesa
de Pablo Rodrigo Alflen da Silva, intitulada "Desenvolvimentos Previsíveis na Dogmática do Direito Penal e na
Política Criminal", in Revista Eletrônica de Direitos Humanos e Política Criminal – REDHCP, N.º 2, abril de
2008, [disponível em http://www.direito.ufrgs.br/dir1/revista.asp]. Acesso em 25/07/12.
65
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
O poder de julgar sem ser julgado – que sempre norteou o Poder soberano – vem
tomando novos contornos.
Para o Direito Penal resta, no devir do Século XXI, sofrer os influxos dessa Sociedade
ávida por segurança e demonstrar se será capaz ou não, como instrumento de controle que é, de
assegurar uma efetiva proteção indo além de um caráter meramente simbólico.
REFERÊNCIAS
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós
Ibérica S.A., 2002.
____________. O que é globalização. Tradução de André Carone. São Paulo: Paz e Terra,
1999.
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Suzi Assis Borges Nasser; RIBEIRO, Maria de Fátima (org.). Direito Empresarial
Contemporâneo. São Paulo:Arte e Ciência Editora, 2007
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HABERMAS, Jurgen. Mas alládel Estado nacional. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura
Econômica, 1998.
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HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo :
Mestre Jou,1968. Título original :Staatslehre.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1994
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PASOLD, Cesar Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo. 3 ed. rev. atual. amp.
Florianópolis: OAB/SC Editora co-edição Editora Diploma Legal. 2003.
_____________ O Direito penal entre Direito penal do risco e Direito penal do inimigo:
tendências atuais em Direito penal e política criminal. In: RBCCRIM 47 (2004), pp. 31-
45.
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ROXIN, Claus. El legislador no lopuede todo. In: Iter Criminis. Revista de ciências penales.
México, nº. 12, 2004/2005, pp. 321-347;
______________ ¿Es la protección de bienes jurídicos una finalidad del Derecho penal? In:
TBJ, pp. 443-458;
69
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SCHÜNEMANN, Bernd. Temas actuales y permanentes del Derecho penal después del
milenio. Madrid: Tecnos, 2002
SILVA, Pablo Rodrigo Alflenda.O risco da técnica de remissão das leis penais em branco
no Direito Penal da Sociedade do Risco, in Política Criminal,2007,A.7.[disponível em
http://www.politicacriminal.cl/n_03/a_7_3.pdf];
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supra-individual. Interesses difusos. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003
70
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
RESUMO
A ideia de Estado de direito está associada a uma longa tradição que se desenvolve paralelamente
à história do Ocidente, na qual se busca o estabelecimento de uma relação entre indivíduo, direito
e poder político. Contemporaneamente, o conceito de Estado de direito é síntese de um processo
histórico-evolutivo e cultural, resultado do diálogo entre diferentes experiências em torno das
quais é desenvolvida a ideia da necessidade do estabelecimento de limites ao poder
tendencialmente transbordante do ente estatal através do direito, a fim de assegurar o respeito aos
direitos e garantias fundamentais que assistem aos indivíduos. O objetivo do presente artigo é a
inserção do debate acerca da legitimidade da pena criminal nesse contexto. Sabe-se que a pena é
instituto sobre o qual repousa uma atmosfera de tensão entre direitos fundamentais. De um lado, a
pena pode ser entendida como um remédio através do qual se busca garantir os direitos
fundamentais dos membros da coletividade em face do delito; de outro, a pena é uma medida
imposta pelos órgãos estatais que atua de modo a restringir o âmbito de liberdade do indivíduo
desviante. Assim, pretende-se apresentar elementos idôneos à construção de uma teoria na qual se
demonstre a legitimidade da pena criminal de modo harmônico aos postulados do paradigma do
Estado de direito.
ABSTRACT
The idea of rule of law is associated with a long term tradition that develops parallel to the
Occidental history, which is seeking to establish a relationship between individual, law and
political power. Currently, the concept of rule of law is the synthesis of a historical-evolutive and
cultural process, as a result of dialogues between different experiences around which is developed
the idea of the necessity of establishing limits on the power that tendentiously overflows the state
by law, in order to ensure the respect of fundamental rights and guarantees to individuals who
attend. The purpose of this article is the insertion of the debate about the legitimacy of the
criminal punishment in this context. It is known that the criminal punishment is an institute on
which rests an atmosphere of tension among the fundamental rights. On one hand, the punishment
can be understood as a remedy through which it seeks to guarantee the fundamental rights of the
members of the collective over the crime, on the other, the punishment is a measure imposed by
state bodies that acts to restrict the scope of freedom of the deviant individual. Thus, this article
intends to provide suitable evidence for the construction of a theory in which it can be
demonstrated the legitimacy of the criminal punishment in a harmonic way to the postulates of the
paradigm of the rule of law.
Acadêmico do 10º período do curso de graduação em Direito do UNICURITIBA.
71
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
1 INTRODUÇÃO
72
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
1
COSTA, Pietro. O Estado de direito: uma introdução histórica. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (Org.). O
Estado de direito. Tradução de Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 98.
2
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estado de direito. 1999. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/43038759/Canotilho-Estado-de-Direito-LIVRO>. Acesso em: 25 ago. 2011. p. 7.
3
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. Tradução de Marylene Pinto Michael.
São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 32-33.
4
COSTA, op. cit., p. 99-100.
5
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. 2. ed. São
Paulo: Mandarim, 2000. p. 19.
73
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
6
COSTA, 2006, p. 112.
7
BOBBIO, 2000, p. 29.
8
COSTA, op. cit., p. 116.
9
ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de direito. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (Org.). O Estado de
direito. Tradução de Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 32-34.
10
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
p. 56.
74
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
11
ZOLO, 2006. p. 35.
12
Ibid., p. 36.
13
Ibid., p. 31.
14
Ibid., p. 36-43.
15
Ibid., p. 32.
16
Ibid., p. 45-47.
75
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Nesse panorama, cabe assinalar que a construção do discurso constitucional acerca das
Constituições modernas vincula-se às premissas conceituais do Estado de direito, haja vista o
alinhamento de tal conceito à perspectiva da primazia da proteção do indivíduo nas
sociedades ocidentais.
Luigi Ferrajoli aponta para dois modelos distintos do Estado de direito: o Estado
legislativo de direito e o Estado constitucional de direito. O Estado legislativo de direito
identifica-se com “qualquer ordenamento no qual os poderes públicos são conferidos pela lei
e exercidos nas formas e com os procedimentos por ela estabelecidos”17. Assim, embora o
legislador encontre-se vinculado aos aspectos formais prescritos na lei, não há referenciais
que orientem sua atividade em termos materiais.
No Estado constitucional de direito, ao contrário, “todos os poderes, inclusive o
Legislativo, estão vinculados ao respeito de princípios substanciais, estabelecidos
costumeiramente por normas constitucionais, como a separação dos poderes e os direitos
fundamentais”18. Tal modelo caracteriza-se pela vinculação formal e substancial da atividade
legislativa a preceitos constitucionais, uma vez que a Constituição deve ser entendida como
uma lei hierarquicamente superior à legislação ordinária.
Há uma tensão de difícil equação entre essas duas formas de compreender do Estado
de direito e o papel da legislação e da Constituição. De um lado, projeta-se a legitimidade do
Estado na sua função protetora do indivíduo, reservando um espectro de direitos inalienáveis
não submetidos à deliberação pública. De outro, afirma-se que a autonomia individual não se
impõe sobre o interesse público ou a vontade da maioria. Essa tensão muitas vezes dificulta a
compreensão do papel das garantias constitucionais, razão pela qual se deve buscar construir
uma concepção de Estado de direito, que promova uma conciliação entre discursos
igualmente legitimados na cultura jurídico-político ocidental.
Para Joaquim José Gomes Canotilho os elementos fundamentais do Estado de direito
são “a liberdade do indivíduo, a segurança individual e colectiva [sic], a responsabilidade e
responsabilização dos titulares do poder, a igualdade de todos os cidadãos e a proibição de
discriminação de indivíduos e de grupos”19. Para dar eficácia e concretude a esses valores e
17
FERRAJOLI, Luigi. O Estado de direito entre o passado e o futuro. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (Org.).
O Estado de direito. Tradução de Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 417.
18
Ibid., p. 417-418.
19
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estado de direito. 1999. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/43038759/Canotilho-Estado-de-Direito-LIVRO>. Acesso em: 25 ago. 2011. p. 7.
76
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Desta forma, compreende-se que o Estado constitucional deve estruturar-se como uma
ordem de domínio legitimada pelos cidadãos, ou seja, um Estado democrático de direito,
concebido a partir do princípio da soberania popular e concretizado em conformidade com
procedimentos regulados através da legislação22. Isso significa dizer que no Estado
constitucional, o poder estatal deve ser organizado e exercido com observância dos princípios
democráticos, tanto em termos de articulação do direito quanto do poder. Nesse contexto,
conforme bem ensina Joaquim José Gomes Canotilho, “o princípio da soberania popular é,
pois, uma das traves mestras do Estado constitucional. O poder político deriva do ‘poder dos
cidadãos’”23.
Para Luigi Ferrajoli, o Estado de direito identifica-se com a democracia em um sentido
substancial e social, podendo, nessa perspectiva, ser entendido como sinônimo de
“garantismo”. Em outros termos, ele argumenta que
20
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra:
Edições Almedina, 2003. p. 100.
21
CANOTILHO, loc. cit.
22
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estado de direito. 1999. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/43038759/Canotilho-Estado-de-Direito-LIVRO>. Acesso em: 25 ago. 2011. p. 10.
23
CANOTILHO, op. cit., p. 98.
77
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
24
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p.
797.
25
Ibid., p. 510.
26
ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Tradução de Monica de Sanctis Viana. São
Paulo: Saraiva, 2011. p. 139-142.
78
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Dentro da lógica do Estado de direito, parece não restar dúvidas acerca do fato de que
a pena desempenha importante função de instrumento por meio do qual o ente estatal busca
tutelar valores e direitos fundamentais dos quais são titulares os indivíduos integrantes do
corpo social. Em tese, o indivíduo que age de forma desviante em relação às regras
estabelecidas por determinada comunidade, torna-se sujeito à aplicação de uma sanção pelos
órgãos estatais. Na esfera criminal, mais especificamente, as condutas praticadas de modo a
afrontar bens jurídicos tutelados pelo direito penal, caracterizam infrações penais e tornam os
seus agentes incursos nas respectivas penas a elas cominadas previamente em dispositivos
legais.
Ocorre que na seara criminal, a pena atua diretamente de maneira a restringir de forma
gradual a esfera de liberdade do indivíduo desviante, como forma de assegurar direitos e
garantias fundamentais que assistem a todos os membros da coletividade. Contudo, a pena
revela-se um instrumento que atua exatamente a partir da violação do direito fundamental à
liberdade delinquente, o que, em tese, é contrário aos objetivos do Estado de direito. Verifica-
se, desde logo, a existência de um aparente conflito entre o instituto da pena e o paradigma do
Estado de direito.
79
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
27
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Vol. 1. Parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva,
2009. p. 84.
28
FISCHER, Douglas. Delinquência econômica e Estado social e democrático de direito: uma teoria à luz da
Constituição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. p. 105.
29
BITENCOURT, op. cit., p. 83.
30
FERRAJOLI, 2010, p. 236.
80
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
31
FERRAJOLI, 2010, p. 236.
32
DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 67-68.
33
FERRAJOLI, op. cit., p. 237.
81
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
impossibilidade do homem ser utilizado como meio para atingir fins alheios a ele, ou seja, o
homem não é suscetível de instrumentalização. Sendo assim, Kant entende que a pena jamais
poderá ser aplicada como um meio a buscar a realização de outros fins, devendo ser imposta
ao indivíduo desviante tão somente em razão de ter ele incorrido na prática de um delito.
Cezar Roberto Bitencourt observa que tal argumentação rechaça todas as teorias que
justificam a pena como instrumento de prevenção de delitos:
Kant considera que o réu deve ser castigado pela única razão de haver delinquido,
sem nenhuma consideração sobre a utilidade da pena para ele ou para os demais
integrantes da sociedade. Com esse argumento, Kant nega toda e qualquer função
preventiva – especial ou geral – da pena. A aplicação da pena decorre da simples
infringência da lei penal, isto é, da simples prática do delito34.
Percebe-se que, de acordo com a teoria da pena elaborada por Kant, a aplicação da
pena atendendo a fins utilitários ou pragmáticos transforma a pessoa a ela submetida em
objeto, violando a sua eminente dignidade35. Ademais, pode-se afirmar ainda que “pretender
que o direito de castigar o delinquente encontre sua base em supostas razões de utilidade
social não seria eticamente permitido”36.
A teoria da pena elaborada por Hegel37, por sua vez, parte da premissa de que o crime
é a negação do direito, ao passo que a pena é a negação do crime. Em outros termos, a pena é
34
BITENCOURT, 2009, p. 89.
35
DIAS, 2001, p. 73.
36
BITENCOURT, loc. cit.
37
Embora a maior parte da doutrina brasileira afirme que a teoria elaborada por Hegel é retributivista, esse
entendimento não é unânime. Para Eugênio Pacelli de Oliveira, ainda que se possa reconhecer na elaboração de
Hegel “um partidário de uma teoria absoluta da pena, no sentido de que, praticado um delito, deve-se lhe seguir
uma sanção”, sua dialética, “segundo a qual o crime seria uma negação do direito, e que, assim, a sua negação
seria a afirmação do direito, não pode ser interpretada como uma manifestação retributivista, unicamente”
(OLIVEIRA, 2004, p. 31). Ao contrário, entende o doutrinador brasileiro que a teoria hegeliana acerca dos fins
da pena apresenta objetivos preventivos (especial e geral). Sobre a prevenção geral, Eugênio Pacelli de Oliveira
afirma que “Hegel irá concluir que a vontade do criminoso, representada pela coação não jurídica, pode e deve
ser destruída por outra vontade, que seria a coação jurídica, de modo que, no momento dialético da totalidade, o
crime se visse superado pela afirmação do direito. É então que se manifesta a prevenção especial: a vontade do
criminoso, uma vez realizado o crime (a coação não jurídica) permaneceria existente enquanto não contrariada
por outra coação (a jurídica); eis porque a imposição de uma sanção (da pena) revela-se juridicamente necessária
para a afirmação do Direito. E eis porque, atuando diretamente na vontade do criminoso (que existiria enquanto
não afrontada), a pena se justificaria como uma prevenção especial, voltada, primeiramente, para a reabilitação
do agente, em face da concepção eticizante do Direito e do Estado que fundamenta a teoria hegeliana”
(OLIVEIRA, 2004, p. 32). Em relação ao objetivo da prevenção geral, Eugênio Pacelli de Oliveira explica que
“o Estado Democrático de Direito, não só reconhece, mas institui a proteção dos direitos fundamentais, por meio
de inúmeras garantias individuais oponíveis contra o Estado e mesmo contra o particular. Nessa medida, a
necessidade de afirmação do Direito é, em si mesma, uma necessidade de proteção dos direitos individuais e
coletivos passíveis de violação [...] Por que intervém o Estado no âmbito do Direito penal? [...] para a proteção
82
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
a negação da negação do direito. Assim, para Hegel a pena justifica-se pela necessidade de
restabelecimento da ordem jurídica, negada com o crime praticado pelo delinquente. Dito de
outro modo, “a imposição da pena implica, pois, o restabelecimento da ordem jurídica
quebrada” e deve retribuir ao condenado proporcionalmente ao crime por ele praticado, ou
seja, “o quantum ou intensidade da negação do direito será também o quantum ou intensidade
da nova negação que é a pena”38.
Embora a teoria elaborada por Hegel afirme que a pena é determinada pela conduta do
delinquente, tal teoria não se confunde com o sistema talional. Isso porque na formulação
hegeliana não há fixação de correspondência entre determinadas modalidades de penas e
determinados delitos. Hegel apenas demonstra a equivalência entre conduta e pena, pois a
concebe como “a maneira de compensar o delito e recuperar o equilíbrio perdido”39.
Para Jorge de Figueiredo Dias, as teorias retributivistas da pena são inadmissíveis no
âmbito de um Estado democrático, pluralista e laico40, haja vista resultarem de uma confusão
entre direito e moral. Ao contrário, tais teorias são idôneas a justificar modelos não liberais de
direito penal máximo, conforme aponta Luigi Ferrajoli:
a confusão é explícita nas concepções da pena enquanto “retribuição ética”, que lhe
atribuem diretamente um valor moral correspondente ao desvalor moral
ontologicamente associado ao delito. Entretanto, é implícita também nas doutrinas
que consideram a pena uma “retribuição jurídica”, as quais, conferindo valor ético,
antes mesmo que às penas, à ordem jurídica que as mesmas deveriam reintegrar,
equivalem a uma legitimação moral ainda mais apriorística e incondicionada
daquelas41.
dos direitos, consubstanciados em bens e/ou valores juridicamente reconhecidos, contra a violência e contra o
arbítrio” (OLIVEIRA, 2004, p. 32-33). Daí o caráter preventivo geral da concepção hegeliana da pena.
38
BITENCOURT, 2009, p. 90.
39
Ibid., p. 91.
40
DIAS, 2001, p. 71.
41
FERRAJOLI, 2010, p. 239-240.
42
DIAS, op. cit., p. 70.
83
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
aplicação da pena, resultando em “um veto incondicional à aplicação de uma pena criminal
que viole a eminente dignidade da pessoa humana”43. Além disso, deve-se considerar que,
embora toda pena suponha a existência de culpa, o contrário não é verdadeiro, uma vez que
somente a culpa que se manifestar simultaneamente à necessidade de pena deverá ser punida,
razão pela qual se pode afirmar que “a culpa é pressuposto e limite, mas não fundamento
único da pena”44.
43
DIAS, 2001, p. 70.
44
Ibid., p. 71-72.
45
FERRAJOLI, 2010, p. 236.
46
DIAS, op. cit., p. 72.
84
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
47
DIAS, 2001, p. 74.
48
DIAS, loc.cit.
49
Ibid., p. 74-75.
50
BITENCOURT, 2009, p. 93.
85
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
86
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
kantiana, uma vez que a punição exemplar de um indivíduo com vistas a intimidar todo o
corpo social, caracteriza a utilização do homem como meio a realizar fins a ele estranhos, de
modo a violar sua eminente dignidade55. Além disso, essa concepção da pena é apta a
legitimar modelos de direito penal máximo, caracterizados pela incerteza processual, pela
inobservância de garantias individuais e por uma sanção penal que se orienta segundo a
máxima severidade. Para conseguir a intimidação pretendida pelos defensores dessa
concepção, seria até mesmo justificável a punição de inocentes, ou seja, a aplicação da pena
desvinculada da culpabilidade ou até mesmo em face da ausência de provas da ocorrência do
crime56. Nesse sentido, Luigi Ferrajoli entende que
Por outro lado, as doutrinas da prevenção geral negativa, caracterizam-se por buscar a
intimidação de todos os membros da comunidade a partir da ameaça da pena contida na lei,
isto é, relacionam “a função dissuasiva do direito penal em relação à generalidade dos
associados não imediatamente ao caráter exemplar da imposição da pena, mas sim, e
mediatamente, à ameaça contida na lei penal que ela representa”58. Nessa perspectiva, pode-se
afirmar que a sanção penal consubstancia-se
no efeito (desincentivador) estabelecido pela lei penal para dissuadir a sua própria
infração, ou, ainda, garantir-lhe a eficácia, não diverso, entretanto, de qualquer outro
tipo de efeito jurídico, cuja previsão por parte de uma norma primária possui sempre
o objetivo de assegurar a eficácia da norma secundária que disciplina o ato ao qual
aquele é imputado59.
55
FERRAJOLI, 2010, p. 257.
56
FERRAJOLI, loc. cit.
57
Ibid., p. 258.
58
FERRAJOLI, loc. cit.
59
FERRAJOLI, loc. cit.
87
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Luigi Ferrajoli entende que o aspecto positivo das doutrinas da prevenção geral
negativa reside no fato de serem as únicas a não confundirem o direito com a moral ou a
natureza. Isso porque tais teorias têm como escopo a comunidade em geral, e não apenas
indivíduo desviante60. Além disso, tendo em vista a previsão legal abstrata dos delitos e das
penas, a função preventiva geral tem o mérito de enfocar o delito, protegendo os delinquentes
de “tratamentos desiguais e personalizados com fins corretivos de emenda ou de terapia
individual ou social ou para fins políticos de repressão exemplar”61.
No entanto, embora as teorias da prevenção geral através da ameaça legal da pena
procurem estabelecer parâmetros legais de modo a assegurar garantias individuais em face
dos possíveis abusos do judiciário, tais doutrinas não são idôneas a impedir os possíveis
excessos do legislativo na tarefa de prescrever os tipos de penas e suas quantidades. Isso
porque, em tese, quanto mais elevada e severa a pena, maior seria a sua eficácia em relação ao
objetivo de dissuadir os indivíduos em relação à prática de delitos62.
Em relação à vertente positiva das teorias da prevenção geral, cabe destacar a teoria da
prevenção geral positiva fundamentadora e a teoria da prevenção geral positiva limitadora.
Welzel e Jakobs são os principais defensores teoria da prevenção geral positiva
fundamentadora. De forma sintética, pode-se dizer que Welzel entende que
o Direito Penal cumpre uma função ético-social para a qual, mais importante que a
proteção de bens jurídicos, é a garantia de vigência real dos valores de ação da
atitude jurídica. A proteção de bens jurídicos constitui somente uma função de
prevenção negativa. A mais importante missão do Direito Penal é, no entanto, de
natureza ético-social. Ao proscrever e castigar a violação de valores fundamentais, o
Direito Penal expressa, da forma mais eloqüente [sic.] de que dispõe o Estado, a
vigência de ditos valores, conforme o juízo ético-social do cidadão, e fortalece sua
atitude permanente de fidelidade ao Direito63.
No mesmo sentido, Jakobs acredita que as normas jurídicas têm a função de orientar a
conduta dos indivíduos nas suas relações sociais, com vistas a estabilizá-las e institucionalizá-
las. Assim, quando uma norma é violada, faz-se necessário reafirmar a sua vigência, a fim de
manter a confiança da comunidade no ordenamento jurídico, bem como afirmar sua função
60
FERRAJOLI, 2010, p. 257.
61
Ibid., p. 259.
62
Ibid. p. 260.
63
BITENCOURT, 2009, p. 100-101.
88
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
64
BITENCOURT, 2009, p. 101.
65
Ibid., p. 102.
66
Ibid., p. 103.
67
BITENCOURT, loc. cit.
68
BITENCOURT, loc. cit.
69
FERRAJOLI, 2010, p. 260.
89
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
70
DIAS, 2001, p. 78.
71
BITENCOURT, 2009, p. 96.
90
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
crime. Ainda aqui não cabe ao Estado uma tal tarefa, a qual se apresentaria sempre
como violadora da liberdade de autodeterminação do delinquente 72.
Já a crítica que Luigi Ferrajoli dirige às teorias utilitaristas da prevenção especial parte
da afirmação de que tais doutrinas, assim como as doutrinas retributivistas, confundem o
direito com a moral ou a natureza:
a confusão entre direito e moral ou entre direito e natureza afeta não apenas a
concepção do delito, mas, também, aquela da pena, a qual vem compreendida,
moralistica ou naturalisticamente, como instrumento benéfico de reabilitação do
condenado, e, sob este prisma, rotula projetos autoritários de moralização individual
ou de ortopedia social conflitantes com o direito da pessoa a permanecer imune às
práticas coativas de transformação73.
72
DIAS, 2001, p. 81.
73
FERRAJOLI, 2010, p. 256.
74
Ibid., p. 247.
91
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
sempre conferiram à pena um objetivo único, qual seja a prevenção dos futuros
delitos, tutelando, assim, a maioria não desviante, e deixando de lado aquele da
prevenção das reações arbitrárias ou excessivas, tutor da minoria desviante e
75
FERRAJOLI, 2010, p. 243.
76
Ibid., p. 308.
77
FERRAJOLI, loc. cit.
92
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
78
FERRAJOLI, 2010, p. 244.
79
Ibid., p. 245.
80
Ibid., p. 246.
81
Ibid., p. 308.
82
Ibid., p. 308-309.
93
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
maior reação – informal, selvagem, espontânea, arbitrária, punitiva mas não penal –
que, na ausência da pena, poderia advir da parte do ofendido ou de forças sociais ou
institucionais solidárias a ele. É o impedimento deste mal, do qual seria vítima o réu,
ou, pior ainda, pessoas solidárias ao mesmo, que representa [...] o segundo e
fundamental objetivo justificante do direito penal [...] a pena não serve apenas para
prevenir delitos injustos, mas igualmente injustas punições [...] Tutela não apenas a
pessoa do ofendido, mas, do mesmo modo, o delinquente contra reações informais,
públicas ou privadas. Nesta perspectiva a pena ‘mínima necessária’ de que falavam
os iluministas [...] não é apenas um meio, constituindo, ela própria, um fim, qual
seja, aquele da minimização da reação violenta ao delito. E este objetivo,
diferentemente daquele da prevenção dos delitos, é também idôneo a indicar, em
razão da sua homogeneidade com o meio, o limite máximo da pena, além do qual
não se justifica que esta substitua as penas informais83.
Assim, entende-se que o direito penal deve ter como objetivo tanto a prevenção geral
dos delitos quanto a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. Enquanto a
prevenção dos delitos estabelece o limite mínimo das penas e reflete o interesse da maioria
não desviante, a prevenção geral das penas arbitrárias impõe o limite máximo das penas e
representa o interesse do indivíduo que se encontra na situação de suspeito ou acusado da
prática de um delito. Embora tais objetivos e interesses sejam aparentemente conflitantes,
tanto a prevenção dos delitos quanto a prevenção de penas arbitrárias, apresentam um aspecto
comum que se confunde com o objetivo geral do direito penal, qual seja, o “impedimento do
exercício das próprias razões”, ou, de modo mais abrangente, “a minimização da violência na
sociedade”84. Conforme explica Luigi Ferrajoli,
tanto o delito como a vingança constituem exercício das próprias razões. Em ambos
os casos ocorre um violento conflito solucionado mediante o uso da força: da força
do réu, no primeiro caso; da força do ofendido, no segundo. E, em ambos os casos, a
força é arbitrária e incontrolada não apenas, como é óbvio, na ofensa, mas também
na vingança, que é, por natureza, incerta, desproporcional, desregulada, e, às vezes,
dirigida contra um inocente. A lei penal é voltada a minimizar esta dupla violência,
prevenindo, através da sua parte proibitiva, o exercício das próprias razões que o
delito expressa, e, mediante a sua parte punitiva, o exercício das próprias razões que
a vingança e outras possíveis reações informais expressam85.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o direito penal destina-se à proteção do fraco
contra o mais forte, ou seja, o direito penal tem como objetivo, no caso do delito, tutelar o
ofendido em relação ao delinquente, e no caso da vingança, proteger o réu em relação ao
83
FERRAJOLI, 2010, p. 309.
84
Ibid., p. 310.
85
Ibid., p. 311.
94
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
ofendido e aos demais que lhe são solidários86. Evidencia-se, assim, que as duas finalidades
preventivas do direito penal não são incompatíveis, mas, ao contrário, guardam conexão entre
si. Isso porque tanto a prevenção dos delitos quanto a prevenção das penas arbitrárias
esta legitimidade [...] não é ‘democrática’ no sentido que não provém do consenso
da maioria. É, sim, ‘garantista’, e reside nos vínculos impostos pela lei à função
punitiva e à tutela dos direitos de todos. ‘Garantismo’, com efeito, significa
precisamente a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação,
mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do direito
penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e
das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a
dignidade da pessoa do imputado, e, consequentemente, a garantia da sua liberdade,
inclusive por meio do respeito à sua verdade88.
Dessa forma, pode-se afirmar, ainda, que um sistema penal justifica-se na medida em
que a violência representada pelos delitos, vinganças e punições arbitrárias for superior à
violência racionalizada e instituída por meio do aparato estatal, consubstanciada na aplicação
da pena criminal, com vistas a prevenir delitos futuros e reações não jurídicas a estes. Em
outros termos, a pena justifica-se apenas enquanto mal menor, isto é, enquanto menos violenta
e menos aflitiva se comparada à violência decorrente das práticas delituosas e das reações
arbitrárias que poderiam ocorrer em sua ausência. Em síntese, “o monopólio estatal do poder
86
FERRAJOLI, 2010, p. 311.
87
Ibid., p. 312.
88
FERRAJOLI, loc. cit.
95
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
punitivo é tanto mais justificado quanto mais baixos forem os custos do direito penal em
relação aos custos da anarquia punitiva89”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
89
FERRAJOLI, 2010, p. 312.
96
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
97
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
REFERÊNCIAS
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Paulo: Saraiva, 2009.
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Janeiro: Elsevier, 2004.
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Danilo (Org.). O Estado de direito. Tradução de Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. p. 95-198.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal. Coimbra: Coimbra Editora,
2001.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula
Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo:
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KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. Tradução de Marylene
Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos
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(Org.). O Estado de direito. Tradução de Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes,
2006. p. 3-94.
98
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RESUMO
O Direito Penal na atualidade sofre uma onda de criminalização orientada, em grande parte,
pelo anseio de que ele possa solucionar os vácuos deixados pelo governo, em razão de sua
parca atuação no sistema econômico. Todavia, sabe-se que a lei penal não possui vocação
para atuar fora de seus matizes originais e quando o faz, acaba por infringir o maior dos
princípios, exatamente, o da legalidade. Nesse sentido, o presente estudo visa desvelar o
passado, o presente e algumas possíveis consequências em relação ao futuro desta
malsucedida intervenção, sobretudo, no que diz respeito à lei penal, quando se pretende lançar
mão de sua proteção em matéria financeira, econômica e tributária.
PALAVRAS-CHAVE: Expansão; Direito Penal; Estado Democrático.
RESUMEN
El derecho penal en la actualidad sufre una ola de criminalización, impulsado en gran medida
por el deseo de que puede resolver los vacíos dejados por el gobierno debido a su escaso
rendimiento en el sistema económico y administrativo. Sin embargo, se sabe que el derecho
penal no tiene vocación para actuar fuera de sus colores originales, y cuando lo hace, se
termina rompiendo el mayor de los principios exactamente la legalidad. Por consiguiente, este
estudio tiene como objetivo revelar el pasado, el presente y algunas posibles consecuencias
para el futuro de esta intervención excesiva, sobre todo en lo que respecta al derecho penal,
cuando se quiere hacer uso de su protección en materia financiera, económica y fiscal.
PALABRAS CLAVE: Expansión; Derecho Penal; Estado Democrático.
1
Analista Processual da Justiça Federal do Rio de Janeiro, Especialista em Ciências Criminais pela PUC/RS,
Mestrando do PPGSD da UFF
99
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INTRODUÇÃO
100
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2
Segundo Lênio Luiz Streck e José Luiz Bolzan de Morais, este modelo estatal tinha como escopo a intervenção
e a promoção, caracterizando-se como sendo aquele que capaz de garantir “[...] tipos mínimos de renda,
alimentação, saúde, habitação, educação,, assegurados, a todo o cidadão, não como caridade, mas como direito
político” (STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência política e teoria geral do estado. 2.ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p.71).
3
“A História desta passagem, de todos conhecida, vincula-se em especial à luta dos movimentos operários pela
conquista de uma regulação para a convencionalmente chamada questão social. São os direitos relativos às
relações de produção e seus reflexos, como a previdência e a assistência sociais, o transporte, a salubridade
pública, a moradia, etc., que vão impulsionar a passagem do chamado Estado Mínimo – onde lhe cabia âmbito
do mercado – para o Estado Intervencionista - que passa a assumir tarefas até então próprias à iniciativa privada
– expressas como intervenção do Estado no ou sobre o domínio econômico”. (MORAIS, José Luís Bolzan de.
As funções do estado contemporâneo. o problema da jurisdição. Cadernos de Pesquisa da Unisinos, n.03, s.d.
p.12).
4
COMPARATO, Fábio Konder. Ordem econômica na constituição brasileira de 1988. RDP, n.93, p.264.
5
PIMENTEL, Manoel Pedro. Direito penal econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais,1973. p.08.
6
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Op. cit., p. 63.
101
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7
Exemplo disso pode ser observado nos incisos XXII: É garantido o direito de propriedade, e XXIII: A
propriedade atenderá a sua função social, respectivamente, do artigo 5º da Constituição Federal da República
Federativa do Brasil/1988.
8
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 763 e
ss. Streck e Bolzan criticam esta posição, afirmando que “No Brasil, a modernidade é tardia. O intervencionismo
estatal, condição de possibilidade para a realização da função social do Estado e caminho para aquilo que se
convencionou chamar de Estado Social ou Estado de Bem-Estar Social, serviu apenas para acumulação de
capital e renda para as elites brasileiras” (STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Op. cit., p.73).
9
Ricardo Antunes Andreucci explica que: “Ao dirigismo correspondeu um aumento da estrutura burocrática
estatal, sem a qual a administração não encontraria meios adequados à execução de suas atividades e, ainda,
correlatamente, um aumento de poder, sem o qual estas atividades não se concretizariam. Surge, portanto, um
aparato administrativo de enorme extensão, com condições de, não raro operar como redutor de liberdades e
direitos, embora não se possa dizer que liberdade e intervencionismo sejam antitéticos” (ANDREUCCI, Ricardo
Antunes. O direito penal econômico e o ilícito fiscal. Revista dos Tribunais, n.426, 1971. p.301).
10
COMPARATO, Fábio Konder. O indispensável direito econômico. Revista dos Tribunais, n.353, 1965. p.22.
102
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11
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p.175.
12
CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação constitucional do direito penal. Porto Alegre:
Sergio Fabris, 1992. p.92.
13
BERTOLUCCI, Marcelo Machado. O crime de não-recolhimento de tributos e contribuições: aspectos
críticos. Revista de Estudos Tributários, n.14, jul.-ago. de 2000, p.148.
103
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
modificação nos bens jurídicos, colocando-os na categoria de ultima ratio para garantir o
adequado desenvolvimento de um dado modelo econômico 14.
Deste enfrentamento, qual seja, Direito Penal versus criminalidade moderna, William
Terra de Oliveira tece o seguinte comentário:
Vale referir, entretanto, que o mesmo autor18 adverte para a perspectiva de que 80%
da criminalidade ainda se manifesta como aquela definida como lower class ou criminalidade
de massa.
14
CORREIA, Eduardo. Introdução ao direito penal econômico, direito penal económico e europeu: textos
doutrinários. Lisboa: Coimbra Ed., 1998. v.I, 299 e ss.
15
OLIVEIRA, William Terra de. Algumas questões em torno do novo direito penal econômico. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, n.19, 1995. p.232.
16
Como ilustração, vale trazer um exemplo típico deste tipo de criminalidade que, por meio das denominadas
contas CC5, disseminaram no Brasil, o crime de evasão de divisas (CARVALHO, Joaquim de. O paraíso CC5.
Revista Veja, 25.08.1993, p.88 e ss.).
17
SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal en las
sociedades postindustriales. Barcelona: Civitas, 1999. p.41.
18
Sobre a criminalidade de massa, Wingfried Hassemer faz a seguinte dedução: "Assaltos de rua, invasões de
apartamentos, comércio de drogas, furtos de bicicletas ou delinqüência juvenil crescem, ao passo que sua
elucidação policial bem como sua real elucidação tendem a zero. Estas manifestações da criminalidade afetam-
nos diretamente, seja como vítimas reais ou possíveis. Os efeitos não são apenas econômicos, mas sobretudo
atingem nosso equilíbrio emocional e nosso senso normativo: trata-se da sensação de desproteção e de debilidade
diante de ameaças e perigos desconhecidos, que nos leva a duvidar da força do direito" (HASSEMER,
Wingfried. Segurança pública no estado de direito. In: Três temas de direito. Porto Alegre, AMP/Escola
Superior do Ministério Público, 1993. p.64).
104
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
19
O Principio da legalidade, ao longo do tempo, sofreu mutações e adições que lhe conferiram o status de maior
garantia à liberdade individual, principalmente, dentro do regime democrático. Vale referir, pelos ensinamentos
de Maurício Antonio Ribeiro Lopes que, a partir da formulação clássica da expressão nullum crimen nulla poena
sine lege, sucederam-se a ela desdobramentos, cujos conteúdos trataram de reconhecer a irretroatividade da lei
penal (nullum crimen nulla poena sine lege praevia), banir do sistema a eleição de comportamentos penais pelo
costume (nullum crimen nulla poena sine lege scripta), proibir o emprego de analogia para criar crimes,
fundamentar ou agravar penas (nullum crimen nula poena sine lege certa), e proibir incriminações vagas,
desprovidas de certeza (nullum crimen nula poena sine lege stricta), também chamado de princípio da
taxatividade (LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal – projeções contemporâneas.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p.15).
20
LUISI, Luiz. Pena e constituição. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, v.3, n.1,
1990, p.28.
21
Ibid., p.24.
22
Conforme Cesare Beccaria afirmara: “Quando as leis forem fixas e literais, quando apenas confiarem ao
magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para indicar se esses atos são conformes à lei escrita, ou
se a contrariam; quando, finalmente, a regra do justo e do injusto, que deve orientar em todos os seus atos o
homem sem instrução e o instruído, não constituir motivo de controvérsia, porém simples questão de fato, então
não se verão mais cidadãos submetidos ao poder de uma multidão de ínfimos tiranos, tanto mais intoleráveis
quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido; que se fazem tanto mais cruéis quanto maior
resistência encontram, pois a crueldade dos tiranos é proporcional, não às suas forças, porém aos entraves que
lhes são opostos; e são tanto mais nefastos quanto não há quem possa libertar-se de seu jugo senão submetendo-
se ao despotismo de um só. Com leis penais cumpridas à letra, qualquer cidadão pode calcular exatamente os
inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, pois esse conhecimento poderá fazer com que se desvie do
crime" (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. [s.l.]: Martin Claret, 2000. p.23-24).
105
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23
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 4.ed. São Paulo: Renavam, 2001. p.67.
24
CARVALHO, Salo de. A política de drogas no Brasil: do discurso oficial às razões de descriminalização.
2.ed. Rio de Janeiro: Luam, 1997. p.82.
25
Ibid., p.83.
26
No dizer de Pimentel, as norma penais em branco "[...] caracterizam-se pelo fato de não determinarem, no
preceito primário, o comando de ação ou de omissão de maneira completa, delegando à autoridade
administrativa a sua complementação" (Op.cit. p.49).
106
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Como bem destaca Misabel Derzi, poderá ocorrer uma afronta aos princípios
delineados, nos casos em que obrigações tributárias acessórias, constitutivas dos tipos penais
da Lei 8.137/90 (tipificadora dos crimes contra a ordem tributária), necessitarem de
complementação29.
Explica a professora mineira que, quando os tipos desta lei remetem sua
complementação à lei tributária, v.g., informando apenas o vocábulo "em desacordo a
legislação", deve-se interpretar à luz da Constituição e em detrimento do art. 96, do CTN 30,
que tal expressão não poderá significar que decretos e atos administrativos criem ou
modifiquem substancialmente estas obrigações 31.
Além disso, o princípio da segurança jurídica, aquele em que, conforme J. J.
Gomes Canotilho:
[...] o cidadão deve poder confiar em que aos seus actos [sic] ou às decisões
públicas incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas e relações, praticados
ou tomadas de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos
duradouros, previstos ou calculados com base nessas normas32,
27
BATISTA, Nilo. Op. cit., p.75.
28
Ibid., p.73.
29
DERZI, Misabel. Crimes contra a ordem tributária, normas penais em branco e legalidade rígida.
Repertório IOB, n.13, 1ª quinz. jul. 1995. p.214.
30
Art. 96. A expressão "legislação tributária" compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os
decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles
pertinentes.
31
DERZI, Misabel. Op. cit., p.214.
32
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p.371.
107
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
estará a salvo, sempre que as normas penais, ditas em branco, forem preenchidas por lei, sem
lacunas ou atos administrativos providos do poder executivo.
Ademais, toda e qualquer exceção ao princípio da legalidade, que implique
modificação de conceitos, deveres ou obrigações deverão estar amparadas e autorizadas por
norma constitucional, na medida em que esta transformação poderá influir na caracterização
da responsabilidade penal.
A teoria do bem jurídico penal, sem dúvida, apresenta-se como o norte principal para
a moderna ciência penal. É mediante a determinação de certo bem (objeto concreto de tutela
penal), que tal ciência obtém suporte para ligar-se à realidade.
Antecede, contudo, aos critérios pelos quais há a seleção dos bens e valores
essenciais da sociedade e que, por isso, devem ser tutelados pelo Estado, um importante
fenômeno pelo qual a sociedade é atingida, qual seja: o processo de massificação.
A massificação da sociedade (ou seja, uma sociedade de produção, troca e consumo
em massa) acabou por produzir situações e conflitos por demais complexos, sendo possível
imaginar que os prejuízos decorrentes deste processo afetam, não mais a um particular, mas
sim a uma gama de pessoas, envolvendo grupos, classes e coletividades. São as chamadas
violações de massa33.
Sobre este quadro é que se debruça o moderno operador do Direito Penal, na medida
em que, consoante Faria Júnior bem explica: “No âmbito econômico, como conseqüência do
dinamismo da sociedade moderna, chegou-se à configuração de bens jurídicos chamados
difundidos ou difusos”34.
Os direitos difusos, segundo explicita Teori Zavaski, seriam transindividuais, ou seja,
portadores de uma indeterminação absoluta e indivisíveis, porquanto afeitos a todos os seus
titulares35. Neste prisma, o Direito Penal lança o seu feixe de proteção justamente sobre estes
bens jurídicos, visto passíveis, quando atingidos, de irradiarem danosidade coletiva.
33
CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de Processo,
n.5, 1977. p.130.
34
FARIA JÚNIOR, César de. Crimes contra a ordem tributária. Cadernos de Direito Tributário e Finanças
Públicas, n.4, jul./set. de 1993, p.115.
35
ZAVASCKI, Teori Albino. Defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos. Revista Forense, Rio de
Janeiro, n.329, 1995. p.148 e ss.
108
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Nesse aspecto, o ponto mais polêmico, quiçá, que circunscreva a intervenção penal
sobre determinadas práticas anticontributivas, fiscais ou econômicas seria o processo e
critérios de individualização e determinação de bens jurídicos, feito pelo legislador, para a
elaboração das respectivas normas incriminadoras. E isto pressupõe o fim a que se destina o
Direito Penal.
O sistema penal visa à proteção de determinados bens jurídicos, mas o legislador ao
legislar, sempre terá princípios constitucionais limitadores à função por ele exercida,
principalmente para a escolha de um bem jurídico passível de ser protegido.
Desta forma, o poder punitivo do Estado nunca poderá proibir condutas, senão,
consoante noticia Juarez Freitas:
Não por acaso, que o conceito de bem jurídico resultou de cansativa elaboração
doutrinária, primeiramente buscando-se um conteúdo material na lesão ou exposição de
perigo de direitos subjetivos. Noutra fase, fim do século XIX, a lesão ou exposição a perigo
de interesses vitais, chegando a doutrina, por fim, à conclusão de que o conteúdo material do
injusto recairia sobre a lesão ou exposição a perigo de um bem jurídico 37.
Com efeito, Assis Toledo entende serem os bens jurídicos “[...] valores éticos-sociais
que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção
para que não sejam expostos a perigo de ataque ou lesões efetivas” 38. O mesmo autor,
entretanto, acrescenta que nem todo bem será necessariamente um bem jurídico e que nem
todo bem jurídico será passível de ser acobertado pela tutela penal 39.
Eventualmente, o que ocorre é a má escolha de bens jurídicos a serem tutelados
penalmente. O legislador, muitas vezes por desconhecimento, renega a segundo plano três
princípios fundamentais e que servem de base formal e material para o surgimento de novos
tipos penais.
O primeiro deles seria o princípio do Estado Democrático de Direito, que está
identificado com a ordem democrática, cuja função primordial è garantir e resguardar a
36
FREITAS, Juarez. Critérios de seleção de crimes e cominação de penas. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, n.º especial de lançamento, dez. 1992, p.80.
37
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.p.16.
38
Ibid.
39
Ibid., p.17.
109
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
CONCLUSÃO
40
PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p.52.
41
Ibid.
42
Ibid., p.51.
43
Falta de fiscalização, falta de políticas tributárias ou má aplicação das mesmas e a corrupção são apenas alguns
destes fatores.
44
OLIVEIRA, Antônio Cláudio Mariz de. Reflexões sobre os crimes econômicos. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n.11, 1995, p.94.
110
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Em outro giro, pode-se afirmar que o Direito Penal, nessa medida, passa a ser
administrativizado. Essa administrativização, tipologia utilizada por Jesús-María Silva
Sánchez, traz consigo, igualmente, o fenômeno da expansão do Direito Penal para além dos
seus limites, com a flexibilização dos princípios político-criminais e de regras de imputação.
Assim, a medida coercitiva diversa e desviante das históricas conquistas do Direito
Penal resulta, sem sombra de dúvida, em excesso de criminalização, o que deslegitima a
própria lei penal, uma vez que o mau uso deste instrumento ou o seu uso indiscriminado acaba
por gerar impunidade e descrédito perante a sociedade.
111
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
RESUMO:
Os antecedentes criminais são utilizados pelo Juiz para majoração da pena-base, na primeira
fase do processo trifásico da fixação da pena. Tal é feito de forma automática, sempre que a
condenação não é considerada para fins de reincidência. Da mesma forma, não existe limite
temporal para a aplicação de tal circunstância judicial. A falta da fixação de um tempo para a
eficácia da circunstância viola diversos princípios da Constituição e do Direito Penal. Da
mesma forma, a reincidência é utilizada como agravante genérica, também de forma
automática, sem que o Estado cumpra o seu dever de ressocialização dos condenados e
assistência ao egresso. Esse comportamento provoca uma assimetria legal e constitucional.
Em atenção aos novos parâmetros do Direito Penal, é necessária a releitura dos dispositivos
da lei penal que disciplinam o instituto, como forma de adequá-los aos paradigmas atuais do
Direito Penal.
1
Juiz de Direito em Minas Gerais. Mestrando em Direitos Coletivos e Cidadania pela Universidade de Ribeirão
Preto.
2
Mestre e Doutor pela PUC-SP. Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor e
Coordenador do Programa de Mestrado em Direitos Coletivos e Cidadania da Universidade de Ribeirão
Preto, Professor do Departamento de Direito Público da FDRP/USP e Promotor de Justiça.
112
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
ABSTRACT:
The criminal records are used by the judge to increase the sentence in the first phase of the
process of fixing the penalty phase. This is done automatically whenever an order is not
considered for purposes of recurrence. Likewise, there is no time limit for the implementation
of such a circumstance court. The lack of setting a time for the effectiveness of circumstance
violates several principles of the Constitution and the Criminal Law. Similarly, relapse is used
as a generic aggravating, also automatically, without the state fulfills its duty of care and
resocialization of convicts to egress. This behavior causes an asymmetry legal and
constitutional. In response to the new parameters of criminal law, it is necessary to reconsider
the provisions of criminal law governing the institute, in order to adapt them to current
paradigms of Criminal Law.
1. INTRODUÇÃO
113
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
É certo que existe outra parte da doutrina, capitaneada por Rogério Greco7, insistindo
que somente os fatos decorrentes de sentenças penais condenatórias transitadas em julgado
podem ser consideradas como antecedentes. Todavia, tal questão é meramente semântica e
não merece maiores considerações, na medida em que o relevante é a determinação de quais
antecedentes podem ser considerados pelo Juiz.
Embora não se possa negar que como antecedentes devem ser considerados todos os
fatos que pontilham a vida anteacta do acusado, seja para lhe beneficiar ou, permitir o
agravamento da sanção penal, o fato é que tal consideração in pejus somente é possível nas
hipóteses de sentenças condenatórias que não são consideradas para efeito da reincidência.
3
LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal. V. II. Forense: Rio de Janeiro, 1.958, p.211.
4
Curso de Direito Penal. Parte Geral. Vol. I, São Paulo, Saraiva, 2006, p. 412.
5
Código Penal Comentado. 12ª ed. São Paulo: RT, 2012, 428.
6
Tratado de Direito Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 590.
7
Código Penal Comentado. São Paulo: Impetus, 2009, 128.
114
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Assim, embora antecedente criminal deva ser considerado como qualquer registro
criminal, somente podem ser considerados como maus antecedentes, para fins de agravamento
da pena-base, aqueles que decorram de sentença judicial definitiva.
A reincidência criminal deve ser entendida como o ato de praticar novamente uma
conduta definida na lei penal, após ter sido condenado anterior e definitivamente por outro
crime, de conformidade com o “caput” do artigo 64 do Código Penal.
8
FERREIRA, Gilberto. Aplicação da Pena. Rio de Janeiro: Forense, 1.998, p. 238: “Não há ofensa ao art. 5º
LVII da Constituição Federal, o fato de se considerarem como antecedentes aqueles decorrentes de processos
que ainda não transitaram em julgado.”
9
STF, AP nº 503-PR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 31.01.2013. Disponível em www.stf.jus.br, consulta em
17.03.2013.
10
Instituições de direito penal. v. I. t. II. 5ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1.978, p. 473.
115
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Por outro lado, merece registro que parte minoritária da doutrina entende que a
consideração da reincidência se constitui em bis in idem vedado no direito penal, implicando
em dupla sanção, isto porque o réu que já foi condenado e cumpriu integralmente sua pena
não pode mais ser punido por aquele fato. Sustentando neste sentido, destacam-se Zaffaroni e
Pierangeli11 e Alberto Silva Franco12. No direito comparado também existem os críticos da
possibilidade de utilização de fatos pretéritos como critério para a dosimetria de pena um
delito atual. Jiménez de Asúa, nesse sentido anota que:
Estímase por quines así razonan que castigar más gravemente a un hombre a
causa de un delito anterior, cuya condena había sido ya cumplida,
constituiría una grave injusticia, um quebramiento de la máxima non bis in
idem, o que apreciar la recaída con efectos jurídicos sería mezclar La Moral
y el Derecho, que tinenen propias áreas, puesto que es justo que la pena siga
a La manifestación de voluntade criminal.13
11
ZAFFARONI, Eugênio Raúl & PIERANGELI, Jose Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, pp. 843/844.
12
Código penal e sua interpretação jurisprudencial. v. 1. 7 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.007,
pp.1.179/1.180.
13
JIMÉMEZ DE ASÚA, Luis. Princípios de derecho Penal. La Ley y el delito. Buenos Aires: Abeledo-Perrot,
1.997, pp. 536/537.
14
Direito penal: parte geral. t. 3. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 114.
116
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
se trate de condenação por crime doloso (CP, art. 91, I), além da revogação facultativa, na
hipótese de condenação por crime culposo ou por contravenção (CP, art. 91, § 1º); determina
a revogação obrigatória do livramento condicional, quando o réu é condenado a pena
privativa de liberdade (CP, art. 96) e revogação facultativa, no caso de crime ou contravenção
(CP, art. 97); invalida a reabilitação criminal sobrevindo condenação a pena diversa da multa
(CP, art. 95); provoca o aumento um terço o prazo de prescrição da pretensão executória (CP,
art. 110, caput); é causa interruptiva da prescrição (CP, art. 117, VI); obsta o reconhecimento
de causas especiais de diminuição de pena (CP, arts. 155, § 2º; 170 e 171, § 1º),
O direito penal que se legitima num Estado Democrático e Social de Direito, deve se
centrar na responsabilidade penal do agente sobre o fato (direito penal do fato ou da culpa),
não pelo quem é o autor, não sendo razoável cogitar do direito penal do autor.
No mesmo sentido, mas já na fase seguinte de aplicação da pena (2ª fase do processo
trifásico), a agravante da reincidência, igualmente diz respeito ao passado do autor, do seu
envolvimento com outros crimes, mas nada diz respeito ao fato em julgamento.
117
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Dentro dessa ótica, Juarez Tavares sustenta, com acerto, que o sujeito não pode ser
reduzido a uma mera engrenagem de um processo causal, mas que possa
Ainda que se pudesse aceitar a aplicação dos maus antecedentes como critério
perpétuo de fixação da pena, conforme anotado por Jimenez de Asúa.
15
Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2.000, p. 102.
16
Op. cit. p. 542.
17
BETTIOL, Giuseppe. Instituciones de Derecho Penal y Procesal. Trad. Faustino Gutiérrez-Alviz y Conradi.
Barcelona. Bosch, 1.977, p. 146.
118
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
criminais devem desaparecer dos registros criminais do agente, decorridos o igual prazo de
cinco anos aplicável aos reincidentes, tendo como termo a que a data do cumprimento ou
extinção da pena, conforme proposto José Antônio Paganella Boschi18,
Nesse ponto, o caráter perpétuo dos maus antecedentes, que não possui limitação
legal mereceu pertinente crítica de Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho:
18 Apud. CARVALHO, Amilton Bueno de & carvalho, Salo, Aplicação da Pena e Garantismo. 2.ed. amp. , Rio
de Janeiro: Lumen Iuris, 2002, p. 52.
19
Crimes Eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2.008, p. 74.
20
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra:
Almedina, 2.003, p. 270.
21
A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org. e Trad. André Luis Callegari e Nereu José
Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2.006, p. 23.
119
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Ora, se a pena não pode ser perpétua e possui um limite temporal máximo de
cumprimento, por certo, não é possível admitir que o efeito de antecedente criminal
provocado pela sentença penal possa subsistir por prazo indeterminado.
A discussão aqui travada não é nova. Embora não possa indicar a existência de
posição majoritária na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça, já decidiu que:
No âmbito do Supremo Tribunal Federal a dúvida aqui suscitada não foi solucionada,
isto porque a matéria recebeu repercussão geral nos autos do Recurso Extraordinário nº
593.818-SC, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, em apreciação concluída em 26 de
fevereiro de 2.009, mas ainda não foi submetida à deliberação do Plenário da Corte.
22
Op. cit., p. 52-53
23 RHC nº 2.227-2 MG, 6ª Turma STJ, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 29/03/93, p. 5.268.
120
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
No sentido da tese aqui esposada, deve ser observado que inexiste conceito legal de
antecedentes criminais ou de sua regulação no tempo, de forma que não há qualquer objeção
concreta para a adoção.
Após o cumprimento da pena, apegado à falsa idéia de que o agente não foi
reintegrado à sociedade e, por essa razão voltou a praticar novo crime, o Estado estabelece
critérios legais de majoração da pena para aqueles que haviam sido condenados anteriormente
121
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Sem embargo de que, efetivamente não se tenha lhe dado qualquer chance concreta
de reintegrar ou ressocializar, o Estado entrega os condenados, principalmente os egressos do
sistema carcerário à própria sorte, sem lhes oferecer qualquer tipo de ajuda na difícil tarefa de
reintrodução na sociedade. Além disso, lhe exige comportamento criminal exemplar, sob pena
de lhe tratar de forma rigorosa, inclusive na aplicação das penas.
Assim agindo, o Estado opta por punir novamente o agente, majorando a pena pelo
novo crime praticado, que não possui qualquer relação com o anterior, como se tal
comportamento gerasse uma prevenção especial, sem permitir qualquer tipo de digressão a
respeito dos motivos que determinaram o primeiro dos delitos ou a sua reincidência. Nesse
sentido, é a oportuna lição de Souza de Xavier:
Aqui, não é demasiado lembrar que: “No Estado Democrático de Direito instituído
pelo constituinte de 1988, a dignidade da pessoa humana ostenta status de princípio
fundamental, de modo a constituir diretriz obrigatória para todos os operadores do Direito.” 26
Portanto, não é razoável, à luz de tal princípio, a automática majoração da pena para
aqueles que voltaram a praticar novos crimes, sem que o sentenciado tenha sido
24
XAVIER DESOUZA, Paulo S. Individualização da Pena no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 159-160.
25
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: RT, 1.999, p. 30.
26
FAVORETTO, Affonso Celso. Princípios Constitucionais Penais. São Paulo: RT, 2.012, p. 36.
122
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O antecedente criminal, da forma com que é visto nos dias atuais, é uma nódoa
permanente, que acompanha o cidadão condenado por decisão criminal definitiva, pelo resto
de sua vida.
Dessa forma é forçoso reconhecer que a atribuição de caráter vitalício a tal efeito da
condenação (antecedente criminal), vulnera o disposto no artigo 5º, inciso XLVII, aliena “b”,
da Constituição da República, que veda a instituição de penas perpétuas, além dos demais
princípios acima nominados.
29 TJMG-ACr 1.0295.11.003796-3/001, Rel. Des. (a) Reinaldo Portanova, j. 20/11/2012, pub. 30/11/2012.
30 TJMG-ACr 1.0720.03.011202-6/001, Rel. De. (a) Reinaldo Portanova, j. 13/11/2012, pub. 23/11/2012.
31
CHIQUEZI, Adler. Reincidência criminal e sua atuação como circunstância agravante. Dissertação de
mestrado na PUCSP, tendo como orientador Dr. Prof. Dirceu de Mello. São Paulo, 09/06/2009, p. 89
124
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admitida, salvo diante de análise pormenorizada das circunstâncias e motivos das práticas
delitivas e, após cumprido o dever do Estado de ressocialização dos condenados.
5. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva,
2008.
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DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo:
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GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. v. I. t. II. 5ª ed. São Paulo: Max Limonad,
1.978, p. 473.
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Aires: Ad-Hoc, 1.996.
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ZAFFARONI, Eugênio Raúl & PIERANGELI, Jose Henrique. Manual de direito penal
brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
126
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
ABSTRACT
It analyzes the official discourse of the drugs responsible for primary and secondary
criminalization that selectively focuses on marginalized social strata, as negative penal policy.
Therefore the criminalization of forbidden drugs seeks its legitimation through the legal
interest of public health. The prohibitionist discourse is divide in four planes: moral,
sanitarian, public security and international security. Inside the sanitarian plane, the legal
interest of public health does not represent an individual necessity, therefore drug offences are
not legitimate in the legal interest scope, stripped of public policies towards the real needs of
the vulnerable population. The perverse effects of such adverse penal policy can be noticed in
both the mass incarceration promoted by official agencies for control of narcotics trafficking,
as the constant use of war metaphors in criminal policy, with the effective militarization of
public security. We have to think, therefore, in a different criminal policy, of harm reduction
from criminalization associated with decriminalization of illicit substances, given the failure
of enforcement policy with respect to its stated goals of reducing consumption, beyond
serious harm it poses to democracy and human rights.
1
Professora adjunta da Faculdade de Direito da UFPR. Mestra em Direito pela UFSC. Doutora em Direito pela
Universidade Paris 8.
2
Professor da Escola Superior da Polícia Civil do Estado do Paraná. Mestrando em Direito pela UFPR.
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bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos
penais” (processo de criminalização primária); depois, “a seleção dos indivíduos
estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente
sancionadas” (processo de criminalização secundária). Desse modo, conclui-se que “a
criminalidade é um ‘bem negativo’, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos
interesses fixada no sistema sócio-econômico e conforme a desigualdade social entre os
indivíduos” (BARATTA, 2002, p.161).
Assim como a criminalidade é uma realidade socialmente construída segundo
processos de definições e reações sociais, a droga é objeto de um discurso construído na
obscuridade para que se possa atuar sobre ela de forma arbitrária. Segundo Del Olmo, a
palavra droga generaliza qualquer substância capaz de alterar condições físicas ou psíquicas, o
que comporta tanto substâncias ilícitas como lícitas (caso do álcool, do tabaco, dos
medicamentos controlados). O que interessa não parece ser a substância, sua definição e
menos ainda sua “capacidade ou não de alterar ao ser humano”, mas o discurso sobre ela, de
tal modo que se fala na “droga” no singular e não nas “drogas”, pois quando são agrupadas
em uma única categoria, tem-se uma estratégia para “confundir e separar em proibidas ou
permitidas”, de acordo com a conveniência (1988, p.3-4). O mesmo discurso sobre as
características das substâncias comportará o discurso sobre as características do ator:
consumidor ou traficante, vítima/vitimado, enfermo/perverso, cuja utilidade está no
estabelecimento discursivo de uma polarização entre bem e mal, necessária ao sistema social
para induzir a determinados consensos axiológicos e normativos no sentido de manutenção do
statu quo (OLMO, 1988, p.4).
A definição de drogas lícitas ou ilícitas depende de decisões de ordem econômica,
moral e social sempre valorativas, tal é o caso exemplar da proibição do consumo da folha de
coca que não tem qualquer poder viciante como a substância psicoativa que dela se deriva
(BOITEUX; CHERNICHARO, 2012, p. 8)
Rosa Del Olmo analisa os diversos discursos constitutivos sobre a droga a partir do
fim da Segunda Guerra Mundial, quando a ONU se torna um regulador internacional do
fenômeno. Partiremos da análise de Rosa Del Olmo como eixo fundamental para
compreender a consolidação de um discurso “oficial-científico” sobre as drogas (2003, p.
122).
Na década de 50, os opiáceos (morfina e heroína) e a maconha, consumidos pelo
underground (desde intelectuais, músicos a habitantes dos guetos etc.), constituíam o principal
129
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objeto de preocupação das agências oficiais de controle, particularmente a maconha, por ser
considerada “a erva maldita”, geradora de violência e criminalidade, sobretudo por estar
associada aos imigrantes portorriquenhos e aos negros que lutavam pelos seus direitos civis à
época. O consumidor passou a ser tratado como um “degenerado” e o traficante como
“inimigo externo” (discurso geopolítico), pois havia uma teoria da conspiração comunista que
pretendia corromper a juventude norte-americana com as drogas ilegais. O resultado disso foi
o discurso oficial (ético-jurídico), que representou o aumento de leis penais punitivas e o
discurso científico em torno da preservação da “saúde pública” (OLMO, 2003, p.122).
Na década de 60, a maconha, o LSD e outras drogas sintéticas eram consumidas por
jovens estudantes de classe média, especialmente em virtude do movimento hippie. A
maconha passa a ser a responsável pela “passividade e a ‘síndrome amotivacional’”.
Consolidou-se nesse período o discurso “médico-sanitário-jurídico”, pois o consumidor
recebe o estereótipo de enfermo (OLMO, 2003, p. 125-126) e o traficante o de delinquente.
Há nesse período o crescimento da indústria da “saúde mental”, de tratamentos como o uso da
metadona e de intervenções terapêuticas que reforçaram o “estereótipo da dependência” ao
mesmo tempo que em matéria de segurança se reforça o papel geopolítico do “inimigo
interno”, no caso, a atitude dos jovens contestadores nas universidades. Ao final da década de
sessenta, a “Operação intercept” (OLMO, 1988, p.24) fecha a fronteira mexicana para impedir
a entrada da maconha e assim se inaugura o “discurso do ‘inimigo externo’” e propriamente a
“guerra contra as drogas” do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon (OLMO,
2003, p. 125-126).
Na década de 70, a droga considerada mais perigosa era a heroína, depois anfetaminas
e barbitúricos. Desenvolve-se nesse período um “discurso jurídico-político-médico”, ao
mesmo tempo em que no âmbito geopolítico a China comunista era considerada o “inimigo
externo”, a droga era responsável pelo aumento da criminalidade, portanto, o “inimigo
interno”. Nesse período se enfatiza a necessidade de internacionalizar a política criminal
contra as drogas percebidas como ameaça à segurança interna do país. Em 1971, em Viena,
houve o convênio sobre substâncias psicotrópicas para aumentar o controle sobre os fármacos.
Em 1973, criou-se a Drug Enforcement Agency (DEA) (OLMO, 2003, p.126-129). No
entanto, o programa de recuperação dos adictos em heroína pela metadona foi um fracasso. A
Drug Enforcement Agency, em 1974, informou que as mortes pelo consumo ilegal da
metadona se tornaram superiores às mortes pelo consumo da heroína (OLMO, 1975, p.84).
130
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Novos “responsáveis” pela disseminação das drogas ilegais são apontados. Eles
estão na América Latina – colombianos, peruanos, bolivianos, mexicanos –, na
África – nigerianos, marroquinos, senegaleses – e na Ásia – birmaneses, afegãos,
tailandeses. A lógica em operação é a identificação da ameaça no além-fronteiras
[...] divide o mundo em países consumidores, as “vítimas”, e países produtores, os
“agressores”. (RODRIGUES, 2004, p. 140)
Esta política não ocorre unicamente no Sudeste asiático e no Oriente Médio, ela tem
forte influência nos países da América Latina. A acusação de ser um narcoestado é forte
134
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argumento para intervenção estadunidense nesses países. A política dos EUA em relação à
droga tem promovido um tratamento muito rígido, militarizado, principalmente no México e
Colômbia. Com menos intensidade, mas igualmente rígidas têm sido as atuações militares dos
EUA no Equador, Peru, Bolívia e Paraguai.
Este quarto plano de segurança internacional não deve ser visto como uma completa
inovação, mas como desdobramento dos outros três planos da moral, saúde e segurança
pública.
É importante lembrar que todas essas ameaças foram combatidas historicamente por
vias de controle social muito rígidas como a polícia, o cárcere e inclusive forças armadas. Não
tendo, sem embargo, alcançado a meta “um mundo sem as drogas”. Conforme o Relatório
Mundial sobre as Drogas da Organização das Nações Unidas (UNODC):
The overall number of drug users appears to have increased over the last decade,
from 180 to some 210 million people (range: 149-272 million). In terms of
prevalence rate, the proportion of drug users among the population aged 15-64,
however, remained almost unchanged at around 5% (range: 3.4%-6.2%) in
2009/2010. (UNODC, 2011)
Esta conclusão não é recente. Há mais de cinquenta anos diversos intelectuais tem
denunciado o fracasso destas políticas estatais, propondo-se, no lugar, uma série de outras
medidas, sejam elas de Redução de Danos, despenalização, descriminalização, legalização,
tributação, regulamentação etc. Porém, independente da denúncia intelectual, a política de
drogas de forma global tem permanecido estável como uma política criminal que por ter esta
característica propaga uma confusão sobre os reais efeitos das substâncias, um constante
sentimento de alarme social e uma marginalização dos consumidores de drogas ilícitas.
Aliás, uma política penal destinada a usuários e traficantes pode ser extremamente
ineficiente, como relatam estimativas feitas nos EUA que indicam que de plano seria possível
a redução do uso de cocaína em um por cento se investido apenas trinta e quatro milhões de
dólares dos um bilhão e trezentos e noventa e cinco milhões gastos com aprisionamento,
intercepção e controle de fronteira de drogas. Inclusive,
A later study using a similar model [...] estimated that $1 million spent on treatment
could reduce U.S. cocaine consumption by 104 kilograms, much more than if the
same money were spent on trying to lock up more dealers (26 kilograms) or
providing longer sentences for convicted dealers (13 kilograms). (MACCOUN;
REUTER, 2009, p. 34)
135
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Com o fim da guerra fria e a aparente vitória da economia de mercado e de suas leis
darwinistas de competitividade, surgem com toda força as políticas neoliberais para redução
do Estado a um mínimo no que tange à construção de um modelo econômico e político de
inclusão social, a fim de que as forças do mercado atuem livremente, pois na impossibilidade
de prover a segurança dos direitos fundamentais, incumbe-se apenas de “gestão policial e
judiciária” (WACQUANT, 2001, p. 30) dos sobrantes que supostamente atrapalham a ordem
instituída. Ao retirar-se das funções que fundamentaram sua legitimação política, na esfera de
um consenso de cidadania, o Estado desloca sua autoridade para a esfera da “proteção contra
os perigos à segurança pessoal”, onde se vislumbra o espectro de um “potencial inimigo
interno” a ser combatido (BAUMAN, 2008, p. 193).
Os Estados Unidos constituem caso emblemático de que o discurso oficial contra um
inimigo potencial pode ser muito lucrativo para a indústria e o comércio de armamentos e
demais serviços de segurança privada. Para Nils Christie, o dinamismo na economia
americana se deve em grande parte à indústria de controle do crime, cujos gastos anuais
chegaram a US$ 210 bilhões, enquanto as Forças Armadas, em 1998, gastaram US$ 256
bilhões, o que demonstra que o custo da guerra contra os “inimigos internos” se aproxima do
custo da guerra contra os “inimigos externos” (2000, p.140-141).
Segundo Vera Malaguti Batista, no período de transição da ditadura para a democracia
(1978-1988), no Brasil, o “inimigo interno” passa a ser o traficante em vez do “terrorista”,
pois o sistema de controle social, inclusive o midiático, “convergiu para a confecção do novo
estereótipo. O inimigo, antes circunscrito a um pequeno grupo, se multiplicou nos bairros
pobres, na figura do jovem traficante” (2003, p. 40).
De fato, apesar de os meios de comunicação e a polícia instigarem o medo,
relacionando a participação de determinados setores sociais subalternos no tráfico ao aumento
das prisões e da violência, é a própria repressão penal ao tráfico que opera segundo
determinados estereótipos e atua com violência. A “guerra às drogas” tem como alvo o setor
mais inofensivo no tráfico ilícito:
Hoje, a grande maioria dos presos no tráfico de drogas é formada pelos chamados
‘aviões’, ‘esticas’, ‘mulas’, verdadeiros ‘sacoleiros’ das drogas, detidos com uma
‘carga’ de substância proibida, através da qual visam obter lucros insignificantes em
relação à totalidade do negócio. Estes ‘acionistas do nada’, na expressão de Nils
Christie, são presos, na sua imensa maioria, sem portar sequer um revólver
(ZACCONE, 2007, p. 116-117).
137
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É apenas com a Consolidação das Leis Penais em 1932 que se incrementa a expressão
substância entorpecente, mas o seu controle somente encontrará seu primeiro grande impulso,
no Brasil, com os Decretos 780/36 e 2.953/38 (elaborados conforme a Convenção de
Genebra, 1936). Esse período pode ser classificado como a pré-história da questão das drogas
no Brasil visto que “[...] somente a partir da década de 40 é que se pode verificar o surgimento
de política proibicionista sistematizada.” (CARVALHO, 2010, p. 12)
A característica marcante é a criação de sistemas punitivos autônomos que produzem
uma criminalização primária coesa e, simultaneamente, incidência dos aparatos repressivos
(criminalização secundária) com uma independência própria em relação a outros tipos de
delito. Assim, temos com o Código Penal de 1940 a previsão do:
Art. 281. Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título
gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de
qualquer maneira, entregar a consumo substância entorpecente, sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar; Pena - reclusão, de um a
cinco anos, e multa, de dois a dez contos de réis.
Havia à época um esforço de manter toda a legislação penal no Código Penal, mas, a
criminalização das drogas, por origem, exige uma legislação à parte. Esta se daria com o
Decreto-Lei 4.720/42 disparando um amplo processo de descodificação da matéria que
reverbera na expansão descontrolada da matéria criminal e processual criminal no âmbito de
drogas até a contemporaneidade.
Adequando-se aos parâmetros já consolidados internacionalmente com a Convenção
Única sobre Entorpecentes de 1961 e o Convênio sobre substâncias Psicotrópicas de 1971,
virá, posteriormente, a Lei 6.368/76 que revogará o dispositivo do artigo 281 do Código Penal
e, atualmente, a Lei 11.343/06 que revogou os dispositivos anteriores.
Conforme literatura penal nacional e internacional o bem jurídico tutelado pelos
crimes de uso, fabricação e tráfico de drogas corresponde à saúde pública. Nesse sentido
Vicente Greco: “Todas as condutas violam igualmente o bem jurídico protegido que é a saúde
pública, colocando-a em perigo.” (GRECO FILHO, 1991, p. 79)
Em relação especificamente ao tipo de tráfico (art. 12 da antiga lei de drogas – Lei
6.368/76; e art. 33 da nova Lei 11.343/06) “O bem jurídico protegido pelo delito é a saúde
pública. A deterioração causada pela droga não se limita àquele que a ingere, mas põe em
risco a própria integridade social.” (GRECO FILHO, 1991, p. 83) Mais adiante dirá que a
presunção de perigo é juris tantum (perigo abstrato) “Para a existência do delito não há
necessidade de ocorrência do dano. O próprio perigo é presumido em caráter absoluto,
139
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bastando para a configuração do crime que a conduta seja subsumida num dos verbos
previstos.” (GRECO FILHO, 1991, p. 83)
Em relação ao tipo de uso Vicente Greco dirá que “A lei não pune, e não punia, o vício
em si mesmo, porque não tipifica a conduta de usar (entendimento acolhido por nossos
tribunais).” (GRECO FILHO, 1991, p. 116) Em relação ao bem jurídico de simples posse que
“Mesmo o viciado, quando traz consigo a droga, antes de consumi-la, coloca a saúde pública
em perigo, porque é fator decisivo na difusão dos tóxicos.” (GRECO FILHO, 1991, p. 119)
O Supremo Tribunal Federal já entendeu que a incriminação de drogas corresponde ao
bem jurídico saúde pública como se observa do julgado:
140
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O simbólico passa a fazer parte da argumentação, como meio pelo qual a doutrina se
faz comunicar com a realidade, justificando as normas incriminadoras como obra de
uma legalidade racionalizada. [...] O argumento simbólico se insere como um
reforço da legalidade. (TAVARES, 2011, p. 5-6)
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da vida das pessoas, o que, antes, pelo forte discurso liberal e iluminista, seria simplesmente
inaceitável.
Juarez Tavares, nesse sentido, apresenta feliz contribuição para a nossa análise. O
conteúdo dos textos apresenta outros objetivos que são “tão diversos quanto diversos os
interesses das da autoridade que os manifesta.” (TAVARES, 2011, p. 7) É, portanto, nos
sentimentos e interesses da autoridade que se expressará os verdadeiros objetivos da
legalidade. O julgador, porém, no ímpeto de simbolizar a necessidade de suas aplicação, quer
apresentar os códigos como legítimos e inacessíveis. Remetendo a “O Processo” de Kafka,
Tavares dirá:
En tanto que una política criminal democrática implica que la persona no puede ser
objeto de manipulaciones, la selección de los objetos de protección ha de hacerse
superando enmascaramientos ideológicos que puedan conducir a algo que encubra
otra realidad. (BUSTOS RAMÍREZ; MALARÉE, 1997, p. 59-60)
Uma coisa é certa, agasalhá-la sob o manto do bem jurídico da saúde pública é muito
conveniente, uma vez que as esferas da moral e da segurança pública – controle de minorias –
não podem ser objetivos declarados da lei proibicionista. Não é preciso lembrar que por mais
reprovável moralmente que se considere uma conduta, em face do princípio da secularização,
uma conduta não pode ser penalmente reprovada por motivos morais. Salo de Carvalho (2010,
p. 270) dirá que:
[....] nenhuma norma penal criminalizadora será legítima se intervier nas opções
pessoais ou se impuser padrões de comportamento que reforçam concepções morais.
A secularização do direito e do processo penal, fruto da recepção constitucional dos
valores do pluralismo, da tolerância e do respeito à diversidade, blinda o indivíduo
142
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Podemos concluir, portanto, que a colocação do bem jurídico penal das drogas ilícitas
na “saúde pública”, convenientemente disfarça sua legitimidade, uma vez que os outros
planos de prevenção geral, não podem tomar cobertura num guarda-chuva argumentativo
democrático. Assim, enquanto a política proibicionista é aplicada, vitimizando
simultaneamente vendedores e consumidores, não se debate o que efetivamente está fazendo a
política, mas se ela diminui ou não o consumo de drogas. Numa exemplar lição de ideologia,
o argumento sanitarista elide para iludir.
A tutela do bem jurídico pode apenas ser, em última análise, aos direitos individuais,
pois mesmo os bens jurídicos universais – e os interesses gerais – são apenas condição (uma
etapa) para a realização da pessoa individual. No tocante a atender a necessidade de proteger
interesses individuais o bem jurídico saúde pública da incriminação dos tipos do artigo 28 e
33 da Lei de drogas não atende a este requisito.
Em realidade é plenamente possível a construção de um bem jurídico que tenha como
fundamento a afetação da saúde pública. Só que estará sempre adstrito aos mandamentos de
uma política criminal democrática, isto é, o tipo apenas pode ser de perigo concreto ou dano a
um bem jurídico; o bem jurídico deve estar abraçado pela Constituição e leis internacionais de
direitos humanos.
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(2004, P. 132-133). Acontece com a criminalização das drogas o que aconteceu com a Lei
Seca nos EUA (RODRIGUES, 2004, p.134-15-35), originou a máfia, aumentou a violência, a
corrupção policial e política. Nesse mercado, eventuais êxitos de políticas repressivas na
redução de oferta de determinadas drogas ocasionam a entrada de novos produtos mais
lucrativos e, por vezes, ainda mais potentes. Segundo Maria Lúcia Karam (2009, p. 38), a
chegada do crack na década de 80 se deve a essa lógica de mercado que leva produtores,
distribuidores e consumidores a buscarem substâncias psicoativas novas para substituir as que
estão em falta ou se tornaram muito caras.
A maior parte dos efeitos mais graves da droga sobre a saúde e o status social do
adicto “depende das condições em que tal consumo se realiza em um regime de proibição”
(BARATTA, 2004, p. 123). Com o proibicionismo, não há controle de qualidade das
substâncias e os riscos à saúde se tornam elevadíssimos; as condições de higiene e de vida do
consumidor são precarizadas, desumanizadas; para adquirir a droga bem mais cara, o
consumidor pode vir a praticar a “criminalidade de provisão” (ALBRECHT, 2010, p. 509),
inserir-se no comércio de drogas ou se prostituir. A estigmatização do consumidor aumenta o
sofrimento seu e dos seus familiares, bem como dificulta encontrar uma saída para a adicção.
O consumo existe em todas as classes sociais, mas a incidência dos efeitos é diferenciada,
sendo bem mais nociva sobre os setores mais vulneráveis da população. Há consumidores
ocasionais que não são dependentes da droga (e conseguem desempenhar seus diferentes
papéis sociais de modo estável), mas há os que são dependentes químicos (seja de drogas
lícitas ou ilícitas). A confusão e a falta de esclarecimento sobre as diferenças entre
consumo/adicção, drogas leves/drogas pesadas e a visão generalista de uma degradação física
e psíquica do consumidor apenas dificultam ainda mais o diálogo e a mensagem pedagógica
aos jovens para que se mantenham distantes do uso de drogas.
No Brasil, atualmente, o art. 28 da Lei 11.343/2006 mantém a criminalização da posse
para uso pessoal e afasta a imposição de pena privativa de liberdade, mas comina penas de
advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programa ou curso
educativo e, se houver descumprimento, admoestação e multa. O fato de ainda ser
considerado crime, mantém a estigmatização, fere o princípio da lesividade no direito penal e
os direitos civis à liberdade, à intimidade e à vida privada, tutelados pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos e pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos,
conforme observa Maria Lúcia Karam, “o reconhecimento da dignidade da pessoa impede sua
transformação forçada” (2009, p. 30).
144
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7 CONCLUSÃO
A droga tem uma ampla definição legal que começa no Brasil a partir de 1912 até os
dias atuais. Na medida em que as legislações se desenvolvem cada vez mais sustentam-se em
um meta discurso que remete à “saúde pública” como fundamento legislativo. Ocorre,
entretanto, que não é possível encontrar respostas de saúde pública nas legislações sobre
droga, porque esta não é a função desta política.
A droga instrumentaliza a seletividade do Sistema de Justiça Criminal, a definição de
droga é fruto de uma avaliação valorativa – nem técnica, nem científica – que se foi
conformando ao longo das décadas, progressivamente. No cenário brasileiro o período bélico
de tratamento das drogas ilícitas (que começa a partir de 1964) será o momento de inflexão
que leva um deslocamento do inimigo interno do “terrorista” ao “traficante”. Este inimigo
interno insufla discursos e campanhas políticas do denominado populismo penal.
Nenhuma perspectiva criada em todo este período permitiu tratar de forma séria e
vertical a questão da saúde pública ou mesmo saúde individual, se esse fosse o objetivo
verdadeiro da lei penal há algum tempo seria preciso chamar a atenção para o gritante
fracasso. Ocorre, sem embargo, que a política de drogas tem sido um sucesso para outros fins,
como o de estigmatização e seletividade do Sistema de Justiça Criminal a grupos sociais
marginalizados. Como exposto ao longo do texto, de fato, a política criminal de drogas
precisa se apoiar em outros discursos, que não sejam o de “estigmatizar e criminalizar” é por
isso que a droga se apoia tanto no âmbito do discurso de saúde pública. Uma política
democrática não pode permanecer apoiada em termos escusos, ela precisa ser radicalmente
146
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149
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RESUMO
O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre pontos centrais da evolução dos métodos
punitivos como meio de controle social e sua forma de atuação como política penal de
repressão das minorias excludentes dos meios de produção da vida material. O Estado como
instituição política gerenciadora das necessidades de mercado pautou seu controle e
dominação legitimando seu poder através de saberes, entre eles o penal, que por sua
característica coercitiva foi instrumento de terror no Medievo e ainda mantém seu status de
mecanismo político eficiente para manter a paz social. De acordo com as necessidades de
mercado o Estado adota determinada política de controle social e suas respectivas sanções.
Assim o texto aborda os contrastes que as necessidades do mercado refletiram na política de
controle social do século XVI até o século XVIII com a conseqüente expansão do capital e da
propriedade privada que motivaram o Estado a adotar políticas penais de controle de massa.
Norteando-se por David Garland e Loïc Wacquant o conjunto do texto aqui desenvolvido
deixa claro o papel que a Europa, e, principalmente os Estados Unidos desempenharam como
ditadores de políticas de controle social, não só em seus territórios, mas também nas periferias
dependentes do modelo de seus mercados econômicos.
RIASSUNTO
Questo articolo si propone di discutere i punti principali della evoluzione dei metodi punitivi
come mezzo di controllo sociale e il modo in cui opera la politica di repressione penale delle
minoranze escludenti dei mezzi di produzione della vita materiale. Lo Stato come una
istituzione politica di gestione del mercato ha bisogno di guidare il suo controllo e la
dominazione legittimando il suo potere attraverso le conoscenze, tra cui il penale, che per le
sue caratterische coercitive è stato strumento di terrore nel Medievo e ancora conserva il suo
status di efficiente mecanismo politico per mantenere la pace sociale. Secondo le esigenze del
mercato lo Stato adotta alcune politiche di controllo sociale e le rispettive sanzione. Così il
testo analizza i contrasti che il mercato ha riflesso nella politica di controllo sociale del XVI
secolo fino al XVIII secolo, con la conseguente espansione del capitale e della proprietà
privata che ha motivato lo Stato ad adottare politiche criminale di controllo di massa. Guidare
se stessi di David Garland e Loïc Wacquant l’intero testo qui svilupato rende evidente il ruolo
che l’Europa, e in particolare gli Stati Uniti hanno avuto come dittatori delle politiche di
controllo sociale, non solo nei loro territori, ma anche nelle periferie dipendenti dei suoi
modeli di mercati economici.
1
Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC);
Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
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Sumário
1. Introdução
O desenvolvimento histórico da economia a partir do século XVI foi marcado por uma
forma de controle social estreitamente ligada ao modo de produção da vida material da
sociedade e das necessidades, interesses e valores das classes sociais hegemônicas detentoras
do poder político e econômico. A transição do feudalismo ao mercantilismo e deste ao
capitalismo industrializado da mesma maneira manteve o controle social de acordo com a
ideologia do poder punitivo e os mecanismos de repressão penal correspondentes, tendo como
centro de projeção a pena de prisão. De igual modo, a pena como centro de projeção da
ideologia do poder punitivo evoluiu em determinado lugar, qual seja, o cárcere como meio de
controle social e instituição penal visível da desigualdade social e a divisão de classes
daqueles tempos persiste até a atualidade, com indicadores de realidade que demonstram que
sua existência acompanhará a humanidade ainda por longos tempos. Tendo suas formas
punitivas correspondentes à forma econômica de sua época,2 que variaram da imposição de
castigos corporais, suplícios e pena capital, as necessidades que a revolução industrial impôs
ao desenvolvimento da economia em seu projeto de expansão mundial – cujo êxito dependia
dos pressupostos de liberdade e igualdade que a época das luzes irradiou, bem como pela
consolidação do mito do contrato social como ilusão da participação de todos e de uma
suposta vontade geral – transformou significativamente o modelo punitivo até então existente.
De uma forma ruralista de economia que rumou às formas industriais, a estas já não
interessava a imposição de castigos corporais e penas infamantes. A nova dinâmica
econômica, pautada pela acumulação de capital, busca por novos mercados e lucro obtido pela
mais-valia, determina a nova forma de controle social e a prisão passa a significar nesse
2
RUSH, Georg. KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, 83.
151
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contexto, “um mecanismo expiatório que realiza a troca jurídica do crime em tempo de
liberdade suprimida”.3 Sendo o homem um dos elementos que promovem a produção e a
circulação da vida material, sua proteção se mostra fundamental para o interesse da nova
economia capitalista, mas, é o grau de inserção do homem como objeto de proteção e força de
trabalho necessária para promover os interesses da nova economia, não só nos modos de
produção, mas principalmente na capacidade de consumo necessário para o crescimento e
expansão do capital, é que determinará a sua posição na divisão de classes sociais, seja como
proprietário, seja como possuidor da força de trabalho.4 Em linhas gerais, com base nos
fundamentos reais que demonstram o controle social em seu processo evolutivo, é na
perspectiva materialista histórica que se inicia o presente trabalho para os fins aqui propostos.
O curso evolutivo natural de uma realidade econômica marcada pelo contínuo desvalor da
essência humana, basicamente marcada pelos valores de mercado, transitou, nas palavras de
Young, “de uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente”.5
3
SANTOS, Juarez dos. Direito penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007, p. 13.
4
Idem, p. 6.
YOUNG, Jock. A sociedade excludene: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente.
5
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Nesse contexto exposto nas linhas iniciais o Estado passa a atuar sob as diretrizes de
uma política previdenciarista, cujo controle social do crime é tipicamente correcionalista.
Nesse sentido, David Garland expõem as bases dessa nova política:
7
PASUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo. PASUKANIS, E. Coimbra. Editora Perspectiva
Jurídica, 1972. p. 167-168.
153
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8
GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea (tradução:
André Nascimento). Rio de Janeiro: Revan, 2008. p.104-105.
9
Idem. p. 119.
10
Idem. p. 123.
154
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11
Nesse ponto, cumpre destacar a origem e o significado da palavra gueto, conforme transcrição de Loïc
Wacquant: “o termo guet, surgido em Veneza em 1516 e derivado do italiano giudeica ou gietto, designa, em sua
origem histórica nas sociedades da Europa Medieval, a reunião forçada de judeus em certos bairros, para
proteger os cristãos, de acordo com a Igreja, da contaminação dos quais os judeus eram portadores (ad scandala
evitanda). Progressivamente, à segregação espacial regulamentada de modo cada vez mais estrito ao longo dos
séculos de XIII a XVI, fonte de superpopulação, promiscuidade e miséria, superpõe-se um emaranhado de
medidas discriminatórias e vexatórias, seguidas de restrições econômicas, que incentivaram os habitantes a se
prover de instituições específicas, instrumentos de ajuda mútuas e fontes de solidariedade interna que
funcionavam como proteção contra a alienação então inscrita na própria estrutura do espaço urbano. Assim, a
Judenstadt de Praga, considerada o maior gueto da Europa no século XVIII, com cerca de dois mil habitantes
apinhados em condições geralmente no limite da salubridade, abrigava ainda assim um denso tecido de empresas
e associações, feiras, lugares de culto, guildas e até mesmo sua própria prefeitura, símbolo da relativa autonomia
e de força comunitária de seus habitantes (WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução de Paulo
Cesar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 17,18).
12
WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 25 e 26.
155
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cidade negra dentro da cidade, com uma rede comercial, seus órgãos de
imprensa, sua vida política e cultural próprias.13
Todos esses indicadores sociais negativos formaram as bases de um terreno fértil para
o aumento de comportamentos desviantes que se confrontaram com a política da “lei e
ordem” apregoada pelo Governo norte-americano e para designar os grupos que habitavam no
gueto, bem como associá-los à “desordem”, uma nova categoria foi inventada – alardeada
principalmente pelos holofotes da mídia – a underclass. Em franca oposição aos quatro
componentes que Ken Auletta atribuiu à underclass, Loïc Wacquant os considerou confusos,
embora tenham norteado as ações políticas daquele tempo, sendo eles: “o pobre passivo”, “os
criminosos de rua hostis”, “os gigolôs” e “os alcoólatras traumatizados, os vagabundos, as
mulheres desabrigadas com sua sacolas e os doentes mentais soltos na rua”. 14 Evidente que a
política penal-previdenciária promovida pelo Governo norte-americano, política essa que,
ainda que tendo como base o correcionalismo que acreditava na recuperação dos sujeitos,
começou a conflitar com os ideais e valores da elite branca americana, devido, segundo ela,
ao falso discurso que representava os custos dos benefícios ao orçamento.
Cumpre ressaltar que nos anos 1960 o movimento civil negro em busca de igualdade
racial era uma realidade nos EUA e as lutas contra um sistema de justiça criminal que
reprimia através do encarceramento em massa exclusivamente a maioria negra foram
motivadas nas bases da política penal previdenciária. No entanto, as políticas do Estado
paternalista e correcionalista não logravam êxito em baixar as altas taxas de criminalidade,
uma vez que as reformas estruturais necessárias para promover a inclusão social das maiorias
excluídas jamais se tornaram realidade. Assim, a seleção criminalizante, especialmente a
secundária, recrutava para o cárcere uma maioria negra. A crise que se iniciaria
especificamente nos anos 1970 seria crucial para a consolidação da “nova” economia em suas
pretensões a nível global e, nesse sentido é importante transcrever as linhas de David Garland
à respeito do relatório do Partido Trabalhista do American Friends Service Commitee que
representou as primeiras críticas publicadas ao então Estado paternalista:
13
Idem. p. 18 e 19.
14
Idem. p. 44-45.
156
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15
GARLAND, David. Op. cit. p. 147.
16
A. Hirschman. The rhetoric of reaction: perversity, futility, jeopardy. Cambrige-MA: Harvard University
Press, 1991. Apud. GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade
contemporânea (tradução: André Nascimento). Rio de Janeiro: Revan, 2008. p.168-169.
157
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Diante desse quadro a reação estatal caminhou para a supressão das conquistas sociais
até então praticadas na área de política criminal, passando a fortalecer todo o sistema de
justiça criminal que, por sua vez, passou a reagir de forma violenta às formas de desvio. Os
cortes do orçamento nas políticas assistencialista são drásticos, ao contrário dos crescentes
investimentos para expandir o território carcerário. Gradativamente a resposta penal aos
conflitos sociais passa a ser o principio norteador da atuação estatal em políticas de governo
que ao invés de solucionar os conflitos, suprimem-nos segundo os interesses da classe
hegemônica do poder político e econômico.
17
WACQUANT, Loïc. A ascensão do Estado penal nos EUA. In: BORDIEU, Pierre (Org.). De l’Etat social à
l’Etat penal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002, p. 14.
18
Nesse sentido, Wacquant, se referindo ainda aos estudos realizado na Casa de Detenção de Los Angeles em
1980: “Como é de se esperar, o grosso dos clientes da casa vem da base da pirâmide social: 46% são latinos e
33% negros, para somente 18% brancos, apesar de estes serem majoritários no condado” (Idem. p. 18).
19
Ministério da Justiça. Disponível em: http://portal.mj.gov.br. Acesso em: 18 de mar. 2013.
158
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A maior repercussão da política Reagan antidrogas foi a ainda maior repressão dos
aparelhos estatais sobre as minorias étnicas da população, aumentando sua presença,
principalmente nos bairros pobres. Os Estados Unidos que desde o início de projeção do saber
criminológico pretendeu ditar as regras de controle social em nível mundial, principalmente
patrocinando os principais eventos do saber do sistema penal, exerceu na Europa e,
principalmente na Inglaterra, forte influência na era neoliberal em seu viés ideológico de “lei
e ordem”.23 Wacquant identificou três estágios de difusão da ideologia neoliberal nesse campo
podendo resumi-los em: o primeiro refere-se à “fase de gestação, implementação e
demonstração nas cidades americanas”. O segundo é o da fase de “importação-exportação” e
o terceiro “consiste em aplicar uma cobertura de argumento científico sobre tais medidas”. 24
Projetando essas ideologias no cenário europeu, as conseqüências foram totalmente diversas
20
GARLAND, David. Op. cit. p. 217.
21
WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução de Paulo Cesar Castanheira. São Paulo: Boitempo,
2008. p. 102.
22
Idem. p. 96.
23
Das primeiras sociedades de assistências – aparentemente criadas sob um viés humanitário – bem como do I
Congresso Penitenciário Internacional realizado em Londres em 1872 aos inúmeros eventos internacionais que
ditariam as regras de controle social legitimadas pelo saber penal ao longo dos séculos IXI e XX, conforme o
aprofundado estudo de Rosa del Olmo, os Estados Unidos da América sempre foi o principal promotor de tais
eventos (DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2004. p. 54 e
81).
24
Idem. p. 97-98.
159
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O neoliberalismo determina, nesse novo cenário, uma mudança radical na forma que
os governos trataram as questões criminais e a atuação do sistema de justiça criminal alterou-
se profundamente após o fim das políticas previdenciaristas promovidas especialmente pelos
EUA. Os discursos políticos eleitoreiros, bem como as concretas ações dos governantes
eleitos passaram a depender do escrutínio da população e essa, guiada pelos interesses das
elites dominantes através do crucial apoio das mídias de massa, fez de tais discursos apelantes
ao populismo ilusório que na prática agravou ainda mais as questões sociais do controle
social. O poder de comunicação da mídia revela-se como grande propagadora da legitimação
da ideologia dominante nas consciências das massas, facilitando o controle e a dominação dos
aparelhos repressivos do Estado, cujo ápice se deu com a política da tolerância zero
promovida pelo seu mentor – Rudolph Giuliani – e se aprimora através das políticas de
criminalização do risco. Outra evidência – à guiza do papel dos meios de comunicação – que
contribuiu para a queda do Estado que norteou suas políticas criminais na solução de
conflitos, foi a concentração do poder midiático nas mãos de poucos, em que pese aos
inúmeros periódicos que tiveram curta existência em sua missão de propagar o medo através
dos acontecimentos eleitos como delituosos. Lola Aniyar de Castro ao analisar o conteúdo das
informações sensacionalistas que compõem as principais notícias dos jornais de massa as
distinguiu em notícias de sexo, esporte e crime.26 Prossegue a criminóloga latino-americana
25
MELOSSI, Dario. A imigração e a construção de uma democracia europeia. In: BORDIEU, Pierre (Org.).
De l’Etat social à l’Etat penal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002, p. 102.
26
DE CASTRO, Lola Aniyar. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2005. p. 207.
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Embora contendo conotação idealista, uma vez que é sabido a forte influência dos
governantes na condução das políticas públicas, sempre em vista aos objetivos partidários,
considerando que os administradores cumprem a rigor a missão delineada pelas plataformas
de governo, no âmbito da justiça criminal acabam por cumprirem de forma satisfatória as
prioridades do Estado e, indiretamente das diretrizes do neoliberalismo.
27
Idem, p. 208 e 217.
28
GARLAND, David. Op. cit. p. 252.
29
Idem. p. 251-252.
161
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5ª) concentração nas consequências: concentração nos efeitos danosos do crime, voltando-se
para a vítima e o sentimento de insegurança causado pelo do medo do crime;36
30
A essa nova forma de adaptação do controle social e sua forma de atuação diz Garland: “Ao longo do tempo,
nossas práticas atinentes ao controle do crime e à realização da justiça tiveram que se adaptar a uma economia
cada vez mais insegura, que marginaliza setores substanciais da população; uma cultura de consumo hedonista,
que combina amplas liberdades pessoais com controles sociais relaxados; a uma ordem moral pluralista, que luta
para criar relações de confiança entre estranhos que pouco tem em comum; a um Estado “soberano”, que é
crescentemente incapaz de regular uma sociedade de cidadãos individualizados e de grupos sociais díspares; e às
cronicamente elevadas taxas de criminalidade que coexistem com o baixo grau de coesão familiar e de
solidariedade comunitária. O caráter inseguro e arriscado das relações sociais e econômicas atuais constitui a
superfície social que propicia uma nova preocupação, mais enfática e exacerbada, para com o controle, bem
como a urgência com a qual segregamos e excluímos” (Idem. p. 414-415).
31
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2008. p. 74 e 76.
32
Idem. p. 254-257.
33
Idem. p. 257-259.
34
Idem. p. 259-262.
35
Idem. p. 262-264.
162
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36
Idem p. 264-
37
Idem. p. 267-274.
38
A referência a uma dimensão aparente aqui empregada diz respeito à definição adotada por Juarez Cirino dos
Santos ao distinguir os objetivos declarados dos objetivos reais do Direito Penal (SANTOS, Juarez Cirino dos.
Direito penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007. p. 4 e, ainda, A criminologia radical.
Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2006. p. 42).
39
Ibidem. p. 272.
163
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40
Idem. p. 274-275. Conforme a nota de citação sob n. 64 em referência a este trecho mencionado, o autor, em
menção à J. Kooiman, informa que a participação de outros entes no controle do crime mais tarde revelou-se
frustrada.
41
Segundo Wacquant, o estigma aparece sob três formas: “moral (infringindo a lei, são banidos da cidadania), de
classe (são pobres em uma sociedade que venera a riqueza e concebe o sucesso social como resultado do esforço
individual) e de casta (são majoritariamente negros, saídos então de uma comunidade desprovida de “honra
étnica)” (WACQUANT, Loïc. A ascensão do Estado penal nos EUA. In: BORDIEU, Pierre (Org.). De l’Etat
social à l’Etat penal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002, p. 35-36).
42
WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução de Paulo Cesar Castanheira. São Paulo: Boitempo,
2008. p. 100.
43
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 22. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. XVI e XVII.
164
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A realidade demonstra que o controle penal monopolizado pelo Estado teve que se
adaptar à nova forma de vivência do homem na sociedade pós-moderna. Uma rede de controle
total foi construída para dominar a vida de todos os membros da sociedade. Passado décadas
após o início da expansão territorial do sistema prisional em todo o mundo, o crescimento das
taxas de criminalidade faz parte realidade, parecendo ser um fato social normal no cotidiano
das grandes cidades. Atualmente, o sentimento coletivo de insegurança nas grandes capitais –
quer ou não alardeados pelos meios de comunicação – já se tornaram rotina e se incorporaram
ao cotidiano de todos, banalizando a violência e tornado cada vez mai distante a possibilidade
de um dia haver laços de solidariedade entre as pessoas. A delinquência continua a
desempenhar um papel relevante na sociedade ao ser fundamental para a manutenção do
sistema de justiça criminal, bem como por ser o grande alicerce que movimenta uma
milionária indústria que cresce constantemente, batendo suas metas de acordo com o aumento
das taxas de criminalidade. Evidente que tal papel influencia a inclusão/exclusão no mercado
de trabalho de sujeitos provenientes das classes sociais fragilizadas no processo de
inserção/ascensão social. Bens sociais negativos típicos das populações pobres reforçam os
estereótipos dos potenciais criminosos, motivado pelas meta-regras e idiossincrasias dos
operadores do direito que contribuem para a manutenção do sistema social, e, ainda, contribui
para que a repressão penal se concentre nas camadas pobres da sociedade. Não somente pela
produção de novas tecnologias para segurança de penitenciárias e os empregos que por elas
são mantidos, desde o mais simples servidor público até o mais alto cargo do Poder Judiciário,
mas, também, na indústria cinematográfica e setores de segurança privada. O papel relevante
que o crime e o criminoso desempenham na sociedade é fundamental para a manutenção de
toda uma rede de interesses dentro da sociedade em que, tendo sido transformada em relações
de consumo, coisificou o homem ao mesmo nível das mercadorias, porém, sendo essas mais
valorizadas que o protagonista que a cria.
44
Ainda antecedendo o trecho citado, De Giorgi pontua: “Não mais simplesmente teatro do controle, a cidade
torna-se agora, ela mesma, um regime de práticas de controle. A arquitetura urbana não se limita a tornar
possível a vigilância, segundo o modelo foucautiano da cidade punitiva, mas sim se transforma, ela mesma, em
dispositivo de vigilância, modalidade de uma repressão que se exerce, ainda uma vez, não mais sobre os
indivíduos singulares, mas sobre classes inteiras de sujeitos” (DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada
através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. p. 102 e 103).
165
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
O estudo dessa nova realidade do controle penal em que mergulha a sociedade pós-
moderna instiga várias indagações que envolvem como ponto central das controvérsias as
contradições das funções da pena, a comercialização do controle penal, as demandas do
público, os resultados e consequências dos arranjos do controle do crime, os limites da
proteção privada e as consequências do encarceramento. Todas aquelas proposições que
David Garland expõe na conclusão de umas das obras que norteou o presente trabalho, podem
ser bem sintetizadas nas seis indagações que o mesmo formula na tentativa de explicar as
raízes sociais do controle do crime,45 cuja resposta depende de um certo ajuste da estrutura
social da sociedade pós-moderna e a resposta política aos problemas específicos do controle
penal.
7. Referências Bibliográficas
DE CASTRO, Lola Aniyar. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2005.
DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan: ICC,
2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 22. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
45
1ª) Por que a prisão deixou de ser uma instituição desacreditada, condenada à abolição, e se tornou um pilar
cada vez mais indispensável da vida social pós-moderna?; 2ª) Por que os governos adotam, tão rapidamente,
soluções penais para lidar com o comportamento de populações marginalizadas, em vez de cuidarem das fontes
sociais e econômicas de sua marginalização?; 3ª) Por que fizemos tantos investimentos em segurança privada e
criamos mercados tão prósperos em matéria de comercialização do controle? 4ª) Por que a ênfase agora se
direciona à prevenção situacional do crime e não mais aos programas de reforma social que dominavam o
campo*?; 5ª) Por que a imagem da vítima sofredora agora é tão central para a questão do crime e para as nossas
respostas a ela? Finalmente, 6ª) por que as políticas contemporâneas se assemelham tanto às políticas
antiprevidenciárias que surgiram exatamente no mesmo período? * O termo “campo” empregado pelo autor,
refere-se ao inter relacionamento numa estrutura diferenciada e tenuamente ligada dos discursos criminológicos,
as práticas de controle do crime e as instituições da justiça criminal, conforme p. 68 da obra citada (GARLAND,
David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea (tradução: André
Nascimento). Rio de Janeiro: Revan, 2008. p.422-424).
166
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
RUSH, Georg. KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2004.
SANTOS, Juarez dos. Direito penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007.
WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução de Paulo Cesar Castanheira. São
Paulo: Boitempo, 2008.
_______ A ascensão do Estado penal nos EUA. In: BORDIEU, Pierre (Org.). De l’Etat
social à l’Etat penal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 11, 2002.
167
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RESUMO
*
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR). Especialista em Ciências Penais pelo
programa de pós-graduação lato sensu da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-MG). Mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Professor de Direito Penal.
**
Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG), pós-graduanda em Ciências Penais e mestranda em Direito Público pela mesma instituição.
Advogada Criminalista.
168
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ABSTRACT
This paper seeks to promote a critical examination about the legal and criminal problems of
the medical conduct and the resulting personal injury derived from the therapeutic procedure
of sexual resignation, as a manner to remedy the imbalance of sexual personality that is
typical of the identity disorder called transsexualism. The article first presents the
phenomenon of transsexualism, as well as its negative consequences for the free and healthy
individual development and the difficulties of self-assertion regarding the personality of
genre. The low efficiency in optimizing the the transsexual’s biopsychic imbalance requires
an analysis and reflection about the only instrument that is truly curative, namely: the sex
reassignment surgery. However, because it is a type of sterilization treatment of the patient,
this procedure generates some questions about the legal and criminal repercussions of the
medical conduct. The aim of this study focuses on this aspect of the problem, exposing the
doctrinal understandings about the object of study and taking, at the end, from the
presentation of its fundamentals, the stance which brings the solution to the criminal
responsibility of the physician to the expedient of a socially appropriate behavior.
KEYWORDS: Transsexual patient; medical management; consent; social adequacy.
INTRODUÇÃO
169
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170
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Contudo, a consciência e a sensação desse desacordo são tomadas quando o sujeito adentra a
fase da puberdade, período em que, estando convicto da anomalia, hostiliza-se
psicologicamente pelo conflito que vivencia entre seus genitais e atributos secundários e o
sexo presente em seu psiquismo.
O sexo fenotípico ou morfológico, ou seja, aquele que dota o sujeito de características
e aparências externas que o singularizam como espécie humana do gênero feminino ou
masculino, é verificável por um exame dos sentidos que permite constatar os elementos
sexuais componentes do corpo do homem ou da mulher. São caracteres primários no gênero
masculino a existência do “pênis, da bolsa escrotal e dos testículos. No organismo feminino
os aspectos genitais são definidos pela presença da vagina, do útero, das trompas, dos ovários,
do clitóris e do hímen1”.
1
CAVALLI, Luciana. Disposição do próprio corpo do transexual e as novas diretrizes jurídicas. Três Lagoas,
Sociedade e Direito em Revista, n. 2, ano. 2, 2007, p. 143.
2
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Aspectos psicológicos, médicos e jurídicos do transexualismo. São Paulo,
Psicólogo In Formação, n.4, ano. 4, jan./dez. 2000, p. 65.
171
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3
Quanto à variabilidade de técnicas médico-terapêuticas, elencam-se as terapias hormonais, medicamentosas,
psicopedagógicas e psiquiátricas. Em que pese isoladamente esses meios não solucionarem em definitivo a
inadaptação sexual entre os aspectos anatômicos e psíquicos do intersexual, são todos eles etapas que antecedem
obrigatoriamente a ulterior fase de intervenção cirúrgica de resignação sexual.
172
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Essa perda observa Cezar Roberto Bitencourt, dá-se quando cessa o sentido da função
ou quando há a referida amputação do membro ou remoção do órgão que compõem o sistema
com o qual desempenha ou executa a função doravante prejudicada4. A interrupção definitiva
e funcional do membro ou órgão, no isolado caso da cirurgia de correção sexual, não pode ser
entendida igualmente como sua inutilização, tendo em vista que essa pressupõe a subsistência
daqueles, porém com o perecimento de suas funções típicas. De outro modo, trata-se de uma
perda que traz consigo uma debilidade permanente. Isso pode ser claramente visto, por
exemplo, no caso da resignação do sexo fenotípico masculino, quando a ablação dos órgãos
genitais (falo e testículos) acarreta a simultânea cessação intermitente da função reprodutora.
A relação de causa e consequência entre a conduta médico-reparadora e o efeito
negativo à função reprodutora, in casu, é totalmente indiscutível, quer pela idoneidade, quer
por sua adequação à produção do resultado lesivo. As manobras cirúrgicas promovidas em
favor da adaptação entre os disformes aspectos sexuais objetivos e seu caráter subjetivo
tornam a assimilação da noção de lesividade seu produto direto, cuja relação de síntese, na
qual se baseia a causalidade, resta estabelecida, tendo como pontos de ligação as
deformidades acima apontadas e a intervenção médica, sendo aquelas imputadas ao médico
enquanto obra sua.
O nexo de imputação que nestes casos se estabelece inegavelmente a título de dolo –
já que o cirurgião dirigiu de modo voluntário e consciente uma série de empreendimentos
tendentes à causação da debilidade da função reprodutora e dos órgãos a seu serviço –
acarreta ao médico a responsabilidade penal pela conduta anunciada no artigo 129, § 2º, III,
do Código Penal. É essa, ao menos, a posição de respeitável setor da doutrina que se ocupa
das questões relativas às equivocadamente denominadas intervenções cirúrgicas de caráter
curativo ambíguo. Para Albin Eser, por exemplo, a tipicidade das lesões não pode ser negada,
de acordo com os limites descritos no injusto penal, sendo, porém, a conduta médica
concretamente carecedora de ilicitude formal em razão do consentimento justificante do
paciente transexual5.
A defesa do consentimento como causa de justificação claudica em seus próprios
fundamentos, especialmente quando aplicada às hipóteses de lesões com fins médico-
4
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial – dos crimes contra a pessoa. 7.ed.
São Paulo: Saraiva, 2007, p. 168.
5
ESER, Albin. Estudios de Derecho Penal médico. Trad. Manuel A. Abanto Vásquez. Lima: IDEMSA, 2001, p.
37-38. Sobre emblemático caso de condenação de cirurgião plástico pela prática da transgenitalização ver com
detalhes o caso exposto por PEREIRA, Carolina Grant. Bioética e transexualismo: para além da patologização –
uma questão de identidade de gênero. Fortaleza, Anais do XIX Congresso Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação (CONPEDI), jun. 2010, p. 850-851.
173
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6
NUÑEZ, Ricardo. Manual de Derecho Penal: PG. 4.ed. Buenos Aires: Córdoba, 1999, p. 154.
7
PRADO, Luiz Regis. La norma penal como norma de conduta. Revista de Derecho Penal y Criminología,
Madrid, n. 5, 2011, p. 158.
8
FERNÁNDEZ CRUZ, José Ángel. La legitimación social de las leyes penales: limites y ámbito de aplicación.
Madrid, Revista de Derecho Penal y Criminología, n.5, 2011, p. 201.
9
JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Principios de Derecho Penal: la ley y el delito. Buenos Aires: Sudamericana,
1958, p. 272.
10
Sobre o consentimento como causa de exclusão do tipo, vide CEREZO MIR, José. Derecho Penal: PG. São
Paulo; Lima: RT/Ara, 2007, p. 762-763. Quando o bem jurídico é disponível em caráter geral, há que se entender
174
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antijuridicidade de sua conduta, posto que o comportamento, nestes termos, soma o conjunto
de condições para a busca de uma finalidade tida como imprescindível: a ideia de justa
satisfação de bem-estar pessoal. O desvalioso juízo que recaí sobre o advento do resultado
lesivo vê-se suficientemente equilibrado e compensado pelo sentido e teor do valor da ação
médico-terapêutica que, orientada à uma finalidade diversa da lesão meramente agressiva,
supera o déficit do conteúdo normativamente negativo que, a princípio, pudesse conter. A
aceitação de um fato punível – objeto do consentimento – renuncia a proteção ao bem jurídico
que lhe confere o direito, por sê-lo disponível e realizar-se nos limites da válida capacidade
para consentir e da autonomia da vontade11 do paciente.
A capacidade de consentir do titular do bem jurídico, a saber, suas circunstâncias
biopsicológicas que no particular lhe tornam apto a deliberar e a interagir com o médico na
consciência e permissão das lesões a ele dirigidas, por levar em conta sua validade em razão
da maioridade e do pleno uso de sua capacidade mental – expressa sem vícios e coações –,
tem importância não só quanto à autorização da conduta médico-curativa, mas, sobretudo, traz
reflexos no âmbito do tipo12 e, portanto, não pode ser ignorada quando do juízo de subsunção
de tipicidade penal. Reforçando o afirmado, Puppe ensina que esse consentimento informado
e válido do paciente outorgado em favor de uma intervenção médica curativa não só exclui o
injusto das lesões, como também sequer permite que este apareça, pois o próprio titular do
interesse é quem decidiu validamente sobre o bem jurídico integridade corporal13.
que forma parte integrante dele a livre disposição do mesmo. É, portanto, a validade lógica do argumento de que
o consentimento do portador do bem jurídico elide o juízo de adequação típica entre a conduta médica que ex
ante poderia denotar ofensa à sua integridade.
11
Sobre a autonomia da vontade pessoal, disserta Gisele Mendes de Carvalho que “o princípio da autonomia
consiste no reconhecimento da livre decisão individual sobre seus próprios interesses sempre que não afete aos
interesses de um terceiro ou no respeito à possibilidade de adoção pelo sujeito de decisões relacionais não
consternadas”. Segue a autora explicando que, aplicado à relação médico-paciente, esse princípio impõe o dever
de respeitar e facilitar a autodeterminação do paciente na tomada de decisão sobre seu destino médico. Acerca da
nota, vide, CARVALHO, Gisele Mendes de. Suicidio, eutanásia y Derecho Penal: estúdio del art. 143 del
Código Penal español y propuesta de lege ferenda. Granada: Comares, 2009, p. 3-4.
12
GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: RT, 2004, p. 163.
13
PUPPE, Ingeborg. La justificación de la intervención médica curativa. Barcelona, Revista para el Análisis del
Derecho, n. 1, 2007, p. 4.
175
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Ademais, cada bem jurídico guarda com seus titulares um vínculo de funcionalidade,
enquanto a magnitude variável16, cujo valor depende de um eixo axiológico de outro escalão,
sendo, pela lógica, uma relação que associa os membros de uma classe (os sujeitos) com
certos entes (bens) de outra categoria. Essa associação se faz às bases do valor utilidade, cujo
liame se expressa na construção, manutenção e alteração de uma condição do sistema global.
É dessa resultante que surge o traço mais paradigmático no tocante a teoria do bem jurídico,
ao revés de suas polissêmicas17 compreensões. Alude-se à possibilidade de disposição por
parte do titular de um determinado interesse representativo de certo valor ético social quando
tal abdicação for imprescindível à sua realização. Isso se dá, pois, por ser, outrossim, este um
dos esteios para que seja reconhecido a um dado bem o status de valor jurídico da ordem
positiva.
14
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Sobre el estado de necesidad en Derecho Penal Español. Madrid, Anuario de
Derecho Penal y Ciencias Penales, n.35, 1982, p. 664.
15
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro: parte especial – v2. 9.ed. São Paulo: RT, 2011, p. 141.
16
TAVARES, Juarez E. X. Bien jurídico y función en Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004, p. 56.
17
Sobre essa variabilidade das correntes teoréticas e sua interpretação acerca do bem jurídico, vide a principais
considerações feitas por HORMAZABAL MALARÉE, Hernán. Bien jurídico y Estado social y democrático de
derecho: el objeto protegido por la norma penal. 2.ed. Santiago: Conosur, 1992, p. 38 e ss; PRADO, Luiz Regis.
Bem jurídico-penal e Constituição. 5.ed. São Paulo: RT, 2011, p. 39 e ss; BIANCHI PÉREZ, Paula Beatriz.
Evolución del concepto de bien jurídico en la dogmática penal. Mérida, Revista Semestral de Filosofía Práctica:
Universidad de los Andes, ene./jun. 2009, p.33 e ss.
176
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Há ainda um setor da doutrina que sustenta que a conduta médica nesses casos de
lesões corporais consentidas pelo paciente transexual em favor de sua adequação anatômica se
encontra amparada pelo exercício regular de direito. Nessa trilha, são invocados os
ensinamentos de Nelson Hungria18, para quem a lesão corporal decorrente de operação
cirúrgica, ainda que não seja para evitar perigo de vida, mas consensiente o enfermo, nos
casos aconselhados pela arte médica, insere-se no exercício de direito que lhe outorga o
Estado e lhe autoriza o exercício. Todavia, essa solução parece a mais desacertada para
dirimir a questão da responsabilidade penal do médico, tendo em vista que viola as regras
gerais que são indispensáveis para a aplicação da justificante em apreço. O fato de considerar
a conduta médico-terapêutica no marco do exercício regular de direito dependeria, antes, que
esta tivesse respaldo em regulamentação normativa de valor jurídico, e não apenas previsão e
disciplina em código de ética profissional. E, ainda, porque essa primeira exigência excluiria,
como dito alhures, a formulação de uma regra geral válida e aplicável a todos os casos de
lesões curativas, dado que a existência de disciplina legal que dê fundamento a essa
modalidade de excludente não é uma constante nas diversas ordens jurídicas. Assim é o caso
do Brasil, que disciplina a questão na Resolução nº. 1.482/1997 do Conselho Federal de
Medicina (CFM), cuja regulamentação trata da autorização, a título experimental, em
hospitais universitários ou públicos adequados à pesquisa, da realização de cirurgia de
transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos
complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários, como tratamento dos casos
de transexualismo.
É claro que a ponderação entre o benefício global auferido pelo paciente transexual e o
prejuízo decorrente das lesões cirúrgicas – embora sua normativa gravidade descrita nos
taxativos limites do injusto de lesões corporais – implica barreiras mesmo externas à vontade
do paciente que se agregam cumulativamente para o estabelecimento de escalas de atuação,
sobre as quais pode seguramente ser realizado o procedimento cirúrgico.
18
HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal: v. 5. 5.ed. Rio de Janeiro:
Forense 1979, p. 335 e ss. “Fora dos casos de estado de necessidade, a intervenção cirúrgica, levada a efeito
pelo médico, pode, em certas circunstâncias, ser excepcionalmente protegida pelo instituto do exercício regular
de direito, excludente da ilicitude prevista no art. 23, III, do Código Penal. Assim, constitui exercício regular de
direito a iniciativa de a pessoa dispor do próprio corpo para permitir expressamente ao médico realizar cirurgias
como: plástica, vasectomia, mudança de sexo (transexualismo)”, vide OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, erro
médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 168. Sobre a duplicidade de consequências do
exercício regular de direito, vide a compreensão sobre o tema apresentada por BRODT, Luis Augusto Sanzo.
Entre o dever e o direito. Porto Alegre, Juris: Direito/FURG, v.11, n. 45, 2005, p. 44, para quem o instituto pode
acarretar duas consequências jurídicas, a saber: a exclusão da ilicitude da conduta - como tradicionalmente
reconhece a doutrina majoritária- ou então sua atipicidade.
177
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19
Cf. TRIVIÑO CABALLERO, Rosana. Autonomía del paciente y rechazo del tratamiento por motivos
religiosos. Barcelona, Revista para el Análisis del Derecho, n. 3, 2010, p. 12.
20
Vide ANDRADE, Manuel da Costa. Direito Penal médico. São Paulo/ Coimbra: RT/Coimbra,2008, p. 90 e ss.
21
Cf. MARQUES, Daniela de Freitas. Sobre a bioética, o sofrimento e a tortura: medicina e política no sistema
jurídico-penal. In: RIBEIRO, Bruno de Morais (Org.). Direito Penal na atualidade: escritos em homenagem ao
Professor Jair Leonardo Lopes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 31.
22
Sobre a coerência como característica da ordem jurídica, vide BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento
jurídico. 6.ed. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UNB, 1995, p. 71-110.
23
Cf. BARROSO, Luís Roberto. In: FERNANDES, Bernardo Gonçalves (Org.). Interpretação constitucional:
reflexões sobre (a nova) hermenêutica. Salvador: Juspodium, 2010, p. 166-167.
24
Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
brasileiro: v 2. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan , 2010, p. 233.
178
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preceitos e de seu alcance veem-se entre normas de hierarquia distintas. O Estado não só
chancela o direito à saúde, como fomenta sua realização plena, de modo que considerar as
lesões corporais de natureza cirúrgica conflitivas, principalmente, com o disposto a nível
constitucional, faria com que diante do (falso) antagonismo de deveres o cumprimento de um
deles não subsistisse sem a flagrante violação do outro.
Nesse tocante, a saúde humana não pode ser posta no centro de tensão entre dois
postulados normativos, em especial entre aqueles oriundos de fontes nas quais as
considerações acerca da dignidade da pessoa humana tomam contornos e significados tão
específicos. O respeito apenas formal à dignidade do homem impede a consideração do
Estado de Direito sob uma perspectiva material. O Estado de Direito, como bem pontifica
Helena Lobo, “legitima-se pela subordinação à lei e, ao mesmo tempo, a determinados valores
fundamentais, consubstanciados na dignidade humana25”, e, portanto, conatos à personalidade
do homem enquanto Ser.
E a respeito dessa, ou seja, da personalidade26, incide um núcleo essencial de direitos
próprios, sendo aqueles reconhecidos à pessoa tomada em si mesma e em suas projeções na
sociedade, com previsão no ordenamento jurídico para a defesa de valores inerentes 27 ao
homem, como a vida, a higidez, a intimidade, a honra, a intelectualidade e tantos outros. O
reflexo dos direitos da personalidade associado ao direito à saúde condiz ao fato de que a cada
um, em determinadas circunstâncias, tenha tratamento condigno, em conformidade com sua
particularidade e a situação atual da medicina. Em decorrência do sofrimento e do constante
25
Cf. COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo:
RT, 2008, p. 37.
26
Em poucas linhas sobre a relação entre a personalidade do homem e sua inerente ideia de dignidade vide,
PRADO, Luiz Regis. Princípios da dignidade da pessoa e humanidade das penas na Constituição Federal de
1988. In. MARTINS, Ives Gandra; REZEK, Francisco. (Orgs.). Constituição Federal: avanços, contribuições e
modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo: RT, 2008, p. 213. O penalista leciona que o
princípio jurídico-constitucional, “busca proteger a dignidade da pessoa, salvaguardar sua esfera mais íntima e
personalíssima, entendida como direito originário de todo ser humano”.
27
BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.
18. Os direitos da personalidade enquanto feixes de direitos fundamentais são aqueles que correspondem a todos
os seres humanos enquanto indivíduos ou pessoas. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y garantias: la ley del más
débil. Trad. Andrés Ibáñez e Andrea Greppi. Madrid: Trotta, 1999, p. 99. Roxa Cardoso em pontual estudo sobre
os direitos da personalidade ocupa-se dentre outros aspectos acerca da questão da síndrome transexual, o direito
a mudança de sexo e seus reflexos para essa específica categoria de direitos. A autora aponta que há divergência
entre os estudiosos quanto ao enquadramento do assunto – seja alocando-o nas implicações do direito sobre o
próprio corpo ou integridade corporal (física), seja ainda como defendem outros quanto ao direito a integridade
psíquica. O sentido dessa discussão torna-se estéril ante as considerações sob as quais assiste razão tomar os
direitos da personalidade como um todo unitário protetor da pessoa em suas diversas expressões. Cf. BORGES,
Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.
118.
179
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28
Cf. SILVEIRA, Esalba Maria Carvalho. De tudo fica um pouco: a construção social da identidade do
transexual. 2006. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) -
Faculdade de Serviço Social, Porto Alegre, p. 84.
29
WELZEL, Hans. Derecho Penal: PG. Trad. Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Depalma, 1956, p. 136. “O
bem jurídico constitui uma síntese concreta de uma relação social dinâmica com o qual se compreende a posição
dos sujeitos, suas formas de vinculação entre eles e os objetos, suas intenções e seu transcurso dentro do
desenvolvimento histórico do contexto social. Só a partir daqui se pode dar um conteúdo material ao injusto e
com ele a tipicidade. A ação surge como uma forma de vinculação dos sujeitos e implica um determinado
rendimento social dos sujeitos” Sobre essas considerações, vide HORMAZABAL MALARÉE, Hernán;
BUSTOS RAMÍREZ, Juan José. Significación social y tipicidad. Santiago de Compostela, Estudios Penales y
Criminológicos, n. 5, 1980-1981, p. 27. O bem jurídico e sua função permitem demonstrar e determinar o
porquê do injusto e quais os fins por ele perseguidos, bem como possibilita levantar as razões que explicam a
irrelevância de certas condutas aparentemente típicas ou o fundamento para que, embora formalmente descritas
no injusto, não sejam socialmente desvaloradas.
30
GRACIA MARTÍN, Luis. El finalismo como método sintético real-normativo para la construcción de la teoría
del delito. Granada, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, v.6, n.7, 2004, p. 7.
180
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jurídica na medida em que assimilam uma função social. Segundo Gracia Martín, os “bens
jurídicos não estão simplesmente postos na realidade, mas têm existência para que estejam em
função de, ou seja, em favor de produzir e suportar efeitos em seu contexto social31”. Nessa
perspectiva, apropriada e imanente à realidade social, o Direito pode dispensar ou suspender a
proteção que confere a determinados bens jurídicos diante de certas ações, desde que
ajustadas ao socialmente adequado.
31
Idem, ibidem.
32
CANCIO MELIÁ, Manuel. La teoría de la adecuación social en Welzel. Madrid, Anuario de Derecho Penal y
Ciencias Penales, n.46, v. 1, ene./abr. 1993, p. 698-699.
33
Neste caso particular, a saber, notadamente aquele de intervenção médica com fins curativos, tal ponderação
tem sentido objetivo com relação às vantagens e desvantagens terapêuticas do tratamento ou procedimento
interventivo.
34
Cf. RUEDA MARÍTIN, María Ángeles. La concreción del deber objetivo de cuidado en el desarrollo de la
actividad médico-quirúrgica curativa. Barcelona, Revista para el Análisis del Derecho, n. 4, 2009, p. 41.
35
Idem, ibidem.
36
“[...] se distingue a adequação social das causas de justificação porque – efetivamente – estas concebem
também uma liberdade de ação, mas de natureza especial, ou seja, uma permissividade especial que autoriza a
realização de ações típicas, ou seja, socialmente inadequadas”. Vide MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael. Teoría de la
antijuridicidad. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003, p. 54. Sobre o elenco de críticas
acerca da teórica da adequação social de Welzel, ver os apontamentos feitos por VARGAS, José Cirilo de. Do
tipo penal. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 160.
37
Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Lições de Direito Penal. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995,
p. 38.
181
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
sobre a ofensa de bens jurídicos que são inerentes ao normal funcionamento da vida social, tal
ponderação se situa na esfera da tipicidade38.
38
Idem, ibidem.
39
HORMAZABAL MALARÉE, H; BUSTOS RAMÍREZ, J. J .Obra citada, p. 27.
40
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3.ed. São Paulo; RT, 2001, p.
199.
41
Idem, ibidem.
42
Cf. ESER, Albin. La adecuaciónsocial,¿figura legal superflua o necesaria? Buenos Aires, Revista de Derecho
Penal, n.3, 2002, p. 461.
182
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integridade física e psíquica) requer inegável harmonização entre seus caracteres constitutivos
para sua máxima funcionalidade.
Romeo Casabona, ao tratar das lesões corporais de natureza grave resultantes dessa
espécie de cirurgia, ensina que a perda da capacidade de reprodução afeta uma faceta muito
importante do ser humano: a possibilidade de ter filhos; porém, aduz que o desequilíbrio
psíquico pelo qual passa o indivíduo alcança o desenvolvimento total de sua personalidade e
suas relações com os demais43, o que o inclina a proteger prioritariamente este último aspecto
de sua saúde, já que somente assim é possível promover de modo mais producente o governo
sadio de seu desenvolvimento, tanto físico quanto psicológico.
43
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos-María. El médico y el Derecho Penal: la actividad curativa – tomo I.
Barcelona: Bosch, 1981, p. 182. Essa opção é feita conscientemente pelo paciente cuja capacidade racional de
deliberar não se encontra prejudicada em razão de seu transtorno; ao contrário, este refere-se, especificamente, a
uma anômala inaceitabilidade, pelo sexo psíquico, do sexo morfológico. Isso torna o transexual mais ciente da
anomalia de que é portador, de seus efeitos e, por conseguinte, mais decidido pela busca dos meios postos a
corrigir tal desajuste.
44
FRAGOSO, Cláudio Heleno. Transexualismo: cirurgia – lesão corporal. Rio de Janeiro, Revista de Direito
Penal:Forense, n. 25, 1979, p. 33.
45
Cf. GÓMEZ RIVERO, María del Carmen. La responsabilidad penal del médico. 2.ed. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2008, p. 268.
46
GRACIA MARTÍN, Luis. La estructura dogmática y la función político criminal de la “adecuación social”
como “cierre” normativo de lo injusto en el sistema finalista del Derecho Penal y abismo que la distancia de la
doctrina de la imputación objetiva. Derecho Penal, Constituición y Derechos. REBOLLO VARGAS, Rafael;
TENORIO TAGLE, Fernando. (Dir). Barcelona: Bosch, 2013, p.220.
183
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Por derradeiro, tudo isso associado a finalidade curativa inerente à conduta descontrói
o desvalor ético social de menoscabo a qualquer bem jurídico por que ao contrário, prestigia
sua funcionalidade integral a seu titular, o que repercute na configuração de um juízo de
tipicidade lacunoso e imperfeito, impedindo portanto, a adequação típica entre a conduta do
médico e o delito de lesões corporais.
3. Conclusão
47
RUEDA MARTÍN, María Ángeles. La teoria de la imputación objetiva del resultado en el delito doloso de
acción. Barcelona: Bosch, 2001, p. 416.
48
GRACIA MARTÍN, Luis. La estructura dogmática y la función…p, 225.
184
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harmonização de suas dimensões física e psíquica, enquanto condição indispensável para seu
sadio desenvolvimento pessoal e a obtenção de sua autêntica identidade social.
185
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1.Introdução
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nova técnica ou tecnologia antes de sua adoção, de tal modo que o ônus da prova caberia a
quem pretende introduzir a nova atividade, tecnologia ou produto. Nessa perspectiva,
argumenta-se que praticamente nenhuma tecnologia poderia satisfazer essa exigência, dado
que a hipótese de risco zero é pouco plausível e implicaria na completa paralisação do
desenvolvimento científico e tecnológico5. Por fim, há elaborações doutrinárias que sustentam
a avaliação discricionária da relação custo-benefício, de forma que a adoção de medidas de
precaução dependeria, sobretudo, de considerações econômicas, e não tanto do exame das
consequências graves, irreversíveis ou previsivelmente catastróficas da atividade em questão.
Assim, por exemplo, a Declaração aprovada pela Conferência do Rio de Janeiro sobre meio
ambiente e desenvolvimento, de 1992, que estabelece que a falta de certeza científica plena
não deve ser uma razão para postergar medidas efetivas de acordo com seu custo para
prevenir a degradação do meio ambiente.
Apesar de suas diferentes formulações teóricas, é possível identificar três traços que
caracterizam o princípio da precaução: 1) a existência de razões sérias, fundadas em dados
científicos, que permitam deduzir que certa atividade ou tecnologia pode acarretar algum tipo
de perigo grave de dimensão coletiva, seja para a saúde das gerações presentes ou futuras, seja
para o meio ambiente e seus elementos; 2) a falta de certeza científica acerca da natureza e
dimensão dos possíveis danos implicados; 3) por derradeiro, a necessidade de se tomar
medidas que se antecipem à superveniência do dano – ao ambiente ou à saúde, por exemplo –
e que possam prevenir seus graves e irreversíveis desdobramentos6.
Em síntese, a ideia nuclear que informa o princípio em apreço radica na
exteriorização de medidas de precaução, mesmo ante a impossibilidade de se demonstrar a
presença de uma relação causal entre determinada atividade ou tecnologia e as lesões
produzidas ao meio ambiente ou à saúde7.
Na atualidade, a natureza jurídica do princípio da precaução encontra-se
estreitamente relacionada à formulação concreta de políticas públicas em matéria de saúde e
meio ambiente. Figura, assim, como uma diretriz amplamente reconhecida para a orientação
das decisões tomadas pelos poderes públicos em contextos de incerteza, como aqueles
vinculados à biotecnologia. Apesar de ser um princípio ainda genérico, cuja aplicação e
funções carecem de contornos claros e inequívocos, trata-se de um instrumento hábil a nortear
5
Nesse sentido, por exemplo, SCHROEDER, Friedrich-Christian. Principio de precaución, Derecho Penal y
riesgo. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.). Principio de precaución, Biotecnología y Derecho.
Granada/Bilbao: Comares/Fundación BBVA/Diputación Foral de Bizkaia, 2004, p.428.
6
Cf. MENDOZA BUERGO, Blanca, op.cit., p.323.
7
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Genética, biotecnologia e ciências penais. Salvador: JusPodivm,
2012, p.41-42.
192
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8
Cf. HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna política criminal. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo: RT, 1994, nº 8, p.41-51.
193
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9
Cf., entre outros, SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del Derecho Penal. Aspectos de la política
criminal en las sociedades postindustriales. 2 ed. Madrid: Civitas, 2001, p.113 e ss.; GRACIA MARTÍN, Luis.
Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a crítica do discurso de
resistência. Trad. Érika Mendes de Carvalho. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2005, p.47-61; ESCAJEDO
SAN EPIFANIO, Leire. El medio ambiente en la crisis del estado social: su protección penal simbólica.
Granada: Comares, 2006, p.102-104; CALLEGARI, André Luís; ANDRADE, Roberta Lofrano. Sociedade de
risco e Direito Penal. In: CALLEGARI, André Luís (Org.). Direito Penal e globalização. Sociedade do risco,
imigração irregular e justiça restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p.31; MACHADO, Marta
Rodriguez de Assis, op.cit., p.128 e ss.; MARQUES, Daniela de Freitas. Sistema jurídico-penal do perigo
proibido e do risco permitido. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2008, p.238 e ss.
194
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do instrumento penal como ultima ratio, para reprimir, conforme o princípio da intervenção
mínima apenas aqueles comportamentos claramente lesivos aos interesses de maior
importância dos indivíduos e da sociedade, realizados de modo culpável”10. Nesse contexto de
franca expansão punitiva, nada mais aconselhável que compreender os limites e analisar as
perspectivas e desafios que o princípio da precaução oferece à ciência penal na pós-
modernidade.
10
MENDOZA BUERGO, Blanca. Principio de precaución, Derecho Penal del riesgo y delitos de peligro. In:
ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.). Principio de precaución, Biotecnología y Derecho.
Granada/Bilbao: Comares/Fundación BBVA/Diputación Foral de Bizkaia, 2004, p.446.
11
ROMEO CASABONA, Carlos María. Aportaciones del principio de precaución al Derecho Penal. In:
Modernas tendencias en la ciencia del Derecho Penal y en la Criminología. Madrid: UNED, 2001, p.79.
12
WELZEL, Hans. Derecho Penal alemán. Parte General. 11 ed. Trad. Juan Bustos Ramírez e S. Yáñez Pérez.
Santiago: Jurídica de Chile, 2002, p.5.
195
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13
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.80 e ss.
14
Assim, enquanto “o Direito Penal tradicional da prevenção foi sendo baseado invariavelmente na ideia de
previsão ou de previsibilidade, isto é, nas certezas mais ou menos precisas, conforme os casos, da ciência –
acerca das leis causais gerais, poderíamos precisar -, buscando a redução dos riscos e de sua probabilidade, a
precaução se orienta a outra hipótese, a da incerteza: a incerteza dos saberes científicos enquanto tais” (ROMEO
CASABONA, Carlos María, SOLA RECHE, Esteban, HERNÁNDEZ PLASENCIA, José Ulises, FLORES
MENDOZA, Fátima et alii. Informe sobre los intentos de adaptación del Derecho Penal al desarrollo social y
tecnológico: líneas de investigación y conclusiones. In: ROMEO CASABONA, Carlos María; SÁNCHEZ
LÁZARO, Fernando Guanarteme (Ed.); ARMAZA ARMAZA, Emilio José (Coord.). La adaptación del
Derecho Penal al desarrollo social y tecnológico. Granada: Comares, 2010, p.516).
15
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Aportaciones del principio de precaución al Derecho Penal. In:
Modernas tendencias en la ciencia del Derecho Penal y en la Criminología. Madrid: UNED, 2001, p.81.
196
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acerca das dimensões e da própria natureza dos danos futuros e de seus desdobramentos
nefastos, que podem assumir proporções catastróficas, hábeis a comprometer de modo
indelével o substrato de bens de natureza transindividual ou coletiva.
Nesse contexto, faz-se oportuno aventar quais medidas de prevenção de riscos devem
ser adotadas nos mais diversos âmbitos, orientadas à contenção dos danos, mesmo diante da
inexistência de estudos técnicos e científicos que atestem de modo inequívoco a nocividade de
um produto ou o caráter prejudicial de uma determinada atividade. A medida de prevenção
mais drástica consiste na completa paralisação da atividade. Os detratores do princípio da
precaução se mostram particularmente críticos com relação à adoção de medida tão radical,
que poderia implicar em comprometimento do progresso científico e tecnológico. Apenas
como último recurso seria viável recorrer à paralisação da atividade ou ao emprego de
estratégias capazes de neutralizá-la completamente. É altamente recomendável, porém, que as
medidas de precaução sejam proporcionais à magnitude dos danos projetados, não
discriminatórias e sujeitas a revisões periódicas, além de resultado de detida reflexão, que
sopese inclusive os custos e benefícios de sua eventual adoção16.
16
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.83 e ss.
17
A esse respeito, vide ANDORNO, Roberto. Validez del principio de precaución como instrumento jurídico
para la prevención y la gestión de riesgos. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Ed.). Principio de
precaución, Biotecnología y Derecho. Bilbao-Granada: Cátedra Interuniversitaria de Derecho y Genoma
Humano/Fundación BBVA/ Diputación Foral de Bizkaia/Universidad del País Vasco/Comares, 2004, p.20-26.
197
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18
Sobre a questão, vide SANDS, Philippe. O princípio da precaução. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU,
Ana Flávia Barros. Principio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.32 e ss., quem reforça que “o
elemento de antecipação é fundamental nesse texto, refletindo a necessidade de medidas ambientais eficazes
baseadas em ações que tenham um enfoque a longo prazo e que possam predizer mudanças, na base de nosso
conhecimento científico”.
198
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19
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental. Estudos sobre a
Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção do Ambiente. São Paulo: RT, 2011, p.237, nota 31.
199
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20
Como destaca Paulo Affonso Leme Machado, “não se trata de outro tipo de precaução senão aquele inserido
no princípio ora estudado, tanto que as medidas a serem exigidas serão cabíveis ‘em caso de risco de dano
ambiental grave ou irreversível’” (Princípio da precaução no Direito brasileiro e no Direito Internacional e
comparado. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros. Principio da precaução. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p.369.).
21
ANDORNO, Roberto, op.cit., p.26. Nesse sentido, vide ROMEO CASABONA, Carlos-María, op.cit., p.84.
22
Portanto, o que o princípio da precaução busca, na verdade, é “incentivar as propostas de modos alternativos
de desenvolvimento, que sejam compatíveis com a qualidade de vida da geração presente e das gerações futuras”,
o que significa que “o novo princípio constituiu um chamado a um maior esforço imaginativo em matéria de
desenvolvimento tecnológico” (ANDORNO, Roberto, op.cit., p.26).
200
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
acautelatórias. Esse catálogo mais ou menos abrangente de medidas, que apresentam como
denominador comum a circunscrição da atividade de risco, conferem ao princípio um
conteúdo flexível e cambiante, hábil a amoldar-se às variações culturais e sociais, por
exemplo. O que uma sociedade aceita e permite, dentro de determinadas margens toleráveis
de risco, pode ser absolutamente rechaçado por outra. O certo é que o princípio em exame
exige a fixação de condições mínimas para sua aplicação, com o propósito de evitar o recurso
leviano a suas pautas restritivas.
A aplicação do princípio da precaução depende da constatação de algumas condições
legitimadoras, reunidas em diversos documentos jurídicos internacionais e assim
sistematizadas pela doutrina: 1) incerteza científica acerca do risco; 2) possibilidade de dano
grave e irreversível; 3) identificação científica dos efeitos potencialmente perigosos derivados
de uma atividade, produto ou técnica; 4) transparência e proporcionalidade das medidas; 5)
inversão do ônus da prova.
As medidas de precaução atuam diante de situações de incerteza científica, o que
significa dizer que não há prova científica de que uma determinada atividade, técnica,
processo ou produto possam causar um dano grave e irreversível, mas tão somente fundada
suspeita de que esse nexo causal possa ser desencadeado. Há um risco potencial, e não real.
Nesse sentido, as estratégias ou medidas de precaução diferem das medidas preventivas, já
que estas atuam frente a situações de periculosidade real, conhecida pela ciência.
Ademais, exige-se a presença de um risco de dano grave e irreversível ao ambiente,
por exemplo. O nível do risco deve ser suficientemente elevado, de modo que “a total certeza
científica não deve ser exigida antes de se adotar uma ação corretiva” 23. Os prejuízos que
podem advir da atividade, processo, técnica ou produto devem apresentar notável magnitude e
apresentar caráter irreversível. A valoração da gravidade do possível dano vincula-se à
possibilidade de lesão de bens coletivos (v.g. saúde pública) ou transindividuais (v.g. meio
ambiente); de outra parte, o caráter irreversível do possível dano dependerá da avaliação de
seus possíveis efeitos diretos e indiretos, imediatos e mediatos, e da efetiva impossibilidade
de retorno ao status quo ante.
A terceira das condições diz respeito à avaliação científica das dimensões do risco.
Embora o princípio da precaução opere em situações de incerteza científica, faz-se necessário
que exista fundada suposição científica de que o produto ou a atividade ofereça perigo para o
meio ambiente ou para a saúde pública. Logo, é preciso que a suspeita encontre lastro em
23
KISS, Alexandre. Os direitos e interesses das gerações futuras e o princípio da precaução. In: VARELLA,
Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros. Principio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.11.
201
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
algum mínimo fundamento científico, de modo que “embora exista incerteza científica, haja
também uma base científica para o temor ou a suspeita”24.
O temor injustificado cientificamente ou o alarmismo infundado não podem
corroborar estratégias ou medidas de precaução. É preciso que exista uma séria avaliação
cientifica do risco potencial, claramente voltada para sua identificação e caracterização da
verossimilhança do risco e de seus possíveis desdobramentos, na medida do avanço científico
e técnico da época. Para tanto, é recomendável que a avaliação seja transparente,
independente, contraditória e conduzida de modo pluridisciplinar por um adequado quadro de
investigadores, com lastro nos trabalhos científicos de maior relevo. A eficiente gestão do
risco depende diretamente de uma cuidadosa e exaustiva avaliação de suas possíveis
projeções. A ausência de uma base científica sólida que corrobore a adoção de medidas de
precaução tende a motivar soluções políticas desarrazoadas, precipitadas e meramente
simbólicas. Por isso, ainda que não existam certezas científicas, a adoção de medidas de
precaução deve pautar-se pela realista avaliação do risco potencial em termos científicos.
Como quarta condição, apontam-se a transparência e a proporcionalidade das
medidas de precaução. A transparência se refere ao conhecimento das medidas a serem
adotadas pelas autoridades públicas por parte de seus destinatários e da coletividade em geral.
É recomendável, nesse sentido, que a coletividade seja informada acerca dos procedimentos
que serão implementados para gerenciar o risco potencial (exigidos, por exemplo, quando se
firma um termo de ajustamento de conduta), bem como ouvida a respeito da conveniência e
oportunidade das medidas. Dado que os danos temidos são graves e irreversíveis, com
dimensões coletivas, é importante que todos os interessados sejam consultados sobre o
conteúdo das soluções acautelatórias e de suas repercussões concretas (por exemplo, através
de audiências públicas). Mas a transparência não se limita à informação acerca do conteúdo e
oportunidade das medidas e procedimentos. Atividades e produtos geradores de risco
potencial devem ser conhecidos por seus usuários, consumidores e pela coletividade como um
todo. Nesse contexto, os alimentos que contém organismos geneticamente modificados devem
etiquetados, os medicamentos em fase de testes precisam conter essa informação em sua bula,
a concessão de um ato administrativo para realização de atividade que encerre risco potencial
deve ser conhecida pelos moradores da região. De conseguinte, a transparência demanda o
compromisso daqueles que promovem produtos ou atividades de risco potencial “de difundir
os estudos que tenham efetuado acerca da magnitude dos riscos potenciais e dos esforços
24
MENDOZA BUERGO, Blanca, op.cit., p.451.
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203
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27
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.90 e ss.
204
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28
De conseguinte, é possível notar que, “frente aos movimentos sociais clássicos de restrição do Direito Penal,
aparecem cada vez com maior clareza demandas de uma ampliação da proteção penal que ponha fim, ao menos
nominalmente, à angústia derivada da insegurança” (SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María, op.cit., p.41).
29
Cf. PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 4 ed. São Paulo: RT, 2012, p.127.
30
Sobre a distinção entre perigo e periculosidade, vide HIRSCH, Hans-Joachim. Peligro y peligrosidad. Trad.
Esteban Sola Reche. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. Madrid: Ministerio de Justicia/Boletín
Oficial del Estado, 1996, p.509 e ss.
205
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31
Nesse sentido, ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.91.
32
Cf. CEREZO MIR, José. Curso de Derecho Penal español. Parte General. Tomo II. 6 ed. Madrid: Tecnos,
1998, p.113-114.
33
Cf. CEREZO MIR, José, op.cit., p.113; SOLA RECHE, Esteban. La peligrosidad de la conducta como
fundamento de lo injusto penal. In: Estudios Jurídicos. Tomo II. Libro Conmemorativo del Bicentenario de la
Universidad de La Laguna. La Laguna, Facultad de Derecho de la Universidad de La Laguna, 1993, p.998 e ss.
206
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
207
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(nos delitos de perigo abstrato) ou perigosa (nos delitos de perigo abstrato-concreto) do ponto
de vista ex ante, adicionando ao desvalor da ação dados objetivos capazes de auxiliar o juiz na
captação da periculosidade da conduta e na interpretação dos tipos penais.
O princípio da precaução também poderia ser aplicado aos delitos culposos e neles
desempenhar uma dúplice função: fixar pautas para a realização de condutas de risco
potencial de dano ambiental grave e irreversível e relativizar a exigência da previsibilidade
objetiva para a configuração dos tipos penais culposos. A primeira das funções pode ser
assim sintetizada:
“quem se dispõe a realizar uma conduta cujo risco para bens jurídicos penalmente
protegidos não pode valorar, deve informar-se; se não é possível, ou parece que em
nada adiantará informar-se, deve se abster da conduta. E quem pretende empreender
algo que provavelmente coloque em perigo bens jurídicos e não é capaz de afrontar
os perigos devido a insuficiências físicas ou por falta de prática ou habilidade, deve
omitir a conduta; caso contrário, existe no empreendimento ou na assunção da
atividade uma imprudência”34.
34
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña. Madrid: Civitas,
1997, p.1.009.
35
ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.96.
208
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36
MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal ante la globalización: el papel del principio de precaución.
In: BACIGALUPO, Silvina; CANCIO MELIÁ, Manuel (Coords.). Derecho Penal y política transnacional.
Barcelona: Atelier, 2005, p.332 e ss.
37
Cf. MENDOZA BUERGO, Blanca, op.cit., p.452-456.
209
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gestão e controle de atividades de risco. Sempre que a normativa conferir certa margem de
discricionariedade na avaliação do risco ou transferir para a autoridade a competência para
sua aferição concreta – como na concessão de atos administrativos individuais -, o princípio
da precaução atuará como importante instrumento na análise da conveniência e oportunidade
da realização da conduta de risco. Nessa perspectiva, o princípio da precaução fundamenta
indiretamente a responsabilidade penal do funcionário público que concede “licença,
autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para atividades, obras ou
serviços cuja realização dependa de ato autorizativo do Poder Público” (art.67, Lei 9.605/98),
já que o as normas administrativas infringidas se baseiam nas exigências do princípio da
precaução. A Administração Ambiental atua, portanto, “como garante de um correto
aproveitamento ambiental, ao decidir quais atividades ou processos prejudicam o ambiente, ao
estabelecer a ponderação de riscos e utilidades possíveis e ao estipular as medidas de cuidado
a serem tomadas”38.
Por derradeiro, cabe salientar que o princípio da precaução pode desempenhar um
importante papel político-criminal, servindo como critério de orientação ao legislador no
momento da tipificação penal de condutas em matéria ambiental. Pautado pelas exigências do
princípio da precaução, o legislador pode inserir no ordenamento jurídico-penal tipos de
perigo abstrato e de perigo abstrato-concreto, além de tipos culposos de resultado. Entretanto,
nunca é demais advertir que essa atuação deve observar o princípio da intervenção mínima e o
caráter subsidiário do Direito Penal, ademais do princípio da exclusiva proteção de bens
jurídicos. Todo exagero na tipificação de condutas de risco pode significar uma nefasta
expansão da intervenção penal, comprometedora do avanço científico e tecnológico sob o
pretexto de atuar preventivamente na contenção de riscos potenciais.
A desobediência às medidas de precaução fixadas pela administração ambiental
figura como um ilícito penal no ordenamento brasileiro. Foi introduzido no ordenamento
jurídico-penal como um tipo de amplos contornos, que abarca toda omissão de medidas de
precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível. O disposto no artigo 54,
§3°, da Lei 9.605/98 tipifica a omissão na adoção, quando assim o exigir a autoridade
competente, das medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou
irreversível, o que evidencia a importância que a infração das medidas de precaução assumiu
em seara penal. Cabe ressaltar que, todavia, que a mera violação de medidas de precaução
38
DE LA MATA BARRANCO, Norberto J. Protección penal del ambiente y accesoriedad administrativa.
Tratamiento penal de comportamientos perjudiciales para el ambiente amparados en una autorización
administrativa ilícita. Barcelona: Cedecs, 1996, p.75-76.
210
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
39
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del Derecho Penal. Aspectos de la política criminal en las
sociedades postindustriales. 2 ed. Madrid: Civitas, 2001, p.123.
40
Cf. CARVALHO, Érika Mendes de. Limites e alternativas à administrativização do Direito Penal do
Ambiente. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, 2011, nº 92, p.302 e ss.
211
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
deveres jurídicos específicos”41. Uma conduta com essas características é, do ponto de vista
ex ante, portadora de maior periculosidade42.
Quando o tipo penal exprime com clareza o conteúdo de injusto específico de uma
determinada conduta delitiva, o reenvio à normativa extrapenal inspirada pelo princípio da
precaução se limitará a traçar com maior precisão os limites da conduta típica. O recurso à
técnica das leis penais em branco, se corretamente empregado, figura como um elemento
normativo capaz de denotar um incremento do desvalor da conduta, contribuindo para
fundamentar o ilícito penal e conferir atualidade ao seu conteúdo. A norma incriminadora em
branco, porém, deve conter a essência (núcleo) da conduta proibida43. Só esse modo de
proceder permitirá uma uniformidade na fixação do risco permitido e assegurará que a
intervenção penal alcance apenas aquelas condutas portadoras de risco ao ambiente.
6. Conclusões
O Direito Penal não pode assegurar, de forma absoluta, a total incolumidade dos bens
jurídicos diante de situações de risco ou de perigo à sua integridade. É aceitável, assim, certo
nível de risco ou perigo aos bens jurídicos – risco permitido -, previsível e mensurável. O
chamado Direito Penal da prevenção fixa, portanto, determinada margem de risco tolerável,
devendo a conduta circunscrever-se aos limites impostos com vistas à proteção dos bens
jurídicos. O âmbito do risco permitido, porém, refere-se aos riscos conhecidos, previsíveis,
mensuráveis. No contexto da sociedade pós-moderna, todavia, surgem situações nas quais o
risco não pode ser precisado em termos científicos. Os riscos incertos e imprevisíveis, a
possibilidade de danos graves e irreversíveis, fundada em cálculos e probabilidades, oferecem
grandes desafios à ciência penal.
Nesse contexto, o princípio da precaução pode representar um importante
instrumento para o controle e gestão de riscos, notadamente em matéria ambiental. É
compreensível que suas notáveis contribuições ingressem nos domínios da dogmática penal e
da política criminal. A via mais óbvia de penetração do princípio da precaução reside na
adoção da técnica das leis penais em branco – ou do modelo da acessoriedade de Direito
41
CARVALHO, Érika Mendes de, op.cit., p.312.
42
Assim, DE LA MATA BARRANCO, Norberto, op.cit., p.87, MORALES PRATS, Fermín. La técnica de la
ley penal en blanco y el papel de la legislación de las comunidades autónomas en el delito ambiental. In:
Estudios jurídicos en memoria de Luis Mateos Rodríguez. Santander: Universidad de Cantabria, 1993, p.361-
363.
43
CEREZO MIR, José. Las leyes penales en blanco en la protección del medio ambiente. Obras completas.
Derecho Penal. Otros Estudios. Lima: Ara, 2006, t.II, p.381.
212
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Administrativo -, pela qual, na descrição da conduta punível, o legislador penal faz referência
à normativa extrapenal. A legislação que completa o conteúdo do tipo penal pode, desse
modo, traçar limites à realização da conduta potencialmente perigosa, expressando a adoção
de diversas medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave e irreversível.
Também ingressa o princípio da precaução na esfera do tipo penal com a incorporação do
modelo da acessoriedade ao ato administrativo individual, segundo o qual a exigência de
autorização, licença ou permissão - e a necessidade de observar os limites, condições e
recomendações estabelecidas - expressa um importante reforço ao conteúdo do ilícito penal,
que incorpora as medidas de precaução provenientes da esfera administrativa. Nos delitos de
perigo abstrato, a infração das pautas administrativas inspiradas princípio da precaução
contribui para robustecer o desvalor da ação, acentuando a periculosidade da conduta. O
desconhecimento das dimensões do risco e a imprevisibilidade de seus possíveis efeitos
prejudiciais aconselham que a intervenção jurídico-penal se faça de modo meticuloso,
respeitando o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos e obedecendo à diretriz
político-criminal de mínima intervenção. Por isso mesmo, é que apenas as condutas perigosas
do ponto de vista ex ante – ou portadoras de acentuado nível de risco – devem merecer a
sanção penal. O princípio da precação pode contribuir, assim, para a determinação da
periculosidade da conduta nos delitos de perigo abstrato.
O princípio da precaução não representa, porém, uma via para a imputação objetiva
de resultados, mas revela-se especialmente útil enquanto instrumento de “delimitação da
conduta jurídico-penalmente adequada”44. Não se pretende, com sua adoção, prescindir da
exigência de previsibilidade objetiva nos delitos culposos. Todavia, a determinação do dever
objetivo de cuidado pode contar com o auxílio do princípio da precaução. Deve ser afastada a
imputação de resultados ao sujeito que tenha obedecido ao cuidado objetivo determinado
pelas medidas de precaução fixadas pela normativa disciplinadora da atividade. Quando não
há desvalor da ação (infração do dever objetivo de cuidado/criação de risco juridicamente
relevante), não há desvalor do resultado (lesão ou perigo ao bem jurídico/realização do risco
juridicamente relevante).
Por derradeiro, o princípio da precaução pode influir, ainda, nas decisões em matéria
ambiental tomadas pelas autoridades e funcionários responsáveis pela gestão e controle de
atividades de risco. Sempre que a normativa conferir certa margem de discricionariedade na
avaliação do risco ou transferir para a autoridade a competência para sua aferição concreta –
44
ROMEO CASABONA, Carlos María, op.cit., p.104.
213
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
7. Referências
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216
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
TÍTULO: Bens Jurídicos Mediatos e Imediatos Tutelados nos Tipos Penais contra a Ordem
Tributária
TITLE: Mediate and Immediate Legal Assets Wards in Criminal Types against Tax Order
AUTOR: Ariosto Teixeira Neto – Mestrando UNICURITIBA – Membro do Grupo de
Estudos de Direito Penal-Econômico coordenado pelo Prof. Fábio André Guaragni.
RESUMO: o artigo trata sobre os bens jurídicos imediatos e mediatos tutelados pelos tipos
penais nos crimes contra a Ordem Tributária, sendo que em sentido imediato existe a defesa
dos interesses estatais patrimoniais e institucionais, sendo que no sentido mediato há uma
defesa de interesses supraindividuais. Pelo fato dos tipos penais expostos pelos artigos 1º e 2º
da Lei nº 8.137/1990 possuírem o intuito de defesa da Ordem Tributária e não apenas do
Estado faz-se necessário que os bens jurídicos supraindividuais (e mediato) estejam
devidamente representados no sentido imediato (defesa do Estado em sentido patrimonial e
institucional). Nessa verificação há também a problemática da teoria fiscal e sua vasta
influência no âmbito do Direito Penal-Tributário que pode influenciar a criação de leis e a
aceitação de bens jurídicos desconexos com o objetivo do Direito Penal, como apenas para a
cobrança de tributos.
ABSTRACT: The article discusses the immediate and mediate legal protection by criminal
types in crimes against Tax Order, the immediate sense is the defense of State interests in
patrimonial and institutional, on the other hand, in mediate meaning there is an
supraindividuais interests, cause the criminal types exposed in articles 1 and 2 of the Law nº.
8.137/1990 aims to defend the Tax Order and not just States interests, so it is necessary that
the legal protection of supraindividuais interests (and mediate sense) are properly represented
in the immediate sense (State defense in patrimonial and institutional sense). In this check
there is also the issue of tax theory and its wide influence under the Criminal Law Tax that
may influence the creation of laws and legal acceptance of aims unconnected with the
objective of criminal law, for as example, tax collection only.
KEY-WORDS: Tax Order crimes, mediate and immediate legal interests, the public interest.
SUMÁRIO: I. Introdução. II. Bens jurídicos mediatos e imediatos dos Crimes Tributários. III.
A arrecadação tributária e o interesse público primário e secundário. IV. Teoria fiscal aplicada
no Direito Penal – algumas observações relevantes V. Conclusão. VI. Referências
Bibliográficas
I. INTRODUÇÃO
A forma de Estado conhecida como Estado Liberal possui como ápice a Revolução
Francesa, em que é a primeira Revolução da história da humanidade, em que o homem deixa
de ser súdito para ser cidadão, incentivado exatamente por interesses econômicos da
burguesia contra o monarca absoluto (BONAVIDES, 2011, p. 25).
O Estado Liberal floresce e, como um pêndulo, torna-se a figura radicalmente oposta
217
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
ao momento histórico anterior, exigindo maiores liberdades individuais e, para isso, vislumbra
retirar todos os poderes do monarca conseguindo êxito em grande parte.
Vale lembrar que o monarca nessa visão era a figura do próprio Estado, então a
tentativa de reduzir os poderes do rei absoluto era também uma forma de reduzir a
interferência estatal na vida privada, sendo que um dos mecanismos mais conhecidos para
isso foi o estabelecimento da separação dos poderes (BONAVIDES, 2011, p. 27/29).
Contudo, o principal objetivo da Revolução Francesa não foi a igualdade ou
fraternidade, mas sim a liberdade para os burgueses poderem atuar livremente no “mercado”
de forma autônoma e sem nenhuma necessidade de autorização estatal ou confisco de suas
propriedades sem justificativa ou lei previamente estipulando isso.
Por isso, não há sequer a possibilidade de cogitar em uma definição de Ordem
Econômica propriamente dita ou mesmo de Direito Econômico, ao menos não como um
conjunto de regras e sistemas próprios, vez que a diretriz do Liberalismo era exatamente a não
intervenção estatal e consequentemente “desordem” econômica, com base na clássica doutrina
de Adam SMITH que os mercados se regulariam a si mesmos.
Apenas ao longo do séc. XIX, coagido pela pressão das massas em exigir direitos
antes não tutelados pela esfera pública, o Estado tem que se preocupar com várias áreas que
antigamente eram exclusivas da iniciativa individual, ante a impossibilidade da iniciativa
privada resolver a maioria dos problemas, em especial, ligados às áreas sociais e ao
descontrole econômico. Assim, o chamamento do Estado para regular essas áreas foi
necessário, tanto por meio de legislação e como pelo controle e intervenção direta ou indireta.
Diante da possibilidade do Estado intervir na Economia, houve a inclusão em uma
relação até então entendida exclusivamente por interesses entre particulares de um interessado
não muito comum: o Estado.
Com isso, a principal e óbvia mudança foi a intervenção estatal na economia, bem
como o surgimento de novos campos no Direito, entre eles o Direito Econômico. O resumo
desse transpasse é muito bem exposto por Egon Bockmann MOREIRA e Leila CUELLAR:
Ora, nitidamente surge um bem jurídico (conceito que já havia sido criado no âmbito
218
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
penal por BIRNBAUM no séc. XIX) de importância suficiente para ser apto de defesa pelo
Direito Penal, iniciando os primeiros passos do Direito Penal Econômico.
Veja-se que em tal momento histórico ainda há o clima das guerras para fomentar o
nascedouro da Ordem Econômica, qual seja, o agitado final do séc. XIX e início do séc. XX,
sendo que há um notório agravamento da recusa do modelo liberalista após a Primeira Grande
Guerra, como lembra Fábio André GUARAGNI:
O fato é que os estados posteriores à primeira guerra mundial são
claros contrapontos ao estado liberal do XIX. Se este não interveio nos
processos econômicos, consagrando a economia de livre-mercado,
aqueles fizeram o processo reverso: os estados com governos
totalitários de direita intercederam na vida econômica, controlando
minuciosamente o ciclo da produção e distribução de bens e serviços
levado a termo na esfera privada, sobretudo para financiamento das
máquinas de guerra que – a partir de uma atitude imperialista e
preventiva em relação à “ameaça comunista” - emergiram na Europa
Ocidental. Os totalitarismos de esquerda assumiram a condição de
produtores e distribuidores de bens e serviços, eliminando toda a
iniciativa privada, em obediência à cartilha marxista (GUARAGNI,
2009,150)
Não apenas a recusa do modelo liberal puro, mas finalidade principal desse recente
ramo de Direito Econômico era controlar os direcionamentos econômicos elaborados por
normativas administrativas estatais, como bem lembram Jorge Figueiredo DIAS e Manuel da
Costa ANDRADE (2000, p. 71), sendo que “recorriam (abusivamente, por vezes) às sanções
penais como garantia de eficácia e de prevenção”.
Contudo, o Direito Penal Econômico não só coibia os excessos causados no âmbito
do Direito Econômico-Administrativo, mas tinha o objetivo específico de financiar os
conflitos bélicos entre Estados-Nações que tiveram seu auge com a Primeira e Segunda
Guerra Mundial.
Em resumo, a intervenção do Estado na economia nos Estados Liberais não era com
finalidade outra senão a preservação do próprio capitalismo de seus excessos, pois “não há
preocupações sociais, mas sim de ordem técnica, com o próprio liberalismo” (TAVARES,
André Ramos, 2003, p. 55).
Iniciado o transpasse do Estado Liberal ao Estado Social que fica claramente
expostos em textos constitucionais no início do séc. XX, cujos principais marcos são a
Constituição Mexicana e de Weimar, em que houve uma quebra do paradigma predominante
do liberalismo da não intervenção estatal nos interesses privados, em especial, na economia.
Percebe-se a nítida evolução do Estado Liberal, passando pelo Estado Interventor e
desembocando no Estado Social da Sociedade, termo de Paulo BONAVIDES (2011, p. 55),
219
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
ou também conhecido como Estado Social de Direito, em que é visto como o Estado Social
dos direitos fundamentais (2011, p. 55) em que há inclusive uma visão supranacional em que
o “respeito da Humanidade aos direitos fundamentais, ponto de partida para a futura
Constituição de todos os povos” (2011, p. 55).
Todo esse histórico é necessário para entender as características da Ordem
Econômica em sentido estrito, ou seja, o direito do Estado em intervir na economia, e a
Ordem Econômica em sentido amplo que abarca tanto a Ordem Tributária, como a Financeira,
do Consumidor e outras Ordens não só vinculadas ao Estado em si, mas com relação a todos
os ramos que afetem a própria produção, distribuição e consumo de quaisquer bens
econômicos.
Assim, aprofundando no tema do presente artigo, no coração desse Direito
Econômico, dessa Ordem Econômica, encontra-se a figura do tributo, clássico meio de
arrecadação estatal e principal forma de intervenção do Estado na economia.
O surgimento do tributo em si é muito mais antigo que o nascedouro da Ordem
Econômica, haja vista que o tributo surge como conhecemos atualmente com a formação dos
Estados-Nações, com o intuito de financiá-los, mas apenas com a criação da Ordem
Econômica que os tributos passam a ser uma parte desse ramo do Direito.
No campo da sanção penal, os meios utilizados para fraudar a cobrança de tributos
(Direito Penal Tributário) são a base do Direito Penal Econômico, que por obviedade, trata de
uma amplitude muito maior de bens jurídicos e tipos penais em que as sofisticações ou
mecanismos criadas para transformação de valores ilícitos em lícitos (lavagem de dinheiro por
exemplo) ou qualquer outra vantagem frente ao Estado, ganharam mais a atenção do Direito
Penal Econômico, fazendo com que tal ramo abarcasse o tributo entre um de seus muitos
objetos.
Tão acentuada foi essa diferenciação entre os mencionados sub-ramos do Direito
Penal que se fala em Direito Penal Econômico e Direito Penal Tributário como se fossem
coisas totalmente distintas, influenciados muitas vezes pela estrutura da nossa Constituição da
República, que discorre sobre a tributação e orçamento nos artigos 145 e seguintes, enquanto
o art. 170 e seguintes menciona o Direito Econômico.
Contudo, tanto em sentido histórico, como em sentido estrutural, ambos possuem o
mesmo radical, sendo na verdade que a tributação tornou-se uma parte da ordem econômica
em sentido amplo, separada em nossa Constituição apenas por questão de didática.
Pois bem, esclarecido que o Direito Tributário é do parte do Direito Econômico e que
a Ordem Econômica em sentido amplo abarca também a Ordem Tributária, passa-se ao tema
220
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
central desse artigo, vez que ambos os ramos citados sofrem de uma problemática ao tratar da
tutela de seus bens jurídicos: a defesa de seus bens jurídicos.
Isso porque no âmbito do Direito Tributário e, até mesmo no Direito Econômico, a
tutela dos bens jurídicos abrange apenas o ente estatal ou transborda aos interesses do Estado
para outros interesses?
Para responder a essa pergunta é necessário uma passagem pelo bem jurídico em
sentido mediato e imediato, para depois aprofundarmos na doutrina do Direito Administrativo
sobre qual é considerado um interesse público primário ou secundário, obviamente que tal
questionamento será verificado com base nos crimes contra a Ordem Tributária.
Os crimes contra a Ordem Tributária e seus bens jurídicos tutelados não são passíveis
de unanimidade ou mesmo definição uma “corrente” doutrinária e jurisprudencial mais
pacificada.
Isso resulta de dois fatores muito claros: o crescimento da aceitação do
funcionalismo do Direito Penal como principal teoria penal brasileira, a qual coloca os bens
jurídicos no centro dessa teoria, e; a mudança social do modo como se enxerga os bens
jurídicos tutelados pelos tipos penais dos crimes contra a Ordem Tributária, em especial, a
questão da supraindividualidade e da Ordem Econômica em sentido amplo.
Veja-se que tais fatores são eventos relativamente recentes para o Direito, já que
ganham espaço significativo após a década de 70, por meio de Claus Roxin (funcionalismo) e
Ulrich Beck (sociedade de risco e supraindividualidade), um lapso temporal curto em
comparação com aos fundamentos existentes na ciência do Direito e até mesmo com o próprio
Direito Penal.
Assim, a supraindividualidade nos bens jurídicos é uma técnica avessa ao Direito
Penal clássico em que foi fundado e criado todo o sistema do Direito Penal Brasileiro, ainda
mais se inserir um terceiro fator nessa análise: o Estado. Exatamente isso o que ocorre nos
crimes contra a Ordem Tributária.
Desnecessário adentrar na discussão acerca da controvérsia que gira em torno do
conceito de bem jurídico, tendo em vista o objetivo desse artigo de ser específico e focar outro
aspecto de tal instituto, contudo, à título de esclarecimento, expõe-se a visão em que é
221
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
1
Tradução livre: “(...) a noção de bem jurídico mediato passa um significado diferente, que se vincula ao
mais amplo conceito de “ratio legis” ou “finalidade objetiva da norma” e que, digo sinteticamente, expressa as
razões e motivos que conduzem o legislador penal a criminalizar um determinado comportamento”.
222
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
no presente estudo, Carlos Martinez-Bujan PEREZ (2007, p. 163/163) informa que todos eles
tem como bem jurídico mediato a proteção do ordenamento econômico, que possui a nítida
característica de ser um bem jurídico supraindividual.
Pois bem, com essa distinção em mente, passa-se a análise do bem jurídico nos
crimes contra a Ordem Tributária, que são conhecidos comumente os artigos 1º e 2º da Lei n.
8.137, de 27 de dezembro 20032.
Primeiramente, é bem observado por Andréas EISELE (1998, p. 14) que com a
formação de um Estado Democrático de Direito “a noção de bem jurídico vem se
modificando, de modo a abranger outros interesses sociais tidos como valores relevantes em
tal sistema social e político, do qual são expressão exemplificativa os bens jurídicos coletivos
e difusos”.
Nessa classificação exposta por Andréas EISELE (1998, p. 14), podem ser inclusos
os crimes contra a Ordem Tributária que tem como escopo primordial a defesa do Erário, não
no sentido apenas patrimonialista ou individualista (como patrimônio da Fazenda Pública),
mas também “como bem jurídico supra-individual, de cunho institucional” (PRADO, 2007, p.
309).
Percebe-se que Andréas EISELE traz uma visão dupla do bem jurídico dos crimes
contra a Ordem Tributária, em que seu bem jurídico mediato seria um bem jurídico
2
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e
qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer
natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento
relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a
venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a
legislação.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que
poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto
ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude,
para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado,
na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a
parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;
IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto
liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;
V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da
obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
223
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
supraindividual, haja vista que é de interesse não apenas estatal, bem como há também no
bem jurídico imediato um cunho institucional que vai além da mera “arrecadação”.
Neste sentido, Guilherme de Souza NUCCI afirma que a proteção do sistema
tributário nacional é uma função constitucional por estar previsto nela em seu art. 145 e
seguintes, ou seja, define claramente quais são os bens jurídicos mediatos dos crimes contra a
Ordem Tributária. NUCCI afirma com base nesse pensamento que:
Do mesmo modo Luis Regis PRADO (2007, p. 309) ainda complementa que “a
tutela da ordem tributária se encontra justificada pela natureza supra-individual, de cariz
institucional, do bem jurídico, em razão de que são os recurso auferidos das receitas que darão
o respaldo econômico necessário para a realização das atividades destinadas a atender às
necessidades sociais”.
Desta forma, seguindo a linha de raciocínio exposta, os bens jurídicos mediatos
justificam a utilização dos crimes contra a Ordem Tributária (dentro da lógica do sistema
penal) para a correta aplicação do sistema tributário.
O transpasse dessa interpretação para os bens jurídicos imediatos não é tão
traumática, haja vista que tal aspecto visa à defesa do Erário Público em um duplo sentido:
patrimonialista, em que haverá um dano aos cofres públicos e na disponibilidade de tal
amonte financeiro para sua aplicação, e; institucional, em que protegerá quando houver um
desrespeito ou dano a instituição do Estado e seu Poder de arrecadar (crime contra a
Administração Pública).
Contudo, a grande problemática é exatamente se a defesa dos bens jurídicos
imediatos, tanto no sentido patrimonialista, como no sentido institucional, abrange o aspecto
supraindividual dos bem jurídico dos crimes contra a Ordem Tributária em sentido mediato.
Para isso, é interessante trazer a baila a teoria do Direito Administrativo sobre
interesse público primário e interesse público secundário.
224
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225
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este discrímen, contudo, é exposto com exemplar clareza por Renato Alessi,
colacionando lições de Carnelutti e Picardi, ao elucidar que os interesses
secundários do Estado só podem ser por ele buscados quando coincidentes
com os interesses primários, isto é, com os interesses públicos propriamente
ditos (MELLO, 2007, p. 63)
226
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Ora, é nítido que arrecadação é essencial para o Estado, vez que é um dos meios para
sua sustentação e possibilidade de atender os anseios da sociedade.
Contudo, ela é uma atividade-meio, vez que o próprio tributo (o principal modo de
arrecadação do Estado, e a que nos interessa no momento) possui por finalidade “suprir os
cofres públicos dos recursos financeiros necessários ao custeio das atividades do Estado”
(MACHADO, 2007, p. 79).
Desta maneira, é correto afirmar que o direito à arrecadação estatal é um interesse
público secundário.
Pode parecer estranho ao início dizer que a atividade arrecadatória do Estado é uma
atividade-meio e de interesse secundário, vez que seria impossível à ele garantir e prover (em
alguns casos) todos os direitos fundamentais dos seus administrados.
Vale lembrar que o interesse público primário do Estado é exatamente garantir os
direitos de seus administrados, independente da maneira ou forma que consiga fazê-lo, vez
que ele possui inúmeros instrumentos para adquirir recursos financeiros e, o Estado, não pode
de maneira alguma sobrepor um interesse público primário para satisfazer um interesse
público secundário, conforme Celso Antônio Bandeira de MELLO (2007, p. 63) afirmou na
passagem a pouco referida “os interesses secundários do Estado só podem ser por ele
buscados quando coincidentes com os interesses primários”.
Desta forma, se o interesse público primário dos crimes contra a Ordem Tributária,
ou seja, a devida proteção ao sistema tributário nacional de atitudes fraudulentas e maliciosas,
está sendo sobreposto por um interesse público secundário, direito de arrecadação do Estado,
desfigurando e questionando a própria necessidade dos crimes contra a Ordem Tributária.
Com isso, fica claro que o interesse único e exclusivo de arrecadação do Estado é
ilegítimo no âmbito administrativo, não sendo considerado nem interesse público, quando
dissociado de um interesse público primário, o que exatamente ocorre no caso dos crimes
contra a Ordem Tributária, e não deve ser utilizado por nenhum ramo do direito, ainda mais
pelo Direito Penal.
Sobre a representação da coletividade pelo Estado na elaboração das leis, reconhece-
se que o Estado possui tal legitimidade para a essa elaboração, contudo remetemos ao que foi
dito na introdução do presente trabalho, em que as regras devem obediência e fundamentação
nos princípios, algo que foi totalmente quebrado no caso concreto.
227
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
O presente artigo poderia muito bem ser direcionado para uma conclusão sem o
tópico que ora se inicia, contudo, seria irresponsável por parte desse autor não comentar e
criticar a legislação e interpretação ofertada sobre os crimes contra a Ordem Tributária no
Brasil e no exterior.
Isso porque ao comparar a extinção da punibilidade pelo pagamento nos crimes
contra a Ordem Tributária no Brasil com a legislação alemã, que possui um instituto similar
designado conceituado como “autodenúncia libertadora da pena”, Alaor LEITE3 em seu artigo
sobre o assunto demonstra que o direito penal no campo fiscal possui dois tipos de panos
teóricos.
A primeira teoria no direito penal tributário alemão é chamada de teoria fiscal por
Alaor LEITE (2011, p. 115) expondo que “busca justificar a existência e também delinear os
contornos da autodenúncia libertadora de pena nos crimes contra a Ordem Tributária com
base em critérios exclusivamente atinentes à necessidade de arrecadação fiscal”.
Já a segunda teoria é a chamada teoria propriamente jurídico-penal em que possui
como
“premissa fundamental a consideração de que, se de um lado o direito penal
tributário é um direito de superposição em relação ao direito tributário como
dizia Ataliba, de outro é inegavelmente ramo do direito penal e deve, então,
estar submetido aos princípios que informam a construção das categorias
jurídico-penais” (LEITE, 2011, p. 115).
3
LEITE, Alaor. Abolição da chamada autodenúncia libertadora de pena no Direito Penal
Tributário alemão. Breves observações por ocasião de uma recente e polêmica decisão. In: COSTA, Helena
Regina Lobo da. [coord] Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 19. vol. 90. Maio-jun./2011.
228
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
4
STF, Pleno, Habeas Corpus 81.611, Relatoria Min. Sepúlveda Pertence. j. 10/12/2003. p. 13.05.2003;
STF, Primeira Turma, Habeas Corpus 83.414/RS, Relatoria Min. Joaquim Barbosa. j. 23;04.2004. p. 23.04.2004;
STF, Segunda Turma, Habeas Corpus 84.092, Relatoria Min. Celso de Mello. j. 22/06/2004. p. 03.12.2004; STF,
Segunda Turma, Habeas Corpus 90.957, Relatoria Min. Celso de Mello. j. 11/09/2007. p. 19.10.2007; STJ,
Habeas Corpus 89.023/MS, Relatoria Min. Jane Silva. p. 17.11.2008.
229
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
V. CONCLUSÃO
Como visto, os bens jurídicos tutelados pelos tipos penais contra a Ordem Tributária
em sentido mediato são de caráter supraindividual, defendendo a Ordem Tributária e, por
consequência, a Ordem Econômica.
Por outro lado, os bens jurídicos tributários tutelados em sentido imediato são de
caráter patrimonial (arrecadação) e institucional (fraude, dano e entre outros), sendo que a
tutela unicamente da arrecadação é considerada ilegítima de defesa pelo Direito
Administrativo, e, portanto, assim o deveria ser pelo Direito Penal.
Dessa forma, o aspecto que deve ser ressaltado não seria a busca pela
inconstitucionalidade dos crimes contra a Ordem Tributária por defenderem a arrecadação
tributária em última análise, mas chamar a atenção para aquele que é considerado o “patinho
feio” desses tipos penais: o sentido institucional do bem jurídico em sentido imediato.
Ora, tal sentido institucional não significa apenas e exclusivamente o desrespeito ao
ente estatal, é também o desrespeito à coletividade, à supraindividualidade dos bens jurídicos
tributários em sentido mediato.
O referido desrespeito e afronta à instituição do Estado e seu leviatânico Poder
Estatal é também uma afronta a toda a sociedade e aos outros indivíduos que contribuem
230
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 10ª ed. São Paulo: Malheiros,
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232
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
233
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
RESUMO
Bacharela em Administração de Empresas – UNOPAR. Bacharela em Direito – UNIFIL. Advogada.
Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, área de concentração Direito Penal – UEM. Especialista em
Filosofia Política e Jurídica em Direito e Processo Penal – UEL. Professor de Direito Penal da UNIFIL,
PUC campus Londrina e UEL. Membro do Conselho Penitenciário do Estado do Paraná. Advogado.
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ABSTRACT
This work has the purpose of presenting critical aspects about slave labor currently
exists in Brazil, as well as to analyze the need for protection against this criminal
conduct, to then seek the understanding of the crime of reduction to conditions
analogous to slave provisions of Article 149 of the Brazilian Penal Code. To do so, it
will look through a foreshortened historical understanding of what is meant by slave
labor, to be subsequently defined the scope of the penal protection in order to curb the
development of labor activity in conditions similar to what is meant by slavery. In this
vein, it is expected to contribute to a better understanding critical social-historical slave
labor and as a consequence the response submitted by the legal-criminal legal system in
seeking to restrain such conduct.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
Não se pode atualmente deixar de identificar práticas que nos levam aos
tempos mais remotos e que deveriam apenas figurar no imaginário de cada pessoa. O
trabalho escravo ganha preocupação internacional, uma vez que não se restringe ao
território brasileiro, mas é prática comum em várias partes do mundo.
O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise crítica acerca da atual
compreensão do tipo penal descrito no artigo 149 do Código Penal, tomando por base a
evolução dessa prática ao longo da históiria, a necessidade de utilização do Direito
Penal como forma de coibir esse tipo de conduta, visando proteger os bens jurídicos
liberdade e dignidade. Certo de que várias são as disciplinas que podem direcionar o
referido desiderato como as sociais, trabalhistas, econômicas, políticas etc., é através da
dogmática penal que se tentará indicar os diversos elementos que compõem este tipo
penal.
235
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1
Pode-se citar que “Nesse período, alguns historiadores afirmam que a escravidão desapareceu, dando
lugar à servidão. Contudo, apesar de ter predominado o sistema feudal, no qual se praticava a servidão, a
escravidão se manteve na Europa mediterrânea e na África. Nesse período, havia um intenso tráfico de
escravos promovidos pelos Turcos, mas, realmente, não se pode tratar da mesma situação fática” (Vito
Palo Neto 2008, p. 31).
236
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aquela em que o senhor da gleba poderia desfrutar da “noite de núpcias da serva que se
casasse” (BARROS, 2006, p. 54).2
Bom é dizer que a servidão começou a ser substituída, no final da Idade Média,
pelas corporações de ofício, com um início de profissionalização das atividades
laborais, mas logo se tornou outro meio de exploração da mão-de-obra. A vergonhosa
forma de exploração do homem pelo homem, ou seja, a mão-de-obra escrava ressurgiu
muitos séculos depois. Com o descobrimento da América, surge um novo ciclo de
escravidão, cuja exploração perdurou por volta de trezentos e cinquenta anos. O que
começou com a escravidão do negro africano, embora tenha se iniciado pelos árabes no
século nove, “adquiriu grande amplitude com a fixação dos primeiros entrepostos
portugueses na África Ocidental” (DAVIS apud PALO NETO, 2008, p.31), no início do
século XV.
Esse novo ciclo foi considerado como “o mais vasto sistema de escravidão
jamais organizado em toda a história. Até então, a servidão era consequência da guerra
ou de alguma forma de endividamento, mas a nova forma de escravidão praticada no
continente americano distinguiu-se nitidamente da antiga pelo seu caráter empresarial”
(COMPARATO apud PALO NETO, 2008, p. 32).
No Brasil, a escravidão decorre da descoberta do país pelos portugueses, que
inicialmente exploraram o trabalho do índio.3 “A mão-de-obra indígena foi um fator de
contribuição decisivo no desenvolvimento econômico da colônia e o escravismo
praticado levou a um efetivo genocídio do indígena de proporções incomparáveis”
(PEDROSO, 2006, p. 50).4
2
Corroborando a citada descrição Segadas Vianna, afirma que os servos “tinham o direito de herança de
animais, objetos pessoais e, em alguns lugares, o de uso de pastos, mas o imposto de herança cobrado
pelos senhores absorvia, de maneira escorchante, os bens dos herdeiros” (VIANNA, 2005. p. 29).
3
Vale ressaltar que, quando se fala em escravidão no período colonial, geralmente associa-se essa
escravidão à do negro, no entanto, esquece-se do índio, conforme pontua Jaime Pinsky (1998, p. 10): “É
comum encontrar em certa literatura histórica a idéia de que o índio era livre por vocação, enquanto o
negro ajustava-se melhor à escravidão. Nenhum homem tem vocação para ser escravo, assim como
nenhum ser humano nasceu para burro de carga, ou para servo, ou para operário superexplorado. Todos
nascemos para usufruir a vida não para produzir para que outros a usufruam graças ao nosso trabalho. È
um mito a idéia de que algumas pessoas nasceram para gozar a vida enquanto outras só têm talento para
trabalhar”.
4
Sobre esse malfadado genocídio vale ressaltar Manuela Carneiro da Cunha (apud PEDROSO, 2006, p.
50): “Povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como conseqüência do que hoje se chama,
num eufemismo envergonhado, „o encontro‟ de sociedades do Antigo e do Novo Mundo. Esse morticínio
nunca visto foi fruto de um processo complexo cujos agentes foram homens e microorganismos mas cujos
motores últimos poderiam ser reduzidos a dois: ganância e ambição, formas culturais da expansão do que
se convencionou chamar de capitalismo mercantil. Motivos mesquinhos e não uma deliberada política de
extermínio conseguiram esse resultado espantoso de reduzir uma população que estava na casa dos
milhões em 1500 aos parcos 200 mil índios que hoje habitam o Brasil”.
237
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
5
Entende-se por “gatos” os aliciadores de trabalhadores que serão submetidos à atividade laboral análoga
à condição de escravo. Trata-se de pessoas interpostas entre empregados e empregadores e, geralmente
mancomunados com esses, acobertam o vínculo empregatício.
238
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(SILVA; SILVA, 2006, p. 37), com falsas promessas de bom pagamento e boas
condições para trabalhar.
Os escravos, ao chegarem ao local de trabalho, eram acomodados em senzalas
que, de acordo com Jaime Pinsky, tratava-se de “construções bastante longas, sem
janelas (ou com janelas gradeadas), dotadas de orifícios junto ao teto para efeito de
ventilação e iluminação” (PINSKY , 1998, p. 38). Eram construídas geralmente de pau-
a-pique e cobertas por sapé, as camas se resumiam a um estrado com esteiras ou
cobertores e travesseiros de palha.6
Como se pode perceber além de toda a problemática existente quanto às
condições de desrespeito às pessoas que eram submetidas àquela forma de trabalho,
mais como um objeto do que propriamente um ser humano, também se identificava que
o sofrimento dispensado aos escravos e suas famílias transcendia a relação
trabalhador/empregador.
Atualmente, a escravidão contemporânea é encontrada principalmente no meio
rural brasileiro, e justifica-se em razão da estrutura agrária baseada no latifúndio e em
relações autoritárias de “coronelismo”. Os “grandes proprietários de terras no interior do
país ainda agem como senhores feudais, exercendo autoridade em sua área de influência
que desafia o estado democrático de direito” (PALO NETO, 2008, p. 34-35).
6
As acomodações dos trabalhadores que vivem em condições análogas à de escravo, no meio rural
brasileiro, não são diferentes, como bem destacam Cristiane Sabino Silva e Renata Cristina de O. A. Silva
(2006, p. 40): “A senzala moderna pode ser assim chamada por possuir as mesmas características da
senzala do período colonial. São feitas de madeira, lona ou barro, em meio ao mato, para dificultar a
descoberta por agentes do Ministério do Trabalho. Também não possuem banheiro ou cozinha ou espaço
adequado para o descanso dos obreiros, como também não possuem, na maioria das vezes, ventilação
adequada ou iluminação. No local de trabalho, estão igualmente sujeitos às intempéries e à vigilância
ostensiva dos capatazes, sendo castigados quando não executam o trabalho corretamente, quando querem
fugir ou quando desrespeitam a lei do patrão”.
239
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240
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241
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7
Quanto às Políticas de Combate ao Trabalho escravo vale citar Ana Paula Sefrin Saladini e Carolina
Augusta Bahls Maranhão, que abordam a atuação de diversas frentes de combate ao trabalho escravo
como o Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego, Organização Internacional do
Trabalho e Comissão Pastoral da Terra (2009, p. 146-150).
8
Como Ensina Eliane Pedroso (2006, p. 69): “Os elementos desta antiga e desproporcional relação
permanecem quase intactos através dos tempos, ainda que suas formas sejam cada vez mais dissimuladas.
A proibição de largar definitivamente o trabalho no momento desejado, a exploração aviltante da força de
trabalho humana, a submissão aos maus-tratos e à absoluta falta de higiene, o constrangimento físico ou
moral e a sujeição a condições indignas, estão ainda bem presentes. A violência vibra tão intensamente
quanto o antigo sistema escravocrata. Atualmente, também são executados castigos, agressões e até
homicídios, tudo com a finalidade de disciplinar o escravo rebelde e também os demais em uma
verdadeira ameaça indireta”.
242
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
9
Nesse sentido: CEREZO MIR, José. Derecho Penal: parte general. São Paulo: RT; Lima, PE: ARA
Editores, 2007, p. 25 e ss.; LUIZ. Luisi. Princípios constitucionais penais. 2. ed. rev. e aum. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003, p. 168. Vale citar que a referida tutela deverá estar sob a égide dos
princípios fundamentais da legalidade, da personalidade e da individualização da pena, da humanidade,
da culpabilidade da intervenção mínima e da insignificância. (PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e
Constituição. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 65-70).
243
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divina. Os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus. Sendo assim,
possuem uma igualdade essencial. Para muitos, esse é considerado como o fundamento
da dignidade humana (NOVELINO, 2008, p. 26).
Oportuno se torna dizer que a dignidade humana não é um direito outorgado
pelo ordenamento jurídico, mas sim um atributo inerente a todo ser humano, pelo
simples fato de ser humano, independentemente de raça, cor, religião, origem, idade ou
condição social.10 Cabe ao Estado garantir, preservar, proteger e principalmente prover
os meios necessários para a efetivação da dignidade humana.11
Dispositivos internacionais demonstram a importância do reconhecimento da
dignidade da pessoa humana. O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos (1948)
promulga que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. A
Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em junho de 1993,
concluiu que “todos os direitos humanos têm sua origem na dignidade e no valor da
pessoa humana”. E a Constituição da República Federativa do Brasil tem como um de
seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Dessa forma,
pode-se concluir que a dignidade humana deve nortear o ordenamento jurídico
(NASCIMENTO, 2009, p. 116).
Nessa esteira, o constituinte de 1988, consagrando a dignidade humana como
fundamento do Estado Democrático de Direito, “reconheceu categoricamente que é o
Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano
constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal” (SARLET, 2008, p.
168-169).
O reconhecimento dos direitos humanos fundamentais tem como base a ideia
de dignidade humana, e, através do cumprimento desses direitos, a dignidade pode ser
promovida e respeitada. Nesse sentido, “os direitos fundamentais são os pressupostos
elementares da vida humana livre e digna, tanto para o indivíduo como para a
comunidade: o indivíduo só é livre e digno numa comunidade livre; a comunidade só é
10
Vale citar: “O mais importante fundamento constitucional da República Federativa do Brasil, a nosso
ver, é sem dúvida, a dignidade. Dela decorre todo o raciocínio jurídico interpretativo. Queremos dizer
com isso que o intérprete e o aplicador da lei, bem como todo e qualquer operador do Direito , e ainda o
legislador e o administrador do Executivo, devem ter em mente, para a prática de seus atos, esse
fundamento”. (SIQUEIRA JUNIOR, Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de.
Direitos humanos e cidadania. São Paulo: RT, 2010, p. 144)
11
Nas palavras de Luiz Regis Prado: “é possível asseverar que a dignidade da pessoa humana pode
assumir contornos de verdadeira categoria lógico-objetiva ou lógico-concreta, inerente ao homem
enquanto pessoa. É, pois, um atributo ontológico do homem como ser integrante da espécie humana –
vale em si e por si mesmo”. (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – volume 1 – parte
geral. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 165)
244
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
livre se for composta por homens livres e dignos” (ANDRADE apud NOVELINO,
2008. p, 26).
Por tais razões, Flávia Piovesan (2006, p. 164) afirma que o trabalho escravo
“se manifesta quando direitos fundamentais são violados, como direito a condições
justas de um trabalho que seja livremente escolhido e aceito”, e ressalta ainda que o
trabalho escravo “surge como a negação absoluta do valor da dignidade humana, da
autonomia e da liberdade, ao converter pessoas em coisas e objetos”.
Em virtude dessas considerações, conclui-se que a exploração do trabalho
escravo coíbe o exercício de uma vida digna, sob todos seus aspectos, ou seja, o
trabalho escravo impossibilita o acesso à saúde, à educação, à moradia (uma vez que
esses trabalhadores quando resgatados estão em péssimas condições e em alojamentos
precários), pois esses humildes trabalhadores são reduzidos ao status de “coisa”.
Ressalta-se ainda que, embora a prática do trabalho escravo seja vedada por
inúmeros tratados e convenções internacionais já ratificados, e que a Constituição
Federal do Brasil tenha como fundamento a dignidade humana e como objetivos
fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária com a erradicação
da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais, a concretização desses
objetivos tem encontrado diversos obstáculos.
Há que se aventar também a afronta realizada à liberdade do trabalhador, uma
vez que com a redução à condição análoga à de escravo, além da afronta à dignidade da
pessoa humana, tendo em vista as condições a que são submetidos os trabalhadores,
tem-se também uma afronta ao status libertatis, uma vez que para o desenvolvimento
dessas atividades laborativas, são impostos obstáculos ao seu direito de ir e vir.
Como mecanismos a impedir sua ocorrência, inúmeros são os dispositivos que
visam proteger a liberdade do cidadão, em suas mais diversas formas. A Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 define, no artigo 4º, a liberdade como “poder
fazer tudo o que não prejudique a outrem: em conseqüência, o exercício dos direitos
naturais de cada homem só tem por limites os que assegurem aos demais membros da
sociedade a fruição desses mesmos direitos. Tais limites só podem ser determinados
pela lei” (DECLARAÇAO, 1789, p.1).
De igual forma, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
proclama os ideais de liberdade. O artigo I contempla que “todos os homens nascem
livres e iguais em dignidade e direitos”; o artigo II, que “todo homem tem capacidade
245
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
246
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Como já citado acima, a referida conduta merece ser tutelada pela esfera penal,
uma vez que se mostra atentatória à liberdade e dignidade da pessoa humana, estes os
bens jurídicos aqui protegidos12. Neste sentido, classifica-se como delito pluriofensivo,
pois é possível perceber claramente que a ofensa recai sobre os dois bens jurídicos
penalmente relevantes acima citados, uma vez que a sua liberdade é cerceada, bem
como as condições de trabalho a que é submetido a vítima atinge diretamente a sua
diginidade.
Assim, com o disposto no artigo 149 do Código Penal, tutela-se a liberdade
individual, ou seja, o status libertatis, garantido pela Constituição Federal. De acordo
com Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 425), protege-se a liberdade “sob aspecto ético-
12
Construindo um conceito acerca do que se deve entender por bem jurídico, ensina Luiz Regis Prado
que: “o bem jurídico vem a ser um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto
social, de titularidade individual ou metaindividual reputado como essencial para a coexistência e o
desenvolvimento do homem e, por isso, jurídico-penalmente protegido. E segundo a concepção aqui
acolhida, deve estar sempre em compasso com o quadro axiológico (Wertbild) vazado na Constituição e
com o princípio do Estado Democrático e Social de Direito” (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito
Penal Brasileiro – volume 1 – parte geral. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013)
247
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Por se tratar de crime comum, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, sem
restrições, uma vez que o tipo penal não exige qualquer condição pessoal específica.
Vale ressaltar que no caso de o sujeito ativo ser funcionário público, poderá ser
configurado o crime de abuso de poder descrito no artigo 350 do Código Penal
248
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
13
Neste sentido: COSTA JR. Paulo José da. Curso de Direito Penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
426.
249
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pessoal, figurando mais como objeto do que propriamente um ser humano (podendo ser
comprado ou vendido, impedido de se ausentar do local de trabalho, tendo que contrair
dívidas com a pessoa que o submete a essa condição, etc.).
Nesse sentido ensina Cezar Roberto Bitencourt (2011, p 427) que:
250
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indisponível. Mesmo que o sujeito passivo concorde com a inteira supressão de sua
liberdade pessoal, não há a exclusão do delito, uma vez que “isso importaria em
anulação da personalidade” (PRADO, 2013, p. 348).14
251
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
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4. CONCLUSÃO
Com base na pequisa realizada, tem-se que a ideia de trabalho escravo mudou
ao longo dos tempos, não obstante a sua sempre caracterísitca desumanda. Isso por
conta da total desconsideração da pessoa humana que não pode ser coisificada, sob pena
de a própria civilidade restar comprometida, uma vez que o homem é o destinatário
final de todo e qualquer ato, nunca podendo ser um meio para a consecução de
quaisquer fins.
Vale ressalar que a dignidade é algo intrínseco ao homem enquanto ser,
representando princípio basilar de um Estado democrático social de Direito,
representando direito infranqueável do cidadão, sendo que no ordenamento jurídico
brasileiro figura como fundamento da República.
Não obstante a identificação dos malefícios da escravidão ao longo da história,
ainda hoje tal conduta é realizada, vinculando-se principalmente ao intento de
empregadores que se utilizam do homem, visando tão somente o aumento da sua
lucratividade. Dessa forma, o ordenamento jurídico busca coibir essas condutas através
de vários dispositivos legais, sendo que no presente trabalho, buscou-se compreender
melhor o tipo penal disposto no artigo 149 do Código Penal.
Em que pese o merecimento da proteção penal através do tipo penal: redução a
condição análoga à de escravo que protege tanto a liberdade como a dignidade do
trabalhador, há que se levantar a dificuldade de se desenvolver as políticas públicas
necessárias para se coibir tal prática, tema este que não representou a base no presente
estudo, mas que influencia sobremaneira a ineficácia das tutelas jurídicas que visem à
proteção do trabalhador, seja em área rural ou urbana.
REFERÊNCIAS
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255
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256
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
RESUMO
O presente trabalho objetiva estudar o problema do conflito de leis penais no tempo
envolvendo o crime de tráfico de drogas no ordenamento jurídico brasileiro. A nova Lei de
Drogas (Lei n.º 11.343/06) determinou um tratamento mais gravoso ao traficante do que a
legislação anterior (Lei n.º 6.368/76), aumentando-se a pena mínima abstratamente cominada
no tipo penal. Conjuntamente, inovou no ordenamento jurídico ao prever uma causa de
diminuição de pena para determinados casos de traficância. Desta sistemática, surge o
questionamento acerca da possibilidade ou da impossibilidade da retroação da minorante
mantendo-se intacta a pena abstrata do diploma legal anterior, por ser mais benéfica do que a
estipulada na nova lei. Surgiram duas correntes teóricas no âmbito judicial visando resolver o
problema proposto. Este artigo analisa o posicionamento dessas duas correntes, expondo a
argumentação desenvolvida por cada uma delas.
PALAVRAS-CHAVE: CONFLITO DE LEIS; LEX TERTIA; LEI PENAL NO TEMPO;
EXTRA-ATIVIDADE LEGAL; TRÁFICO DE DROGAS.
ABSTRACT
1
Mestre em Direito Supraindividual pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), área de concentração em
Direito Penal. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Coordenador da
Especialização em Direito e Processo Penal da Universidade Estadual de Londrina. Professor de Direito Penal
Econômico e Tributário na Especialização em Direito e Processo Penal da Universidade Estadual de Londrina
Professor de Direito Penal e Processo Penal na Universidade Estadual de Londrina e na Faculdade Catuaí.
Advogado Criminal.
2
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); atualmente cursa especialização em
“Filosofia Moderna e Contemporânea” pela mesma instituição e especialização em “Direito Constitucional
Contemporâneo” pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC). Advogado Criminal.
257
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This work aims to study the problem of conflict of penal laws in time involving the crime of
drug trafficking in the Brazilian legal system. The new Drug Law (Law n.º 11.343/06)
determined a more severe penalty to the drug dealer than the previous legislation (Law n.º
6.368/76), increasing the minimum penalty abstractly restraint applied by the offense.
Together, innovated in the legal system by providing a cause of reduced penalty for certain
cases of drug trafficking. From this systematic, arises the question about the possibility or
impossibility of the retroactivity of the cause of reduced penalty keeping intact the abstract
penalty of the previous statute, to be more beneficial than that stipulated by the new law. Two
theoretical positions have emerged in the courts to solve the proposed problem. This article
analyses the positioning of these two currents, exposing the arguments of each one.
KEYWORDS: CONFLICT OF LAWS; LEX TERTIA; CRIMINAL LAW IN TIME;
EXTRA-LEGAL ACTIVITY; DRUG TRAFFICKING.
INTRODUÇÃO
O advento da Lei n.º 11.343/06, popularizada como nova Lei de Drogas,
despertou vários debates no âmbito jurídico-penal brasileiro. Alguns destes debates se
encontram relativamente superados, como o da (des)criminalização do delito de porte de
drogas para uso pessoal e a possibilidade da conversão da pena privativa de liberdade pelas
restritivas de direitos3 nos delitos de tráfico de entorpecentes. Contudo, nem todos os debates
suscitados por tal diploma legal se encontram plenamente solucionados.
Neste artigo pretendemos abordar um debate ocasionado pela respectiva lei e
ainda não plenamente pacificado nos tribunais pátrios, especialmente nas cortes superiores:
trata-se da (im)possibilidade da aplicação da minorante prevista no §4º do artigo 33 da Lei n.º
11.343/06 (nova Lei de Drogas) aos crimes cometidos sob a vigência da Lei n.º 6.368/76
(antiga Lei de Tóxicos). O texto da antiga Lei n.º 6.368/76 tipificava o delito de tráfico de
entorpecentes em seu artigo 12 cominando pena abstrata de 3 a 15 anos e multa, enquanto a
redação da nova Lei n.º 11.343/06 passou a tipificar o tráfico de drogas em seu artigo 33
aumentando a reprimenda mínima em abstrato ao cominar pena de 5 a 15 anos de reclusão e
multa.
3
Sobre este último tópico, em 16 de fevereiro de 2012 entrou em vigor a Resolução nº 5 de 2012 do Senado
Federal, que reza em seu artigo 1º, in verbis: “É suspensa a execução da expressão 'vedada a conversão em penas
restritivas de direitos' do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, declarada inconstitucional por
decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus nº 97.256/RS”. Trata-se de rara
aplicação do tão controverso art. 52, X da Constituição Federal.
258
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[...]
259
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4
O debate jurisprudencial sobre o assunto específico se inicia a partir de meados de 2006 no STJ, tendo atingido
o STF apenas recentemente. Sustentando a vedação de combinação de leis, nos valemos de vários votos
proferidos principalmente pelo Ministro Félix Fisher. Os argumentos a favor da retroativdade da minorante
foram fartamente sustentados no STJ pela Desembargadora convidada Jane Silva do TJMG e, atualmente, são
desenvolvidos principalmente pelo Ministro Jorge Mussi.
5
Colacionamos alguns precedentes recentes do STJ onde foi adotada esta primeira orientação teórica – ressalta-
se que nesta Corte este é o entendimento predominante atualmente: AgRg no HC 199.324/MS, Rel. Ministro
SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 04/12/2012, DJe 14/12/2012; AgRg no REsp
1189603/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 27/11/2012, DJe 05/12/2012; HC
128.577/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 07/11/2012,
260
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Esta posição não nega que a nova minorante veio atender aos princípios da
proporcionalidade e da individualização da pena na medida em que possibilita diferenciar a
conduta do agente que não se encontra plenamente envolvo no mundo do crime do agir do
traficante habitual, que faz do crime seu meio de vida6. Entretanto, sustenta-se que a ratio da
previsão desta causa de diminuição de pena justifica-se em razão do maior rigor que o atual
diploma legal dispensou ao tratamento do crime de tráfico de drogas.
DJe 16/11/2012; HC 202.557/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 06/11/2012,
DJe 21/11/2012; HC 217.742/SP, Rel. Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA
CONVOCADA DO TJ/PE), SEXTA TURMA, julgado em 27/09/2012, DJe 04/10/2012; HC 240.771/SP, Rel.
Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 18/09/2012, DJe 03/10/2012; HC 227.353/SP, Rel.
Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 04/09/2012, DJe 17/09/2012; HC 200.127/PR, Rel.
Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 04/09/2012, DJe 21/09/2012; HC 193.700/SP, Rel.
Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 04/09/2012, DJe 21/09/2012; HC 167.829/MG, Rel.
Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 05/09/2012; HC 197.210/SP, Rel.
Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 12/09/2012; HC
174.878/SP, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ),
Rel. p/ Acórdão Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 21/09/2012; HC
245.503/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 21/09/2012; AgRg
no HC 168.549/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em
07/08/2012, DJe 23/08/2012; HC 178.859/MG, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA
TURMA, julgado em 07/08/2012, DJe 31/08/2012; HC 168.040/SP, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA
MACABU (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ), QUINTA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe
20/08/2012; HC 208.121/MS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 26/06/2012, DJe
01/08/2012; HC 181.830/RS, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJ/RJ), QUINTA TURMA, julgado em 21/06/2012, DJe 02/08/2012; HC 239.250/SP, Rel.
Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 20/06/2012; HC 163.920/SP, Rel.
Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 26/06/2012; HC 176.339/RJ, Rel.
Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 27/06/2012;
HC 147.208/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 12/06/2012,
DJe 13/08/2012; HC 155.014/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado
em 05/06/2012, DJe 18/06/2012; HC 143.987/RJ, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA
TURMA, julgado em 05/06/2012, DJe 18/06/2012; HC 232.115/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA
TURMA, julgado em 29/05/2012, DJe 18/06/2012; HC 239.250/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA
TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 20/06/2012; AgRg no AREsp 83.850/SC, Rel. Ministra LAURITA
VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 25/06/2012; HC 219.754/PR, Rel. Ministro GILSON
DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 03/05/2012, DJe 10/05/2012; HC 211.882/DF, Rel. Ministra LAURITA
VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 27/03/2012, DJe 03/04/2012; HC 187.699/RS, Rel. Ministra LAURITA
VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 22/11/2011, DJe 01/12/2011; REsp 1117068/PR, Rel. Ministra
LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/10/2011, DJe 08/06/2012; HC 136.252/SP, Rel. Ministro
OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 04/08/2011, DJe 22/08/2011; HC 151.206/RJ, Rel. Ministro
HAROLDO RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/CE), SEXTA TURMA, julgado em
16/06/2011, DJe 03/08/2011; AgRg no REsp 1075322/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA,
julgado em 14/06/2011, DJe 27/06/2011; No STF esta tese foi adotada nos seguinte casos: HC 10.7583,
Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 17/04/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107
DIVULG 31-05-2012 PUBLIC 01-06-2012; HC 96.430, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma,
julgado em 09/12/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009 EMENT VOL-02347-05 PP-
00891.
6
No HC 96.242/SP, embora tenha entendido ser indevido a combinação de leis para beneficiar o réu, o relator,
Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, deixou assentado: “Inicialmente, cumpre frisar que a redução da pena
objetivou suavizar a situação daqueles que não se dedicam ao tráfico como profissão, dos que cometeram o
delito pela primeira vez, do traficante ocasional (a mulher que leva a droga para o marido ou o filho viciado na
cadeia, por exemplo)”. Deste modo, o Ministro não fez ligação da minorante com o tratamento mais rigoroso que
o tipo passou a ter debaixo da nova lei, mas entendeu que a causa de diminuição de pena veio para diferenciar a
261
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
apenação de condutas distintas - HC 96.242/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ de
09/06/2008.
7
Argumento sustentado principalmente pela Ministra Maria de Assis Thereza Moura. Em seu voto proferido no
Habeas Corpus HC 137161-SP, a Ministra manifesta o seguinte entendimento: “Coisa diversa é admitir a
incidência de circunstâncias da nova lei mais favoráveis ao paciente, criando-se uma terceira lei mais benéfica,
mista, que reúna dispositivos de ambas as leis. No caso em questão, trata-se de desconfigurar os termos de um
mesmo e único dispositivo, o que, segundo meu entendimento extrapola a função judicial, imiscuindo-se o
julgador na tarefa legislativa, ao rechaçar uma opção política, desestabilizando o equilíbrio entre os Poderes do
Estado”. (HC 137161 SP 2009/0099843-2, Relator: Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJ/SP), Data de Julgamento: 03/11/2009, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe
27/09/2010). Portanto, seguindo a linha de raciocínio da nobre Ministra, poderíamos concluir, a contrario sensu,
no sentido de afirmar a validade da combinação de circunstâncias favoráveis de dois textos legais distintos, pois
o que estaria vedado seria apenas a desconstituição de um dispositivo uno.
262
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Art. 2° Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de
considerar crime, cessando, em virtude dela, a própria vigência de sentença
condenatória irrecorrível, salvo quanto aos efeitos de natureza civil.
263
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
[...] cumpre advertir que não podem ser entrosados os dispositivos mais
favoráveis da lex nova com os da lei antiga, de outro modo, estaria o juiz,
arvorado em legislador, formando uma terceira, dissonante, no seu
hibridismo, de qualquer das leis em jogo. Trata-se de um princípio pacífico
8
A partir deste momento, nos valemos das profundas pesquisas feitas pelo Ministro Felix Fisher, registradas em
inúmeros votos, para apresentar o rol de teóricos que adotam o posicionamento ora em análise. Os votos do
referido Ministro serviram como paradigma para a consolidação deste entendimento, sendo acompanhado na
maioria das vezes pelos demais Ministros da Quinta Turma do STJ – a exceção do Ministro Jorge Mussi, como
veremos oportunamente.
264
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Também Aníbal Bruno, adverte que “esse princípio da aplicação da lei mais
benéfica, como meio de resolver o conflito de leis penais sucessivas, sugere um problema
nem sempre de fácil solução”, concluindo que “não é lícito tomarem-se na decisão elementos
de leis diversas. Não se pode fazer uma combinação de leis de modo a tomar de cada uma
delas o que pareça mais benigno. A lei considerada mais benévola será aplicada em sua
totalidade”. (BRUNO, 1967, p. 255 e 256).
Na mesma linha, Heleno Cláudio Fragoso é enfático ao se posicionar que “em
nenhum caso será possível tomar de uma e outra lei as disposições que mais beneficiem o réu
aplicando ambas parcialmente”. (FRAGOSO, 1995, p. 105).
Entre os estrangeiros que aderem a este posicionamento, podemos mencionar
Jimánez de Asúa, Sebastián Soler, Reinhart Maurach, Heinz Zipf, Edgardo Alberto Donna,
Francisco Muñoz Conde, Mercedes García Arán, Gonzalo Quintero Olivares, Diego-Manuel
Luzón Peña, Guillermo Fierro, José Cerezo Mir, Antonio García-Pablos de Molina e Germano
Marques da Silva.
Jiménez de Asúa ensina que
interesa dejar bien sentando que para hallar la solución más favorable
para el delincuente no es posible combina varias leyes; es decir, que no es
dable dividir la ley antigua y la nueva en varias partes para aplicar al
acusado las disposiciones más benignas de la una y de la otra al mismo
tiempo, sino que, debiendo hacer uso el Juez de la ley más benigna, no
puede darse al reo un trato jurídico que, por ser derivado de las dos, no es
propio de la ley neuva ni de la antigua. Lo contrario sería autorizar al
magistrado para crear una tercera ley - con disposiciones de la precedente
y de la posterior -, con lu cual se arrogaría funciones legislativas que no
tiene. (ASÚA, 1963, p. 634).
ese examen comparativo debe conclui por la elección de una ley, es decir,
que será ilícita la aplicación al mismo caso, simultánea e sucesivamente,
de disposiciones de leyes distintas , en cuyo caso no se aplicaría en
realidad ninguna ley, dictada por el poder legislador, sino una nueva ley
confeccionada por el juez, con elementos de distintas leyes, para un caso
concreto. No son lícitos los reenvios de una e otra ley en procura de las
disposiciones más favorables: elegida una ley, ésta se aplica en su
integridad, y en todo su régimen. (SOLER, 1992, p. 260).
265
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Para Reinhart Maurach e Heinz Zipf, “sólo procede la aplicación de la nueva ley
y queda excluida una combinación de posibilidades que pudieren ser más favorables al
autor”. (MAURACH & ZIPF, 1994, p. 202).
Edgardo Alberto Donna consigna que
266
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
forma conjunta con los más beneficiosos de la nueva […]. (FIERRO, 2003,
p. 324).
Concluímos esta breve exposição dos argumentos esposados por esta primeira
corrente nos valendo da síntese desenvolvida por seu maior defensor na jurisprudência
brasileira, o Ministro Félix Fisher9. O jurista apresenta a seguinte peroração em inúmeros
votos proferidos:
9
Em 12 de maio de 2010 a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça julgou os Embargos de Divergência
no Recurso Especial 1094499/MG, de relatoria do Ministro Felix Fischer, resolvendo de vez a discordância entre
as Turmas (Quinta e Sexta Turma), fixando a primeira corrente como posição prevalecente na Egrégia Corte.
(Cf. EREsp 1094499/MG, Rel. Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 12/05/2010, DJe
18/08/2010).
10
Por todos os julgados analisados, conferir voto do Ministro no HC 145.730/DF; 2009/0167109-4.
267
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
11
A seguir apresentamos os precedentes do STJ em que foi adotado este segundo posicionamento: HC
73.767/RJ, Rel. Ministro Gilson Dipp – Quinta Turma – DJ de 06.08.2007, p. 573; HC 83.716/SP, Rel. Ministra
JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), DJU de 1/10/2007; HC 83.361/MS, Rel.
Ministro Arnaldo Esteves Lima. – Quinta Turma – DJ de 22.10.2007, p. 334; HC 88.114/MS, Rel. Ministro
Paulo Gallotti – Sexta Turma – DJU de 03.12.2007; HC 93.291/SP, Rel. Ministra JANE SILVA
(DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), julgado em 25-3-2008; HC 103.541/RJ Decisão
Monocrática nº 2008/0071763-1 de Superior Tribunal de Justiça, Ministra JANE SILVA
(DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG) Sexta Turma, 04/04/2008; HC 100.910/DF, Rel. Ministra
JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em
03/04/2008, DJe 22/04/2008); HC 96.521/SP, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, DJ
12.05.2008 p. 1; HC 82.587/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Rel. p/ Acórdão
Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em
06/05/2008, DJe 09/06/2008); HC 100.442/SP, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA
CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em 29/04/2008, DJe 09/06/2008); HC 101.125/SP, Rel.
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A lei posterior que, de qualquer modo favoreceu o agente, aplica-se aos fatos
anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em
julgado. (BRASIL, Decreto-Lei n.º 2.848, 1940).
269
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legislador foi punir de modo menos severo aqueles que se encaixam no perfil do §4º,
independentemente do tratamento mais rigoroso previsto no novo caput.
A causa de diminuição de pena, em verdade, refere-se não ao caput do tipo, mas,
sim, às condutas nele descritas - condutas estas que já eram tipificadas na legislação revogada.
O fato da minorante ter sido prevista como parágrafo do artigo 33 e não estipulada em um
artigo autônomo decorre de mera técnica legislativa (forma legal), não vinculando
materialmente os dispositivos. Sustentar a dependência da minorante à pena prevista no caput
unicamente pelo fato da mesma ter sido prevista em um parágrafo do mesmo artigo, seria
privilegiar uma interpretação formalista da norma jurídica, afastando-se toda reflexão
hermenêutica que envolve seu conteúdo, suas valorações e seu contexto histórico.
Não existiria, assim, segundo este segundo entendimento, a criação judicial de
terceira lei não prevista pelo legislador ou uma invasão de competências legislativas pelo juiz.
A aplicação da nova lei à pena fixada com base na antiga Lei de Tóxicos seria mera
decorrência do preceito da máxima efetividade da Constituição na aplicação do princípio da
retroatividade da lei penal mais benéfica.
Salienta-se, também, que a vedação de combinação de leis diversas (Lex tertia) –
que não ocorreria no caso em questão – é apenas produto de interpretação doutrinária e
jurisprudencial desenvolvida em uma época de “baixa constitucionalidade” (STRECK, 2004,
p. 216/220), quando se interpretava a Constituição pela legislação ordinária, e não o contrário.
O argumento de que o próprio ordenamento jurídico brasileiro já teria se orientado
contrariamente a este entendimento no §2º do art. 2º do Código Penal Militar também não
mereceria acolhimento. Isto, pois, o CPM que contém dispositivo explícito sobre o tema é lei
especial aplicável apenas em determinados e restritos casos. Conforme a hermenêutica
jurídica clássica, não se pode tomar norma especial, de âmbito restrito, e interpretá-la como se
disposição geral tivesse. Tal operação faria uma norma jurídica criada para um delimitado e
específico campo especial ser aplicada como se regulamentasse os casos gerais do
ordenamento jurídico. Em verdade, se tal vedação vigorasse a todo o sistema de Direito Penal
(comum), o legislador teria deixado disposição explícita no Código Penal assim como o fez
no Código Penal Militar. Tal raciocínio é o bastante para se afastar o supracitado argumento.
Demais disso, além do fato de a norma especial ser interpretada sempre
restritivamente a casos a que se refere, o princípio da reserva legal seria óbice intransponível
para a aplicação do referido preceito, visto ser de conhecimento geral a impossibilidade do
emprego de analogia em desfavor do réu. Assim, não se pode aplicar analogicamente referida
272
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
disposição do Código Penal Militar a casos disciplinados pelo Código Penal ou legislação
penal esparsa.
De acordo com este segundo entendimento teórico, a leitura da lex mitior proposta
pela primeira corrente acaba por limitar injustificadamente o alcance de aplicação do
princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, não sendo a melhor interpretação da
garantia constitucional. Nesse sentido, alegar que o Poder Judiciário estaria invadindo a esfera
de atribuições do Poder Legislativo, na medida em que “criaria” uma terceira lei, é fazer
tábula rasa do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais.
Apesar de se valer de dois diplomas legais para a produção da norma jurídica
penal, o caso da aplicação retroativa do parágrafo §4º não incorreria na construção teórica da
vedação de combinação de leis ou Lex tertia. Vejamos:
O HC 68.416 de relatoria do Ministro Paulo Brossard é recorrentemente citado
como referência para demonstrar o que seria uma vedação da lex tertia. Nesse julgamento, o
que se pretendia na verdade era, com relação à liberdade provisória do preso, a aplicação
conjunta dos requisitos da lei antiga com os da lei nova. Tal caso constitui autêntica e
inadmissível tentativa de criação indireta de lei processual penal. A Lex tertia, portanto, é uma
criação teórica que impede a combinação de partes de dois institutos para fazer surgir um
terceiro. No caso mencionado, o julgado relatado por Brossard envolvia um pedido de
aplicação de alguns requisitos da lei nova conjuntamente a alguns requisitos da lei anterior,
criando um tertium genus, uma nova lista (híbrida) de requisitos para a concessão da liberdade
provisória.
Entretanto, coisa diferente é a retroatividade da minorante no caso do tráfico de
drogas ora em estudo, pois não há que se falar em alteração do instituto jurídico. Não há
qualquer espécie de fusão entre o antigo crime de tráfico de entorpecentes e o novo delito de
tráfico de drogas, pois a materialidade típica continua a mesma. O que retroage é meramente
um instituto autônomo e independente – a causa de diminuição da pena, anteriormente não
prevista, que surgiu para tentar corrigir antigo problema decorrente da falta de
proporcionalidade na aplicação das penas, alteração que já se fazia necessária inclusive sob a
égide da lei antiga.
Ressalte-se que o próprio STJ já chancelou a possibilidade de se combinarem
validamente textos legais para que o réu fosse penalmente beneficiado. Tal fato se deu com a
combinação legal levada a efeito entre o art. 8º da Lei de Crimes Hediondos e o artigo 14 da
antiga Lei de Tóxicos, onde se evidenciou a distinção e a independência das normas que
273
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
definem o tipo das que regem a cominação da pena. Neste sentido, aponta-se o seguinte
julgado:
De tal modo, a jurisprudência sobre a vedação de Lex tertia não deve ser repetida
acriticamente e sem maiores reflexões voltadas à especificidade teórica dos problemas
jurídicos, como se fosse um mantra ou um dogma intocável. Ao produzir a norma aplicável ao
caso concreto o intérprete pode, licitamente, se valer de dois textos legais distintos,
preservando a ultratividade da pena abstrata fixada no caput fazendo incidir retroativamente a
causa de diminuição da pena prevista na nova lei em virtude da autonomia dos institutos13.
Ressalte-se que, mesmo que não se admita a “mescla” de diplomas legislativos no
caso de institutos autônomos, ainda assim o primeiro entendimento se encontraria
prejudicado. Eis que a minorante instituída pela nova lei não pode ser confrontada com a lei
anterior, pois, o texto antigo não cuidava desse tipo de causa de diminuição, sendo
completamente inédita. Inexiste assim qualquer “mesclagem de sistemas”.
Aceitar a solução proposta pela primeira corrente – uma espécie de aplicação da
Teoria do Conglobamento do Direito do Trabalho na esfera do Direito Penal – seria
reconhecer a possibilidade de aplicação da retroatividade in pejus ao réu, atribuindo-se um
desvalor inexistente à conduta do agente quando do cometimento da ação. Em outros termos,
12
No mesmo sentido: PENAL. CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA TRÁFICO DE DROGAS. LEI Nº 8.072/90,
ART. 8º. LEI Nº 6.368/76, ART. 14. INTEGRAÇÃO DE NORMAS. INTERPRETAÇÃO CORRETIVA. O
Supremo Tribunal Federal, por decisão majoritária, proclamou o entendimento de que em tema de associação
para a prática do tráfico ilícito de entorpecentes, impõe-se a integração das duas normas regentes – art. 14 da Lei
de Tóxicos e art. 8º da Lei nº 8.072/90 –, tomando-se a definição do tipo para a primeira e a fixação da pena para
a segunda. - Recurso especial conhecido e provido. (Recurso Especial nº 273245 – SP, 6ª Turma, Rel. Min.
VICENTE LEAL, j. 14/05/2002, D.J.U. de 05/08/2002, p. 418).
13
Assim se manifestou a Sexta Turma do STJ, ao julgar o HC 96521/SP relatado pelo Min. Nilson Naves: “4.
Isso não significa que se esteja aqui juntando as Leis nºs 6.368/76 e 11.343/06 com o objetivo de se produzir
uma terceira lei, ou que se esteja colhendo benefícios daqui ou dali. 5. Impõe-se, isto sim, se extraiam
conseqüências de um bom, se não excelente princípio/norma, que cumpre ser preservado para o bem do Estado
democrático de direito”(HC 96521/SP, Relator Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, DJ 12.05.2008
p.1).
274
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
[...] dizer que o juiz está fazendo lei nova, ultrapassando assim suas funções
constitucionais, é argumento sem consistência, o julgador em obediência a
princípios de eqüidade consagrados pela própria Constituição está apenas
movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração
perfeitamente legítima. O órgão judiciário não está tirando, ex nihilo, a
regulamentação eclética que deve imperar hic et nunc. A norma do caso
concreto é construída em função de um princípio constitucional, com o
próprio material fornecido pelo legislador. Se ele pode escolher, para
aplicar o mandamento da Lei Magna, entre duas séries de disposições
legais, a que lhe pareça mais benigna, não vemos por que se lhe vede a
combinação de ambas, para assim aplicar, mais retamente a Constituição.
Se lhe está afeto escolher “o todo”, para que o réu tenha o tratamento penal
mais favorável e benigno, nada há que lhe obste selecionar parte de um todo
e parte de outro, para cumprir uma regra constitucional que deve
sobrepairar a pruridos de lógica formal. Primeiro a Constituição e depois o
formalismo jurídico, mesmo porque a própria dogmática legal obriga a essa
subordinação pelo papel preponderante do texto constitucional. A verdade é
que não estará retroagindo a lei mais benéfica, se, para evitar-se a transação
e o ecletismo, a parcela da lei posterior não for aplicada pelo juiz; e este tem
por missão precípua velar pela Constituição e tornar efetivos os postulados
fundamentais com que ela garante e proclama os direitos do homem.
Quando está em jogo a Constituição, o juiz, para cumpri-la, pode até mesmo usar
poderes pretorianos de adjuvare, supplere, corrigere, sem que esteja se
exorbitando. Por que lhe cercear, portanto, a escolha da regra aplicável quando esta
é tirada de lei anterior ao julgamento? (MARQUES, 1997, p. 256/257).
275
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Conclusão: preenchidos os requisitos desse novo art. 33, §3º, ele deve ter
incidência retroativa e vai alcançar todos os fatos passados, aplicando-se a
pena privativa de liberdade da nova, mantendo-se a pena de multa da antiga.
Com isso fica patente que o juiz não está “criando” uma terceira, ou seja, o
juiz não está “inventando” nenhum tipo de sanção: apenas vai aplicar as
partes benéficas de cada lei, aprovada pelo legislador. O que está vedado ao
juiz é ele “inventar” um novo tipo de sanção. Isso não pode. Aplicar tudo
aquilo que foi aprovado pelo legislador o juiz pode (e deve). (in “Nova Lei
de Drogas: retroatividade ou irretroatividade? (GOMES & CUNHA).
CONCLUSÃO
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Das várias discussões que a nova Lei de Drogas provocou no âmbito jurídico
brasileiro, nem todas ainda foram devidamente pacificadas pela doutrina e pela
jurisprudência. Uma destas questões ainda controvertidas consiste na possibilidade de
aplicação da causa de diminuição no crime de tráfico de drogas aos fatos ocorridos
anteriormente à vigência da Lei. O presente estudo verificou a existência de duas posições
teóricas acerca desta questão. A controvérsia se deve ao fato de que a antiga Lei de Tóxicos
previa uma pena mínima abstrata de 03 (três) anos, mas não estabelecia qualquer causa de
diminuição de pena. Já a nova Lei de Drogas aumentou a pena mínima abstratamente
cominada para 05 (cinco) anos, instituindo uma minorante (1/6 a 2/3) ao agente primário, de
bons antecedentes, que se dedica a atividades criminosas e não integra organizações
criminosas.
A primeira posição segue uma linha de entendimento tradicional, sendo
atualmente a posição dominante no Superior Tribunal de Justiça. Esta corrente nega a
incidência retroativa da causa de diminuição do § 4º em conjunto com a pena abstrata
cominada pela antiga Lei de Tóxicos, pois referida aplicação implicaria na cisão de
dispositivos legais e na combinação indevida de leis, criando uma terceira hipótese não
prevista pelo legislador ordinário. Tal situação resultaria na violação do princípio da
separação de poderes. A solução do problema se daria no âmbito do caso concreto, pela
aplicação integral de um ou outro diploma legal, verificando-se qual pena é mais benéfica ao
réu.
A segunda posição surge em contraposição ao entendimento tradicional e tem
encontrado uma adesão maior no Supremo Tribunal Federal. Esta corrente afirma que o
problema em questão não importa na combinação de combinação de leis (Lex tertia), pois não
se está criando um instituto híbrido, mas apenas fazendo prevalecer a garantia constitucional
da retroatividade da lei penal mais benéfica (Lex mitior) em atenção ao princípio da máxima
efetividade da Constituição. Sustenta-se, assim, a independência da minorante em relação ao
caput, que veio para resolver uma desproporção prévia que conferia o mesmo tratamento
penal à condutas desiguais.
De nossa parte, concordamos com os argumentos desenvolvidos pela segunda
corrente teórica. Do exposto, parece-nos claro que a ratio legis da minorante prevista no novo
diploma legal não se encontra no tratamento mais gravoso dado ao delito de tráfico de drogas
e sim na correção de uma valoração penal equivocadamente feita pela antiga Lei de Tóxicos.
Pensamos que uma interpretação constitucionalmente adequada não pode se basear
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unicamente em aspectos formais da constituição abstrata do tipo penal, mas deve levar em
conta o aspecto substancial do texto jurídico, reconstruindo o sentido histórico dos institutos.
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280
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
RESUMO
A Lei 9455/97 quando criminalizou o delito de tortura no Brasil ampliou o seu âmbito de
abrangência para além da chamada tortura-prova (praticada com a finalidade de obter
informações da vítima). Incluiu no conceito de tortura as violências físicas ou psicológicas
praticadas também com a finalidade de corrigir ou de castigas crianças e adolescentes. Tal
ampliação, no entanto, tem produzido na jurisprudência confusão entre os delitos de tortura e
maus-tratos. Os excessos na maneira de castigar/corrigir os filhos e demais dependentes do
agente, por meio de violência física (quando resultam em hematomas e escoriações) têm sido
considerados tortura por alguns julgadores e maus-tratos por outros. Produz-se, assim, um
severo enquadramento penal do agente e a banalização da tortura, que é um delito equiparado
aos crimes hediondos no Brasil.
RIASSUNTO
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confusione nella giurisprudenza tra i crimini di tortura, abuso e lesioni. L'eccesso sotto forma
di correzione dei bambini e altre persone a carico dell'agente con la violenza, se è il risultato
di lividi e abrasioni sono stati considerati un crimine di tortura da parte di alcuni giudici e
maltrattamenti o lesioni di altri. Produce fino dunque al di sopra dell'agente quadro penale e
banalizzazione della tortura, che è considerato un crimine efferato in Brasile.
Introdução:
A Lei 9455/97 quando criminalizou o delito de tortura no Brasil ampliou o seu âmbito
de abrangência para além da chamada tortura-prova. Incluiu no conceito de tortura as
violências físicas e psicológicas praticadas também com a finalidade de corrigir ou castigas
crianças e adolescentes. Tal ampliação, no entanto, tem produzido no âmbito das decisões
judiciais confusão entre os delitos de tortura e de maus-tratos. Além disso, está em desacordo
com a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, que restringe o conceito de tortura à submissão da vítima a intenso sofrimento
físico ou psicológico com a finalidade especial de obter declarações ou confissões, por parte
de agentes públicos.
Desse modo, este estudo pretende desenvolver a ideia de que a definição de tortura
possui um conteúdo histórico-normativo que não deveria ter sido desprezado pela legislação
em vigor e que deve preocupar o intérprete do direito por diversas razões. Em primeiro lugar
porque a tortura tradicional vincula-se a uma finalidade específica, que é a de obter
declarações (tortura-prova); em segundo lugar porque pressupõe a utilização de métodos e
circunstâncias especiais de imposição de sofrimento; em terceiro lugar porque a banalização
do conceito de tortura-pena permite que haja confusão entre os delitos de maus-tratos e de
tortura, especialmente quando a violência é praticada pelos detentores do poder familiar com
a finalidade de corrigir crianças e adolescentes.
O delito de tortura, como foi abordado na introdução deste artigo, possui um conteúdo
histórico-normativo que não deve ser desprezado pelo operador do Direito. A tortura
relaciona-se, normalmente, com um ritual meticuloso e previamente planejado de imposição
282
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Já, a tortura psicológica ocorre quando, em vez do emprego de violência física contra
o corpo do indivíduo, há simulação ou ameaça de agressão contra a vítima ou seus afetos. O
sofrimento mental acontece por meio de um estado de estresse e de angústia gerado no
torturado. Reconhece-se que o sofrimento físico também acarreta sofrimento mental, podendo
reduzir as funções cerebrais mediante a privação de comida, água, oxigênio, espaço físico
adequado ou, ainda, estimulando a sensibilidade cerebral do sujeito passivo por meio da sua
exposição contínua a sons, a luz, ao frio ou ao calor excessivos, somente para citar. (PETERS,
1989, p. 9)
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
No que tange à finalidade, a tortura pode ser classificada como tortura-prova e tortura-
pena. Entende-se por tortura-prova todo tipo de sofrimento físico ou psicológico infligido a
alguém com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira
pessoa, mediante o emprego de violência física ou grave ameaça. A segunda, a tortura-pena,
não se diferencia da tortura-prova quanto aos seus mecanismos de produção, mas em relação à
sua intencionalidade que, neste caso, será a de submeter à vítima a um intenso e diferenciado
sofrimento físico ou psíquico como forma de aplicação de um castigo.
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Para fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual
dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a
uma pessoa a fim de obter dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões;
de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter
cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer
motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou
sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de
funções públicas, ou por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência.
Não se considerarão como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência
unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas
decorram.
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2
Art. 2º Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo o ato pelo qual são infligidos
intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, como medida preventiva, como pena ou
qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a
anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física
ou angústia psíquica. Não estão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais
que sejam unicamente consequência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização
dos atos ou a aplicação dos métodos a que se refere este artigo. Art. 3º Serão responsáveis pelo delito de tortura:
Os empregados ou funcionários públicos que instiguem, atuando nesse caráter, ordenem sua execução ou
induzam a ela, cometam-no diretamente ou, podendo impedi-lo, não o façam. As pessoas que, por instigação dos
funcionários ou empregados públicos a que se refere a alínea “a”, ordenem sua execução, instiguem ou induzam
a ela, cometam-no diretamente ou nele sejam cúmplices (Artigos da Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir a Tortura).
286
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
3
Texto literal do Código Penal Português: Artigo 243º Tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou
desumanos: 1 - Quem, tendo por função a prevenção, perseguição, investigação ou conhecimento de infracções
criminais, contra ordem nacionais ou disciplinares, a execução de sanções da mesma natureza ou a proteção,
guarda ou vigilância de pessoa detida ou presa, a torturar ou tratar de forma cruel, degradante ou desumana para:
a) Obter dela ou de outra pessoa confissão, depoimento, declaração ou informação; b) A castigar por acto
cometido ou supostamente cometido por ela ou por outra pessoa; ou c) A intimidar ou para intimidar outra
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o ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são
intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controle do
acusado; este termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente
de sanções legais, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionadas.
pessoa; é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra
disposição legal. 2 - Na mesma pena incorre quem, por sua iniciativa ou por ordem superior, usurpar a função
referida no número anterior para praticar qualquer dos actos aí descritos. 3 - Considera-se tortura, tratamento
cruel, degradante ou desumano, o acto que consista em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço
físico ou psicológico grave ou no emprego de produtos químicos, drogas ou outros meios, naturais ou artificiais,
com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima. 4 - O
disposto no número anterior não abrange os sofrimentos inerentes à execução das sanções previstas no nº 1 ou
por ela ocasionados, nem as medidas legais privativas ou restritivas da liberdade. Artigo 244º Tortura e outros
tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos graves: 1 - Quem, nos termos e condições referidos no artigo
anterior: a) Produzir ofensa à integridade física grave; b) Empregar meios ou métodos de tortura particularmente
graves, designadamente espancamentos, eletrochoques, simulacros de execução ou substâncias alucinatórias; ou
c) Praticar habitualmente actos referidos no artigo anterior; é punido com pena de prisão de 3 a 12 anos. 2 - Se
dos factos descritos neste artigo ou no artigo anterior resultar suicídio ou morte da vítima, o agente é punido com
pena de prisão de 8 a 16 anos. Artigo 245º Omissão de denúncia: O superior hierárquico que, tendo
conhecimento da prática, por subordinado, de facto descrito nos artigos 243º ou 244º, não fizer a denúncia no
prazo máximo de 3 dias após o conhecimento, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos.
288
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Observa-se, assim, que o Estatuto de Roma ao definir a tortura enquanto crime contra
a humanidade, seguiu, em parte, a tradição dos tratados e das convenções internacionais, no
sentido de vincular aos agentes estatais a possibilidade de sua autoria. Estendeu, também, o
lugar de sujeito ativo aos membros de organizações subversivas ou terroristas que mantenham
as vítimas em seu poder, com restrição da liberdade de ir e vir. Salienta-se, no entanto, que o
elemento objetivo configurador do tipo passou a ser a dor ou os agudos sofrimentos físicos ou
mentais, sem a exigência de dolo específico, no sentido da obtenção de declaração ou
confissão dos torturados.
A opção da lei brasileira por criminalizar sob a mesma nomenclatura tanto a tortura-
prova, destinada à obtenção de informações, delações ou confissões, como a tortura-pena,
método cruel de imposição de castigo para a correção, gerou um fenômeno inquietante na
jurisprudência. São raros os julgados a respeito do delito de tortura-prova praticado por
policiais contra cidadãos, o que indica que cifra obscura desse tipo de crime é elevada. Por
outro lado, são volumosos os casos de condenação por tortura praticada por pais ou
responsáveis contra crianças e adolescentes.
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só foi introduzida na legislação brasileira com o Código de Menores, de 1927, que em seus
artigos 137 a 140, punia os abusos dos meios corretivos praticados “contra os menores de 18
anos, mesmo quando constituíssem simples perigo à vida ou saúde do sujeito passivo”. O
delito era qualificado quando os castigos causassem lesão corporal grave ou comprometessem
“gravemente o desenvolvimento intelectual do menor”, e se o delinquente pudesse prever esse
resultado” (HUNGRIA, 1958, p 448).
Mesmo na década de 40 do século XX, época em que o Código Penal foi publicado no
Brasil, já se sabia que a violência como meio de reprovação não era adequada do ponto de
vista pedagógico porque deprime em vez de corrigir, suscita o ódio em vez da confiança,
“fomenta a hipocrisia, atrofia a dignidade, paralisa a vontade”. No entanto, a confusão que se
faz entre o antigo injusto penal de maus tratos e o recente injusto penal da tortura-pena não se
justifica juridicamente. Observa-se que é qualificado o delito de maus tratos se do fato resulta
lesão corporal de natureza grave ou morte, desde que estes eventos qualitativos sejam
preterdolosos, uma vez que se forem dolosos passarão a ser definidos como lesão corporal
grave ou homicídio doloso, respectivamente. Nelson Hungria advertia que o delito de maus-
tratos é crime de perigo, cujo dolo específico é a “vontade consciente de maltratar o sujeito
passivo, de modo a expor-lhe a perigo a vida ou saúde”. Não há necessidade de subordinação
dos maus-tratos ao critério da habitualidade, embora se reconheça que em alguns casos sem a
habitualidade não há como haver causação de perigo. (HUNGRIA, 1958, p. 452-453).
Por sua vez, o delito de tortura-pena, previsto no artigo 1º, II, da Lei 9455/97, está
assim definido: “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar
castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”. A pena prevista é de dois a oito anos de
reclusão. Novamente é importante destacar que caberá ao intérprete estabelecer a amplitude
290
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
APELAÇÃO CRIME.
CRIME DE TORTURA CONTRA UMA CRIANÇA DE TRÊS ANOS DE
IDADE. MATERIALIDADE E AUTORIA PROVADAS.
DESCLASSIFICAÇÃO PARA OS DELITOS DE MAUS TRATOS E LESÕES
CORPORAIS. IMPOSSIBILIDADE. Impossível a desclassificação para qualquer
outro delito, quando a prova carreada aos autos, comprova, modo categórico, ter sido
a vítima, criança de três anos de idade, diariamente submetida a agressões cruéis, sem
motivo nenhum que as justificasse, gerando intenso sofrimento físico e mental. Resta
caracterizado, portanto, o crime de tortura.
QUALIFICADORA. A qualificadora prevista no § 3º do art. 1º da Lei 9.455/97,
veio devidamente comprovada pelos laudos de exame de corpo de delito que
atestaram ser as lesões de natureza grave. Por outro lado, as contradições alegadas,
quanto aos referidos laudos, não se verificam, pois aquele que silenciou quanto ao
quesito – perigo de vida –, foi referente ao exame de conjunção carnal e ato libidinoso
diverso da conjunção carnal.
PENA. REDIMENSIONAMENTO. Ocorrência de bis in idem na análise dos
vetores judiciais do artigo 59 do Código Penal. Não pode ser atribuída às
circunstâncias, consequência do crime, assim como o comportamento da vítima, a
idade da vítima, pois esta é causa da majoração de pena conforme se verifica do artigo
1º, § 4º, inciso II, da Lei nº 94.55/97. Pena reduzida.
DECISÃO MAJORITÁRIA NO SENTIDO DE DAR PROVIMENTO, EM PARTE,
AOS APELOS DEFENSIVOS, REDUZINDO OS APENAMENTOS, VENCIDO O
RELATOR, QUE NEGOU PROVIMENTO. (JAHP nº 70010433753, 2004)
291
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Entende-se que o castigo físico imposto pelos pais aos filhos menores com moderação
e finalidade pedagógica não configura o delito de maus-tratos. Diferente será a situação de um
pai que “desfere um soco no filho menor ou produz nele lesões corporais pelo uso de ferro em
brasa” porque nesse caso estaria claro o exercício abusivo e inadequado do direito de corrigir.
(PIERANGELI, 2005, p. 179). No mesmo sentido segue precedente do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo:
Distinção com tortura – TJSP: “Se o pai cruel impunha ao filho atroz sofrimento por
não aceitar o comportamento da criança, que costumeiramente fazia necessidades
fisiológicas nas próprias vestes, o comportamento anormal não caracterizou,
certamente, o crime de tortura que é praticado por puro sadismo imotivado e sim o de
maus tratos que diz respeito ao propósito de punir para corrigir” (RT 699/308 e
RJTJESP 148/280).
‘
“TORTURA - Agressão sistemática a menor sob guarda - laudo pericial -configuração
do delito do artigo 1, II da lei 9455/97 e não maus tratos. 1. Sinais de agressão física
disseminados por todo o corpo da criança, com informações de sessões de ameaça de
afogamento, configuram tortura e não maus tratos. A intenção de causar sofrimento
esta comprovada pela sistemática e indiscriminada agressão somada a outras práticas
cruéis, muito além da pretensa correção, que não teria qualquer efeito em um bebê
com um ano e oito meses. 2. Tortura pode ser física ou mental; esta não deixa
vestígios materiais, prescindindo o tipo, de laudo pericial, se o relatório médico,
somado aos testemunhos, é substancial. 3. Negado provimento. (8 fls.) (Apelação
Crime nº 70001485325, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Desª. Elba Aparecida Nicolli Bastos, julgado em 19/10/00).
292
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Vive-se num momento em que o clamor por punições cada vez mais severas é
estimulado pelo aparato midiático, fundado na crença de que o sistema de justiça criminal tem
o poder e a função de disciplinar as pessoas, alterando padrões de comportamento culturais.
No entanto, é preciso compreender a dinâmica da violência doméstica contra crianças e
adolescentes na sua complexidade. É inegável que a violência acarreta inúmeras
consequências para o desenvolvimento da pessoa. Uma pesquisa realizada pelo Centro
Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, entre os anos de 2002 e
2003 com estudantes do curso diurno das 7ª e 8ª séries do ensino fundamental e dos 1º e 2º
anos do ensino médio de escolas públicas e particulares do município de São Gonçalo, na região
metropolitana do Rio de Janeiro, que contou com 309.216 crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos
chegou a conclusões muito reveladoras:
Os resultados deixam clara a elevada frequência com que a violência ocorre no âmbito da
família e das pessoas próximas aos adolescentes. Quase um quinto desses jovens sofre
agressões severas, que envolvem chutes, mordidas, espancamento e até ameaças com arma de
fogo ou faca. Quanto à violência psicológica, cerca de metade dos adolescentes convive com
ela direta ou indiretamente. Os adultos os humilham, não os elogiam quando agem
corretamente e não os estimulam para os desafios que precisam enfrentar. Também quase um
quinto desses adolescentes já passou por experiências sexuais traumáticas ou perturbadoras; já
testemunhou violência sexual sofrida por algum membro da família; já teve medo de sofrer
violência sexual quando um dos pais estava sob efeito de álcool ou drogas; e já se envolveu em
relação sexual com os pais.
Ficou constatado que adolescentes que sofreram maus-tratos familiares sofrem mais episódios
de violência na escola, vivenciam mais agressões na comunidade e transgridem mais as normas
sociais, fechando assim um círculo de violência. Eles também têm menos apoio social, menor
capacidade de resiliência e uma baixíssima autoestima. A violência psicológica, por sua vez,
mostrou-se mais presente entre aqueles com menos resiliência – capacidade de seguir em frente
superando as dificuldades impostas pela vida, essencial para o desenvolvimento pessoal e para
uma boa qualidade de vida do indivíduo consigo mesmo e com a sociedade. Percebe-se, assim,
como essa forma de violência pouco valorizada pela sociedade é capaz de fragilizar a posição
do adolescente e dos futuros adultos no mundo (AZEVEDO, 2005, p. 18).
293
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Considerações Finais:
Entende-se que a denominação tortura deveria ter sido destinada especialmente para os
casos de tortura-prova, seguindo-se a tradição de outros países e dos tratados internacionais
do quais o Brasil é signatário. De qualquer modo, os tratos desumanos ou degradantes,
tipificados como tortura-pena no Brasil, não podem ser confundidos com o delito de maus-
tratos de crianças e adolescentes por inúmeras razões. Para que se configure a tortura-pena
para além de observar as condições da vítima (idade e gravidade das lesões) é imprescindível
que se investigue a intencionalidade específica do agente de causar um intenso sofrimento
físico ou psíquico na vítima. Nesse aspecto, critérios como a frequência das agressões e os
métodos empregados são muito importantes.
294
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Bibliografia:
295
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
BIOCCA, Ettore. Strategia del Terrore: il modello brasiliano. Bari: De Donato Editore
S.p.A., 1974.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. Vol. 2. 12. Ed. São
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COIMBRA, Mário. Tratamento do Injusto Penal da Tortura. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002.
CONDE, Francisco Muñoz. Derecho Penal. Parte Especial. 15.ed. Valencia: Tirant lo blanch,
2004.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 10. ed. Tradução de
Lígia Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1993.
PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte especial (arts. 121 a
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Ibérica (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Revan, 2006.
WINNICOTT, D. W. Tudo Começa em Casa. Tradução de Paulo Sandler. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
296
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Discente do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas com ênfase em Direitos da Personalidade do Centro
Universitário de Maringá – CESUMAR. Bolsista da CAPES pelo Projeto PROSUP. Especializanda em
Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. Graduada em Direito pela Universidade
Estadual de Maringá (2008).
Discente do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas com ênfase em Direitos da Personalidade do
Centro Universitário de Maringá – CESUMAR. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Maringá –
CESUMAR.
Orientados por Valéria Silva Galdino Cardin, professora da Universidade Estadual de Maringá e do Centro
Universitário de Maringá-PR; mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo; pós-doutoranda em Direito pela Universidade de Lisboa. Advogada em Maringá-PR.
Endereço eletrônico: valeria@galdino.adv.
297
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
ABSTRACT: This paper analyzes the female gender question, related to women, as it is to
men, for, later, frame it in the concept of gender violence and, finally, in the family violence.
Beyond, it is about the paternity relation, responsible with the family violence, as well as the
reflections of the Maria da Penha Law in exercising this institute. It approaches the
definition and characterization of theoretical and practical work purely symbolic of the
Criminal Law and its consequences, especially under the Law11.340/2006. Starting with an
analysis of the responsible structure from the mere criminal symbolism, it is added the
media influence and, consequently, the popular pressure. The legislative opportunism is
highlighted, resulting on the immediatists measures adoption, which are against the Criminal
Law fundamental basis, as well as the Law Democratic State, which aims the personal
promotion of the legislator. The aspects that make Maria da Penha Law ineffective are
presented in the fight against the domestic and family violence and the reflection of this
ineffectiveness in family structuring, as well as some expectations for solving the problem.
KEY-WORDS: Gender; Criminal Law; Symbolic; Media; Intrafamily Violence.
1 INTRODUÇÃO
298
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
1
COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Rio de Janeiro: Eidouro, 2004. p. 56 – 58.
299
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
2
SOUZA, Eros de; BALDWIN, Jhon R.; ROSA, Francisco Heitor da. A Construção Social dos Papéis
Sexuais Femininos. Psicol. Reflex. Crit. v. 13 n.3, Porto Alegre, 2000. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-79722000000300016&script=sci_arttext>. Acesso em: 16 mar
2013.
300
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Gênero aponta para a noção de que, [...] ao longo da vida, através das mais
diversas instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e
mulheres, num processo que não é linear, progressivo ou harmônico e que
também nunca está finalizado ou completo. Inscreve-se neste pressuposto,
uma articulação intrínseca entre gênero e educação, uma vez que esta
posição teórica amplia a noção de educativo para além dos processos
familiares e/ou escolares, ao enfatizar que educar engloba um complexo de
forças e de processos (que inclui, na contemporaneidade, instâncias como
os meios de comunicação de massa, os brinquedos, a literatura, o cinema, a
música) no interior dos quais indivíduos são transformados em – e
aprendem a se reconhecer como – homens e mulheres, no âmbito das
sociedades e grupos a que pertencem [...] Por último, o conceito de gênero
propõe, como já destaquei, um afastamento de analises que repousam sobre
uma ideia reduzida de papeis/funções de mulher e de homem, para
aproximar-nos de uma abordagem muito mais ampla que considera que as
instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis, as
doutrinas e as políticas de uma sociedade são constituídas e atravessadas
por representações e pressupostos de feminino e de masculino ao mesmo
tempo em que se estão centralmente implicadas com a sua produção,
4
manutenção ou ressignificação.
Maria Amélia de Almeida Teles e Mônica de Melo defendem que o gênero é utilizado
para:
3
MEYER, Dagmar Estermann. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira Lopes; FELIPE,
Jane; GOLLNER, Silvana Vilodre. Corpo, gênero e sexualidade. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p.16.
4
MEYER, Dagmar Estermann. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira Lopes; FELIPE,
Jane; GOLLNER, Silvana Vilodre. Corpo, gênero e sexualidade. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p.16.
5
TELES; Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher. São Paulo:
Brasiliense, 2003. p.16.
301
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Verifica-se que não são as características físicas que definem os papéis sociais de
gênero, mas sim, uma construção social do masculino e do feminino. Esta construção tomou
repercussão com a afirmação de Simone de Beauvoir dizendo que ninguém nasce mulher,
torna-se mulher6.
Uma vez edificada a ideia da construção social do gênero, impõe-se estabelecer a
perspectiva sob a qual configura a violência de gênero.
Na contemporaneidade brasileira, ainda subsiste uma forte concepção machista no
que tange às questões de relações de gênero, tanto que o gênero feminino é marcado por
subordinação da mulher ao marido e a dedicação à prole. Por exemplo, se a mulher
transgredir quaisquer destas regras, seguindo a concepção machista, o marido pode puni-la,
para que ela aprenda o seu papel social. Neste caso estaríamos diante de uma violência de
gênero propriamente dita.
Outrossim, quando o cônjuge ou companheiro mata a mulher porque não admite
uma separação, ou quando agride física e psicologicamente a mulher para mostrar quem é
que manda, numa ideia de posse, de igual modo configura a violência de gênero.
Há que se observar ainda que a Lei 11.340/06 também é aplicável aos casais
homoafetivos, nos casos em que a mulher sofre violência de gênero por outra mulher, visto
que o sujeito ativo da conduta descrita no artigo 5º da Lei 11.340/06 é indeterminado,
devendo somente cumprir os demais requisitos para configurar a violência de gênero
descritas nos incisos do referido artigo.
Ante o exposto, verifica-se que a lei é simbólica, pois o aumento na rigidez do
sistema penal, não combate diretamente o problema social, que somente será enfrentado por
meio de políticas publicas de conscientização e reeducação quanto aos papéis sociais do
gênero, retirando a ideia de posse que o cônjuge ou companheiro tem sobre a mulher.
3 DO SIMBOLISMO PENAL
302
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
É lógico que a pena, ainda que cumpra em relação aos fatos uma função
preventiva especial, sempre cumprirá também uma função simbólica. No
entanto, quando só cumpre esta última, será irracional e antijurídica,
porque se vale de um homem como instrumento para a sua simbolização, o
usa como um meio e não como um fim em si, “coisifica” um homem, ou,
por outras palavras, desconhece-lhe abertamente o caráter de pessoa, com o
que viola o princípio fundamental em que se assentam os Direitos
Humanos.7
7
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, volume I:
parte geral. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 96.
8
ANJOS, Fernando Vernice dos. Direito penal simbólico e finalidade da pena. Boletim do IBCCRIM, n.
171, fev. 2007. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/novo/boletim_artigo/3369-Direito-penal-
simbolico-e-sinalidade-da-pena>. Acesso em: 24 fev 2013.
303
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
QUEIROZ, Paulo. Sobre a função do juiz criminal na vigência de um direito penal simbólico. Boletim do
9
304
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
delinqüentes perigosos.”10
Observa-se ainda que a estruturação do Direito Penal simbólico não se coaduna
com nosso modelo constitucional e social, bem como, as consequentes mudanças
legislativas não alcançam os objetivos desejados. Certamente, o legislador tem
conhecimento de que a mudança da legislação quando não verifica os princípios
fundamentais penais além da justa finalidade da pena, mostra-se como um mero símbolo de
proteção do Estado sem qualquer eficácia real. Todavia, a luta pela manutenção do poder
supera a necessidade da construção de uma legislação eficaz.
Para se agregar credibilidade às funções estatais, vincula-se à pena um efeito
simbólico, evitando assim que haja uma quebra da sociedade com relação às normas,
mostrando-se útil a sua aplicação. E nessa medida, verifica-se a inclusão legítima do caráter
simbólico nas finalidades da pena. O que não se pode admitir é justamente que o caráter da
pena seja exclusivamente simbólico, isto é, que tenha por finalidade apenas utopicamente
tranquilizar a população, tutelando cada vez mais os seus anseios morais, porém, não se
preocupando com o atendimento aos princípios penais fundamentais, bem como, os
verdadeiros objetivos criminológicos da pena – retribuição, prevenção e ressocialização.
Com efeito, do mau uso do símbolo penal, surge uma série de equívocos e
incongruências legislativas, que somente agravam a situação de pânico, imprimindo na
população a necessidade de enrijecimento do sistema, sem se preocupar em solucionar
verdadeiramente o problema da criminalidade.
Nesse contexto, merece destaque a questão do oportunismo legislativo. Certo é que
a exploração do medo pela mídia não é gratuita, de modo que há um conjunto de interesses –
especialmente político – na propagação da violência. Ora, tem-se visto os nossos
legisladores submeter-se frequentemente ao clamor público, em razão, sobretudo, da
possibilidade de manutenção do poder.
Ocorre, então, o seguinte raciocínio oportunista: para a manutenção do legislador
no poder ele deve atender aos anseios da população; faz-se mais cômodo criar anseios a
serem atendidos, do que atender às reais necessidades da sociedade; assim, utiliza-se de
meios para criar vontades na população e, depois daquelas arraigadas na opinião desta,
criam-se leis que se adequam a estas pretensões, sem, no entanto, surtir efeito na resolução
dos verdadeiros problemas sociais. Assim, por fim, o oportunismo legislativo desvirtua o
fim último da lei – positivar soluções jurídicas aos problemas práticos –, fazendo do ato de
10
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Trad. de Lígia M. Pondré Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 221.
305
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
legislar um meio de levar a erro a opinião pública para que aqueles legisladores, tidos como
autores da norma de salvação perpetuem-se no poder.
Assim, o Direito Penal meramente simbólico deturpa os objetivos e ideais da tutela
penal, na medida em que não observa os limites estabelecidos pelo princípio da intervenção
mínima, seguindo, assim, por caminho oposto ao da resolução de conflitos, camuflando os
verdadeiros problemas sociais que tanto afligem a sociedade.
Diante disso, mostra-se necessário que haja uma mudança de mentalidade da
própria população a fim de que os abusos legislativos não mais ocorram, evitando que a
atuação meramente simbólica do Direito Penal aufira força e legitimidade.
11
GUARESCHI, Pedrinho A. A realidade da comunicação. Visão geral do fenômeno. In: GUARESCHI,
Pedrinho A. (Coord.). Comunicação e controle social. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 15.
12
SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo,
jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 376.
306
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Pois bem, o grande problema é que a influência da mídia não se limita à formação
da indignação moral da sociedade contra aqueles que cometeram os delitos; causa, na
verdade, um significativo clamor público, a exemplo do número surpreendente de pessoas
que marcam presença nas portas das delegacias a fim de recepcionar aqueles criminosos
“famosos” na mídia. Trata-se, pois, de problema muito mais complexo, eis que passa da
esfera da população para a esfera legislativa, que é o objeto de estudo deste trabalho
científico.
Sabe-se que, o Poder Legislativo não caminha sozinho, eis que, junto com ele está a
mídia, que se contrapõe, por vezes às decisões políticas, econômicas e até mesmo
legislativas. Ora, a mídia tem poder para isso. Note-se que, dentre os efeitos da globalização,
especial atenção deve ser dada aos meios de comunicação em massa, que hoje atuam em
tempo real, com uma instantaneidade surpreendente, com tamanho poder e influência, que
acabou se transformando em uma relação de comércio, submetida às leis da oferta e da
procura, abandonando gradativamente seus critérios éticos de existência.
Infelizmente, o Poder Público integra o rol de interessados na divulgação da
violência, já que usa essa exposição para justificar a intervenção cada vez mais rígida do
Estado, havendo, portanto, o interesse de certos políticos em “desenvolver no público uma
psicose de insegurança própria a favorecer o retorno a uma repressão sem limite.”14
Ainda, como ressalta Eugenio Raúl Zaffaroni:
13
KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Rio de Janeiro: Luan, 1991. p. 198.
14
LINS E SILVA, Evandro. De Beccaria a Filippo Gramática. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello (org.).
Sistema penal para o terceiro milênio – atos do colóquio Marc Ancel. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 36.
15
ZAFFARONI, Raul Eugenio. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal.
Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 131.
307
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[...] isso não é gratuito nem casual, pois o temor, além de aparecer como
conseqüência social do delito, converte-se em um precipitador coletivo
facilmente manipulável e em um importante fator econômico que gera
gastos de prevenção e segurança em pessoas, empresas, instituições e no
próprio Estado, que também é atingido pelos efeitos desse medo.18
16
SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo,
jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 383.
17
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 86.
18
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 86.
19
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 94.
308
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
20
Lei 11.340/2006 Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida,
independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
309
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
legislação nesse sentido foi bastante correta, eis que, abarcou no âmbito de proteção contra a
violência intrafamiliar também as famílias homoafetivas.
Nessa esteira, nos ensina Maria Berenice Dias que:
21
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à
violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 44.
310
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Ademais, há que se ressaltar que a aplicação abusiva das medidas protetivas podem
gerar efeito contrário ao esperado, eis que, o convívio familiar é fundamental para a
formação e desenvolvimento dos filhos, o que demonstra a necessidade de avaliação sobre
quais seriam as medidas mais adequadas de proteção à violência, a fim de que a família não
sofra uma desestruturação.
A violência de gênero atinge não somente a mulher, mas toda a família, eis que,
“pensando na família como um grupo de convivência, é impossível isolar qualquer um de
seus integrantes do impacto que a violência e/ou conflitos exercem sobre o conjunto.”23
É no âmbito familiar que a pessoa desenvolve suas potencialidades e sua
personalidade. Assim, tudo aquilo que os pais realizam se projeta na estruturação da
personalidade dos filhos.
Verifica-se que “o pai e a mãe formam para o filho uma unidade estrutural” 24, ou
seja, o casal tem papel fundamental para a prole e, excluir o pai da convivência familiar
como forma de solução do problema da violência de gênero, sem realizar uma
conscientização do mesmo de que o respeito mútuo deve imperar na família e sem
concretizar medidas de prevenção que evitem a reincidência, traz danos à estruturação da
22
SOUZA, Sérgio Ricardo. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher. Curitiba: Juruá,
2007. p. 55-56.
23
MUSZKAT, Malvina E; OLIVEIRA, Maria Coleta; UNBEHAUM, Sandra; MUSZAKAT, Susana.
Mediação familiar transdisciplinar: uma metodologia de trabalho em situações de conflito de gênero.
São Paulo: Summus, 2008. p. 38.
24
JURISCH, Martin. Sociologia da paternidade. Petrópolis: Vozes, 1970. p. 110.
311
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
família e pode levar, inclusive, os filhos a constituírem suas famílias baseando-se naquilo
que aprenderam durante a vida, a violência.
Acerca do tema, José Osmir Fiorelli sustenta que:
À evidência, nos anos que se passaram desde a criação da Lei Maria da Penha, o
número de casos de violência doméstica não foi reduzido, o que mostra que a atuação da
legislação juntamente com a ação da força policial não tem sido suficiente.
Entre alguns dispositivos que apresentam problemas, verifica-se que o artigo 4126
da Lei 11.340/2006 retirou da competência do Juizado Especial o tratamento dos casos de
violência intrafamiliar, assim, a possibilidade de conciliação da família perante uma
autoridade competente foi afastada, sendo dificultada, portanto, a conciliação do casal e,
inclusive, do exercício da paternidade responsável.
Ora, devido o princípio da paternidade responsável, a legislação pátria atribui aos
pais a missão de cuidar dos seus filhos; e isso significa zelar pelo desenvolvimento não só
físico, mas também psíquico e moral. Assim, a paternidade responsável se traduz na
formação da prole baseada na formação digna do ser humano, o que pode ser dificultado
pela forma com que alguns dispositivos tratam da proteção da violência intrafamiliar no
contexto da Lei Maria da Penha.
Em um segundo momento, vale mencionar que o déficit na criação de uma Justiça
especializada para tratar de tais casos é significativo, o que transporta a análise desses casos
para a Justiça Comum – tanto no âmbito cível quanto no criminal. As Varas Criminais estão
abarrotadas de processos envolvendo todo o tipo de delito de diferentes níveis de gravidade,
assim, torna-se impossível dar aos casos de violência de gênero atenção adequada. Observa-
se o legislador ferir completamente a perspectiva de ultima ratio do Direito Penal, além de
25
FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Tagazzoni. Psicologia Jurídica. São Paulo: Atlas,
2009. p. 275.
26
Lei 11.340/2006 Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.
312
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
parecer não se importar em criar ou melhorar os mecanismos que efetivamente tem o condão
de solucionar o problema da violência de gênero.
Além disso, como fiscalizar, por exemplo, se o agressor está cumprindo com a
determinação de se afastar do lar ou mesmo de não se aproximar da vítima, num país em que
faltam agentes públicos até nas atividades de policiamento mais corriqueiras? Nota-se com
isso, que o juiz criminal está totalmente alheio à realidade daquela família, por esse motivo é
que tais medidas, bem como o tratamento penal mais severo não nos parece uma solução
efetiva. Com efeito, o rigorismo penal aplicado aos casos de violência intrafamiliar deseja
teoricamente transmitir segurança jurídica, porém na prática, o que se tem é precisamente o
oposto.
Há que se considerar, ainda, outro grande problema que a Lei Maria da Penha se
mostrou indiferente e que diz respeito à fundamental necessidade de convivência familiar da
prole com os genitores, a fim de que se tenha adequado desenvolvimento psíquico e moral.
Nesse sentido, nos ensina Maria Lúcia Karam que,
27
KARAM, Maria Lúcia. Violência de gênero: o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal. Boletim do
IBCCRIM, n. 168, nov. 2006. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/novo/boletim_artigo/3328-
Violencia-de-genero:-o-paradoxal-entusiasmo-pelo-rigor-penal>. Acesso em: 4 mar 2013.
28
Código Penal Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam
o crime:
313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
houve o aumento da pena máxima da lesão corporal nos casos de violência doméstica contra
a mulher.
Embora as mudanças realizadas tenham tornado a legislação mais rigorisa,
acarretando, assim, a impressão – falsa – de maior segurança, a violência de gênero no
âmbito familiar continua a aumentar, o que demonstra a falência da pena de prisão para a
efetiva solução da criminalidade.
Mais uma vez a atuação do legislador penal foi simbólica, criando um diploma
legal inócuo no sentido de atingir o seu real objetivo que seria reduzir substancialmente os
casos de violência doméstica.
A severidade, sobretudo na seara penal, no tratamento da violência doméstica
familiar definitivamente não resolve o problema, sendo imprescindível a atuação do Estado
por meio de políticas públicas de conscientização. Além disso, o rigorismo extremo na
criação e aplicação das medidas protetivas pode, inclusive, trazer maiores danos à família,
como a sua desestruturação pelo afastamento precipitado do genitor do convívio familiar, o
que certamente viola os direitos fundamentais do ser humano e contraria os ideais do Estado
Democrático de Direito.
[...]
f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou
com violência contra a mulher na forma da lei específica.
314
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
descrédito, na medida em que, sendo o Direito Penal a ultima ratio na solução dos
problemas, quando tais problemas não são efetivamente solucionados, o que resta é o
desespero e o caos.
Dessa forma, a adoção de medidas que garantam não somente a cessação da atitude
violenta contra a mulher, mas a prevenção desse comportamento é o que deve imperar. E
isso deve ocorrer certamente afastado do Direito Penal, de forma que o mesmo tenha
mínima atuação. Certamente, o amparo da vítima de violência familiar baseada no gênero
encontra justificativa na proteção dos direitos fundamentais do ser humano, na necessidade
de manutenção da integridade física e psicológica e na própria dignidade da pessoa humana,
não sendo admissível, portanto, a mera atuação simbólica da legislação.
Ressalte-se que, o desígnio do Direito Penal é tutelar aqueles bens jurídicos
essenciais à sociedade, atuando quando outros ramos do Direito já não conseguiram proteger
tais bens. De tal modo, verifica-se que os conflitos advindos da violência de gênero, devem
ser socorridos, primeiramente, no âmbito do Direito de Família e do Direito Civil, além de
outras áreas que estão fora do meio jurídico, como a assistência social, a psicologia, a
psiquiatria, entre outros. Além disso, é preciso estar atento à necessidade de reconhecimento
do valor da mulher na sociedade, a fim de que seja retirada de sua figura a vulnerabilidade e
o rótulo de vítima.
Resta claro, por conseguinte que, a existência de políticas públicas no sentido de
conscientização da igualdade e dignidade do ser humano, independentemente do gênero,
além da criação de mecanismos longe da esfera penal e que constituam na população o
respeito pelo próximo, é o que merece guarida, eis que, tal medida tem potencial para
exterminar verdadeiramente o problema da violência de gênero na esfera familiar.
7 CONCLUSÕES
315
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
A partir disso, foi possível observar que o simbolismo agrega ao Direito Penal
características que não lhe são originalmente afetas, deformando, portanto, as funções
precípuas desse ramo do Direito, fazendo com que a norma penal perca legitimidade.
E nesse sentido é que se tornou importante tratar das questões que envolvem os
efeitos simbólicos do Direito Penal, na medida em que estando esse ramo do Direito
trilhando caminho oposto ao dos referenciais legitimadores do Direito Penal, estar-se-ia
diante de uma norma incapaz de resolver o problema da criminalidade, especialmente, no
âmbito familiar. Assim, analisando as mudanças trazidas pela Lei 11.340/2006, como o
afastamento da competência do Juizado Especial, medidas protetivas abusivas e
precipitadas, aumento da pena máxima do crime de lesão, aumento do rol das circunstâncias
agravantes do crime, entre outras medidas, o que se tem é um instrumento – norma penal –
que soluciona apenas superficialmente o problema da criminalidade. Assim, a Lei Maria da
Penha, além de não diminuir a violência, gera reflexos negativos na estruturação da família,
reforçando o não exercício da paternidade responsável.
Saliente-se que embora contenha a pena um caráter simbólico, quando se reveste a
mesma somente desse simbolismo, sem obedecer aos princípios fundamentais do Direito
Penal, bem como, sem atender as suas justas finalidades, submetemo-nos a um direito
ilegítimo e ineficaz, que ao contrário do que imagina a população em geral, não é capaz
sequer de amenizar os problemas que dizem respeito à criminalidade.
Além disso, é preciso compreender que a violência intrafamiliar é antes de tudo um
problema social e sendo assim, a legislação que trata desse assunto deveria ter um caráter
preventivo e afastado do âmbito penal.
Ora, as medidas extrapenais de combate à violência de gênero mostram-se sempre
mais efetivas, menos danosas para a família e menos estigmatizantes para o agressor. A
criação de políticas públicas de conscientização e que tenham como objetivo incutir valores
morais, como o respeito ao próximo, por exemplo, tem maior potencial para resolver o
problema da violência. Isso porque, nem sempre, o que as mulheres vítimas da violência
objetivam é a separação e desestruturação da família, mas sim a extinção do comportamento
agressor do cônjuge, o que definitivamente não ocorre com a pena de prisão.
Certamente, os mecanismos de prevenção, mediação e conciliação, realizados por
profissionais devidamente preparados não somente da área jurídica, mas também da
psicologia, psiquiatria e assistência social podem levar à resolução do problema. É preciso
lembrar que, a atuação meramente simbólica do Direito Penal, não é evidentemente legítima,
316
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na medida em que, o combate à violência doméstica contra a mulher depende, antes de tudo,
de uma drástica mudança de pensamento da sociedade, que deve voltar os olhos não para a
tutela penal, mas para a educação, a conscientização e a igualdade, elementos fundamentais
para uma convivência familiar digna e justa, em que, o que impera é o adequado
desenvolvimento físico e psíquico de toda a família.
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318
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
RESUMO
O presente artigo científico tem por objeto uma análise do princípio da eficiência e a
cooperação jurídica internacional em matéria penal. Para tanto, faz-se necessária a análise do
conceito da referida cooperação, de sua natureza jurídica, dos níveis de assistência, das
dificuldades encontradas neste processo, além da eficiência e seus fatores na cooperação
jurídica penal internacional. Contatou-se que os Estados não podem fechar-se à cooperação,
em matéria penal, a fim de unir forças no combate à criminalidade, crescente em razão da
globalização, agindo com eficiência e dinamismo na prestação da assistência mútua.
ABSTRACT
The present article has as its object an analyses of the principle of efficiency and international
legal cooperation in criminal matters. Therefore, it is necessary to analyze the concept of that
cooperation, its legal nature, the levels of assistance, the difficulties encountered in this
process, besides the efficiency and its factors in international criminal legal cooperation. It
was found that countries cannot hamper cooperation in criminal matters, in order to join
forces in fighting crime, increasing as a result of globalization, acting with efficiency and
dynamism in the provision of mutual assistance.
INTRODUÇÃO
É visível que o atual panorama mundial vive uma crescente circulação de pessoas,
bens e serviços. Destarte, os Estados se deparam com situações que reclamam uma efetiva
cooperação para o exercício da jurisdição, especialmente em matéria penal, em razão do
nascimento de uma nova criminalidade, fruto da globalização e da quebra das fronteiras
mundiais, que deixaram os Estados vulneráveis às ações criminosas, diante da facilidade do
acesso entre as nações.
1
Advogada e Professora da Faculdade de Tecnologia do Piauí (FATEPI) e do Instituto Camillo Filho (ICF).
319
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um crime internacional (que viola bens jurídicos universais) ou transnacional (que viola o
bem jurídico de dois ou mais países).
Cervini (2000, p. 48) destaca que há três tipos de auxílio recíproco: o policial, o
judicial e o legislativo. Acrescenta que modernamente se reconhecem duas formas de
assistência ou cooperação internacional em matéria penal: a administrativa, que é
fundamentalmente policial, e as variadas formas de cooperação judicial penal internacional.
O referido autor define cooperação judicial penal internacional como
Bechara, citando Raúl Cervini, elenca três teorias para explicar a natureza jurídica da
cooperação jurídica internacional, levando em consideração a atividade desenvolvida no
Estado requerido:
321
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322
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que são alcançados pela cooperação, ficando restrito, normalmente, aos processos de
extradição.
Essa divisão em níveis de assistência na cooperação penal internacional reflete o
princípio da gradualidade nos requisitos, pois as medidas de assistência abrangem várias
formas, como as já relatadas acima.
Assim, as medidas de primeiro nível permitem um fácil e eficaz intercâmbio de ações
entre os Estados, em razão de sua natureza (vinculada à fase preparatória e instrutória dos
processos) e conteúdo (basicamente procedimental). Já as medidas de assistência penal
capazes de afrontar direitos patrimoniais dos concernidos não são frequentes e tramitam com
maior cautela e observância das garantias. Ademais, quando se trata de procedimento de
extradição, a prudência e o respeito a estas garantias e princípios atingem o maior nível da
cooperação penal internacional.
2
Após a Emenda Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004, compete ao Superior Tribunal de Justiça a
homologação de sentenças estrangeiras e concessão de exequatur às cartas rogatórias, conforme disposto no art.
105, I, i, da Constituição Federal de 1988.
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Conforme dispõe Bechara (2011, p. 155), “em regra, o Estado requerente deve estar
restrito à finalidade que justificou a solicitação, sob pena de invalidação, salvo a hipótese em
que o Estado requerente providenciar ou for autorizado pelo Estado requerido a dar destinação
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Portanto, vê-se que a dupla incriminação não é uma prática comum, ela é exigida
apenas quanto à cooperação penal internacional, nos pedidos que acarretem ofensa à liberdade
individual.
Sabe-se que acordos e tratados não impedem a assistência entre os países, mas
facilitam e simplificam o procedimento entre os Estados, tornando a cooperação mais ágil e
eficiente.
Da análise das jurisprudências do Supremo Tribunal Federal brasileiro, verifica-se que
se confirma uma maior eficiência no auxílio quando há acordo bilateral entre os Estados.
Bechara (2011, p. 165) destaca que “no julgamento do agravo regimental da Carta
Rogatória n. 9.853, o STF entendeu que a inexistência de tratado entre o país no está situada a
Justiça rogante e o Brasil não obstaculariza o cumprimento de carta rogatória,
implementando-se atos a partir do critério da cooperação internacional no combate ao crime”.
Acrescenta que o STJ3 ressaltou o princípio da efetividade do Poder Jurisdicional no novo
cenário de cooperação internacional no combate ao crime organizado transnacional.
Registra-se que mesmo que não haja acordo bilateral ou tratado multilateral
regulamentando a cooperação entre os Estados, é desnecessária a promessa de reciprocidade.
3
No julgamento da Carta Rogatória n. 2005/0015196-0.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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abstract severity or excess of term. Besides, from the 29 studied cases, only on 9 there
was a favorable decision for the accused.
Keywords: Excess of term. Procedural prison. Abstract severity. Concrete
severity. Reasonableness. Brazilian Superior Court of Justice.
INTRODUÇÃO
O habeas corpus (HC), medida impugnativa historicamente associada à garantia
do direito fundamental à liberdade individual, tem previsão constitucional no art.5º, LXVIII,
da Constituição Federal (CF), e se presta a resguardar o sujeito de direitos ante as situações de
violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
Há séculos, o HC é estandarte simbólico da democracia e principal instrumento de
garantia dos direitos fundamentais, uma vez que a sua razão de ser está ligada a necessidade
de limitar o poder e o arbítrio do Estado, bem como sua ingerência sobre os direitos
individuais do cidadão, principalmente a liberdade de ir, vir e permanecer.
Exatamente por isso, possui uma forte identificação com o início do liberalismo e
com os ideais iluministas e revolucionários, muito embora sua origem seja mais antiga,
vinculada à edição da Magna Charta Libertarum, de 1215. Tais direitos individuais, dentre os
quais se inclui a liberdade de locomoção, são classificados como de primeira dimensão
(BONAVIDES, 2006, p. 569). Ademais, a afirmação do HC perante a ordem constitucional
brasileira, diante de uma semântica libertadora, bem como o precedente histórico de essência
das sociedades democráticas, faz dele uma ação constitucional autônoma, de caráter
abrangente, pois não o exercício da impetração não está limitado aos advogados, sendo
cabível a qualquer pessoa do povo que depare uma ilegalidade atinente à deambulação,
própria ou de outrem.
Observa-se, também, que, na prática cotidiana do foro criminal, diversas impetrações
de HC são com o intuito de atacar decisões judiciais que ora se fundamentam na suposta
gravidade da infração penal, ora na duração temporal para o encerramento de determinado
procedimento. Em alguns casos, as duas linhas de argumentação são utilizadas.
Tendo como mola propulsora a impetração de HC que se baseia em um ou em ambos
os motivos acima elencados, além de eventuais Recursos Ordinários em Habeas Corpus
(RHC), este trabalho tem como escopo analisar as decisões proferidas em ações de habeas
corpus julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A principal relevância deste estudo é
verificar de que forma este Tribunal vem se posicionando acerca do deferimento e denegação
da prisão preventiva segundo os critérios de gravidade abstrata, concreta e o excesso de prazo.
Procurar-se-á investigar, de acordo com a metodologia abaixo proposta, se há alguma
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padronização decisória no âmbito do STJ no que se refere à impetração de HC, de acordo com
os parâmetros propostos na metodologia do trabalho, que segue melhor descrita abaixo.
1 METODOLOGIA DO TRABALHO
Para a elaboração deste artigo, lançou-se mão de pesquisa direta no sítio eletrônico
do STJ (http://www.stj.jus.br), realizada nos meses de janeiro e fevereiro de 2013. Utilizando-
se os critérios disponíveis para a pesquisa do repertório jurisprudencial daquele Tribunal,
grafou-se o termo “gravidade prox20 excesso adj2 prazo”, de forma a relacionar decisões
colegiadas, tirante as súmulas, que constassem na ementa os termos “gravidade abstrata”,
“gravidade concreta” e/ou “gravidade efetiva”, combinando-as com “excesso de prazo”.
Combinou-se o critério acima referido com a variável temporal, de caráter aleatório,
mas importante para se delimitar o âmbito da pesquisa. Assim, o critério utilizado teve como
data inicial o dia 01 de janeiro de 2009, e a final, 31 de dezembro de 2009.
Combinando-se os dois critérios – tempo e expressão de pesquisa - chegou-se ao
quantitativo de 33 (trinta e três) ocorrências. Para manter a fidedignidade da pesquisa, foram
utilizados somente os acórdãos em que a palavra “gravidade” ou a expressão “excesso de
prazo” tenha constado de forma explícita na ementa, de forma a facilitar a pesquisa. Desta
forma, o quantitativo de decisões foi reduzido para 29 (vinte e nove).
2 RESULTADOS OBTIDOS
2.1 Quantidade de concessões em HC e RHC
Em razão da metodologia empregada, verificou-se que, dos 29 acórdãos obtidos,
houve concessão da ordem e/ou provimento ao recurso ordinário em 9 (nove) casos, com um
percentual de 31,03%.
Observou-se, também, que, mesmo quando aplicado um intervalo maior entre a
palava “gravidade” e a expressão “excesso de prazo”, não houve uma variação digna de nota
no tocante à quantidade de concessões – no total de 10 - embora, obviamente, houvesse uma
variação significativa no percentual. Assim, ao se utilizar o critério “gravidade prox30
excesso adj2 prazo”, chegou-se a 47 resultados; “gravidade prox40 excesso adj2 prazo”, a 55
resultados; “gravidade prox50 excesso adj2 prazo”, a 57 resultados; “gravidade prox60
excesso adj2 prazo”, a 59 resultados. Ao se utilizar “gravidade prox70 excesso adj2 prazo” e
“gravidade prox80 excesso adj2 prazo”, chegou-se ao mesmo número de resultados: 62.
Desta feita, como não houve diferença importante na quantidade de concessões,
houve preferência metodológica em se trabalhar com o número de concessões de HCs e
provimento de RHCs obtidos com o primeiro critério metodológico.
2.2 Motivos pelos quais houve a concessão da ordem e o provimento do recurso
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definitiva que transita em julgado, só deve ser cabível em situações extremas e quando
presentes os requisitos básicos para sua decretação. Aliás, esta foi a orientação traçada pelo
legislador ao reformar o texto das medidas cautelares prisionais e não prisionais por
intermédio da Lei n. 12.403/2011, modificando-se, assim, toda a sistemática processual penal,
que girava em torno da prisão preventiva como medida supostamente eficiente no combate ao
crime. Em outras palavras, era a prisão preventiva ou liberdade provisória, numa autêntica
“bipolaridade cautelar”, deixando pouco espaço de manobra ao aplicador da lei para acautelar
o resultado final do processo penal.
Como se sabe, a garantia da ordem pública constitui um dos fundamentos para a
decretação da prisão preventiva (art. 312, Código de Processo Penal). Ocorre que a
indefinição do conceito de ordem publica, por si só, já causa uma perturbação da ordem
publica. E apesar das várias tentativas em defini-la, os decretos de prisão preventiva com base
na ordem publica muitas vezes se fundamentam no acautelamento do meio social, na
periculosidade do acusado, no clamor publico, na gravidade abstrata do crime ou na segurança
do próprio acusado.
O conceito adotado pela doutrina tem se tornado tão amplo que, por vezes, assume
dois significados, o de manutenção material da ordem de rua com a paz indispensável à
convivência coletiva e a de manutenção da ordem moral com a designação de parâmetros de
comportamento social (FILOCRE, 2009).
Segundo Filocre (2009), a segurança das pessoas e dos bens, a salubridade, a
tranquilidade, bem como a ordem moral, estética, política e econômica são fundamentos da
ordem pública, segundo o seu conceito metajurídico. Disso, é possível concluir que, a
compreensão do que é ordem publica varia tanto no seu sentido formal como material,
estabelecendo limites fluidos, que variam conforme o pensamento do magistrado apto a
aplicar a medida cautelar prisional. Polastri Lima (2009, p. 646) alerta que a prisão preventiva
deve ter por escopo assegurar o resultado útil do processo, de forma a impedir que o acusado
possa continuar a praticar crimes, resguardando-se o princípio da prevenção geral. Entretanto,
algumas decisões sobre prisão preventiva se detém em repetir a necessidade de se garantir a
ordem publica sem sequer tentar defini-la ou explicar o porquê de ela estar em perigo.
Situação não menos intrigante nesta curta investigação foi constatar que, nos crimes
de tráfico de entorpecentes, a gravidade concreta que justificava a custodia cautelar
fundamentada na necessidade de preservar-se a ordem pública era evidenciada pela
quantidade de droga apreendida, com grande variação no critério de aferição para se
determinar tal gravidade, e assim, decretar-se ou manter a prisão preventiva.
338
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custódia cautelar. (HC 145.564/SP, 6.ª Turma, Rel. Ministro CELSO LIMONGI
(Desembargador convocado do TJ/SP), DJe de 30/08/2010).
Com relação ao crime de roubo, algumas considerações especiais necessitam ser
feitas. A figura típica já é, por si só, dotada de certa gravidade e reprovabilidade imposta
desde logo pelo legislador, em razão da descrição normativa, que estabelecem a grave ameaça
e/ou a violência como elementos do tipo, bem como a redução da capacidade de resistência da
vítima à agressão contra ela perpetrada. Dessa forma, não é função do julgador agravar ainda
mais o delito sem apoio nos fatos, vez que o legislador já o fez em sua plenitude, sob pena de
autêntico bis in idem.
Entre as decisões pesquisadas, duas dizem respeito ao crime de roubo e tinham por
fundamento da prisão cautelar a manutenção da ordem publica e conveniência da instrução
criminal. O HC 205350/PA foi denegado e tratava de crime de roubo duplamente majorado e
estupro, no qual o apenado já estava em prisão cautelar há 2 anos e 5 meses. O Tribunal
entendeu que o modus operandi do paciente e o delito ser considerado hediondo justificavam
a manutenção da segregação cautelar do apenado, apesar do evidente excesso de prazo, pois
expressava gravidade concreta do crime e a periculosidade do agente.
O outro HC, de n. 123715/PI, versava sobre o crime de roubo circunstanciado e
formação de quadrilha, no qual o apenado já estava preso cautelarmente há 1 ano e 2 meses.
Na decisão, o STJ afirmou que “a prisão não se baseia apenas na gravidade em tese dos
delitos, mas amparada, ainda, no modus operandi da conduta e na necessidade de coibir a
reiteração dos delitos e trazer novamente a paz ao meio social”. Mais uma vez, desprezou-se o
excesso de prazo na prisão do acusado, em função da paz social.
A gravidade concreta do delito praticado, evidenciada pelo modo de agir dos agentes,
constitui circunstância que autoriza a segregação cautelar para garantia da ordem pública,
mesmo após a edição da sentença condenatória. (Habeas Corpus n. 112727/RJ, 6a Turma do
STJ, Rel. Og Fernandes, j. 05.02.2009, unânime, Dje 04.03.2009).
Também há constrangimento ilegal se o magistrado de primeira instância indeferiu a
liberdade provisória do paciente apenas com base na gravidade genérica do crime de roubo,
no clamor social por ele causado, na necessidade de citação pessoal do acusado e na
possibilidade de intimidação de testemunhas. Tais fundamentos não se revelam idôneos para
justificar a necessidade da medida extrema, ante a falta de qualquer elemento concreto dos
autos, não se admitindo presumir que o paciente poderá intimidar testemunhas somente com
presunções (HC 89.665/SP, 6a. Turma, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe
15.3.10).
340
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Há vários entendimentos dessa Corte que firmam a posição que mesmo na hipótese
do crime ser considerado hediondo ou equiparado, como no caso do crime de tráfico de
entorpecentes, é imprescindível que se demonstre com base em elementos concretos a
necessidade da custódia, nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal, sendo a
simples vedação contida na Lei n. 11.343/2006 insuficiente para o indeferimento da liberdade
provisória (HC 125.667/RS, 6a. Turma, Rel. Min. Haroldo Rodrigues, DJe 26/10/2009).
Via de regra, entende-se pela jurisprudência que há um conjunto de causas viáveis
autorizadoras da prisão preventiva, com base na garantia da ordem pública: a) gravidade
concreta do crime; b) envolvimento com o crime organizado; c) reincidência ou maus
antecedentes do agente e periculosidade; d) particular e anormal modo de execução do delito;
e) repercussão efetiva em sociedade, gerando real clamor público.
Almeida (2003), citando Borges da Rosa, afirma que a expressão “garantia da ordem
pública” não tem significado especial, sendo meramente explicativa e poderia ter sido omitida
do texto processual penal, visto que toda prisão decretada em processo penal se destina a
garantir a ordem pública. O que não se pode olvidar, de forma alguma, é que, sob o
fundamento de “ordem pública”, negue-se a garantia da liberdade individual em face do seu
conceito indeterminado, o que fere o princípio da segurança jurídica.
3.2 O excesso de prazo
O princípio da razoável duração do processo está disposto no artigo 5º, LXXVIII, da
CF, introduzido pela Emenda Constitucional n. 45/04 (EC 45), que dispõe que “a todos, no
âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação". Dispositivo semelhante já fazia parte do
ordenamento jurídico brasileiro desde a edição do Decreto n. 678/1992, que internalizou a
aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), com previsões específicas
nos arts. 7º, item 5, e 8º, item 2.
Por mais que o legislador constitucional tenha legitimamente se preocupado em
estabelecer e positivar esse direito, contudo não determinou o significado da expressão prazo
razoável. Com isso, ficou a cargo da doutrina e jurisprudência estabelecer o que seja e, por
consequência, determinar a partir de quando se configura o excesso de prazo, especialmente
em causas penais, já que seus reflexos são sentidos de forma mais grave pelos sujeitos
passivos da situação processual. Santiago e Pinho (2010, online) buscaram delimitar
conceitualmente tal princípio como
341
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Muitos consideram esse princípio como uma cláusula aberta, que pouco efeito
prático traz, já que a previsão da razoabilidade do prazo não é acompanhada de qualquer
sanção pelo seu descumprimento, sequer existindo previsão categórica de prazos na
legislação, nomeadamente a processual penal, que possa interferir diretamente na celeridade
da prestação jurisdicional. Assim, torna-se imprescindível a existência de meios materiais para
que o direito se torne realidade, ou seja, que garantam a celeridade de sua tramitação
(SOUZA, 2004).
Há que se lembrar que a duração razoável do processo, antes de mais nada, é um
direito fundamental, e, desta feita, o próprio Estado tem por finalidade básica garantir o seu
cumprimento, por meio de proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de
condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana (BONAVIDES,
2006).
A análise de decisões oriundas do STJ, de acordo com os parâmetros estipulados para
a realização da presente pesquisa, pode trazer um quadro que, se não é absoluto, ao menos
fornece uma amostra da realidade no tocante à caracterização e delimitação do que seja prazo
razoável ou não razoável, gerando insegurança jurídica. Para este momento, serão utilizadas
não só as decisões concessivas, em que, evidentemente, houve extrapolação do prazo, mas,
também, as decisões denegatórias, independentemente do crime praticado.
Na formulação das decisões de 8 (oito) HCs teve peso decisivo o enunciado da
Súmula n. 52 do STJ, que entende estar superado o constrangimento ilegal por excesso de
prazo se a instrução criminal foi encerrada. No HC n. 71406/BA, embora tenha havido a
aplicação deste entendimento sumular, os Ministros decidiram que, mesmo encerrada a
instrução processual, seria o caso de se conceder a ordem de HC, já que o acusado, preso por
tráfico de entorpecentes, já se encontrava em prisão cautelar há quase 3 (três) anos, pois o
atraso na prolação de sentença não poderia ser imputado à defesa, creditando-se claramente à
Administração a responsabilidade pela demora em razão da greves dos servidores da Justiça
(STJ, HC 71406/BA, 6a Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 27/04/2009).
Em outro caso, no sentido de afirmação do enunciado da Súmula n. 52, a alegação de
excesso de prazo na formação da culpa restou prejudicada em razão da prolação de sentença
condenatória (STJ, HC 84673/RN, 5a. Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 09/03/2009). Como
critérios para denegação do writ, utilizou-se o próprio entendimento pacificado nos Tribunais
342
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Superiores que eventual excesso de prazo deve ser analisado sempre à luz do princípio da
razoabilidade, sendo permitido ao Juízo, em hipóteses excepcionais, ante as peculiaridades da
causa, extrapolar os prazos previstos na lei processual penal, já que essa aferição não resulta
de simples operação aritmética (STJ, HC 244897/PA, 5a Turma, Rel. Min. Marco Aurélio
Bellizze, DJe 20/09/2012). E esta peculiaridade se dá, especialmente, em casos cuja gravidade
abstrata se mostra evidente, como no tráfico de entorpecentes, em que Ministro Marco Aurélio
Belizze, invariavelmente, negou concessão aos HCs impetrados, sem a elaboração de um
parâmetro quantitativo com relação à droga apreendida.
Igual relação de forças para a denegação de ordens de HCs tem o enunciado da
Súmula n. 21 do STJ. Diz o texto da súmula que “pronunciado o réu, fica superada a alegação
de constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução”, e, baseando-se nele,
em dois jugados da 5ª. Turma do STJ (HC 179830/SP, HC 185456/PE) afastou-se a alegação
de excesso de prazo. Em três outros julgados, não houve o exame do mérito no tocante ao
excesso de prazo, sob a alegação de que a análise realizada por meio de impetração de HC
poderia caracterizar supressão de instância (HC 205350/PA, HC 208976/BA, HC
243604/MG).
Nos HCs 86157/SC, 191085/SP, 165964/SP, 136829/SP, 161676/AL houve
concessão da ordem devido ao prazo de segregação cautelar encontrar-se desmedido. Os
argumentos para se chegar a um resultado favorável para os acusados foram os seguintes: i)
feito não se reveste de complexidade; ii) ausência de elementos que possam atribuir à defesa a
lentidão do feito; iii) paciente preso por mais de 5 anos, sem submissão ao júri; iv) instrução
encerrada sem qualquer movimentação processual subsequente, ou seja, sem decisão quanto
ao mérito ou necessidade de remessa do acusado ao Tribunal do Júri.
No julgamento do HC 225.210/MG, o STJ entendeu que o excesso de prazo deve ser
analisado à luz do princípio da razoabilidade, sendo, então, permitido ao juízo, em hipóteses
excepcionais de complexidade, a extrapolação dos prazos processuais. O paciente, por sua
vez, encontrava-se preso há 11 meses e o processo possuía 16 denunciados, bem como a
audiência de instrução e julgamento já havia sido designada para data próxima. Entendeu o
STJ pela denegação do HC por entender que diante da gravidade concreta dos delitos
praticados inclusive com violência e arma de fogo, justificar-se-ia a adoção de medida
extrema (STJ, HC 225210/ MG, 5ª Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe
10/04/2012).
Conclusão
343
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349
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Carolina Grant*
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo contribuir para o debate nacional acerca da criação de um
banco de perfis genéticos para fins de investigação criminal no Brasil, a partir da análise
acerca da constitucionalidade da Lei nº. 12.654/12, à luz da adoção de um processo penal
constitucional e dos postulados do devido processo legal, do estado de inocência e do direito
de não auto-incriminação, dentre outros direitos fundamentais em conflito, bem como
pautando-se nos riscos de um direito penal emergencial ou simbólico, na prelazia das
finalidades de política criminal e, sobretudo, na possível utilização do indivíduo como “meio”
ou “instrumento” no decurso do processo penal, afetando a sua dignidade. Para tanto,
considerará as discussões travadas no contexto do neoconstitucionalismo e da necessidade de
efetivação de direitos fundamentais, aplicando a metodologia proposta por Robert Alexy,
numa crítica preliminar, embora conclusiva, sobre o tema.
ABSTRACT
This article aims to contribute to the national debate about the creation of a database of
genetic profiles for purposes of criminal investigation in Brazil, from a critical analysis of the
constitutionality of the Law 12.654/12, in view of the adoption of a constitutional criminal
procedure and the principles of due process, the state of innocence and the right not to self-
incrimination, among other fundamental rights in conflict, and basing on the risks of a
criminal emergency or symbolic, in prelacy of the purposes of criminal policy, and especially
the possible use of the individual as "medium" or "instrument" in the course of criminal
proceedings, affecting their dignity. For that, it will consider the discussions in the context of
neoconstitutionalism and the need for realization of fundamental rights, applying the
methodology proposed by Robert Alexy, in a preliminary review, although conclusive, on the
subject.
*
Carolina Grant – Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da
Bahia (PPGD/UFBA). Pós-Graduanda em Filosofia e Direitos Humanos pela Universidade Cândido Mendes
(UCAM-AVM). Extensionista do Curso de Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça promovido pelo
NEIM/UFBA. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Coordenadora de Pesquisa
junto ao Centro de Direito Internacional (CEDIN). Diretora de Produção Científica do Centro Acadêmico Ruy
Barbosa (CARB - Gestão 2012/2013). E-mail: carolinagrant@hotmail.com.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
1. INTRODUÇÃO.
351
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
3
De acordo com Aury Lopes Jr.: O processo penal do inimigo segue a mesma fórmula do simbolismo cada vez
maior, acrescentando-se boas doses de utilitarismo, aceleração antigarantista, eficientismo (que não se confunde
com eficácia), agravado pela perigosa mania dos tribunais de flexibilizar as formas processuais através da
relativização das nulidades (e conseqüente enfraquecimento das garantias do devido processo). (LOPES JR,
2008, p. 497). Nesse diapasão, seria exagero afirmar que o indivíduo cujo armazenamento de dados genéticos foi
determinado em função do tipo e/ou gravidade do delito cometido será tratado como verdadeiro “inimigo” em
processos ulteriores? Fica a reflexão.
352
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Tensões entre ambos os conceitos, face ao exposto, podem surgir, tendo a vontade da maioria
que refrear seus impulsos perante determinados conteúdos materiais, orgânicos ou processuais
previstos na Constituição. Caberia, portanto, à jurisdição constitucional efetuar esse controle
para assegurar que a deliberação majoritária observe o procedimento prescrito e não vulnere
os consensos mínimos estabelecidos na Constituição.
Ou seja, democracia constitucional representa uma forma democrática específica, que
combina o princípio majoritário (presente no legislativo, por exemplo), com premissas
contramajoritárias (a necessidade de respeito aos conteúdos valorativos previstos na CF,
controlada pelo judiciário). Tudo para evitar-se a “ditadura das maiorias”. Os dois conceitos
que, numa leitura extremista, poder-se-iam dizer até mesmo antagônicos (soberania da lei
versus soberania popular), na prática, coadunam-se, complementam-se, de modo a garantir
uma democracia real e não meramente formal, além de, inclusive, estabelecer formas de lidar
e/ou atenuar os déficits de representatividade4.
Partindo, então, de uma visão substancialista do paradigma da democracia
constitucional, é também Roberto Barroso quem fala na necessidade da realização de uma
filtragem constitucional de todo o ordenamento jurídico brasileiro, ressaltando, quanto ao
Direito Penal que “a repercussão do direito constitucional sobre a disciplina legal dos crimes
e das penas é ampla, direta e imediata, embora não tenha sido explorada de maneira
abrangente e sistemática pela doutrina especializada”.
Isso porque, aponta o autor, a Constituição impõe ao legislador ordinário a obrigação
de criminalizar determinadas condutas, bem como impede a criminalização de outras; torna
questionáveis tipificações preexistentes à luz dos novos ditames da Carta de 1988, que
consubstanciam, dentre outros, a transformação dos valores sociais; e alude, ainda, à
possibilidade de se excepcionarem determinadas incidências da normal penal no caso
concreto, na hipótese de o resultado desta aplicação mostrar-se incompatível com o novo
paradigma constitucional. Conclui a breve análise da confluência entre Constituição e Direito
Penal, por fim, asseverando que este ramo do Direito, tal qual os demais, sujeita-se aos
princípios e regras constitucionais, daí resultando a centralidade dos direitos fundamentais;
dessa forma, colocar-se-iam três premissas para o trabalho do legislador penal/processual
penal: (i) reserva legal e liberdade de conformação do legislador; (ii) garantismo; e (iii) dever
4
Afirma Barroso: Longe de serem conceitos antagônicos, portanto, constitucionalismo e democracia são
fenômenos que se complementam e se apoiam mutuamente no Estado contemporâneo. Ambos se destinam, em
última análise, a prover justiça, segurança jurídica e bem-estar social. Por meio do equilíbrio entre Constituição e
deliberação majoritária, as sociedades podem obter, ao mesmo tempo, estabilidade quanto às garantias e valores
essenciais, que ficam preservados no texto constitucional, e agilidade para a solução das demandas do dia a dia, a
cargos dos poderes políticos eleitos pelo povo. [...] (BARROSO, 2010, p. 91).
353
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
354
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Constituição Federal.
A atuação repressiva do Poder Legislativo é, ainda, temerária, na medida em que dá
vazão, justamente, à prevalência inconteste e inconsequente da legislação penal de
emergência ou legislação álibi6. Ou seja, representa a adoção de medidas paliativas e
ilusórias, adotadas por parte do Estado com base na crença no poder simbólico do Direito
Penal e Processual Penal em conter os ânimos e anseios da população que clama por uma
resposta imediata e por “justiça”, num contexto em que esta última se assemelha muito mais à
“vingança”.
Fauzi Hassan Choukr assevera que a associação entre emergência e urgência é
inegável. Na esfera jurídico-penal, tal qual constata Ferrajoli, Choukr identifica duas formas
de emergência, distintas e simultâneas: a legislação de exceção e as mutações legais das leis
do jogo, afirmando que “[...] em ambas percebe-se a derrogação dos valores dominantes em
face da suposta necessidade de resposta ao fenômeno emergente, com a implícita insinuação
da fraqueza da cultura da normalidade perante a crise a legitimar a adoção de medidas
excepcionais” (CHOUKR, 2002, pp. 02-03).
Leonardo Sica, por sua vez, esclarece que o simbolismo penal funda-se em uma
constatação empírica, pervertendo a lógica da prevenção geral positiva. O Direito Penal estar-
se-ia deixando quedar a mercê da sua forte carga emocional, tornando-se “[...] fonte de
expectativas para a solução dos grandes problemas políticos e sociais, ante o fracasso de
outras esferas de controle social ou ante a própria ausência de políticas destinadas a
garantir prestações públicas essenciais à população” (SICA, 2002, p. 73).
O poder simbólico presente na legislação penal de emergência evoca o caráter
meramente retributivo da pena e ignora os riscos e a falência deste modelo tradicional
repressor, capaz, unicamente, de estigmatizar e, inclusive, agravar os problemas sociais de
segurança pública (reais motivadores do clamor social por medidas repressivas mais
gravosas), ao inviabilizar a ressocialização do indivíduo e propiciar um ambiente favorável ao
crescimento do crime (sobretudo no que tange à criminalidade organizada) no âmbito das
próprias penitenciárias.
6
Conforme esclarece Flavia D'Urso: A sociedade brasileira em geral, aí incluído um grande número de
operadores do direito penal e processual penal, acredita na eficiência de imposição mais gravosa de pena e
medidas cada vez mais restritivas da liberdade, como aptas a conter a criminalidade violenta . [...]
Ingressam [nesse contexto] no ordenamento jurídico leis, e ainda, são utilizados de forma absolutamente
distorcida mecanismos processuais já existentes, com indesejável assiduidade, particularmente quanto à custódia
cautelar, de forma a atender a uma intervenção de caráter emergencial na tentativa de solucionar essa
problemática questão da criminalidade. O emergencialismo diz com a adoção de providências legais e
jurisdicionais cunhadas pela improvisação, rigorismo, ausência de coordenação sistemática, pouca ou nenhuma
técnica e, em grande parte, inconstitucionais. (D’URSO, Flavia. Princípio Constitucional da
Proporcionalidade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 88 – grifo da autora e grifo nosso).
355
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7
Rodríguez cita e indica a obra de H. Bravo, qual seja: HERRERA BRAVO, Rodolfo. Los registros de ADN y
los derechos constitucionales: Cómo esquilar sin despellejar?, trabalho apresentado no II CONGRESSO
MUNDIAL DE DIREITO INFORMÁTICO, da Universidade Complutense de Madrid, set. 2002, disponível em:
<http://www.ieid.org/congreso/Ponencias/Herrera%20Bravo>, p. 2.
8
Aqui, Rodríguez remete-se à J. F. Etxeberría Guridi, em sua obra: ETXEBERRÍA GURIDI, José Francisco.
Evolución expansiva en la regulación francesa de los ficheros de huellas genéticas tras las recientes reformas
(Parte I). In: Revista de Derecho y Genoma Humano, 19 jul./dic. 2003, Diputación Foral de Bizkaia de
Derecho y Genoma Humano, p. 111.
9
Nas palavras do ilustre doutrinador italiano, Luigi Ferrajoli: Según una primera acepción, "garantismo"
356
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
1.2.1. O postulado do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88) aplicado
ao processo penal e a opção por um determinado modelo/sistema
processual: o modelo acusatório.
O artigo 5º, em seu inciso LIV, da Constituição Federal de 1988, assim determina:
Art. 5º, LIV, CF/88 - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal.
designa un modelo normativo de derecho: precisamente, por lo que respecta al derecho penal, el modelo de
"estricta legalidad" propio del estado de derecho, que en el plano epistemológico se caracteriza como un
sistema cognoscitivo o de poder mínimo, en el plano político como una técnica de tutela capaz de minimizar la
violencia y de maximizar la libertad y en el plano jurídico como un sistema de vínculos impuestos a la potestad
punitiva del estado en garantía de los derechos de los ciudadanos. En consecuencia, es garantista todo sistema
penal que se ajusta normativamente a tal modelo y lo satisface de manera efectiva. Al tratarse de un modelo
límite, será preciso hablar, más que de sistemas garantistas o antigarantistas tout court, de grados de
garantismo; y además habrá que distinguir siempre entre el modelo constitucional y el funcionamiento efectivo
del sistema. Así, diremos por ejemplo que el grado de garantismo del sistema penal italiano es decididamente
alto si se atiende a sus principios constitucionales, mientras que ha descendido a niveles bajísimos si lo que se
toma en consideración son sus prácticas efectivas. Y mediremos la bondad de un sistema constitucional sobre
todo por los mecanismo de invalidación y de reparación idóneos, en términos generales, para asegurar
efectividad a los derechos normativamente proclamados: una Constitución puede ser avanzadísirna por los
principios y los derechos que sanciona y, sin embargo, no pasar de ser un pedazo de papel si carece de técnicas
coercitivas - es decir, de garantías- que permitan el control y la neutralización del poder y del derecho ilegítimo.
(FERRAJOLI, 1997, pp. 851-852).
357
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perpassa pela compreensão de cada termo que compõe a expressão devido processo legal.
No que tange ao termo “legal”, o seu entendimento é relativamente pacífico no que
tange à observância não só das formas legais (forma é garantia, para Aury Lopes Jr. - LOPES
JR., 2008, p. 497), mas principalmente do seu conteúdo, que deve atender às finalidades
consubstanciadas em direitos e garantias constitucionais e processuais, seguindo a ideia de um
processo penal constitucional, tal qual defendemos no item anterior.
Sobre processo, Távora e Alencar prelecionam que “o processo penal deve ser
compreendido de sorte a conferir efetividade ao direito penal, fornecendo os meios e o
caminho para materializar a aplicação da pena ao caso concreto [...]”, uma vez que o jus
puniendi concentra-se na figura do Estado (TÁVORA; ALENCAR, 2009, p. 30). Já Aury
Lopes Jr., assevera que o processo penal “é um instrumento [...] de reconstrução
aproximativa de um determinado fato histórico. Como ritual, está destinado a instruir o
julgador, a proporcionar o conhecimento do juiz por meio da reconstrução histórica de um
fato. Nesse contexto, as provas são os meios através dos quais se fará essa reconstrução do
fato passado (crime). [...]” (LOPES JR., 2008, p. 489). Nesse diapasão, é válido conceituar,
de antemão, também o termo prova, já inserindo um dos temas centrais deste tópico (teoria
geral da prova), para o que seguimos o entendimento de Elmir Duclerc, quando este afirma “a
possibilidade de compreender prova como uma espécie de comunicação, como troca de
mensagens entre emissores (partes, testemunhas, peritos) e receptor (o juiz), que deve
receber, processar, interpretar e valorar os dados que lhe são transmitidos, como etapa
necessária do processo decisório” (DUCLERC, 2011, p. 493).
Ou seja, o processo penal, de modo a legitimar a atuação repressiva do Estado
(detentor do jus puniendi) manifesta através da aplicação de uma sanção penal, representa um
caminho, um esforço de reconstrução de um determinado evento histórico ensejador da
pretensão punitiva do Estado, sempre de forma aproximativa, a fim de proporcionar a
formação do convencimento do órgão julgador por intermédio da exposição e exame das
provas, entendidas enquanto mensagens ou comunicações trocadas ao longo deste processo,
dialeticamente entre os nele envolvidos.
Quanto à expressão devido, por fim, entendemos que esta, em processo penal, aponta
para a adoção de um modelo ou sistema específico de processo: o acusatório10, conforme
10
Assim reforça Aury Lopes Jr.: A questão é de suma relevância quando compreendemos que o sistema
processual brasileiro é o (neo)inquisitório (pois o art. 156 e tantos outros atribuem a iniciativa probatória ao juiz)
e que possui, como agravante, a prevenção como causa de fixação da competência, de modo que o juiz-ator da
fase pré-processual será o mesmo que, pela regra do art. 83 do CPP, irá atuar na fase processual (admitindo,
portanto, a prova que ele mesmo colheu). [...]. (LOPES JR., 2008, p. 495).
358
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[...] no sistema acusatório (que se pretende), o juiz mantém uma posição - não
meramente simbólica, mas efetiva - de alheamento [...] em relação à arena das
verdades onde as partes travam sua luta. Isso porque ele assume uma posição de
espectador, sem iniciativa probatória. Forma sua convicção através dos elementos
probatórios trazidos ao processo pelas partes (e não dos quais ele foi atrás). [...] no
processo acusatório o que se tem é uma pura operação técnica, onde um resultado
equivale ao outro (tanto faz a condenação ou a absolvição, ao contrário da lógica
inquisitiva dirigida para a condenação). O grande valor do processo acusatório está
na justiça, o que equivale dizer, no jogo limpo. Literalmente, afirma o autor que este
modelo (acusatório), ideologicamente neutro, reconoce un solo valor: la justicia, El
juego limpio (fair play). (LOPES JR., 2008, p. 496 - grifo do autor).
359
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numa condição de absoluta sujeição, sendo em verdade mais um objeto da persecução do que
sujeito de direitos” (TÁVORA; ALENCAR, 2008, p. 34).
Com efeito, o sistema inquisitivo ou qualquer previsão que contenha o ranço das
características supra-descritas, capaz de conferir poderes investigativos/inquisitoriais ao juiz,
leva à prevalência de hipóteses (abstratas e imaginárias) sobre fatos, bem como conduz a um
resultado específico: a condenação do réu. Senão, vejamos: se as provas carreadas aos autos
pelas partes (acusação e defesa) não são suficientes para a formação do convencimento do
juiz acerca da ocorrência ou imputação do fato criminoso ao réu (sua materialidade ou
autoria) e abre-se, então, a este juiz, a possibilidade de que ele mesmo vá atrás de outras
provas, não há outra consequência lógica senão a de crer que este juiz pretende condenar o réu
a todo custo, posto que convicto (íntima e abstratamente, conforme suas conjecturas pessoais)
de sua responsabilidade penal, afinal, se fosse para inocentá-lo, bastava aludir à insuficiência
de provas e, especificamente no Direito brasileiro: ao estado de inocência, bem como ao
consequente princípio do in dubio pro reo (não tendo o órgão acusador se desonerado da
carga do ônus da prova, presumida a inocência)11.
É justamente a previsão constitucional inequívoca do estado de inocência (art. 5º,
LVII), a ser discutida infra, que nos leva a consolidar o entendimento de que a previsão do
devido processo legal, aplicada à esfera processual penal, aponta para a adoção do modelo
acusatório de processo. Concordamos, pois, com Lopes Jr., ao indicar o “acerto de
GOLDSHMIDT ao afirmar que a estrutura do processo penal de uma nação não é senão um
termômetro dos elementos autoritários [inquisitoriais] ou democráticos [acusatórios] de sua
Constituição. [...]” (LOPES JR., 2008, p. 493).
Nesse contexto, é possível afirmar-se, pois, que, quanto à utilização de dados
genéticos para individualização ou armazenamento, o postulado do devido processo
legal, por si só, já representaria um importante limite a ser observado, no seguinte
sentido: 1) esta utilização precisará estar prevista por lei que regulamente a matéria em
conformidade com os ditames constitucionais (forma e conteúdo); 2) utilizada como prova ao
longo do processo, deverá estar sujeita ao diálogo entre as partes, isto é, ao contraditório e à
ampla defesa (técnica e pessoal, esta última positiva e negativa, conforme se discutirá infra);
3) deverá sujeitar-se, também, ao modelo acusatório, não podendo ser, por exemplo, solicitada
de ofício pelo juiz.
11
Foi exatamente isso que desacreditou o sistema inquisitório, aponta GOLDSHMIDT: o erro psicológico de
crer que uma mesma pessoa possa exercer funções antagônicas como acusar, julgar e defender; ou, em termos
probatórios, ter iniciativa (probatória), realizar o juízo de admissibilidade e gerir sua produção. (LOPES JR.,
2008, p. 495).
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Art. 5º, LVII, CF/88 - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória.
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democrático e em observância aos direitos e garantias fundamentais poderá ter lugar de forma
legítima.
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compromisso com uma verdade que decorra de um determinado tipo de procedimento, e não
na confiança depositada na autoridade do juiz, por mais confiável e competente que ele seja
(tendência flagrantemente autoritária e antigarantista, conhecida como decisionismo
processual)” (DUCLERC, 2011, p. 495).
Acerca da famigerada “verdade real” é possível afirma-se, ainda, que mesmo que a sua
busca fosse autorizada através de meios menos insidiosos, tal busca seria completamente
infrutífera, na medida em que simplesmente não existe tal verdade – em primeiro lugar,
porque correspondente a fatos passados, impossíveis de serem revividos, rememorados de
forma direta; em segundo, por questões filosóficas que podem vir a ser estudadas
oportunamente, mas que, em linhas gerias, evidenciam as próprias limitações humanas e da
linguagem para apreender tamanha pretensão de Verdade. Já dizia João Ubaldo Ribeiro, “não
existem fatos, só existem histórias”, isso porque toda a percepção humana da realidade
circundante é intermediada pelas vivências, historicidade e limitações (pré-compreensões) de
cada indivíduo, apenas sendo possível um diálogo entre estas percepções. Dessa forma, o que
se alcança ao final do processo não é exatamente uma verdade, seja ela real, material ou
processual, nem bem uma certeza, mas o mais próximo disso que seja humanamente possível.
[...] A única certeza que pode ter [o juiz], na verdade, porque isso depende dele, em
cada ato do processo, é que todas as garantias processuais foram respeitadas, e aí,
ainda que venha a cometer uma injustiça, ele (e o Estado) terá pelo menos a certeza
de que o erro era realmente inevitável. É forçoso reconhecer, portanto, que também
no processo penal a verdade possível é apenas a verdade processual, que está
necessariamente comprometida com condições de convalidação, traduzidas em
regras que disciplinam um método legal de comprovação processual. (DUCLERC,
2011, p. 497).
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Art. 5º, LXIII, CF/88 - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de
permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.
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oportunidade em que for realizado o enfrentamento da colisão entre direitos fundamentais, tal
qual já se discutiu, ensejado pela implementação da medida que visa à possibilitar a criação
de um banco de perfis genéticos no Brasil.
Estes direitos também contam com um status constitucional de direito fundamental,
merecendo tutela assegurada tanto pela Constituição Federal de 1988, quanto pelo Código
Civil (1916 e 2002), quais sejam: o direito à privacidade, intimidade, à autodeterminação
informacional e integridade (física/corporal e/ou moral).
O texto constitucional assim determina:
Art. 5º, X, CF/88 - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação; [...]
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e
reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
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amostra colhida contenha potencial lesivo à sua integridade. No caso das amostras de DNA
(ou ADN), ainda que diminutas (fio de cabelo, saliva ou esperma), elas contém, em cada
célula, todo o mapa genético do indivíduo, uma pequena síntese de todo o seu corpo e ser.
Dessa forma, para os usos a que se destinam, estas amostras, independentemente do tamanho,
representam, sim, uma ameaça de lesão à integridade física.
2) O mais grave, contudo, é a forma de análise e armazenamento destas amostras,
uma vez que, justamente por conter, em cada célula, o DNA completo de uma determinada
pessoa, para além de identificá-la, o código genético pode revelar características pessoais
(físicas e, para alguns, inclusive psicológicas/de personalidade), traços de hereditariedade
(informações relativas ao núcleo familiar, que transcende a esfera do indivíduo) e anomalias
congênitas ou patologias genéticas (muitas que sequer poderão vir a se desenvolver ao longo
de toda a vida da pessoa).
Tais informações contidas no DNA, se manipuladas de forma inidônea ou descuidada,
podem provocar o vazamento de dados relacionados às esferas da privacidade e intimidade do
indivíduo, afinal, esta divulgação poderá afetar as suas relações de trabalho (discriminação em
razão da compleição física ou potencial para desenvolvimento de alguma patologia que, por
ventura, venha a impossibilitar a pessoa para o trabalho), familiares (doenças hereditárias),
dentre outras.
No âmbito da intimidade, fala-se ainda em intimidade genética (direito à intimidade
genética, bem explicado e defendido por Víctor Gabriel Rodríguez (RODRÍGUEZ, 2008)) e
em autodeterminação informacional. Este último direito individual tem ampla previsão no
Direito Europeu, sendo bastante debatido quando o tema é justamente a criação de bancos de
perfis genéticos. O seu conteúdo, em linhas gerais, diz respeito à prerrogativa conferida ao
indivíduo de controlar (incluir, retirar, modificar, atualizar e acompanhar, a qualquer tempo)
qualquer base de dados pessoais que lhe diga respeito e possa afetar-lhe; é o direito de
autodeterminar-se relativamente a informações pessoais. No Brasil, esse direito poderia ser
compreendido como abarcado pelo direito à privacidade e intimidade, inclusive no que tange
à intimidade genética e à proteção das informações contidas no DNA.
Face ao panorama ora construído de direitos fundamentais e da personalidade
passíveis de violação em caso de desvirtuamento da finalidade a que se destina a criação de
bancos de perfis genéticos (FIDALGO, 2006, pp. 120-128; RODRÍGUEZ, 2008, pp. 209-
216), a separação da parte não-codificante da molécula de ADN para fins de análise (parte do
DNA que não contém características pessoas ou hereditárias), apenas se observada de forma
rigorosa, controlada e sancionada, poderá garantir a salvaguarda dos direitos do doador – do
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princípios corresponderem a normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida
possível, no limite das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios jurídicos
representariam, pois, mandamentos de otimização, cuja marca seria justamente a possibilidade
de serem satisfeitos ou realizados em graus variados, enquanto as regras, por sua vez,
representam normas que deverão ser plenamente satisfeitas, exatamente como determinam os
seus comandos, ou terão a sua validade comprometida. A distinção entre regras e princípios,
nesse contexto, é uma distinção qualitativa e não uma distinção de grau.
A partir desta diferença qualitativa, também a colisão entre regras e princípios merece
tratamento diferenciado, destacando-se, para efeitos deste trabalho, a colisão entre princípios.
Princípios podem colidir abstrata ou concretamente, isto é, enquanto previsões normativas e
no caso concreto, a título ilustrativo. Em um primeiro momento, poderá o Legislador, ele
mesmo e mediante lei ordinária que tenha passado, necessariamente, pelo crivo da
compatibilidade com a Constituição Federal, solucionar a contenda, atribuindo maior proteção
a um ou a outro bem jurídico e definindo as hipótese e/ou condições em que tal proteção se
dará. Também nesta atividade legislativa recorre-se a considerações relativas à ponderação de
valores, princípios ou direitos – compreendidos, aqui, enquanto razões que guiam, diretrizes e
mandamentos de otimização. Não obstante, é em face do caso concreto, da aplicação e
efetivação destes direitos fundamentais colidentes, que se fará mais nítida e imprescindível
(em razão da necessária fundamentação das decisões judiciais) a utilização da ponderação.
No direito constitucional alemão, a ponderação é uma impostante etapa do que é
exigido por um princípio mais amplo. Esse princípio mais amplo é o princípio da
proporcionalidade.
O princípio ou máxima da proporcionalidade decompõem-se em três princípios
parciais ou subprincípios: 1) princípio da idoneidade; 2) da necessidade; 3) e da
proporcionalidade em sentido estrito. Todos os três expressam a ideia supramencionada de
otimização.
Os princípios da idoneidade e da necessidade consubstanciam a otimização no que
tange às possibilidades fáticas. Idoneidade (ou adequação) equivale à noção de que o meio
empregado para realizar um princípio ou direito fundamental deve ser, impreterivelmente,
idôneo, adequado, apto à consecução do fim pretendido; do contrário, a mitigação que a
escolha deste meio ou medida implica ao direito fundamental contrário será em vão e nenhum
direito fundamental, enfatiza Robert Alexy em seus escritos, pode vir a ser afetado sem que
haja uma razão justificadora muito forte para tanto. Este subprincípio, primeira etapa do
exame acerca da proporcionalidade de uma medida a ser adotada, exclui o emprego de meios
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que prejudiquem a realização de um princípio sem que, ao menos, outro princípio de igual
relevância seja fomentado. Esta nada mais é que a expressão da ideia da Otimidade-Pareto:
uma posição pode ser melhorada sem que nasçam desvantagens para outras.
No mesmo sentido deve seguir o raciocínio em torno do subprincípio da necessidade.
Este determina que, face à constatação da existência de dois meios aptos a fomentarem
igualmente bem um determinado direito fundamental, deve-se escolher aquele que menos
intervenha no outro direito fundamental colidente com o primeiro. Isto é, se existe um meio
menos intensivamente interveniente e igualmente idôneo, então, na linha da Otimidade-
Pareto, uma posição pode ser melhorada sem que nasçam custos para a outra. Em outra
palavras, ainda, um dado meio de realização de um princípio/garantia/direito fundamental só
deve ser empregado se não houver, disponível, nenhum outro que interfira menos no
princípio/garantia/direito fundamental colidente com o primeiro e seja igualmente idôneo ao
alcance dos mesmos fins pretendidos; apenas se for realmente necessário e não houver outra
solução tanto idônea, quanto menos gravosa.
Se custos ou sacrifícios não podem ser evitados, todavia, torna-se necessária uma
ponderação.
O terceiro e último subprincípio da proporcionalidade alexyana é, pois, a ponderação,
também conhecida como proporcionalidade em sentido estrito. Este princípio parcial traduz o
significado da otimização relativamente às possibilidades jurídicas e corresponde a uma regra
que Robert Alexy denomina como “lei da ponderação”.
De acordo com a “lei da ponderação”, esta atividade (etapa), este ponderar, também
decompõe-se em três passos: a) no primeiro, deve ser verificado o grau do não-cumprimento
ou prejuízo de um princípio; b) em seguida, seria necessário proceder-se à análise da
importância do cumprimento do princípio em sentido contrário; c) e, por fim, no terceiro
momento, questionar-se-ia se a importância do cumprimento do princípio em sentido
contrário justificaria o prejuízo ou não-cumprimento do primeiro princípio.
Ao seguir-se as três etapas da máxima da proporcionalidade, incluindo-se os três
passos da ponderação, seria possível enfrentar a inevitável colisão entre direitos fundamentais
de forma racional, argumentativa, fundamentada e legítima, salvaguardando-se o máximo
possível do núcleo de cada um destes direitos de status constitucional, ao menos de acordo
com o entendimento do jurista alemão Robert Alexy e em conformidade com o que tem
entendido e manifestado também o Supremo Tribunal Federal brasileiro.
Qualquer determinação do legislador penal/processual penal nesse sentido, portanto,
levando em consideração a relevância das finalidades de política criminal, deve assegurar,
372
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
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aspectos jurídicos. Monografia apresentada como requisito para a aprovação na disciplina de
Trabalho de Conclusão de Curso II, Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de
Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovada pela Banca
Examinadora composta pelo orientador Prof. Dr. Paulo Vinícius Sporleder de Souza, Profa.
Dra. Anamaria Gonçalves dos Santos Feijó e Profa. Me. Lívia Haygert Pithan.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Judicialismo e Política – Tópicos para uma Intervenção.
In: Constituição e Processo: entre o Direito e a Política. Felipe Machado e Marcelo Cattoni
(coord.). Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011, pp. 139-154.
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
13
Conceituando: As questões suscitadas pela evolução das pesquisas realizadas pelas ciências biomédicas têm
merecido atenção por parte dos textos constitucionais. Oliveira Baracho, em instigante artigo intitulado
Bioconstituição: bioética e direito; identidade genética do ser humano, esclarece que o discurso jurídico
constitucional, que tem como base a identidade genética, proporcionou o surgimento da palavra bioconstituição,
entendida como conjunto de normas (princípios e regras) formal ou materialmente constitucionais, quem tem
como objeto as ações ou omissões do Estado ou de entidades privadas, com base na tutela da vida, na identidade
e integridade das pessoas, na saúde do ser humano atual ou futuro, tendo em vista também as suas relações com
a biomedicina. (FABRIZ, 2003, pp. 319-320).
373
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COSTA JR., Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 2ª ed. São
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GOMES, Luiz Flávio. Mídia e Direito Penal. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2040, 31
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374
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
RESUMO
1
Acadêmica do X Eixo do Curso de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis, Campus Canoas.
375
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ABSTRACT
The research here synthesized has as subject to present the issue of motherhood inside the
prison, based in the institutional routine from the maternal Child Unit in Madre Pelletier
Women´s Prison, located in Rio Grande do Sul, Porto Alegre. In this path, it is intended to
point the major results from the extension from the penalty from mothers to children,
emphasizing the stigmatization due to the inflow in the prison system, as well as the selective
character that this system adopts when it chooses as clients the ones that came from the
weakest groups from society. Besides that, the prison sentence characterizes an answer totally
inappropriate, whereas what is seen in penal conflicts, in most cases, are social problems.
When the State chooses an aggressive way to respond the committing of crimes that, in most
cases, are derived from the lack of resources and support to those who practice the
criminalized act, the State ends up to generate new problem-situations. Thus, can be seen a
complete value inversion. The Democratic Rule of Law, which has his center in the Human
Dignity, looking for a Complete Child Protection, ignores these principles, electing the
penalty as the absolute priority, subjecting the children and their mothers to a total
abandonment in favor of the enforcement of a sentence which is not justified, once doesn’t
prevent the violence, withdraws from society that one who is submitted to and doesn’t
prevents the person became to do the same violation. That analysis mainly consubstantiates in
the Critical Criminology studies and Abolitionist Movement, which bring us to believe that
the punishment is an irrational social control form, that only reproduces the violence instead
of prevent it.
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dos estudos criminológicos (CAMPOS, 1999, p. 14), nos deparamos com o caráter seletivo do
Direito Penal que tende a reproduzir a discriminação que a sociedade projeta sobre as
minorias, selecionando “as pessoas, quer para criminalizá-las quer para vitimizá-las,
recrutando sua clientela entre os mais miseráveis” (ESPINOZA, 2002, p. 35).
É da natureza humana não aceitar o outro, o diferente, excluindo-o dos grupos,
marginalizando-o. Figurando nessa parcela tida como “diferente” aos olhos da sociedade
podemos apontar as classes mais baixas, as crianças, as mulheres, a população negra, dentre
outros grupos (BECKER, 2008, p. 28-30). Em reflexo disso, os hipossuficientes, com menor
representatividade nos grupos sociais, costumam sofrer, com maior incidência, o controle
exercido pelos órgãos mantenedores da ordem social, quais sejam, a polícia, o judiciário e o
governo.
Dessa forma, analisando-se a população carcerária do Brasil, facilmente
perceberemos uma maior presença de homens, negros e pobres. Já no que diz respeito ao
encarceramento feminino, mesmo que constituído de contingente consideravelmente menor
que o masculino2, reveste-se de peculiaridades, impostas por diversos fatores, dos quais
imperioso se faz salientar dois dos mais evidentes: as diferenças biológicas entre os sexos e a
característica patriarcal da nossa sociedade (ESPINOZA, 2004, p. 122-123).
Por consequência desses dois fatores evidenciados, insurgem as peculiaridades do
aprisionamento feminino e, em especial, a problemática da maternidade durante o
cumprimento de pena restritiva de liberdade. Assim, para que se possa realizar uma melhor
compreensão a respeito das consequências e da forma em que essa maternidade ocorre, nos
valeremos de perspectivas criminológicas associadas às teorias oriundas do movimento
feminista.
Nesse contexto, importante salientar que tanto o feminismo, como a criminologia não
permitem um conceito fechado, ou uma análise de sua evolução histórica onde se observe a
exclusão de uma teoria através de sua superação por outra mais atual (CARVALHO, 2009, p.
294-338). Ao contrário disso, observam-se diversas teorias aplicáveis ao momento histórico
que se vive, das quais faremos uso na tentativa de compreender as especificidades do
encarceramento feminino.
2
A população carcerária feminina, no Rio grande do Sul, representa 7% do total de indivíduos cumprindo pena
nos estabelecimentos prisionais do estado, ou seja, um total de 2.000 detentas. (Dados obtidos através de
relatório gerado pelo Departamento de Planejamento da SUSEPE, atualizado em 06/07/2012. Disponível em:
<http://www.susepe.rs.gov.br/conteudo.php?cod_menu=31>. Acesso em 11 jul. 2012.
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5
Em relação a esta institucionalização, importante salientar o pensamento de Goffman a respeito das
consequências causadas pelo confinamento em instituições totais, tais quais as prisões: “Se ocorre mudança
cultural, talvez se refira ao afastamento de algumas oportunidades de comportamento e ao fracasso para
acompanhar mudanças sociais recentes no mundo externo. Por isso, se a estada do internado é muito longa,
pode ocorrer, caso ele volte para o mundo, o que já foi denominado desculturamento ou destreinamento - que
o torna temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária.” GOFFMAN, Erving.
Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 23.
6
Dados obtidos através do InfoPen – Estatística, relatórios Estatísticos - Analíticos do sistema prisional de
cada Estado da Federação, divulgados pelo Ministério Público Federal (versão dez 2011). Disponível em: <
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRN
N.htm >. Acesso em 11 jul. 2012.
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7
Resolução n. 3/2009, CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA – CNPCP,
publicada no Diário Oficial da União no dia 16/7/2009, na Seção 1, p. 34-35.
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8
Art. 6º Deve ser garantida a possibilidade de crianças com mais de dois e até sete anos de idade permanecer
junto às mães na unidade prisional desde que seja em unidades materno-infantis, equipadas com dormitório
para as mães e crianças, brinquedoteca, área de lazer, abertura para área descoberta e participação em creche
externa. Resolução n. 3/2009, CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA –
CNPCP, publicada no Diário Oficial da União no dia 16/7/2009, na Seção 1, p. 34-35
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além dos filhos alojados na unidade tivessem filhos fora dali. Todas as entrevistadas
participaram voluntariamente da pesquisa.
No primeiro dia de trabalho, ao conhecermos o andar térreo da unidade, pudemos
averiguar a presença de diversos vidros quebrados, situação que resulta em um ambiente frio e
úmido. Além das péssimas condições das vidraças, a construção possui arquitetura antiga,
edificada para abrigar um convento, sendo, desse modo, muito alta, o que propicia corrente de
vento, deixando o local ainda mais gelado.
O chão de concreto, já deteriorado pelo tempo, apresenta muitas rachaduras e um
aspecto de sujo, impressão que se tem, principalmente, por se tratar de alvenaria muito antiga,
que poucas vezes se sujeitou a reformas. Fria, úmida, suja e com piso irregular é a área de
convivência, nada propícia para crianças, que sequer podem engatinhar nesse espaço. Existem
grades que delimitam o ambiente da unidade, o que ressalta a ideia de encarceramento. O
pouco mobiliário presente é muito antigo, não havendo lugar próprio para o armazenamento
de materiais como leite em pó, cigarros, fraldas e chupetas, os quais dividem espaço em
caixas alocadas no sofá da sala da assistente social.
Esse andar térreo é composto por: um banheiro; uma sala dedicada ao atendimento
psicossocial; uma sala para atendimento pediátrico; um amplo espaço destinado à feitura das
refeições; uma sala com televisão e alguns livros, chamada de sala de lazer; uma sala
específica para a administração; uma pequena “lavanderia”, com uma máquina de lavar
roupas e um tanque; um espaço não coberto destinado ao “banho de sol” e à secagem de
roupas. A entrada na unidade se dá através de uma pequena porta gradeada, para a qual se tem
acesso por meio de um pátio não muito utilizado. Do corredor central, pode-se avistar uma
escada com dois lances de degraus, dando acesso ao segundo andar, local em que se
encontram os alojamentos. Nessa primeira visita, apenas conhecemos o andar térreo ora
descrito.
Somente no último dia de nosso trabalho fomos apresentados aos demais ambientas
que compõem a unidade. Acompanhados da agente que coordena os serviços na “creche”,
subimos os dois lances de escadas e deparamo-nos com os quartos – alojamentos divididos
conforme a idade dos bebês, nos quais as apenadas e as crianças passam a maior parte do
tempo. Os alojamentos são compostos por camas e colchões, e cada “família” guarda seus
pertences, tentando criar uma atmosfera que lembra um quarto infantil. O que mais se pode
observar nesses locais é a presença de muitas roupinhas dobradas pelos cantos e alguns
(poucos) brinquedos.
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estereótipos, valendo-se das chamadas “teorias de todos os dias”9 para exercer o seu poder de
criminalização e punição àqueles que desrespeitarem as normas impostas.
Além disso, importante salientar que, das doze entrevistadas, onze estava
respondendo por envolvimento com tráfico e a única que foi processada por outro crime
(roubo), alegou já ter passado pelo sistema em decorrência de envolvimento com o tráfico. A
maior parte delas afirma ter se envolvido com esse tipo de prática a fim de prover o sustento
da família.
Além dos baixos salários averiguados nas respostas dos questionamentos, o próprio
envolvimento com tráfico de pequeno porte evidencia que a desigualdade social é o maior dos
problemas vivenciados pela população carcerária analisada. Por estar tão clara essa
problemática em nossa vivência, imperioso destacarmos o pensamento de Mathiesen, o qual
afirma que ao descriminalizarmos os crimes de drogas, além de diminuirmos,
significativamente, os outros delitos decorrentes de seu comércio ilegal, esvaziando,
consideravelmente as prisões, efetivamente ameaçaríamos e liquidaríamos “o poder dos
figurões que hoje em dia não terminam na prisão, porque ela está sistematicamente reservada
para os pobres” (MATHIESEN, 2003, p. 97).
O que Mathiesen quer dizer é o mesmo que vislumbramos em nossa pesquisa: as
grandes figuras do tráfico de drogas, os grande “patrões” desse comércio, não acabam nas
penitenciárias, esses possuem recursos o suficiente para não se submeterem ao sistema penal.
O tráfico que é punido, é o tráfico da subsistência, é o tráfico da mãe, que para sustentar os
filhos se submete à lei paralela das drogas, é o tráfico da esposa que leva entorpecentes para o
presídio, para manter a dignidade do marido recluso. São os pequenos que figuram no banco
dos réus, enquanto o problema que tanto a sociedade quer combater, por escolha dessa mesma
sociedade, permanece em liberdade.
Já em relação à estigmatização oriunda pelo ingresso no cárcere, observamos que,
dentre as doze entrevistadas, nove temem ou já foram discriminadas em decorrência do
aprisionamento. Nota-se que a preocupação maior destas apenadas é a dificuldade em inserir-
se no mercado formal de trabalho, ideia essa que parece de acordo com o paradigma do
9
As “teorias de todos os dias” são as predisposições dos julgadores, legisladores e da sociedade em geral de
esperar daqueles que costumam cometer certas condutas, que as venham cometer sempre, realizando um pré-
julgamento em relação a determinados indivíduos apenas com base em suas posições sociais, ou suas
características psicológicas ou biológicas. A respeito ver BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e
crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 176-
177.
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10
Expressão americana traduzida por alguns autores como teoria do etiquetamento (BARATTA, Alessandro.
Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2002 e SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: R. dos Tribunais,
2011).
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filhos?
Com a avó.
Pesquisadora: Quais as suas perspectivas para o pós-cárcere?
Mãe 5: Cuidar dos meus filhos.
Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de fazer algum
comentário ou deixar algum registro, a entrevistada relatou o que
segue:
Mãe 5: Minha mãe tem 65 anos, os meus filhos precisam de mim.
Obs.: A Assistente Social informou que esta detenta já perdeu a
guarda de quase todos os filhos, ao quais estão em abrigos.
Como podemos observar, a pena restritiva de liberdade acaba estendendo seus efeitos
à família das condenadas, em especial à pessoa dos filhos. Na composição atual das famílias
que integram nossa sociedade, o papel da mulher vai além do papel de mãe. Nessa nova
organização familiar, a mulher, além de cuidar dos filhos, provê o sustento e administra a
família. Quando o Estado a retira desse núcleo causa um problema estrutural, deixando essas
crianças sem recursos e sem cuidados, onerando, por muitas vezes, pessoas alheias à relação
familiar.
O isolamento gerado pela falta de procura por parte da família é somado ao fato de a
mulher ainda sofrer restrições em relação à visita íntima. É comum que as penitenciárias
femininas, ao contrário das masculinas, não disponham de local apropriado para a realização
dessa visita. Além da falta de estrutura, boa parte das prisões, através de seus regulamentos
internos, impõem uma série de restrições à entrada de parceiros das apenadas, fazendo-os
passar por procedimentos que não são observados em estabelecimentos prisionais masculinos.
Em certas instituições, a presa só pode receber visita íntima se for casada, o que se aplica a
minoria da população carcerária (ESPINOZA, 2002, p. 53). Assim, as apenadas padecem de
um conforto que o contato com seus entes queridos poderia vir a proporcionar-lhes.
Em relação à permanência dos filhos no cárcere, além da submissão dessas crianças
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domiciliar.
Pesquisadora: Quando questionada se gostaria de registrar mais
alguma coisa, ou contar algo importante, disse:
Mãe 4: [...] Decidi ficar com ele, mesmo que ele me culpe. Desde
pequeno eles já carregam que foram preso, eles pagam pelos nosso
erros.
Eles deviam dar oportunidade pras pessoas.
A gente espera, espera, ninguém olha por nós, algumas merecem.
Que deem uma domiciliar, a brigada que passe nas casas pra cuidar.
A gente devia se fixar, se organizar, deixar o filho bem.
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Tanto para as crianças, como para as mães, a situação da “creche”, da forma que se
dá hoje, é extremamente inadequada. As crianças encontram-se em um local úmido, sujeitas
às brigas que ocorrem entre as detentas e a um ambiente totalmente hostil, que apesar de ser
diferenciado do restante da penitenciária, não perde seu caráter institucional e seu perfil
prisional. As mães e bebês carecem de atendimento especializado, alimentação adequada e
amparo familiar, o que vai contra toda e qualquer percepção de humanidade, ferindo,
drasticamente, a Dignidade da Pessoa Humana, fundamento do Estado Democrático de
Direito, que é a diretriz maior para a aplicação e efetividade das normas (SARLET, 2008, p.
63-68).
Logo, os castigos corporais que tanto nos orgulhamos de termos extinguido de
nossos sistemas de controle, se fazem presentes. A pena de prisão, com a privação de ar, de
sol, de luz, de espaço; o odor, a cor da prisão, as refeições sempre frias, a falta de atendimento
médico, a proliferação das doenças, todos esses são fatores que degradam o corpo
(HULSMAN, 1993, p. 62). Assim, mães e crianças são sujeitas a essa modalidade de tortura
física, que mascarada por detrás de um processo no qual o acusado, devidamente julgado,
merece a pena que recebeu, fazem essa degradação corpórea aceitável. Os esforços para
infligir apenas uma pena justa, criam esses sistemas rígidos, insensíveis às necessidades
individuais (CHRISTIE, 1984, p. 7), permitindo que situações como essas se concretizem sem
causar estranheza.
Além de todas as limitações já expostas, a restrição do desenvolvimento de crianças
a um local restrito e sem o devido acompanhamento familiar é tão prejudicial porque, como
nos ensina a psicologia, é nos primeiros anos de vida que se vislumbram as principais fases de
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separação os dias passados na penitenciária nos deixaram clara a ideia de que um novo
sistema se faz necessário e que a mudança deve partir de cada um de nós. Talvez esse tenha
sido o momento de nosso “salto mortal”, conforme bem salienta MARCO SCAPINI (2012, p.
08), na leitura de Louk Husman.
3. Considerações Finais
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vilões, que devem ser castigados a fim de proteger os cidadãos de bem, que no fim do mês
têm condições para adquirir os produtos de suas patrocinadoras.
Assim, uma cultura punitivista se solidifica e mesmo quando deflagrada a
desumanidade dos ambientes prisionais, a população esmorece apenas no sentido de que
deveriam ser reformados os presídios. Não se reflete se esse investimento não seria melhor
utilizado para tratar dos problemas sociais que inundam as prisões. Não se fala que mesmo em
países com penitenciárias exemplares a reincidência e a criminalidade se dão em números
muito semelhantes aos nossos. A sociedade não se permite aceitar que existem outros
métodos de se resolver os conflitos sem dispor da violência da institucionalização.
Dentro da micro realidade analisada pudemos averiguar uma alta incidência de
delitos oriundos do tráfico de drogas (isso para não se dizer que vislumbramos apenas esse
tipo de delito). Mas com que tipo de tráfico nos deparamos? Fomos apresentados ao “tráfico
social”, ao “tráfico da subsistência”. Como punir esse tipo de crime, que se origina na vontade
de manter-se vivo, no intuito de sustento? Como aprisionar mães por tentar sustentar seus
filhos? Somente através de uma irracionalidade cega que podemos considerar a pena restritiva
de liberdade como meio idôneo de resolver esse tipo de situação.
E a conclusão a que chegamos não foi uma resposta, foi um questionamento: por que
não investimos em uma rede social sólida em vez de causar mais problemas sociais com o
encarceramento de mães, que além de mães/mulheres/pobres, são arrimos de família? Em
busca dessa resposta, só pudemos concluir que a mudança deve ser total e não parcial, que
uma reforma não é suficiente, mas apenas a exclusão de um sistema que somente causa
problemas, no lugar de solucioná-los, é capaz de diminuir a imposição de tantos sofrimentos.
Assim, filiarmo-nos a uma ideologia que oferece a mudança através de da adaptação
do sistema existente não nos parece suficiente. Reformar o que se tem é, para nós, reforçar a
legitimidade de um Direito Penal que seleciona, estigmatiza e isola seus clientes – as camadas
inferiores da sociedade. Dessa forma, acreditamos que apenas negando o modelo atual e
tentando formas totalmente diversas, alcançaremos a verdadeira mudança.
Há quem diga que essa perspectiva é utópica, inalcançável e que ignora os problemas
imediatos. No entanto, as mudanças concretas só ocorrem quando dadas de forma radical,
desprendidas dos antigos paradigmas. Portanto, se não acreditarmos na utopia estaremos
estanques a um reformismo limitado, que provavelmente nunca venha a atacar o cerne do
problema. Portanto, não vislumbramos impedimentos que obstaculizem uma solução humana,
quando esta é possível. Não há motivos para fazer dos casos insolúveis a regra, quando se
pode resolver boa parte das situações de forma mais branda e mais eficiente.
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Acreditamos que essa forma, como bem sustentam Mathiesen, Christie e Hulsman, é
realizável através da aproximação das partes, em um cenário público alternativo “onde a
argumentação e o pensar escrupuloso sejam valores dominantes; um espaço público com uma
cultura diferente que no final possa competir com o espaço público superficial dos meios de
comunicação de massa” (MATHIESEN, 2003, p. 108). Por fim, entendemos que a extensão
das penas aos filhos de apenadas vai contra todos os valores predominantes em nossa
sociedade e em nosso ordenamento, mas só se concretiza porque se dá prioridade a um castigo
irracional, em detrimento da dignidade dos seres.
400
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REFERÊNCIAS:
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2007.
CHRISTIE, Nils. Los Límites del Dolor. México: Fondo de Cultura Económica, 1984.
401
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HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: O sistema penal em
questão. Rio de Janeiro: Luam, 1993.
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SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: R. dos Tribunais, 2011.
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A REALIDADE CARCERÁRIA
Denise Hammerschmidt
Gilberto Giacoia
RESUMO: Este texto objetiva propiciar uma leitura crítica no âmbito da execução penal, de
modo a orientar o intérprete, sob inspiração do permanente contraste entre o conteúdo
técnico-jurídico da norma e as mazelas carcerárias, a sempre mediar a distância entre o
modelo proposto e o efetivamente implementado, de modo a cobrar, cada vez mais, reformas
racionais no modo de condução de um dos processos mais complexos do ordenamento
jurídico. Cuida, pois, destas distorções estruturais, vistas sob viés histórico, voltado à
cobrança de um sistema humanitário, centrado na condição de dignidade do recluso, enquanto
pessoa humana. Esse balanço entre o normativo e o estrutural, o teórico e o prático, o virtual e
a realidade, no contexto do complexo ambiente penitenciário, se faz sempre impositivo para a
concepção de políticas públicas de segurança. Assim, sob encaixe na área da criminologia e
sociologia criminal, busca o artigo enfatizar, no marco teórico da temática da execução penal
digna, pela objetiva do retrospecto histórico das políticas de estratégias repressivas e de suas
perspectivas a partir da aguda crise da prisão que a abate, seus graves efeitos sobre a
personalidade do recluso, pontuando como tem atuado em quase todo mundo como fator
criminológico, tudo derivado das adversas condições materiais e deformação psicológica à
pessoa submetida a tratamento carcerário, com afetação à dimensão de sua dignidade humana.
Seu conteúdo crítico tenta indicar o claro diagnóstico atual do cárcere, extraindo o sentido
prático de melhor compreender os mecanismos pelos quais a pena vive um constante e
incessante processo de busca de legitimação, invariavelmente sem melhor êxito ideológico.
ABSTRACT: This paper aims to provide a critical reading about the penal execution, in order
to guide the reader, under the inspiration of the permanent contrast between the technical and
legal content of the law and the woeful situation of prison, to always mediate the distance
among the proposed model and the one effectively implemented, in order to charge more and
more rational reforms in how to conduct one of the most complex procedure of the legal
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system. It revolves about these structural distortions, allied with an historical view, geared to
the recovery of a humanitarian system, focused on the condition of the prisoner's dignity as a
human being. This balance, between normative and structural, theoretical and practical,
virtual and reality, in the context of the complex prison environment, must always occur for
the conception of public security policies. Therefore, dealing with criminology and criminal
sociology areas, the article seeks to emphasize, on the theoretical framework issue of the
dignified criminal enforcement, by the historical retrospective of the repressive strategies and
its prospects, from the acute crisis of the prison system, its serious effects on the personality
of the prisoner, pointing the worldwide action as a criminological factor, derived from all the
adverse material conditions and psychological strain to the person submitted to custodial
treatment, reflecting on the measurement of his human dignity. Its critics contents seek to
indicate a clear diagnosis of the current prison, extracting the practical sense of an accurate
understanding of the mechanisms, by which the penalty is experiencing a constant and
unremitting process of self-legitimation, invariably without a ideological growth.
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INTRODUÇÃO
Os objetivos do sistema penal não estão sendo alcançados em todo mundo, apesar dos
avanços tecnológicos mais sofisticados. A administração do regime penitenciário, para a
execução da pena privativa de liberdade por meio da prisão, desvia-se cada vez mais das
metas idealizadas. Assim, apesar das legislações estabelecerem propostas de reabilitação do
preso, não passam elas, geralmente, de mitos que compõem a enorme lista de declarações
retóricas, sem muito sentido de eficácia. Pelo contrário, tais ficções acabam, devido a sua
inaplicabilidade prática, por produzir os fenômenos da estigmatização carcerária e da
reincidência que compõem o drama trágico e as consequências nefastas da vida na prisão.
Esta tendência mostra-se clara ao longo do tempo e é melhor percebida a partir de
uma breve resenha histórica das origens da prisão, dos efeitos nocivos que a pena privativa de
liberdade produz no recluso, em sua familia e na sociedade em geral. Desde a perspectiva do
interacionismo simbólico e especificamente do conceito de Instituição Total, proposto e
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desenvolvido por Erving Goffman ainda em 1961, pode-se observar os propalados fins
utilitários de reabilitação e reinserção social apenas propostos pelo Estado repressor, mas
difícilmente atingidos.
Fatores psicológicos e sociológicos compreendidos no desenvolvimento de um
tratamento em recinto fechado, sem possibilidade de saída, comunicam-se com os valores ali
dominantes e acabam por criar um ambiente antagônico às relações próprias da vida em
liberdade. Em outras palavras, o mau uso da prisão, além de gerar distorsões entre políticas
criminais e programas de governo que se dizem democráticos, ergue muros intransponíveis
entre a prisão e a sociedade livre, de modo a se manter a verticalidade que, tradicionalmente,
sustenta o status quo.
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muitos saques passaram a ocorrer nas cidades e incêndios nos povoados e vilarejos. As
intensas guerras verificadas nesse período provocaram redução da população e miséria cada
vez maior. Daí o surgimento em grande escala de vagabundos e mendigos nos arredores das
cidades. A prisão, portanto, em seu desenvolvimento histórico, não foi criada propriamente
com o propósito de encarcerar delinquentes. A privação da libertade como espécie de castigo
institucionalizado pelo Direito Penal aparece somente há cerca de duzentos anos, no século
XVIII, ou seja, no apogeu da Revolução Industrial, mais para regular mercado de trabalho,
produção, consumo de bens e proteger a propriedade da classe dominante.
Em “Vigiar e punir: história do nascimento da prisão”, publicado na França em
1975, Foucault começa sua narração com a reprodução de uma tortura acontecida em 1757,
em Paris, menção que associa castigo à tortura pública, característica que mais tarde, segundo
ele, se modificou. É então a partir do término da tortura do corpo como castigo que surge
outra forma de punição, segundo o mesmo Foucault:
Mas há quem, ao contrário, sustente que as prisões dos criminosos surgiram como
reação à natureza bárbara e aos excessos das penas anteriores: a prisão teria sido uma das
formas mais adiantadas de abolição das sanções penais tradicionais5.
Outros, como Melossi e Pavarini6, apoiam a tese de surgimento da prisão relacionada
ao sistema capitalista de produção e trabalho:
409
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É interessante esta visão do autor italiano, por meio da qual conjectura ser a prisão
um meio de controle e dominação manipulado pelo mercado de trabalho, de modo a gerar
mão de obra barata, obrigando homens livres e trabalhadores a aceitar qualquer trabalho e
salário. Estes são mais ou menos os princípios que regem a chamada Criminologia crítica ou
radical, de inspiração marxista, segundo os quais o delito depende do modo de produção
capitalista. A lei seria parte essencial da estrutura do sistema de produção e legitimaria a
violência econômica por parte de quem detém o poder. O Direito, por sua vez, seria ideologia
e não ciência e os que trabalham com ele instrumentos desta ideologia. O conceito de crime
estaria associado à violação de um sentimento de solidariedade, e o delito mais grave seria a
exploração de uma das maiores riquezas da pessoa humana, a mão de obra do trabalhador9.
Rusche e Kinchheimer, na obra de sua autoria antes citada, sustentam esse
entendimento. Meio de produção e mercado de trabalho em uma sociedade capitalista
dependem de um sistema punitivo ou a ele estão estreitamente vinculados.
Desde esta perspectiva, portanto, qualquer proposta para melhorar a vida no interior
da prisão só seria possível com a transformação total da estrutura econômica e política de toda
a sociedade.
Diversas tendências teóricas, de corte crítico, seguiram-se a esse pensamento na
mesma linha da Criminologia crítica, como as teorias da desviação ou de sistemas, Direito
Penal do risco, Criminologia da vida cotidiana, garantismo jurídico, todas tentando explicar
o funcionamento do sistema penal por diferentes visões da hierarquia de valores sociais, pelos
410
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quais tentam justificar a intervenção penal também por distintas concepções que, aqui,
obviamente pelos limites do texto, não serão desenvolvidas.
Não se pode negar, entretanto, o valor de referidas colocações à compreensão
histórica da prisão, segundo sua linha evolutiva.
“Uma instituição total pode definir-se como um lugar de residência e trabalho, onde um
grande número de indivíduos em igual situação, isolados da sociedade por um período
apreciável de tempo, compartilham na clausura uma rotina diária, administrada
formalmente”.10
“todas as etapas das atividades diárias estão estritamente programadas, de modo que uma
atividade conduz a um momento prefixado ao seguinte, e toda a sequência delas se impõe
desde cima, mediante um sistema de normas formais explícitas e um corpo de
funcionários... Os internos moram dentro da instituição e têm limitados contatos com o
mundo além das quatro paredes ”12
411
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“às vezes se lhes exige tão pouco trabalho que os internos, com frequência não habituados
aos pequenos afazeres, sofrem crises de aborrecimento/tédio... Haja muito trabalho, ou
muito pouco, o indivíduo que internalizou um ritmo de trabalho fora dali tende a
desmoralizar-se pelo sistema de trabalho da instituição total”.13
E ainda:
“As instituições totais caracterizam-se pelo uso de sistemas de mortificação e de
privilégios. A mortificação, fundamentalmente, mediante a separação do exterior e por
meio de processos de desfiguração e contaminação, produz mudanças progressivas nas
crenças que o sujeito internado tem sobre si mesmo e sobre os outros, atuando como uma
mutilação do eu”.14
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„o destino do castigo é nunca „ter êxito‟ pleno devido a que as condições mais
ativas para induzir a conformidade – ou para fomentar a delinquência e o desvio –
ficam fora da jurisdição das instituições penais (...). Se as sociedades modernas se
repensassem e reorganizassem conforme estes postulados, esperariam menos
„resultados‟ da política penal. Com efeito, começariam a considera-la como uma
forma de política social que deveria reduzir-se, na medida do possível.
E conclui como o próprio Garland apontou, “não parece que essa tendência vá se
produzir, a não ser que, pelo contrário, isso apontará, cada vez mais, para uma autêntica
sociedade ou para uma verdadeira „cultura do controle‟”.
414
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
"A gente pensa que a pena termina com a saída do cárcere, e não é verdade; a
gente pensa que o ergástulo é a única prisão perpétua, e não é verdade. A pena,
senão propriamente sempre, em nove de cada dez casos, não termina nunca. Quem
pecou está perdido. Cristo perdoa, mas os homens não...".
415
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6. Advertências conclusivas
Na mesma linha do até aqui tratado, o jurista alemão Claus Roxin busca demonstrar
que ninguém aprende a viver em liberdade, sem liberdade, para reforçar a ideia de que a
prisão não serve para ressocializar, mas sim, e fundamentalmente, para castigar.
Mas, enfim, para que serviria, então, esse castigo?
Seu fracasso pode-se medir pelas alarmantes taxas de reincidência. A chamada cifra
mágica, realçada por Bertrand e produzida sempre e em qualquer lugar. Tal cifra nos leva a
especular que, quem não reincide depois da prisão é porque não reincidiria sem ela, por outro
lado, muitos dos que reincidem só o fazem por terem passado pela prisão. Bem ao contrário,
no entanto, investigações sérias e criteriosas, como as levadas a cabo por Lola Aniyar25, dão
conta que, nos regimes abertos de execução de pena, as taxas de reincidência são
insignificantes.
Como exposto anteriormente, os efeitos devastadores resultantes da função
disciplinadora da prisão, como os produzidos pelo fenômeno da prisionalização e de outras
culturas carcerárias como visto, longe estão de cumprir fins ressocializadores. Viu-se, assim,
que a prisão acaba servindo mais para mostrar a quem se distribui, pela irracional seletividade
da pena, o bem negativo da criminalidade. Junto com esta função latente, está a função
explícita de castigar somente a uns poucos – processo de rotulação -, já que o sistema seletivo
tem limites de capacidade operativa que já existem no próprio tecido social, filtros poderosos
da chamada delinquência real, seletiva e simbólica.
Qual seria, então, o caminho a seguir? A resposta não pode ser dada de um ponto de
vista técnico-jurídico, desvinculado do trágico filme da realidade carcerária e que deve ser
permanentemente revisto.
De fato, restaram muito claras, da retrospectiva histórica que se fez, as enormes
dificuldades e o quase nulo alcance que teve a função ressocializadora da pena aplicada a
criminosos submetidos à prisão fechada.
As instituições penitenciárias, hoje, estão cada vez mais sobrecarregadas de tarefas e
objetivos que, na verdade, não podem cumprir. Enquanto persistirem as deficiências do
cárcere - tais como falta de espaço adequado de modo a não provocar excessivo amontoado de
416
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“A prisão não reeduca ninguém, não é possivel aceitar mais, de uma vez por todas, a
pretensão de fazer compreender a um encarcerado que deverá levar uma vida futura em
liberdade, sem delitos, para o qual, paradóxicamente… lhe priva da liberdade!”30
Ninguém é tão ingênuo a ponto de não compreender que a execução penal implica,
necessariamente, numa relação de poder que tem, na maioria dos casos, o propósito de impor
valores dominantes em um dado meio social. E a existência do Estado continua sendo, ainda,
absolutamente imprescindível para a convivência humana na etapa atual da civilização. Ora,
418
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mesmo que se pudesse pensar em um suposto estado de natureza - inconcebível nas condições
da vida moderna -, sem dúvida, o homem cuidaria de conceber qualquer outra forma de
estrutura de poder capaz de dominação. Esse ligeiro escorço histórico da prisão, assim, põe
um pouco em relevo o mais rigoroso instrumento repressivo que a justiça estatal vem
utilizando desde o século XVIII, para castigar um setor ao qual não são oferecidas, como
regra, as melhores oportunidades de ascensão social.
Como afirmado em outro texto, “a luta, sem embargo, deve ser constante e
apaixonada, senão para deter, ao menos controlar esta voraz via coativa de valores,
construindo uma sociedade cada vez melhor e mais justa, a partir do respeito à cidadania dos
presos, cimentada na derrubata das verticais barreiras ideológicas que têm dificultado,
impedido ou impossibilitado um substancial mundo de iguais”31
Enfim, não se pode cobrar o que não se dá. Os valores do bem não se destinam a
todos, de modo que a opção pelo mal nem sempre é livre, senão, muitas vezes, condicionada.
Não se pode esperar, no contexto de agudas desigualdades sociais, comportamentos lineares,
na perspectiva da afirmação e respeito aos valores consagrados como socialmente positivos
Que fazer, então? Tomar cada vez mais consciência da necessidade de melhorar nossas
instituições, a começar pelo cárcere, local onde fica ainda mais evidente que o depósito de
excluídos, transparentes e esquecidos no pacto social está claramente identificado ao seu
afastamento dos benefícios e oportunidades produzidos pela sociedade.
6. BIBLIOGRAFIA
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VIVES ANTÓN, Tomás S. 1996. “Fundamentos del sistema penal”, Valencia, Tirant lo
Blanch.
1
“La cárcel, que como pena privativa de libertad aparece a finales del siglo XVIII, en el Código Penal francés
de 1791 ha sido sustentada por distintas justificaciones en función de las concepciones vigentes en cada
momento histórico sobre la “cuestión punitiva”, concepciones que necesariamente remiten a las
interpretaciones que se han ido imponiendo sobre la “cuestión criminal”, sobre la criminalidad”. Bergalli,
Bustos y Miralles, 1983; Melossi y Pavarini, 1987, em García-Borés, Josep “La Cárcel”. Documentos de leitura
Master Oficial de Criminología y Sociología Jurídico Penal 2010-2012 pp.93, tradução nossa.
2
Costa, Fausto: "El delito y la pena en la historia de la filosofía"; México; 1953; pp.43; Ed. Uteha.
3
Rusche, George y Kirchheimer, Otto: "Pena y estructura social"; Bogotá; Ed. Temis; 1984; p. 25. Cita
E.F.Heckscher: "Mercantilismo"; p.145; Londres; 1935.
4
“Hemos ya señalado que la reforma del sistema punitivo encontró un terreno fértil, sólo a causa de que sus
principios humanitarios coincidieron con las necesidades económicas de la época”. Rusche, George y
Kirchheimer, Otto. op.cit. p. 99.
5
“la prisión fue una de las formas más tempranas de la separación de las sanciones penales tradicionales”,
Morris, Norval: "El futuro de las prisiones"; Ed. Siglo XXI, México, 1987; p. 20.
6
de hecho, antes de imponer la pena de privación de libertad, los ordenamientos penales contenían un
intrincado sistema de sanciones que sacrificaban algunos bienes de los culpados; la riqueza con las sanciones
pecuniarias; la integridad física y la vida con las penas corporales y la pena de muerte; el horror con penas
infamantes, etc.. Pero no consideraban la pérdida de la libertad por un cierto período un castigo apropiado
para el crimen, y eso porque simplemente la libertad no se ha tomado como un valor cuya pierda podría
considerarse un sufrimiento o un mal. Ciertamente, ya existía la cárcel como simple lugar de custodia donde el
imputado esperaba el proceso. Antes de la llegada del sistema capitalista de producción no existía la cárcel,
todavía, como lugar de ejecución de la pena propiamente dicha que consistía, como se ha señalado, en algo
distinto de la privación de la libertad. Sólo con la aparición del sistema de producción, la libertad ha adquirido
un valor económico.Melossi, Dario; e Pavarini, Massimo: "Control y dominación - teorías criminológicas
burguesas e projeto hegemónico”; Ed. Siglo XXI; México; 1983; p. 36.
7
“más bien hacia el horizonte del desencarcelamiento (Scull 1977) como destino necesario y auspiciable”,
Melossi, Dario y Pavarini, Massimo. “Cárcel y Fábrica. Los Orígenes del sistema penitenciário (siglos XVI-
XIX)”. Siglo XXI Editores.
8
“Cárcel sin fábrica” al movimiento de “alternativas al proceso penal, penas substitutivas, beneficios
penitenciarios, que marcan el recorrido reformista y progresivo de liberación de la necesidad de la cárcel. El
objetivo de reintegración del condenado ya no necesita de prácticas correccionales en la cárcel, sino que
requiere que la „community‟, lo social se haga cargo del desviado”, Pavarini, Massimo. “Cárcel sin fábrica”.
En “Castigar al enemigo. Criminalidad, exclusión e inseguridad”. Quito: Flacso. 2009. pp. 45-58 (cit. p. 47).
423
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9
Cirino dos Santos, Juarez: "A criminologia radical"; Ed. Forense; Rio de Janeiro; 1981.
10
“Una institución total puede definirse como un lugar de residencia y trabajo, donde un gran número de
individuos en igual situación, aislados de la sociedad por un periodo apreciable de tiempo, comparten en su
encierro una rutina diaria, administrada formalmente”, Goffman, Erving: "Internados"; Ed. Amorrortu;
B.Aires; 1961. pp.15
11
Ibidem. pp. 20-21
12
“todas las etapas de las actividades diarias están estrictamente programadas, de modo que una actividad
conduce en un momento prefijado a la siguiente, y toda la secuencia de ellas se impone desde arriba, mediante
un sistema de normas formales explícitas y un cuerpo de funcionarios... Los internos viven dentro de la
institución y tienen limitados contactos con el mundo, más allá de sus cuatro paredes”. Ibíd. pp. 22-23
13
“a veces se les exige tan poco trabajo que los internos, con frecuencia no habituados a los pequeños
quehaceres, sufren crisis de aburrimiento... Haya demasiado trabajo, o demasiado poco, el individuo que
internalizó un ritmo de trabajo afuera tiende a desmoralizarse por el sistema de trabajo de la institución total”,
Goffman, Erving: "Internados"; Ed. Amorrortu; B.Aires; 1961. pp.26
14
“Las instituciones totales se caracterizan por el uso de sistemas de mortificación y de privilegios. La
mortificación, fundamentalmente mediante la separación del exterior y por medio de procesos de desfiguración
y contaminación, produce cambios progresivos en las creencias que el sujeto internado tiene sobre sí mismo y
sobro los otros significativos, actuando como una mutilación del yo” García-Borés, Josep. “El Impacto
Carcelario” pp.7-8
15
Dr. García-Bores, Josep. “El Impacto Carcelario” pp.8
16
“la separación del desempeño de los roles sociales; el despojo de pertenencias; la desfiguración de su imagen
social habitual; la realización de indignidades físicas; la exposición humillante ante familiares; la privación de
relaciones heterosexuales.”Ibíd.
17
“Estado de Dependencia” (de tipo infantil), con pérdida de volición, autodeterminación y autonomía, debido
a la exhaustiva programación de la existencia en el recinto, el cual tiene una incidencia negativa en la identidad
del sujeto” Ibíd.
18
Para superarlo, al faltarle al interno las válvulas de escape propias de la vida civil, puede desarrollar
actividades de distracción, homosexualidad, fantasía, etc Ibíd.
19
“como categorización social del atributo de exrecluso con el consiguiente rechazo por parte de la
sociedad.”Ibíd.
20
Rivera Beiras, Iñaki: “Pena criminal, seus caminhos e suas possíveis formas”; Juruá, 2012, pp.80-81.
21
Rivera Beiras, Iñaki: “Pena criminal, seus caminhos e suas possíveis formas” – Tradução Denise
Hammerschmidt, Juruá, 2012, p. 90.
22
Garcia-Borés, J.: “El impacto carcelario”. Op.cit. p. 6 Plan Docent.
23
Rivera Beiras, Iñaki: “Pena criminal, seus caminhos........” – Tradução Denise Hammerschmidt, Juruá, 2012,
p. 68.
24
"La gente cree que la pena termina con la salida de la cárcel, y no es verdad; la gente cree que el ergástulo es
la única pena perpetua, y no es verdad. La pena, sino propiamente siempre, en nueve de cada diez casos, no
termina nunca. Quien ha pecado está perdido. Cristo perdona, pero los hombres no..."Carnelutti, Francesco:
"Las miserias del processo penal"; 1959; p. 126; citado por Cezar Roberto Bitencourt; RMPRS; 1994.
25
Aniyar de Castro, Lola: "Notas para um sistema penitenciário alternativo"; JBC; Ed. Juruá; n. 35.
424
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26
Até mesmo quando da exposição de motivos do Projeto da Proposta de Lei de Execução de Penas e Medidas
Privativas de Liberdade portuguesa.
27
Canotilho, José Joaquim Gomes (coord.): “Direitos humanos, estrangeiros, comunidades migrantes e
minorias"” Celta Editora; Oeiras; 2000; p. 64.
28
Balado, Manuel e Regueire, J.Antonio García (dir.): “La declaración universal de los derechos humanos en su
50 aniversario”; Editorial Bosch S.ª; Barcelona; 1998; p. 14.
29
Roig, Francisco Javier Ansuátegui: “Derechos fundamentales, poder politico e poderes sociales”; em
“Direitos humanos: a promessa do século XXI”; Elsa (Universidade Portucalense); Porto; 1997; ps. 191-204.
30
“La cárcel no reeduca a nadie, no es posible aceptar más, de una vez por todas, la pretensión de hacer
comprender a un enca**rcelado que deberá llevar una vida futura en libertad, sin delitos, para lo cual,
paradójicamente…se le priva de la libertad!Bergalli, Roberto. “Prólogo dialogado II”. En Ribeira Beiras, I. La
cuestión carcelaria. Historia, Epistemología, Derecho y Política penitenciaria”.Buenos Aires: Editores del
Puerto. 2009, XXIX.
31
Giacoia, Gilberto; Hammerschmidt,Denise. La cárcel en España, Portugal y Brasil – La experiencia histórica
bajo perspectivas criminológicas. Curitiba:Juruá, 2012, p. 108.
425
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Abstract: The ruthless functioning of the psychiatric’s judicial institutions of treatment has
drawn the attention of the criminologists for decades. Undoubtedly, causing astonishment to
them, and to us, is the fact that the so-called "treatments" that the mentally patients are
submitted, violated a larger portion of human rights / fundamental than the actual deprivation
of freedom applied to ordinary prisoners. In reality there are no state institutions that reveal so
1
Advogado. Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PI. Mestrando em Ciências Criminais
pela PUCRS. Email: gustavovasconcelosadv@hotmail.com
2
Advogada. Mestra e Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS. Email: thaybranco@yahoo.com.br
426
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much indifference to citizens, as the asylums. This study aims to penetrate, through the René
Girard concept of modern victim’s caution, far below the phenomenology, and unveil the idea
behind the founding dean of the first asylums and analyze how this seems to have been lost
through the centuries and the many layers of theories and discourses.
INTRODUÇÃO
3
Girard também empreende um estudo particular à obra de Dostoievski, ver Girard (2011d).
427
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triangular: o homem é um ser que não sabe o que desejar e indeciso em um mundo cheio de
variantes busca modelos, o modelo é aquele que designa ao imitador o que desejar. Na
relação entre imitador (sujeito desejante) e modelo (sujeito que designa o objeto), chegará o
momento em que o imitador aproximar-se-á cada vez mais do objeto desejado e, exatamente
por isso, tenderá a entrar em conflito com seu modelo, o qual, na tentativa de obstruir o acesso
do imitador, tornar-se-á modelo-obstáculo. Assim o desejo nasce triangular, e quanto mais o
imitador deseja o objeto, mais o modelo tenta protegê-lo e, quanto mais tenta protegê-lo, mais
reforça o desejo do imitador, que por sua vez ao desejar cada vez mais reforça o desejo do
modelo (GIRARD, 2008, p. 32). Deste modo ambos estão presos a uma espiral mórbida que
em muitos casos resultará na destruição do imitador e do modelo, e esse é um tema recorrente
na literatura universal. Para Girard, essa violenta escalada dos rivais em busca do objeto é a
causa predominante da violência humana, das pequenas rivalidades às guerras. Os rivais
agridem e se atacam mutuamente, e quanto mais procuram diferenciar-se um do outro, mais
se assemelham, visto que imitam-se na rivalidade. (GIRARD, 2009, p.60)
A polarização da violência dos rivais (ou de grupos rivais) pode se alastrar e
contaminar toda a comunidade (GIRARD, 1999, p. 15). Com a pulverização deste conflito
surgem rivalidades dentro dos pequenos grupos, sua consequente divisão e o surgimento de
pequenos conflitos dentro dos maiores. Em pouco tempo o contágio violento descamba para a
guerra de todos contra todos, uma aguda crise de indiferenciação 4. Por esta crise entenda-se a
quebra das barreiras culturais que impedem os homens usar da violência uns contra os outros 5
(GIRARD, 1990, p. 69). As diferenciações sociais foram arquitetadas para evitar a eclosão e o
contágio do conflito e, quando elas não funcionam mais, há o colapso violento da ordem
cultural e surgimento de uma nova (GIRARD, 2004, p. 59).
Todos os cultos, ritos e instituições das sociedades arcaicas evoluíram no sentido de
evitar a guerra de todos contra todos, transformando-a em guerra de todos contra um. Ou seja,
os rituais do mundo antigo canalizam a violência do grupo contra uma vítima comum, uma
vítima expiatória (GIRARD, 1990, p. 119). Essa “aliança” apazigua e une o grupo, evitando
sua completa destruição. A união de todos contra um se concretiza no sacrifício ritual, nele a
vítima substitutiva é morta, atraindo para si toda a agressividade do corpo social, trazendo um
conforto que, para os antigos, decorria da intervenção dos deuses.
5
Por exemplo, o respeito do filho pelo pai, do aluno com o mestre, do súdito para com o rei.
428
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A tese de Girard (2008, p. 53) é de que os mitos não são invenções ou fábulas, como
acreditavam os estudiosos do sec. XIX, mas sim eventos reais, que com o tempo foram
transformados em rituais, havendo a ocultação de sua origem violenta. Os rituais são
reencenações do mito, com um tempo próprio (tempo ritual ou eterno presente), e seguindo
um roteiro determinado e imutável: um rito (ELIADE, 2010, p. 12). Para os participantes o
ritual é revivido, ou seja, da perfeição de sua repetição depende que o mundo permaneça
como é. Por isso todas as fórmulas precisam ser rigorosamente observadas para que o mito
ganhe vida novamente. E o mito que os rituais antigos relembram é, segundo Girard (1990, p.
119), um assassinato ocorrido de fato. Os rituais tentam emular a paz trazida pela expulsão ou
morte de uma vítima verdadeira, que ocorreu em tempos imemoriais e foi a chave para que
essas comunidades primitivas sobrevivessem às primeiras crises de indiferenciação. Todas as
sociedades pré-cristãs tem seus rituais de sacrifício, o que nos leva a concluir que apenas as
sociedades sacrificiais sobreviveram (GIRARD, 2011.b, p. 100). Em outras palavras, apenas
as sociedades que aprenderam a canalizar sua violência para vítimas substitutivas puderam
prosperar, as demais pereceram vítimas de si mesmas.
Nesses mitos de origem, o deus sempre retorna à terra para ensinar aos mortais os
rituais que permitirão seu retorno. Para Frazer (1982. p.496) os primitivos eram incapazes de
conceber a imortalidade e por isso acreditavam que os deuses haviam vivido um tempo na
terra e depois de mortos teriam ingressado em outro plano de existência do qual só retonariam
com a execução dos rituais. A morte desses deuses era resultado da união violenta da
comunidade contra estes, portanto, para Frazer, como foi dito, os primitivos vitimizavam
simbolicamente seus deuses. Porém, concordamos com Girard (2011a, p. 63), que essas
comunidades ao invés de vitimar seus deuses, endeusavam suas vítimas. Tal ocorria porque a
vítima da violência coletiva unânime apaziguava o grupo, promovendo uma catarse coletiva
que os antigos só conseguiam atribuir à intervenção divina. Assim, a vítima antes hostilizada
por todos tornava-se, após o apaziguamento, divina, pois era ela quem verdadeiramente
ensinava à comunidade como resolver seus conflitos. Ensinava-os o sacrifício enquanto
método para canalizar a violência contra uma única vítima, promovendo a união dos
agressores e, também, uma extraordinária economia da violência no seio das primevas
comunidades (GIRARD, 2004, p. 149). O mecanismo do “bode expiatório” e a subsequente
exaltação da vítima como divina é descrito por Girard (2011a, p. 63) da seguinte maneira:
429
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430
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tivessem propagado a injustiça de sua condenação, a paixão não passaria de mais um mito da
antiguidade. O mito é o relato de uma violência unânime, mas a Paixão, todavia, é unânime e
não unânime, pois os seguidores de Jesus aderem à multidão, embora em um momento
posterior passem a proclamar sua inocência e, por isso, ao invés de absolverem a massa,
acusam-na de homicídio. (GIRARD, 1999, p. 164)
Os discípulos, após reconhecerem-se como perseguidores, correram o mundo para
narrar esse “mito antimitológico”. Ao encontro com Cristo dentro de suas consciências,
experimentado pelos apóstolos, Girard (1999, p. 183) denomina “Ressurreição”. O anúncio, a
boa nova, é, na realidade, a desmistificação dos rituais sacrificiais, a crucificação que
descortina o que estava oculto “desde a fundação do mundo”:
O paradoxo da Cruz é que ela reproduz a estrutura arcaica do sacrifício para invertê-
la, mas a inversão é um pôr do lado direito o que estava do avesso ‘desde o começo
do mundo’: a vítima não é culpada, ela não tem, pois, poder de absorver a violência.
A Cruz é a revelação de uma verdade desestabilizadora no plano social. (GIRARD,
2011b, p. 115)
Essa verdade é desestabilizadora no plano social porque após a sua revelação, “Satã
não é mais capaz de expulsar a si próprio”, ou seja, a violência mítica foi completamente
desmascarada e por isso tornou-se ineficaz. A revelação do mecanismo sacrificial que
desacreditou o sacrifício não trouxe paz, ao contrário, trouxe a disseminação dos conflitos,
justamente pela nossa incapacidade de nos unir para perseguir vítimas unânimes. Assim, o
mundo cristão teve que aprender a conviver com a violência de uma maneira diferente das
culturas sacrificiais, essa lenta adaptação levou quase dois mil anos. (GIRARD, 1999, p. 185)
De certa maneira o desvelamento do mecanismo vitimário se deu de forma paulatina.
A própria igreja se valeu de seus “bodes expiatórios” em momentos de crise, como foi o caso
dos cátaros franceses, massacrados pelos albigenses (CLASTRES, 2004, p.60). Até pouco
tempo não conseguíamos visualizar as vítimas inocentes, a injustiça de qualquer julgamento
levava a uma analogia direta à Paixão de Cristo (vide Tiradentes retratado por Pedro Américo
em túnica branca, barbas longas e crucifixo na mão). Somente com o Holocausto dos judeus
durante a 2ª Guerra Mundial, o mundo pode reconhecer o massacre de vítimas expiatórias e
inocentes, que eram cidadãs de países que as vitimaram, que foram para a degola como
“cordeiros mudos”. Para Eliade (2010, p.65), os ideólogos do mito nazista como Jakob
Wilhelm Hauer criaram um neopaganismo, buscaram no religioso arcaico elementos para unir
a nação e, por óbvio, fizeram suas vítimas expiatórias. O sacrifício de cerca de 6 milhões
431
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
judeus (e também de homossexuais, deficientes, doentes mentais etc.) criou no mundo todo
uma culpa semelhante à experimentada pelos apóstolos após a Paixão. O novo Gólgota
inaugurou um novo humanismo: a era da “moderna preocupação com as vítimas” o triunfo
(tardio) da cruz! (GIRARD, 1999, p. 209).
Atualmente o mecanismo do “bode expiatório” é combatido e apenas pode prosperar
de forma camuflada, subreptícia. A Declaração dos Direitos Humanos de 1948 foi uma marco
nesse sentido, com ela a vítima ganhou visibilidade e é hoje o centro da atenção do Estado. Se
antes a prioridade era ter grandes exércitos, e a isso se ligava o prestígio nacional, hoje esse
prestígio está ligado à capacidade dessas nações em respeitar os Direitos Humanos. Enviar
uma tropa de paz ou de ajuda humanitária é, nos dias de hoje, imensamente mais prestigioso
do que invadir um território. As instituições estatais estão em nossos dias, ao menos
formalmente, a serviço do cuidado com os indivíduos, em especial os que apresentam sinais
vitimários. Ou seja, as instituições, em tese, ao invés de constituírem-se como extensões da
violência da multidão, como era no passado, são as protetoras dos indivíduos em face desta.
Sinal vitimário é um estereótipo que faz com que certas pessoas, ou grupo de
pessoas, sejam mais facilmente considerados indesejáveis pela comunidade. Esses sinais estão
sempre ligados à impureza, deformação, deficiência, monstruosidade, etc. A loucura é um
sinal vitimário por excelência; não por outro motivo heróis míticos como Orestes,
Belerofonte e Herácles, eram ou se tornaram loucos (ELIADE, 1987, I, 301, apud. GIRARD,
2004, p.48). De certo, as histórias por trás destes mitos são a narrativa de um linchamento
coletivo em tempos imemoriais contra uma pessoa que sofria de distúrbios mentais e por isso
tornou-se “bode expiatório”.
Como dissemos anteriormente, as diferenças estabelecidas pela ordem cultural são
um dique de contenção contra o conflito e a sua respectiva disseminação. Por essa razão, as
crises de indiferenciação eram tão perigosas na antiguidade, e pela mesma razão os
“diferentes”, os que carregavam marcas vitimárias, eram alvo da turba durante as grandes
crises (GIRARD, 2004, p. 49). Mas a vulnerabilidade do doente mental é ainda maior. Por sua
incapacidade de compreender e respeitar as diferenças culturalmente construídas, o louco
pode ser vítima da comunidade não apenas durante as graves crises, mas a qualquer tempo!
432
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Ante isso, podemos talvez afirmar, que nenhum grupo de pessoas precisa mais de uma
instituição protetora que os doentes mentais. A marca vitimária que os impede de reconhecer
e participar da ordem cultural (por sua desrazão) os transforma em alvo permanente da
brutalidade coletiva.
As instituições de controle consolidadas surgiram inicialmente como uma tentativa
de domar a violência coletiva por meio do sacrifício (GIRARD, 1999, p. 118). Em um
primeiro estágio civilizatório tinham por única preocupação a manutenção da ordem cultural
e, portanto, a canalização da agressividade do grupo poderia se dar de maneira absolutamente
aleatória, pois não tinha compromisso algum com o indivíduo, apenas com a coletividade. O
importante para o ritual era servir de válvula de escape para a comunidade, que geralmente
destruía o “bode expiatório”.
Em um momento posterior, como decorrência da “Revelação Cristã”, as instituições
passaram a ter uma dupla função, ao mesmo tempo em que davam vazão à violência do
grupo, suspendiam o “bode expiatório” (para protegê-lo) do conflito social que o vitimara. Já
no século XVII surge a ideia de que é necessário opor as decisões judiciais ao desenfreio da
multidão (GIRARD, 2011.b, p. 130). No século XVIII utilitaristas como Beccaria e Bentham
pregaram o fim das punições corporais e a prisionização das penas (ARRUDA, 2009, p.119).
Com a laicização das instituições penais, surge também a necessidade de julgar, já
que com a revelação fica evidente que o perseguido pode ser inocente. Essa virada mostra a
nascente preocupação com o individuo6, já que a prisão pune (aplacando a fúria da massa), ao
mesmo tempo em que racionaliza a vingança (protegendo o cidadão), que é mais perigosa nas
mãos da multidão do que nas do Estado.
As duas funções das instituições punitivas são perfeitamente compreensíveis na
esfera penal, em que por muitas vezes o “bode expiatório” é o verdadeiro responsável pelo
escândalo que toma conta do grupo. Nesse caso é necessário puni-lo e, ao mesmo tempo,
suspendê-lo do convívio social para que ele possa gozar de sua liberdade de forma plena em
outro momento da vida (ARAGONESES ALONSO, 1997, p.37).
O mesmo não ocorre com o doente mental; não há em geral (e aparentemente)
necessidade de puni-lo, mas apenas de suspendê-lo da comunidade. A função e a ideia por trás
dos primeiros manicômios (século XVII na França) era a de proteção do indivíduo em face da
6
Embora no final do século XVIII tenha sido marcado pelo humanismo e a valorização do individuo, há um
enorme retrocesso durante a restauração em meados do século XIX, com a tendência à instrumentalização do
homem para fins políticos e militares, que só será abandonada no ocidente na segunda metade do século XX.
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comunidade; neste caso era um indivíduo extremamente fragilizado, que deveria ser suspenso
do convívio social para que fosse garantida sua segurança e sua sobrevivência. A ideia cristã
de resguardo do frágil frente à massa, aplicada ao doente mental, veio mesmo antes da
moderna ideia de cura. Todavia, com a implantação dos manicômios judiciários
posteriormente - instituídos para “tratar” (através da aplicação das medidas de segurança) os
doentes mentais que cometessem injustos penais e proteger a sociedade dos mesmos - esses
conceitos foram gradualmente relegados e as medidas de segurança que deveriam estar
alheias à punição, passaram a punir mais que as penas aplicadas a criminosos considerados
comuns. Em algum tempo, ou lugar, a essência das instituições manicomiais se perdeu e
atualmente é difícil acreditar que o convívio social é mais arriscado do que a internação
psiquiátrica. É o que trataremos a partir de agora.
7
“Antes da loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor,
velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença. Um
objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará
lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos
canais flamengos. A moda é a composição dessas naus cuja equipagem e heróis imaginários, modelos éticos
ou tipos sociais, embarcam para uma grande viagem simbólica que lhe traz, senão fortuna, pelo menos a figura
de seus destinos ou suas verdades. (...) A Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram,
esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para a outra. Os loucos tinham então uma existência
facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros. Esse costume era frequente particularmente
na Alemanha.” (FOUCAULT, 2005, p. 09)
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435
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8
Que na aplicação da medida de segurança é entendida como periculosidade.
9
Sobre o assunto ver, Carvalho (2010).
10
As idéias especiais prevencionistas - exacerbadas pelos positivistas - defendiam que o delinqüente não
precisava mais de retribuição pelo mal praticado, mas de tratamento.
11
O ordenamento jurídico-penal brasileiro prevê somente duas espécies de medidas de segurança, quais sejam:
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uma detentiva, consistente na internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e outra restritiva,
referente ao tratamento ambulatorial. (art. 96 do Código Penal). De forma geral, a internação em hospital de
custódia e tratamento psiquiátrico destina-se, obrigatoriamente, aos inimputáveis que tenham cometido um
injusto (crime), punível com reclusão; e facultativamente, aos que tenham praticado um injusto cuja natureza da
pena abstratamente cominada seja de detenção (art. 97 CP). Ademais, o semi-imputável também poderá ter a
pena privativa de liberdade substituída por medida de segurança (art. 98 CP), inclusive na modalidade de
internação, se comprovado necessidade de especial tratamento curativo. Quanto ao tratamento ambulatorial só é
imposto em casos crimes apenados com detenção.
12
Por violência institucionalizada entendemos a violência do Estado em sua forma mais concreta – a violência
da polícia e dos diversos sistemas de encarceramento e tutela de que se tornam alvo alguns segmentos da
população. É a violência exercida sobre o corpo e portanto sobre a mente, que é também corpo, conforme Rauter
(2001, p. 03).
13
Seguindo o entendimento de Zaffaroni e Pierangeli (2002. p.70), chamamos “sistema penal” ao controle social
punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita
de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que
institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Esta
é a ideia geral de “sistema penal” em sentido limitado, englobando a atividade do legislador, do público, da
polícia, dos juízes, promotores e funcionários e da execução penal.
14
Nas palavras de Goffman (2005, p. 24): “As instituições criam e mantêm um tipo específico de tensão entre o
mundo doméstico e o mundo institucional, e usam essa tensão persistente como uma força estratégica no
controle dos homens.”
437
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“hospital”, acabam por desaparecer pelo processo de perda gradual e mortificação da essência
daquele ser segregado - o que chega a ser menos desejável que a morte física.
Esse processo de mortificação inicia-se com o “ritual de passagem”do processo
penal, que marca um “estágio de vida a outro”, numa experiência simbólica da morte e do
renascimento porque implica mudança radical de regime ontológico e de estatuto social.
Trata-se sempre de um fato bruto, seja real ou simbólico: apesar de suscitar uma “iniciação”, a
mortificação pela qual o indivíduo passa é irreversível.
Nesse sentido, apesar da concepção da morte ser tida como geradora de “vida” ou de
uma nova fase, no rito do processo penal, com a decretação da Medida de Segurança,
sobretudo detentiva, o efeito é totalizante. A única direção que se tem é a
exclusão/eliminação/neutralização do indivíduo. “A `morte´ aqui foi transformada até tornar-
se vergonhosa e objeto de interdito absoluto” (ARIÈS, 1989).
A irreversibilidade dessa morte destacada traz consigo a destruição do ser enquanto
indivíduo; o sofrimento não vem da existência do problema, mas sim porque sua existência é
um problema para o Estado. Essa prática punitiva gera a perda da individualidade.
“Individualidade esta que se revolta perante a morte e que se afirma sobre a morte” - que é a
própria execução da Medida de Segurança detentiva (MORIN, 1976). “A desqualificação
como inferior, louco, criminoso ou pervertido consolida a exclusão e é a perigosidade pessoal
que a justifica”. (SANTOS, B., 2006, p. 281)
Numa sociedade meritocrática e capitalista - onde o foco cultural e social está sobre
os bem sucedidos em que os vencedores levam tudo - os doentes mentais não tem nenhuma
chance (de “sobrevivência”) e acabam sendo transformados em “bodes expiatórios”, ou seja,
desviantes que são segregados espacial e socialmente, além de serem mortificados. Por isso as
medidas de segurança caem como uma luva, pois atendem perfeitamente ao clamor da
sociedade e a vontade (oculta) do Estado ao consolidarem aquilo que Young (2002, p. 45)
denomina de cordão sanitário de controle.
Nesta perspectiva de sanitarismo, higienização e controle, podemos dizer que Strauss
(1996) tinha razão: vivemos sim numa sociedade moderna antropoêmica. Expelimos
indivíduos perigosos e os mantemos temporária ou permanentemente em isolamento, longe de
seus pares, em estabelecimentos totalizantes. Para Young (2002, p. 92), a sociedade tem
aspectos devoradores e ejetores. A família pode vomitar o doente e o hospital psiquiátrico
pode tentar devolver o paciente plenamente digerido e normalizado ao seio familiar. Por outro
lado, percebemos que em casos de doentes mentais que tenham cometido algum tipo de
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injusto penal ocorre a expulsão e a absorção simultânea pela mesma instituição. Isso porque,
no caso do Estado, o mesmo mecanismo que exclui (social, moral e instrumentalmente), é o
que absorve este indivíduo pela lógica do controle e neutralização totalizadora. Teríamos
então uma antropoemia e uma antropofagia inocuizante!
Nessa produção de imagens do doente mental na sociedade atual, este é visto pelo
viés da piedade, do medo, da intolerância, da representação do destrutivo, do negativo e do
mal social, um outsider15. Isto quer dizer que ao lado da medida de segurança transparece a
“demonização” dos doentes mentais por aquilo que eles podem significar: o mito da loucura.
Assim, a tônica da repressão16 pelo internamento (segregação/inocuização) reflete claramente
a negação ao aceitar o diferente, retirando esses indivíduos de um lugar onde eles não podem
circular porque incomodam, violador de princípios constitucionais os quais o Estado
legitimador se propôs a garantir17. (MARCHEWKA 2004, p. 183)
A lógica de intolerância parte da gestão de exclusão, orientada para a política de
homogeneização, introjetada pela modernidade capitalista. Na construção deste universalismo
antidiferencialista, obteve-se o direito à indiferença e não o direito à diferença como o
idealizado. Nesse sentido, Santos, B. (2006, p. 292-293) explica:
15
Sobre outsiders, ver: Becker (2008).
16
Os métodos punitivos (penas e medidas de segurança) devem ser analisados como técnicas que têm sua
especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder, ou seja, devem ser vistos como tática
política. Pela análise da suavidade penal como técnica de poder, pode-se compreender como o homem, a alma,
o indivíduo normal ou anormal vieram fazer a dublagem do crime como objetos de intervenção penal.
(FOUCAULT, 2006, p. 24)
17
Nessa perspectiva de violação dos preceitos constitucionais e de destaque da criminalização, Andrade (2003,
p. 28-29) aponta como saída para essa estrutural desigualdade dos espaços impostos pelo caminho único que:
“a construção social da cidadania deve funcionar como antítese democrático-emancipatória à construção social
autoritário-reguladora da criminalidade; a maximização dos potenciais vitais e democráticos da cidadania deve
operar, processualmente, no sentido da minimização dos potenciais genocidas da criminalização”. A autora
continua afirmando que “nesse momento deve-se lutar pela radical primazia do Direito Constitucional sobre o
Direito Penal, da Constituição e seus potenciais simbólicos para a efetivação da(s) cidadania(s) sobre o Código
Penal, da constitucionalização sobre a criminalização”.
439
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Rauter (2003, p. 12) também observa a aplicabilidade deste tipo de sanção penal
completamente diferente do que propõe o discurso dominante, afirmando que o que se quer
hoje, “sob uma pressão histérica de um inexorável e incontrolável aumento da criminalidade,
é diagnosticar para encarcerar pura e simplesmente, mas do que para tratar ou individualizar a
18
“No plano epistemológico a matriz criminológico-psiquiátrica foi reduzida ao local da auxiliaridade (saber
menor e servil à dogmática penal), sua instrumentalização política lhe possibilitou definir regras de ambas as
instituições totais (cárceres e manicômios), estruturando materialmente as penas e as medidas de segurança
como mecanismos de reforma moral dos outsiders”. (CARVALHO, 2010, P. 163)
19
Segundo Ribeiro (1998, p. 18-21): “O novo sistema de defesa social proposto era baseado, sobretudo na
prevenção especial, visando atuar sobre a pessoa do criminoso, para inocuizá-lo ou curá-lo. Ao menos em tese
nada conteria de retribuição e aflição, fundamentando-se na periculosidade do agente, contudo não era
suprimida a idéia de prevenção geral, decorrente da intimidação genérica da coletividade.
20
Expõe Marques (1966, p. 176): “Não se registra, porém, qualquer diferença substancial que faça de ambas
(pena e medida de segurança) categorias heterogêneas no campo dos institutos jurídicos, ou compartimentos
estanques entre as providências de que se arma o Estado para combater a criminalidade”.
440
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pena”.21 Vivemos, como foi dito, um paradoxo entre discursos e práticas associadas ao
humanismo: “por um lado a alteração do papel do Estado proporciona o reconhecimento de
novos valores, ultrapassando a limitada perspectiva individualista; por outro potencializa a
atuação das agências punitivas, engrenagem radical no mecanismo estatal de controle social
associada à violação dos Direitos Humanos” (CARVALHO, 2008, p. 489).
O indivíduo acometido por doença mental que cumpre medida de segurança, pela sua
qualidade de “diferente” e “inimigo” da sociedade, não é visto como sujeito de direitos, o que
se agrava pelo fato de que, além de não ser tratado clinicamente como deveria, lhe são
negados os direitos mínimos que assistem ao preso comum, tais como: detração, progressão
de regime, livramento condicional, suspensão condicional da pena, determinação do limite
máximo de duração da sanção. No mais, na construção do conceito de periculosidade do
agente, além de aspectos sociológicos e jurídicos (que se diga, no caso da imposição da
medida de segurança detêm uma importância secundária), inclui-se o caráter patológico ao
fenômeno do crime, ou seja, o estado pessoal do sujeito perigoso remete ao seu passado,
presente, e, sobretudo, ao seu futuro (como um ser perigoso capaz de cometer novos crimes e
que precisa ser neutralizado).
Assim, o trabalho exigido pelo Direito inverte a ordem das investigações
psiquiátricas: “não se trata da averiguação de crime cometido por indivíduo, já anteriormente
conhecido como doente mental, mas sim, na maioria dos casos, da investigação da existência
de doença mental em virtude do cometimento de crime” (SOUTO, 2007, p. 579). O perito, ao
realizar o exame psiquiátrico, pressupõe como culpado um sujeito pela prática de um fato
delituoso do qual a materialidade e a imputabilidade não foram ainda juridicamente
comprovadas. Os peritos - “operadores secundários” – acabam formulando sobre o crime e o
criminoso um discurso biopsicopatológico para justificarem a punição.
Quanto ao exame de verificação de periculosidade do agente, o sistema penalógico
adotado pela LEP “psiquiatriza” a decisão do magistrado. A constante delegação, por parte
dos magistrados, da motivação do ato decisório ao perito, que o realiza a partir de julgamentos
morais sobre as opções e condições de vida do sancionado, estabelece mecanismos de (auto)
reprodução da violência pelo reforço da identidade criminosa (CARVALHO, 2007).
21
Santos, B. (2006 p. 281) ainda reitera afirmando que “a desqualificação como inferior, louco, criminoso ou
pervertido consolida a exclusão e é a perigosidade pessoal que justifica a exclusão. A exclusão da normalidade
é traduzida em regras jurídicas que vincam, elas próprias, em exclusão.”
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Nessa linha, Zaffaroni (2007, p. 98 - 162) destaca que parece bastante claro que as
penas detentivas desproporcionais e indeterminadas (medidas) dos textos que acompanham o
código italiano de 1930 (códigos uruguaio e brasileiro) estão destinadas à eliminação de
inimigos (criminosos graves, por um lado, e indesejáveis, por outro). Para o autor, por mais
que se relativize a ideia, quando se faz a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não
pessoas), está-se referindo a seres humanos que são privados de certos direitos fundamentais
em razão de não serem mais considerados pessoas. Esta distinção não é uma invenção
gratuita de Jakobs nem de nenhum outro doutrinador moderno, mas sim uma consequência
necessária da admissão das medidas de segurança e outras medidas excludentes.
A abertura e a visibilidade das relações que se estabelecem nas instituições totais
realizadas pela criminologia crítica (cárcere) e pela antipsiquiatria (manicômios) possibilitam
perceber as formas físicas e simbólicas de violência exercidas nos espaços institucionais de
controle social. No primeiro aspecto (violências físicas), a forma asilar de tratamento revela-
se absolutamente ofensiva aos direitos humanos fundamentais mínimos (seja pela estrutura
física dos manicômios ou pelas práticas terapêuticas). No segundo aspecto (simbólico), o
efeito estigmatizador da internação manicomial revela a impossibilidade do tratamento, ou
seja, demonstra ser a prática isolacionista antagônica à própria ideia de recuperação e de
reinserção do paciente na comunidade. (CARVALHO, 2010, p. 168)
Tem-se, portanto, o que se denomina de “criminalização da doença” (SOUTO, 2002,
p. 585), em que a doença mental impulsiona a qualificação do sujeito como perigoso e ser
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perigoso passa a ser fator criminógeno. O que a princípio seria motivo de clemência (a
doença) acaba se tornando a razão de supressão de direitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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STRAUSS, Lévi. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das letras, 1996.
446
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
RESUMO
Vivemos em uma sociedade constantemente observada. As câmeras de segurança estão
dentro e fora das casas, prédios e estabelecimentos comerciais. Instaladas pela iniciativa
privada ou pela administração pública, não há mais como fugir de suas lentes. O que resta
então é questionar suas funcionalidades bem como seus efeitos sobre a vida em sociedade.
Será que as câmeras realmente são eficientes na redução da criminalidade? Qual é o limite
da sua utilização? Existe alguma política de segurança pública ideal? Quais são seus
efeitos sobre a formulação e aplicação da lei penal?
Esses questionamentos serão apurados neste trabalho por meio da análise de obras como
1984, de George Orwell, Vigiar e Punir, de Michel Foucault.
ABSTRACT
We live in a society where security is a key concern. Security cameras are inside and
outside homes, commercial buildings and facilities. Both public and private institutions
make use of security systems, and it is virtually impossible to get out of lenses’ range.
What contemporary society can do is to question the applicability and the impact constant
surveillance causes on society.
Are video surveillance systems effective in reducing criminality? What are the boundaries
for their application? Is it possible to have an ideal government security policy? What is
the impact of video surveillance on the conception and application of criminal law?
This work aims at investigating the questions presented above by analyzing Works such
as George Orwell’s “1984”, and Foucault’s “Vigiar e Punir”.
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Introdução
Com a pesquisa espera-se comprovar que as câmeras de vigilância são formas de controle
social que podem atuar em conjunto com o Direito Penal, sendo esta a hipótese do
presente trabalho.
Desenvolvimento
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O fato de todos os seres humanos serem iguais no seu egoísmo faz com que a ação de um
só, seja limitada pela força do outro. Nesta feita, baseia-se Thomas Hobbes, com a célebre
frase: "O homem é o lobo do homem."
Hobbes, enquanto teórico contratualista do séc. XVII, defendia que o Estado surgiu de
um contrato firmado entre os indivíduos, que abririam mão de sua liberdade a fim de
estabelecerem uma sociedade em harmonia. Do contrário, viver-se-ia em um Estado
Natural, em que cada indivíduo teria direito a tudo. Uma vez que todas as coisas são
escassas, existiria uma constante guerra de todos contra todos.
Os homens têm interesse em acabar com o estado de guerra, pois, enquanto alguns podem
ser mais fortes ou mais inteligentes, nenhum se ergue tão acima dos demais por medo de
que outro lhe faça mal. Ainda que não haja batalha, esta restaria latente, podendo ocorrer
a qualquer momento, deixando entre todos um constante medo recíproco.
Ao que diz a teoria, os homens escolheram abdicar de sua liberdade para desfrutarem dos
benefícios da ordem política. Desta forma, em um primeiro momento, para recepção plena
do estudo, relevante é, pois, despir-se do conceito prévio de que a limitação da liberdade
coloca-se como negativa, ao passo que se experimenta certa sensação de conforto, na
simples consciência de que há um ordenamento jurídico regulamentando ações humanas
e tutelando relações jurídicas.
Ainda que vaga, tem-se a noção de haver um Estado a que possa recorrer, cujo dever é
proteger direitos, punir infratores e, de forma geral, jurisdizer.
Caso todos fossem livres, ou seja, na ausência do Estado de Direito, haveria um impasse
ao constatar-se que direitos ilimitados acabariam sendo mutuamente massacrados. Como
dito por Sartre : "A liberdade é absoluta, ou não existe."
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Assim, é ilusória a ideia de serem os homens livres, ao passo que muitas condutas
acarretam pena privativa de liberdade. O que deixa-se claro não ser ruim, vez que é a
forma pela qual obtêm-se a heterotutela.
O Estado que aqui faz-se referência faz valer sua vontade por meio do Direito, e o controle
que aqui dá-se enfoque é o realizado pelo Direito Penal.
Como dito por Hegel, "Aplicada a sanção restaura-se o vigor de uma norma violada."
Assim, um dos possíveis sentidos de Direito enquanto norma é que o Estado irá garantir
aos infratores do ordenamento positivado, uma devida sanção.
Extrai-se daí que é feito juízo valorativo a fim de delimitar o que transgride ou não o
interesse popular, cabendo ao Direito regular os fatos, no âmbito da cultura de um povo,
exercendo um controle formal, por ser realizado pelas regras positivadas.
A cada transgressão cabe uma sanção, que servirá não só para restauração do sistema,
como para buscar o justo. Restaura-se o sistema, pois, entende-se que a regra violada foi
falha, deixando lacunas, e o Estado fora ineficiente. Deve, então, o Direito buscar punir
o infrator, demonstrando que o ordenamento se reafirmou, e dando-lhe tratamento para
que, não só responda por sua conduta, mas também, que esteja apto a reintegrar à
sociedade quando do fim de sua sanção. Com a restauração do sistema, obtêm-se a justiça.
Esta, segundo Ulpiano, é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu.
Logo, estaria dando ao infrator a punição por ele merecida, e à sociedade, a eficácia que
o Estado deve ter enquanto garantidor da segurança e bem-estar, para que assim seja
atingida a pacificação social.
As sanções funcionam também, como ameaças à sociedade, que passará a ficar alerta
quanto das consequências que ao praticar-se alguma transgressão pode-se sofrer. Assim,
450
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
estas precisam ser sempre atualizadas para manter sua eficácia e evitar a quebra do
sistema.
O Direito Penal é o meio de coerção mais gravoso, além disto, ante ao considerável lapso
temporal decorrido, junto do crescimento demográfico do século, faz-se necessário não
só o controle dado pelos tipos penais, como a reformulação do ordenamento que a isto se
dedica.
Basta fazer breve análise da transformação cultural ocorrida desde o início da História do
Direito até os dias atuais, para que se verifique a natural e esperada necessidade de
adequação dos meios de coerção social.
Houve considerável descrença no sistema penal em todas suas esferas seja: inquisitorial,
processual ou até, de fato, o carcerário. Conta-se com um Código de Direito Penal de
1940 e um Código de Processo Penal de 1941. Insuficientes se fazem os remendos pelos
quais já passara o ordenamento. Há clara necessidade de mudança.
Conclui-se que a ameaça, ainda que perfeita (o que, em fato, não ocorre, em decorrência
do deficiente ordenamento, conforme visto), não basta para exercício de efetivo controle.
451
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Há que ser dada a punição. E é neste sentido que resta, pois, insuficiente a presença do
Estado.
O livro 1984 retrata uma sociedade dominada por um Estado, conhecido como Pista Nº
1, extremamente totalitário, que impunha, além de suas leis, um estilo de vida às pessoas.
O Estado relatado pelo livro é subordinado pelas ideologias do seu Partido, liderado pelo
Grande Irmão, no qual se considerava dono da verdade, o controlador do passado,
presente e futuro, e buscava controlar as ações e até os pensamentos da população por
meio de muitos métodos, que tinham a finalidade de vigiar e monitorar a todos.
Principalmente com a instalação das chamadas “Teletelas”, um televisor bidirecional, que
transmitia diariamente as programações do Partido, como também conseguia ver todos,
monitorando todas as suas atividades, tanto em casa, quanto no trabalho.
“No interior do apartamento, uma voz agradável lia alto uma relação de cifras que de
alguma forma dizia respeito à produção de ferro-gusa. A voz saía de uma placa oblonga
de metal semelhante s um espelho fosco, integrada à superfície da parede da direita.
Winston girou um interruptor e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras
continuassem inteligíveis. O volume do instrumento (chama-se teletela) podia ser
regulado, mas não havia como desliga-lo completamente.” (Orwell, George 1984.
Companhia das Letras. Página 12).
1984 relata a história de Winston Smith, jovem que durante a trama nutre um repúdio
pelo Partido, porém, devido a condições alheias a sua vontade, era obrigado a viver
segundo o estilo de vida que lhe era imposto. No regime, apesar de não possuir leis que
reprimissem os cidadãos diretamente, havia um controle baseado em uma moral que era
estabelecido pelo próprio Estado, e que, se desrespeitadas, os faziam temer as sanções
severas advindas deste, pois, até pequenos atos, como andar na rua ou escrever, se
considerados uma fuga do padrão, poderiam ser enquadrados pelo partido como uma
rebelião, sendo a pessoa considerada inimiga do Partido.
“... Claro, não havia como saber se você estava sendo observado num momento específico
(...). Você era obrigado a viver – e vivia, em decorrência do hábito transformado em
instinto – acreditando que todo som que fizesse seria ouvido e, se a escuridão não fosse
452
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
“Seus olhos voltaram a fitar a página. Constatou que durando o tempo em que ficara ali
sentado sentia-se desamparado, continuara a escrever, como numa ação automática. (...)
ABAIXO O GRANDE IRMÃO...” (Orwell, George 1984. Companhia das Letras.
Pág.29).
Ao longo da história é retratado sua rotina, contendo suas funções diárias como
trabalhador do Ministério da Verdade, posteriormente Winston conhece Júlia, uma jovem
funcionária do Departamento de Ficção que também compartilhava o mesmo repudio
pelo Partido. No entanto, uma das grandes proibições do regime eram os relacionamentos
amorosos. Mas, mesmo com essa proibição, o casal se tornam cumplices e, devido a esse
sentimento mútuo, se apaixonam e logo se tornam amantes, se encontrando e um quarto
escondidos, no qual não possuía teletelas, no bairro dos proletariados, na cidade que era
a antiga Londres.
Certo dia, Winston é abordado por O´Brien, que era um membro interino do Partido, que
o convida para ir ao seu apartamento. Lá revela que há uma possibilidade de insurreição
contra o Partido, oferecendo uma obra política de Goldstein, considerada o maior inimigo
do Partido. E, é a partir desse momento que Winston, juntamente com Júlia, são
capturados e torturados por O´Brain.
453
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
George Orwell escreve 1984 como uma metáfora aos regimes totalitaristas existentes na
sua época, o autor escreveu o livro em 1948, período pós-Segunda Guerra, conhecido
pelo surgimento da União Soviética, alinhada as ideologias do seu partido comunista, e
também pela presença dos partidos fascistas. E o seu livro critica o poder de manipulação
e controle destes partidos totalitários, mostrando em sua obra um possível alerta contra
estes partidos, cuja sua dominação sobre seu povo pode chegar a ser tão grande que a vida
privada deste, desapareça, e que todos os seus atos sejam 24 horas por dia monitorados
pelo Estado.
As “teletelas”, com são denominadas no livro, são câmeras de monitoramento, tal qual as
que são utilizadas hoje pelo Governo e particulares em ruas, casas e condomínios...
Apesar da tecnologia não ser a mesma, o intuito fim para ambas estão em vigiar e apontar
cidadãos que estejam infringindo o ordenamento assegurado pelo Estado.
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Esses pontos foram observados pelo filósofo Rogério da Costa: A ideia de vigilância
remetia ao confinamento e, portanto, à situação física que caracterizava as preocupações
dessa sociedade. O problema era o movimento físico dos indivíduos, seu deslocamento
espacial. Vigiar, era basicamente, regular os passos das pessoas, era olhar. Com a
explosão das comunicações, uma nova figura ganha força: a vigilância por mensagens de
trânsito de comunicações [...] Parece que o mais importante agora é a vigilância sobre a
dinâmica da comunicação não apenas entre as pessoas, mas sobretudo entre estas e as
empresas, os serviços on-line, o sistema financeiro, enfim, todo o campo possível de
circulação de mensagens. O que parece interessar, acima de tudo, é como cada um se
movimenta no espaço informacional. Isso parece dizer tanto ou mais sobre as pessoas do
que seus movimentos físicos ou o conteúdo de suas mensagens (COSTA. 2004, pág. 164)
Dessa mesma forma que é confundida com o Grande Irmão de Orwell, a vigilância nas
sociedades contemporâneas vem sendo considerada por muitos como Panóptico.
455
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“O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; está
é vezada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel: a construção
periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção:
elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra que
dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar
um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado,
um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre,
recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da
periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho,
perfeitamente individualizado e constantemente visível... A visibilidade é uma
armadilha...” (FOUCAULT, Michel. 1987, pág. 165 e 166)
456
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
É possível, a partir dessa estrutura de vigilância, associar seus efeitos ao presente estudo.
Não há como saber quem está por trás das câmeras, não há como saber o momento em
que o vigilante está te observando. Isso leva o vigiado a acreditar que está sendo vigiado
o tempo todo, ou seja, “induz no detento um estado consciente e permanente de
visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder” (FOUCAULT, Michel.
1987, pág. 166), afinal, não há a real necessidade de que exista alguém observando, mas
que apenas exista o instrumento de observação, no caso, a câmera. Portanto, assim como
apresentando por Bentham, o poder torna-se visível (câmera), porém inverificável
(observador).
Nesse mesmo sentido aponta Deleuze, para uma sociedade controlada: “Nas sociedades
de controle o indivíduo cede lugar aos fluxos, as maquinarias mecânicas cedem lugar às
máquinas de informática e à cibernética. Nesta sociedade o controle é de curto prazo e de
rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa
duração, infinita e descontínua” (DELEUZE. 1992, pág. 224).
O panóptismo que pode ser considerado como à observação total e integral da vida de um
indivíduo pelo poder Estatal de controle. Ele é vigiado durante todo o tempo, sem que
veja o seu observador, nem que saiba qual momento está sendo vigiado. Aí está a
finalidade do panóptico: "Induzir no detento um estado consciente e permanente de
visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder.” (FOUCAULT, Michel.
1987, pág. 224)
457
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"Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, que a perfeição do poder
tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício..." (FOUCAULT, Michel. 1987, pág.
224). As instituições panópticas são leves e fáceis de manipular, utilizam princípios
simples de correção e adestramento. É uma espécie de campo experimental do poder,
assegura sua economia, sua eficácia e seu funcionamento. Do mesmo modo, é o que se
tenta perquirir com o sistema de câmeras pelo Estado, no combate da criminalidade.
Para Foucault, a eficácia do olhar é a garantia da eficácia do poder. Ou seja, nos dias
atuais seria como: a eficácia das câmeras seria a garantia da eficácia do Estado. Para ele
o panopticum pode ser definido como sendo "a fórmula abstrata de uma tecnologia bem
real, a dos indivíduos". Foucault leva a associação do olhar e do poder às suas últimas
consequências: não trata apenas da onipotência de um olhar tecnicamente disponibilizado
para o controle social, mas se trata especialmente de um olhar legislador, um olhar
constituinte de seus sujeitos enquanto tais. Esse olhar é capaz de dispensar a necessidade
de mecanismos de repressão violenta dos indivíduos, já que a própria existência subjetiva
destes últimos, assim como o imaginário. Ou seja, se implantar câmeras por toda cidade,
o Estado passa a não mais precisar de mecanismos policiais de repressão violenta contra
os indivíduos, pois os mesmos através do imaginário chegariam a se sentirem “vigiados
e controlados” pelo Estado. O panoptísmo busca, portanto o controle total e imediato dos
corpos humanos e de sua circulação espacial, bem como nos dias de hoje a utilização de
câmeras tenta fazer.
458
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
uso das ruas, do transporte público, dos parques e de todos os espaços públicos”
(CALDEIRA. 2000, pág. 301).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitas críticas poderiam ser tecidas tanto a favor quanto contra a utilização de câmeras
no sistema de vigilância pública. A questão da privacidade é um gargalo constitucional a
ser tratado. Assim não é possível afirmar uma idealidade na política de segurança. Não
existe ainda uma evidente influência da utilização de câmeras de vigilância na formulação
da lei penal. O que é possível dizer permeia os meandros do processo de utilização de
filmagens, ou seja, na aplicação da lei penal. O acesso às filmagens obtidas por meio das
câmeras deve ser observado pela legislação a fim de assegurar os direitos envolvidos no
processo, como o direito de imagem e privacidade.
459
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Em suma, com o artigo, mostrou-se que a utilização de câmeras de segurança deve ser
observada com cautela, bem como para o direito penal, como para os demais ramos do
direito, pois nela estão envolvidas questões cruciais para o desenvolvimento de uma
sociedade com menos crimes e maior tranquilidade para a população.
Não há uma política de segurança pública ideal no que diz respeito à utilização de
câmeras, pois não há interesse político em se fazer isso, o interesse é de gravar todo
mundo. E aí, criam-se vários problemas como por exemplo em relação as manifestações
públicas e políticas que ocorrem na rua (marcha da maconha, marcha das vadias), onde
as câmeras estão gravando tudo. Será que as pessoas teriam a mesma vontade de participar
sabendo que estão sendo gravadas? Outro grande problema em relação as políticas de
segurança pública é em relação a competência, pois as mesmas são de competência
estadual e não municipal. O que se percebe hoje, é que em várias cidades do Brasil os
prefeitos dizem que irão instalar câmeras e acabam instalando. Mas, ninguém reclama,
pois, a maior parte da população é acrítica em relação a isso, acreditando que os grandes
crimes como homicídio, estupro e sequestros irão ter uma incidência menor, o que na
realidade nem sempre acaba ocorrendo, pois, na verdade o que se acaba evitando são os
pequenos furtos que tem um valor muito pequeno se comparado com todo o aparato
necessário para instalação das câmeras. Em Londres, um dos berços da vigilância por
câmeras, hoje considerada a cidade mais vigiada do mundo, existe uma grande
preocupação em relação ao terrorismo, enquanto no Brasil o combate gira em torno de
pequenos furtos.
Quando se fala sobre a influência que o monitoramento por câmeras de segurança gera
na formulação e aplicação penal, há que se pensar no dever do legislativo que seria de
regulamentar a utilização, mas politicamente isso não rende votos e acaba deixando de
regulamentar. Com isso, para grande parcela dá população acarreta em uma falsa
impressão de que, iria ser filmado apenas os bandidos e não a população de forma geral.
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Ainda predomina no Brasil a ideia de que: “quem não deve não teme”. Na verdade, quem
não deve teme! Pois, nem toda agressão é uma agressão justa. Sendo assim, os judeus não
deveriam temer o nazismo.
REFERÊNCIAS
ORWELL, George. 1984. 1.ª edição. São Paulo: Editora Cia. das Letras, 2009. 416
páginas.
461
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1
Doutoranda em direito na Universidade Federal do Paraná. Mestre em direito pela Universidade Federal de
Santa Catarina. Graduada em direito e jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora no
Centro Universitário Franciscano.
462
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Introdução
2
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
3
LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. São Paulo: Ícone, 2007.
4
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. Do controle da violência à violência do
controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 75.
5
ELBERT, Carlos Alberto. Manual básico de criminologia. 4 ed. Buenos Aires: Eudeba, 2007. p. 48.
463
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6
ELBERT, Carlos Alberto. Manual básico de criminologia. 4 ed. Buenos Aires: Eudeba, 2007. p. 78.
7
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 125.
8
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário (Séculos
XVI-XIX). Rio de Janeiro: Revan, 2006.
9
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 126.
10
ibid. p. 128.
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O século XIX foi marcado pela tomada da vida pelo poder, uma estatização do
biológico, que transformou o poder soberano caracterizado pelo “direito de fazer morrer ou
deixar viver” em um novo direito, o de “fazer viver e de deixar morrer”.14 Nos séculos XVII e
XVIII, Foucault identifica o aparecimento de técnicas de poder centradas no corpo individual:
técnicas para aumentar a força útil; técnicas de racionalização e de economia de um poder
exercido da maneira menos onerosa possível, através da vigilância, de hierarquias, de
inspeções, de escriturações, de relatórios. Na segunda metade do século XVIII, surge uma
nova técnica, não mais de aplicação sobre o corpo, como na disciplina, mas sobre a vida:
11
FONSECA, Ricardo Marcelo. O poder entre o direito e a “norma”: Foucault e Deleuze na teoria do Estado. In:
______. (org.). Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 259-281. p. 264.
12
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 188.
13
FONSECA, Ricardo Marcelo. op. cit. p. 266.
14
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 287.
465
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sobre o homem vivo, homem-espécie.15 Essa segunda tomada de poder, não é mais
individualizante, é massificante: não se trata mais de uma anatomo-política característica do
poder disciplinar, mas de uma biopolítica da espécie humana. Seus primeiros objetos de saber
e alvos de controle foram constituídos pela proporção de nascimentos e dos óbitos, a taxa de
reprodução, a fecundidade da população etc.
Um dos campos de intervenção biopolítica é a medicina, a qual vai ter uma função
maior de higiene pública e medicalização da população. Outro campo de intervenção é a
velhice, da retirada do indivíduo do mercado de trabalho, o que irá redundar em mecanismos
mais sutis, mais racionais, de seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade etc.
Por fim, o campo da preocupação com as relações da espécie humana, seu meio de existência
e os problemas ligados aos meios não naturais, como a cidade. “[...] é da natalidade, da
morbidade, das incapacidades biológicas diversas, dos efeitos do meio, é disso tudo que a
biopolítica vai extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu saber”.16
Essa nova tecnologia de poder, diferentemente da disciplina, não trabalha com o
indivíduo-corpo ou com a sociedade, trabalha com a noção de população como problema
biológico e de poder. Além disso, nessa nova tecnologia de poder, outros fenômenos são
levados em consideração, os coletivos, que só aparecem com seus efeitos econômicos e
políticos, pertinentes apenas no nível da massa: “a biopolítica vai se dirigir, em suma, aos
acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração”. 17 Ela
irá, ainda, implantar mecanismos de previsões, de estatísticas, de medições globais; não quer
transformar o indivíduo, mas intervir no nível daquilo que são as determinações desses
fenômenos gerais no que têm de global: “vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai
ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso estimular a natalidade”.18 Trata-se então de
levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre eles
não uma disciplina, mas uma regulamentação. É o que Foucault irá chamar de “fazer viver”
na inversão do poder soberano de “fazer morrer”.
A desqualificação da morte que se depreende daí fica evidente na perda de
ritualização pública, tornando-se privada e vergonhosa. Para o autor, essa mudança está na
transformação das tecnologias de poder. Enquanto diante do poder soberano o morto passava
de um poder para outro, agora a morte é o limite, a exterioridade do poder, dado que o poder é
15
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 289.
16
ibid. p. 292.
17
ibid. p. 293.
18
ibid.
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19
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
20
ibid. p. 302.
21
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. v. 1 A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 131.
22
ibid. p. 132-133.
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de otimizar a vida, o que é possível através de outras ações: “um poder dessa natureza tem de
qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se manifestar em seu fausto mortífero;
não tem que traçar a linha que separa os súditos obedientes dos inimigos do soberano, opera
distinções em torno da norma”. A consequência é a constituição de uma sociedade
normalizadora, baseada no poder disciplinar e no biopoder e suas técnicas correspondentes. 23
23
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. v. 1 A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 135-
136.
24
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 329.
25
ibid. p. 333.
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reformadores do século XVIII, como Beccaria e Bentham, os quais filtravam toda a prática
penal através de um cálculo de utilidade, buscando um sistema penal de baixo custo, as
semelhanças vão apenas até aí. A solução encontrada por esses reformadores foi a legalista,
pressupondo a necessidade de uma boa lei para o funcionamento do sistema penal, no sentido
de que o homem penalizável - homo penalis – é um homo oeconomicus.26 Porém, no século
XIX o homo penalis passa a se chamar homo criminalis, dado que não se tratava de a lei
sancionar apenas atos, mas sim de constituir um saber sobre o crime, para dotar a pena de um
caráter preventivo. Com isso, numerosos saberes ingressam no sistema penal, ultrapassando a
lógica da sentença penal como mero cálculo.
O que surge com os neoliberais é um retorno à ideia do penalizável como homo
oeconomicus, retirando-se qualquer tipo de julgamento sobre sua personalidade ou algum tipo
de patologia. Para inserir esse problema no interior de uma problemática econômica, partem
eles de uma definição de crime que coloca o ponto de vista de quem comete ou vai cometer o
crime: “crime é toda ação que faz um indivíduo correr o risco de ser condenado a uma
pena”.27 Com essa definição, muito próxima daquela clássica que vincula o conceito de crime
a sua definição legal, a consideração do sujeito como homo oeconomicus terá como
consequência que “o criminoso não é, de forma alguma, marcado ou interrogado a partir de
características morais ou antropológicas. O criminoso não é nada mais que absolutamente
qualquer um. O criminoso é todo mundo, quer dizer, ele é tratado como qualquer pessoa que
investe numa ação, que espera lucrar com ela e aceita o risco de uma perda”.28
Nesse sentido, passa o sistema penal a lidar com pessoas que produzem esse tipo de
ação, e não com criminosos. Cumpre a ele, através da punição, limitar as externalidades
negativas de certos atos. Através da lei, proíbe-se condutas julgadas negativas socialmente,
apesar de serem positivas para as pessoas que as cometem, mas é através do enforcement, o
“enforço” da lei, que será possível dar à interdição contida na lei realidade social. Esse
enforcement of law é, então, “o conjunto de instrumentos de ação sobre o mercado do crime
que opõe à oferta do crime uma demanda negativa”.29 Esse “enforço”, é, porém, dispendioso,
ele tem custos. Então, para elaborar determinada política de produção de demanda negativa
será necessário se certificar de que o seu custo não supera o custo dessa criminalidade cuja
oferta se quer limitar. Aí se encontra a estratégia dessa nova forma de lidar com o crime, a
qual não busca uma sociedade sem crimes, mas sim busca intervir no mercado do crime, em
26
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 341.
27
ibid. p. 344.
28
ibid. p. 346.
29
ibid. p. 348.
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relação à oferta de crime. A questão a se responder deixa de ser, então, o que é crime, ou
como punir os crimes, e passa a ser formulada assim: “o que se deve tolerar como crime?”
A ação do sistema penal nada mais tem a ver com o estudo da personalidade ou das
características patológicas do criminoso, mas deve ser “uma ação sobre o jogo dos ganhos e
perdas possíveis, isto é, uma ação ambiental. É sobre o ambiente do mercado em que o
indivíduo faz a oferta do seu crime e encontra uma demanda positiva ou negativa, é sobre isso
que se deve agir”.30 Nesse contexto se insere o dispositivo de segurança, tratado já em
Segurança, território e população, e que coloca a questão “de saber como, no fundo, manter
um tipo de criminalidade, ou seja, o roubo, dentro de limites que sejam social e
economicamente aceitáveis e em torno de uma média que vai ser considerada, digamos, ótima
para um funcionamento social dado”.31
Foucault explica que existem três modalidades relacionadas à compreensão do crime
que devem ser estudadas. Primeiro, o mecanismo legal ou jurídico, típico do movimento dos
reformadores do século XVIII, que traz o sistema de código legal com divisão binária entre o
permitido e o proibido e acopla uma punição àquele que viola a proibição; segundo, o
mecanismo disciplinar, que traz para esse código binário o culpado, somado a uma série de
técnicas adjacentes, policiais, médicas, psicológicas, que são do domínio da vigilância, do
diagnóstico, da eventual transformação dos indivíduos; terceiro, e por fim, o chamado
dispositivo de segurança, que vai inserir o fenômeno em questão numa série de
acontecimentos prováveis, as relações de poder serão inseridas em um cálculo de custo e o
estabelecimento de limites não vai se situar entre o permitido e o proibido, mas sim na
quantidade aceitável de condutas proibidas.32
Apesar de os dispositivos de segurança, caracterizados por Foucault, estarem
situados historicamente especialmente na contemporaneidade, o autor adverte que isso não
significa a superação das estruturas jurídico-legais típicas do século XVII ou dos mecanismos
disciplinares típicos do século XVIII. A relação entre esses mecanismos, não é de sucessão:
“na verdade, vocês têm uma série de edifícios complexos nos quais o que vai mudar, claro,
são as próprias técnicas que vão se aperfeiçoar ou, em todo caso, se complicar, mas o que vai
mudar, principalmente, é a dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlação entre os
mecanismos jurídico-legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança”. 33
Destaca o autor que “A segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar,
30
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 354.
31
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 8.
32
ibid. p. 9.
33
ibid. p. 11.
470
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
34
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 14.
35
ibid. p. 15.
36
ibid. p. 61.
37
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 240. Tradução livre.
38
ibid. p. 277. Tradução livre.
471
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
gestão dos riscos e que implica em maior controle social tem como característica a extensão
do controle penal para fora das instituições clássicas de controle, como a prisão. Os próprios
limites formais entre público e privado no controle do crime se tornam tênues, em uma época
em que empresas de segurança privada e câmeras de vigilância são espalhadas pelos mais
diversos meios sociais.
Não se pretende mais vencer o delito, mas sim racionalizar a operatividade dos
sistemas que possibilitam “gerir” a criminalidade com base em avaliações de tipo atuarial.40 A
prisão, nesse contexto, é apresentada com o fim útil de “neutralização seletiva”. Nesse
sentido, não cabe mais o argumento da ressocialização e da pena como tratamento. Aquele
que uma vez foi selecionado pelo sistema de controle penal é tido como um sujeito que
implica em riscos. Como nota Pavarini, nesse contexto a própria linguagem da gestão
administrativa é completamente diferente daquela ligada ao sistema de justiça penal, pois tem-
se como objetivo:
[...] não mais o de punir os indivíduos, mas o de administrar grupos sociais em razão
de seu risco criminal; não mais aquele correcionalista senão o burocrático de
otimizar os recursos escassos, onde a eficácia da ação punitiva não se mede em
razão dos telos externos ao sistema (educar e intimidar), mas em razão das
exigências intrassistêmicas (neutralizar e reduzir os riscos).41
39
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 281. Tradução livre.
40
PAVARINI, Massimo. Um arte abyecto: Ensayo sobre el gobierno de la penalidad. Buenos Aires: Ad Hoc,
2006. p. 126.
41
ibid. p. 125. Tradução livre.
472
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
prognóstico do indivíduo”.42 Assim, a incapacitação deve ser utilizada para todos aqueles que
resultam, em uma lógica de incapacitação seletiva, parte de grupos sociais de elevado risco
criminal.
Para Garland essas mudanças não são apenas econômicas e sociais, elas são também
culturais. Trata-se de uma cultura do controle que permite a adoção de políticas atuariais
diante do crime e, de outro lado, o punitivismo exacerbado na forma da expressão de
sentimentos coletivos diante dos danos causados pelo crime. Os três elementos centrais que
formam essa nova cultura do controle são: (1) um welfarismo penal modificado; (2) uma
criminologia do controle; e (3) uma forma econômica de raciocínio.43
Os especialistas típicos do welfare, ou da sociedade disciplinar, aquele grupo
interdisciplinar formado por psiquiatras, médicos e assistentes sociais que tratavam de avaliar
o condenado e propiciar seu tratamento para reintegrá-lo à sociedade, vão sendo seguidos por
uma série de outros especialistas: assessores de prevenção do delito, coordenadores,
trabalhadores interagenciais, analistas de sistemas, auditores do delito, managers de risco,
especialistas em projetos urbanos e oficiais de polícia comunitária.
A partir do cálculo de que 50% dos crimes contra o patrimônio são praticados por 15
a 22% dos que foram condenados por algum desses delitos, os autores da criminologia
atuarial concluíram que bastava neutralizar estes poucos para obter grandes resultados de
redução da criminalidade.45 Trata-se, então, de invocar critérios de predição da ação desviada,
a partir de um juízo de periculosidade social ou criminal. Assim, substituindo a culpabilidade
pela periculosidade, seria possível conferir a essas pessoas no fixed ou life sentences, isso sem
os exames criminológicos, personológicos.46
A conclusão a respeito da periculosidade de um sujeito poderia ser retirada de
respostas afirmativas a quatro das sete perguntas contidas no questionário criado por
Greenwood e Abrahamse, com a consequência de ser considerado de elevado risco,
42
PAVARINI, Massimo. Um arte abyecto: Ensayo sobre el gobierno de la penalidad. Buenos Aires: Ad Hoc,
2006. p. 82.
43
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 287.
44
ibid. p. 281. Tradução livre.
45
PAVARINI, Massimo. op. cit. p. 126.
46
ibid. p. 127.
473
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
independentemente do crime pelo qual é acusado e ser incapacitado. As sete perguntas são:
1) ter sofrido uma detenção pelo mesmo delito; 2) ter passado mais de um ano na
prisão nos últimos dois; 3) ter estado na prisão quando era menor de idade; 4) ter
estado a cargo dos serviços sociais da justiça de menores; 5) fazer uso de heroína já
durante a menoridade; 6) fazer uso de heroína nos últimos dois anos; 7) não ter
trabalhado ao menos um ano nos últimos dois.47
A simplificação desse sistema culmina, nos Estados Unidos, com a regra do Three
strikes and you’re out, o out, no caso, significando a pena de prisão perpétua ou mínima de 30
anos. Desse modo, a população detida aumenta, porém, os delitos não diminuem.48
Torna-se interessante observar que, apesar de a criminologia atuarial não se voltar
para o estudo das causas do crime, depende desses estudos para construir seletivamente o
risco. Afinal, a partir de que dados as sete perguntas mencionadas acima poderiam ter
surgido? Todas elas partem de uma determinada análise probabilística necessariamente
dependente da atuação efetiva do sistema de controle penal. Evidentemente, em se sabendo
que esse sistema é seletivo e busca o crime onde espera encontrá-lo – nos bairros mais pobres,
controlando as pessoas mais vulneráveis49 – as regras provenientes da administrativização da
gestão do crime reproduz essa mesma seletividade.
Em relação à eficácia da política acima descrita, Pavarini mostra que a presumida
queda na criminalidade não ocorreu, mostrando que o cálculo do risco criminal parece
funcionar relativamente em abstrato para o passado, mas nunca em concreto para o futuro.
Apresenta então vários argumentos e contradições para demonstrar o fracasso das políticas de
incapacitação seletiva. Uma das contradições está no cerne da teoria: se para a perspectiva
atuarial, mais importante do que o homem delinquente é a ocasião na qual um indivíduo se
encontra, de modo que “a quantidade de ilegalidades é determinada fundamentalmente pela
oferta de ocasiões para delinqüir que apresenta uma determinada organização social”, é óbvio
que a incapacitação seletiva não traz resultados, pois se as ocasiões permanecerem, outras
pessoas praticarão os crimes.50
Um argumento interessante é o de que as características que conferem risco a
determinadas pessoas se confundem com problemas sociais; assim, para obter efeitos
apreciáveis seria necessário neutralizar toda a marginalidade social. Além disso, a própria
estrutura racista e patriarcal vem fazendo com que os fatores de risco sejam identificados nas
47
PAVARINI, Massimo. Um arte abyecto: Ensayo sobre el gobierno de la penalidad. Buenos Aires: Ad Hoc,
2006. p. 127.
48
ibid. p.128.
49
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema penal. Rio
de Janeiro: Revan, 1991.
50
PAVARINI, Massimo. op. cit. p. 127.
474
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Após explicar a biopolítica como política da vida e a sua relação de oposição com o
poder soberano na ideia do fazer viver e deixar morrer, Foucault questiona-se como pode ser
possível o exercício do direito de matar e a função do assassínio se o poder se dirige cada vez
mais ao biopoder disciplinar e regulamentador? Como esse poder, que tem essencialmente o
objetivo de fazer viver pode deixar morrer?54 Para o autor, é nesse ponto que entra o racismo:
51
PAVARINI, Massimo. Um arte abyecto: Ensayo sobre el gobierno de la penalidad. Buenos Aires: Ad Hoc,
2006. p. 131.
52
ibid.
53
ibid. p. 124. “Esta nova ideia de penalidade aparece frequentemente grosseira em suas simplificações extremas
e geralmente não lhe agrada adornar-se com dissertações acadêmicas. Ela se expressa nos discursos do povo. E
lhe fala diretamente ao povo nas palavras dos políticos e, fundamentalmente, através dos meios massivos de
comunicação; mas se difunde e termina por articular-se em tópicos que encontram – ou tratam de encontrar –
também uma legitimação científica. E obviamente não falta quem se aventure cientificamente nesta empresa.
Atualmente se está difundindo uma cultura populista da pena, que coloca, quiçá pela primeira vez, a questão de
uma penalidade socialmente compartilhada ‘de baixo’”. Tradução livre.
54
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 303-304.
475
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
o que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a emergência do biopoder.
476
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
foi nela que se desenvolveu o maior poder assassino desencadeado através de todo o corpo
social pelo racismo: “o Estado nazista tornou absolutamente co-extensivos o campo de uma
vida que ele organiza, protege, garante, cultiva biologicamente e, ao mesmo tempo, o direito
soberano de matar quem quer que seja – não só os outros, mas os seus próprios”. 59 Era este
um Estado racista, assassino e suicida.
Não fosse pelo racismo, a própria pena de morte apareceria no mecanismo
biopolítico como uma contradição: “de que modo um poder viria a exercer suas mais altas
prerrogativas e causar a morte se o seu papel mais importante é o de garantir, sustentar,
reforçar, multiplicar a vida e pô-la em ordem? Para um poder desse tipo, a pena capital é, ao
mesmo tempo, o limite, o escândalo e a contradição”.60 É por isso que, para mantê-la, foi
necessário invocar “nem tanto a enormidade do crime quanto a monstruosidade do criminoso,
sua incorrigibilidade e a salvaguarda da sociedade. São mortos legitimamente aqueles que
constituem uma espécie de perigo biológico para os outros”.61
É nesse ponto que ingressa o outro lado da moeda do tratamento do crime: é para
justificar longas penas de prisão ou a pena de morte em lugar do disciplinamento e melhora
do indivíduo que surge todo um mecanismo que transforma criminosos em verdadeiros
monstros irracionais. Cada vez mais se retoma o fenômeno da inflação da penalidade,
relacionada, para Pavarini e Garland a uma verdadeira crise da democracia, que a transforma
em uma democracia de opinião. Mais importante do que focar o sistema penal no indivíduo
que pratica a conduta definida como crime, essa “penologia” busca focar o sistema nas
vítimas e no público, no intuito de satisfazer as suas emoções.
O que se deve responder diante disso é quais foram as pré-condições materiais que
tornaram possível esse processo de emergência de uma demanda de penalidade “tal como
quer a opinião pública”.
Para Garland, o populismo e a politização das decisões penais são uma das
características atuais que se relacionam com o endurecimento penal e com essa concepção que
59
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 311.
60
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. v. 1 A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 130.
61
ibid.
62
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 132
477
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
percebe o criminoso como “o mal”. O privilégio do lugar da vítima nesse contexto não
significa um espaço maior conferido a ela, mas sim a popularização de um modelo projetado
de vítima, que não dá voz efetiva a ela. “A figura santificada da vítima que sofre se converteu
em um produto apreciado nos circuitos de intercâmbio político e midiático, sendo colocados
indivíduos reais em frente às câmeras, muitas vezes convertendo-se, durante o processo, em
celebridades midiáticas ou ativistas de movimentos de vítimas”.63 No caso norte-americano,
Simon nota que um governo através da criminalidade e do medo que vem sendo implantado
nos últimos dez anos nos Estados Unidos faz com que seja no papel de vítimas que os norte-
americanos se compreendam como uma unidade. Mas a identidade de vítima é profundamente
conotada em termos raciais.64
63
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 241.
64
SIMON, Jonathan. Il governo della paura: guerra alla criminalità e democrazia in America. Milano: Rafaello
Cortina, 2008. p. 98. Tradução livre.
65
ibid. p. 100.
66
GARLAND, David. op.cit. 301.
67
ibid. p. 302.
478
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
volta à origem primitiva do direito de punir: uma penalidade livre em seus conteúdos e em
suas formas de todo vínculo racional. Trata-se de um regresso a uma “penologia
fundamentalista”.68
O mais interessante dessa relação entre as criminologias da vida cotidiana e a
criminologia do outro é o fato de que, enquanto uma se preocupa com a minimização dos
custos do sistema penal, a outra nada calcula: qualquer esforço é justificado quando se trata de
proteger as vítimas de monstros cruéis. Enquanto essas novas criminologias da vida cotidiana
se situam em uma orientação de modernidade tardia, buscando soluções racionais e
pragmáticas baseadas em pesquisas de ordem econômica e probabilística, a criminologia do
outro responde a uma orientação verdadeiramente antimoderna: ela “reage frente ao que
percebe como os fracassos do modernismo penal e frente às instâncias sociais da modernidade
tardia questionando os códigos normativos dessa sociedade e buscando transformar os valores
sobre os quais se assenta. Trata-se de una criminologia do outro perigoso, um eco
criminológico da cultura da guerra e da política neoconsevadora”.69
O fato de se tratar dessa bifurcação e de se afirmar que hoje as criminologias da vida
cotidiana e a criminologia do outro ocupam importantes espaços no tratamento da
criminalidade, não implica em se negar a importância ainda do exercício do poder disciplinar.
Assim como Foucault nota que a emergência dos dispositivos de segurança não suplanta a
biopolítica e a disciplina, tampouco as novas criminologias suplantam o positivismo
criminológico e toda a gama de explicações causais do comportamento criminoso centrado no
delinquente. Não são poucos os estudos, especialmente nos Estados Unidos, que buscam
encontrar, ainda, o “gene” do mal.
Mas o que se percebe é um direcionamento comum entre aquelas duas criminologias:
ambas trabalham no sentido do fortalecimento do controle penal, que é visivelmente seletivo.
Seja o endurecimento das leis penais dado pelo neorretributivismo, seja a ampliação do
sistema de controle situacional e ambiental por parte das criminologias da vida cotidiana,
ambas contribuem para a expansão do sistema penal. Tanto é que nos Estados Unidos o
crescimento do número de encarcerados cresce exponencialmente, chegando, na atualidade, a
dois milhões de presos. Por outro lado, também o sistema de controle aberto por meio de
institutos como a probation só crescem: se somados os indivíduos controlados dentro e fora
68
PAVARINI, Massimo. Um arte abyecto: Ensayo sobre el gobierno de la penalidad. Buenos Aires: Ad Hoc,
2006. p. 134.
69
GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona:
Gedisa, 2005. p. 300.
479
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Conclusão
70
SIMON, Jonathan. Il governo della paura: guerra alla criminalità e democrazia in America. Milano: Rafaello
Cortina, 2008.
71
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC,
2002.
72
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controle social na contemporaneidade. Anais do III Ciclo de Estudos e Debates sobre Violência e Controle
Social. p. 143-148. Porto Alegre: PUC-RS, 2008. p. 145.
73
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
480
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Referências
74
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discursos do direito. Florianópolis: Boiteux, 2006. p. 139-159.
75
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações. São Paulo: 34, 1992. p.
219-226.
481
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482
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
RESUMO: O presente trabalho tem como meta a análise crítica e a exploração de um grande
problema político-criminal da atualidade, qual seja, a expansão do Direito Penal, decorrente
da atividade desenfreada do poder legislativo, que produz leis penais para tutelar bens
jurídicos outros, passíveis de proteção por outras esferas do Direito, ampliando demais o
alcance da Ciência Penal, a ponto de impossibilitar ao seu aplicador realização da devida
prestação técnico-profissional, além de vulgarizar todo o sistema penal em razão de seu uso
indiscriminado, heterogeneizando-o. Para tanto, em primeiro plano, este estudo trata da
relação existente entre a política criminal e a dogmática penal dentro da composição das
Ciências Penais. Posteriormente, destacam-se os princípios político-criminais, que devem
dirigir e limitar o trabalho do legislador na esfera penal. Adiante, apresentou-se o tema central
deste trabalho, qual seja a modernização do Direito Penal, trazendo à luz a posição favorável
ao movimento expansionista “liderado” por Luis Gracia Martín, além de expor o
entendimento contrário à modernização, onde se aduz as opiniões e sugestões de Winfried
Hassemer, Cornelius Prittwitz e Jesús-María Silva Sanches. Conclui-se, nesta esteira, que essa
ampliação do Direito Criminal não pode valer-se da força comunicativa desta esfera para a
imposição de penas privativas de liberdade a fim de abarcar questões de outros ramos do
Direito. Assim, observa-se que o problema não é tanto a expansão do Direito Penal em geral,
senão especificamente a expansão do Direito Penal da pena privativa de liberdade e outras
respostas penais de índole preventiva (medidas de segurança), pois a expansão do Direito
Punitivo carece de razoabilidade político-jurídica.
Palavras-chave: Política Criminal; Dogmática Penal; Expansionismo Penal; Modernização do
Direito Penal; Pena Privativa de Liberdade.
RESUMEN: El presente trabajo tiene como objetivo hacer um análisis crítico y uma
exploración de un gran problema político-problema de actualidad, a saber, la expansión del
derecho penal, como resultado de la actividad del poder legislativo desenfrenado, que produce
las leyes penales para proteger otros bienes jurídicos, protegidos por otras ramas del derecho,
ampliando el alcance del derecho penal creando dificultades para la aplicación de la ley,
Aparte de vulgarizar todo el sistema de justicia penal, debido a su uso indiscriminado, lo
heterogeneizando. Por lo tanto, en primer plano, este estudio examina la relación entre la
dogmática penal y política criminal dentro de la composición de Ciencias Penales. A
1
Professor de Direito Penal e Processual Penal na UNIESP de Presidente Prudente - SP, Investigador de Polícia
no Estado do Paraná, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho – RJ e
pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá – PR, mestrando em Ciências Jurídicas
no Centro Universitário de Maringá (CESUMAR).
2
Advogado Criminalista, Ciências Jurídicas no Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). Professor de
Direito Penal no Cesumar e Unifamma.
483
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
continuación, se destacan los principios de política criminal que deben orientar y limitar el
trabajo del legislador en materia penal. Por delante, presentó el tema central de este trabajo, a
saber, la modernización del derecho penal, exponiendo la posición favorable al movimiento
expansionista "dirigida" por Luis Gracia Martín, además de exponer el punto de vista opuesto
a la modernización, en la que aduce las opiniones Winfried Hassemer, Cornelius Prittwitz y
María Jesús Silva-Sánchez. Llegamos a la conclusión, esta cinta, que la extensión de la ley
penal no puede acogerse a la fuerza comunicativa de esta esfera para la imposición de penas
privativas de libertad con el fin de cubrir los temas de otras ramas del derecho. Así, se observa
que el problema no es tanto la expansión del derecho penal en general, pero específicamente la
expansión de la Ley penal de privación de libertad y otras respuestas preventivas de carácter
penal (medidas de seguridad), porque la expansión de la ley punitiva carece de razonabilidad
política y jurídica.
Palavras-chave: Política Criminal; Dogmática Penal; Expansionismo Penal; Modernização
del Derecho Penal; Pena Privativa de Liberdade.
1 INTRODUÇÃO
484
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
485
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patrimônio - que a maior parte do fenômeno expansivo do Direito Penal teria de ser
reconduzida a um Direito de Intervenção, ou Direito Administrativo sancionador, ou ainda,
Direito Judicial Sancionador -, defendendo a elaboração de um “novo ramo” do Direito,
intermediário aos Direitos Penal e Administrativo, apto a tutelar situações não consideradas
de ultima ratio, mas que dependam de uma tutela, ainda que menos rigorosa, porém eficiente.
Vemos nessa mudança de paradigma a presença de mecanismos de respostas penais
identificadas em alguns discursos penais e criminológicos, que durante a história da
humanidade mantiveram-se como mecanismo de reação frente aos perigos da criminalidade
grave, justificando-se, na atualidade, por alguns fatores como o incremento comunicacional,
construídos a partir de fenômenos sociais mais amplos da sociedade, em especial aqueles que
o campo jornalístico cria como esferas do sistema de justiça amplamente cristalizados no
modelo social contemporâneo.
Isso faz com que paralelamente ao modelo de garantias penais e processuais penais,
cristalize-se um outro, de duvidosas garantias face à não gravidade, ou aparente sutileza de
suas respostas, mas que uma vez estruturado pode irradiar-se pelo sistema, mormente ante
comportamentos perigosos, dinamizando a eficácia de medidas de cunho preventivo, sem
maiores perquirições de seus requisitos ou garantias construídos mediante o pagamento de
duras penas pela humanidade. Justifica-se o famigerado modelo prevencionista ante uma
necessária defesa da sociedade.
O grande problema que se nos apresenta então, como se pôde observar por essa breve
explanação, decorre do fato de que o Direito Penal vigente na maioria dos países propicia a
cominação de penas de prisão de gravidade média em hipóteses de fatos
“administrativizados”, com regras de imputação e de rigidez decrescentes e no campo de
princípios político-criminais flexibilizados, tendenciando-se, outrossim, o prosseguimento
nessa linha, em termos corrigidos e aumentados.
Por outro lado, essa verificada flexibilização pode tomar proporções incontroláveis,
onde os fins a serem alcançados justificariam determinadas medidas de cunho prevencionista,
aplicados a revelia de institutos garantidores do cidadão face ao poder punitivo do Estado,
descambando por um arbitrário “Direito Penal de Política Criminal”, administrativizado pela
oportunidade e conveniência que exsurge da demanda social.
Nessa seara, admitir-se-ia que propor a “devolução” ao Direito Administrativo de
todo o “novo” Direito Penal é, certamente, uma postura admirável sob perspectivas
academicistas, mas que evita afrontar as razões pelas quais produziu-se essa inflação penal,
486
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
assim como buscar soluções que, uma vez atendidas, mostrem a máxima racionalidade
possível.
Nesse sentido, impõe-se averiguar sob a égide do modelo democrático em que nos
inserimos, se tais mecanismos são eficazes no controle dos índices de criminalidade de um
determinado povo em dado momento histórico, e para, além disso, se são compatíveis com
esse modelo eleito.
Constata-se que a cultura do medo tem gerado uma manifestação social que demanda
“um controle jurídico-penal cada vez mais arbitrário, e paradoxalmente, mais legítimo”.
Diante desse quadro de fatos, faremos breves digressões sobre a constatação narrada,
apresentando, na medida do possível, algumas possíveis soluções político-criminais aceitas
como razoáveis numa perspectiva ao menos acadêmica, explanando-se ainda, acerca das
vantagens e desvantagens que trazem em seu bojo.
Propor-se-á assim, uma reflexão objetiva sobre uma das principais discussões
doutrinárias da atualidade, quanto à expansão do Direito Penal e suas novas modalidades de
respostas.
Para tanto, desenvolveremos breve pesquisa, orientada pelo método dedutivo, através
de análises fundamentais e qualitativas, tendo como recursos bibliografias, literaturas e
documentos.
O legado da Escola Moderna Alemã, cujo gênio de Von Liszt, nos ampliou os
horizontes da Ciência do Direito Penal Dentro ante uma nova e complexa estrutura, resultante
da fusão de disciplinas jurídicas e criminológicas heterogêneas, compondo a gesamte
Strafrechtswissenschaft (ciência total do Direito Penal)3 onde essa visão totalizante e
interdisciplinar possibilita ao estudioso uma visão mais ampla e ao mesmo tempo profunda
dos fenômenos criminais, a partir de elementos centrais da ideia do Direito como fenômeno
observável: o homem e a sociedade.
3
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral: artigos. 1º a 120º. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002. v. 1, p. 93.
487
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Do estudo das Ciências Penais a partir daquela heterogeneidade reclamada por Liszt,
temos a política criminal, a dogmática penal e a criminologia 4, todas com autonomia
científica, porém interligadas entre si, por uma relação de interdependência prática, como
integrantes de monumental mecanismo científico apto a nos revelar, mesmo que por meios
tangenciais da verdade científica, as características e possíveis rumos do Direito Penal da
“pós-modernidade”.
Enquanto a dogmática penal ocupa-se da interpretação, sistematização e
desenvolvimento dos dispositivos legais e das opiniões científicas no âmbito do direito penal 5,
a política criminal corresponde à que deve ser implementada no combate à criminalidade,
sendo, portanto, o aspecto do controle penal relacionado com o poder que o Estado tem de
definir um conflito social como criminal6.
De uma perspectiva crítica, leciona Alessandro Baratta que “no microcosmo social, o
mecanismo de marginalização posto em ação pelos órgãos institucionais é integrado e
reforçado por processos de reação, que intervêm ao nível informal” 7, isto é, ao nível dos
mecanismos informais de combate à criminalidade (escola, família, igreja, etc.).
Nesse sentido, para o desenvolvimento de mecanismos efetivos de controle e
prevenção, não basta a formação jurídica tradicional, formal, que vê no crime a mera violação
da lei penal. Daí porque se deve buscar também o auxílio de outras ciências sociais, dentro de
um contexto interdisciplinar, para compreender de forma adequada a etiologia do fenômeno
criminal que, nesse sentido, adquire um importante sentido material: crime, portanto, não é a
violação da lei estatal, mas o fenômeno que ganha transcendência a partir do momento em
que incomoda a sociedade e abala bens fundamentais para sua existência.
Observa-se que a política criminal, por sua vez, concebida como o conjunto de
medidas adotadas pelo poder público – no âmbito de sua tríplice atividade, 8 impulsiona a
dogmática penal, tendenciando-a, pois aquela precisa ser sensível aos anseios e perspectivas
sociais, refletindo-se na realidade normativa, ou seja, no conteúdo da dogmática penal.
4
A criminologia constitui ciência empírica, que, com base em dados e demonstrações fáticas, busca uma
explicação causal do delito como obra de uma pessoa determinada ESTEFAM, André. Direito Penal: volume 1.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 40.
5
ROXIN. Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro-São
Paulo: Renovar, 2002, p. 186-187.
6
MALARÉE, Hernán Hormazábal; RAMÍREZ, Juan Bustos. Lecciones de derecho penal. Madrid: Trota, 2006,
p. 40.
7
BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 180.
8
Como bem dispõe Mirelle Delmas-Marty, a Política Criminal compreende “o conjunto de procedimentos pelos
quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal, aparecendo, portanto, como teoria e prática das
diferentes formas de controle social” (Os grandes sistemas de Política Criminal. Trad. Denise Radanovic Vieira.
Barueri: Manole, 2004, p.3-4).
488
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
9
LISZT, Frans von. Tratado de directo penal alemão. Trad. José Higino Duarte Pereira. Atualização e notas de
Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2003. t. I e II.
10
Neste sentido BACIGAPULO, Enrique. Derecho penal: parte general. Buenos Aires: Hammurabi, 1999, p.
66, destaca que os postulados da política criminal servem, então, como critérios de decisão a respeito dos
sistemas dogmáticos para aplicação do direito penal, de modo que a política e a dogmática penal integram-se de
modo indissolúvel na ciência penal.
11
Op. cit., p. 188. (2002, p.188),
12
Para um estudo minucioso, cf. ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. Trad. Francisco
Muñoz Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002.
489
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
À luz da exposição feita por Beccaria 16, em 1764, em seu breviário de política
criminal Dos Delitos e Das Penas, trar-se-á um breve relato acerca do enunciado dos
princípios da política criminal, conforme segue, tendo em vista que, ignorando-os, produzir-
se-ia um não-Direito:
a) Princípio da Legalidade dos Delitos e das Penas: trata-se de uma das maiores
conquistas da humanidade, iniciada formalmente em 1628, quando a elaboração de uma
petição de direitos (Petition of Right), lançou a semente da revolução inglesa, contribuindo
para a proibição de prisões ilegais. Tal princípio, nos dias atuais, traduz-se na previsão legal
de que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”
(art. 5.º, XXXIX, CF e art. 1.º, CP)17. O princípio da legalidade dá lugar a uma série de
garantias e consêquencias em que se manifesta o seu aspecto material – não simplesmente
formal -, o que importa em restrições ao legislador e ao intérprete da lei penal. Daí ser
traduzido no sintético aptegma nullum crimen, nulla poena sine lege praevia, scrita et stricta,
que cumpre funções reciprocamente condicionadas, quais sejam: limitações das fontes
formais do direito penal e garantia da liberdade pessoal do cidadão 18.
13
SILVA SANCHES, p. nota 170, apud, PRADO, Luiz Regis, Op. cit., p. 108.
14
Idem.
15
Ibidem.
16
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 202-240.
17
Assim, enuncia Cesare Beccaria, Op. cit., p. 33, que apenas as leis podem fixar penas com relação aos delitos
praticados; e esta autoridade não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade
agrupada por um contrato social (Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege).
18
PRADO, Luiz Regis. Op. cit.,p. 112.
490
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Faz-se também, segundo Ferrajoli19 distinção entre a mera legalidade, que tem na lei
condição indispensável do delito e da pena (nulla poena, nullum crimen sine lege), e o
postulado da estrita legalidade, como modelo regulativo, que exige as demais garantias como
fundamento da legalidade penal (nulla lex poenalis sine necessitate, sine iniuria, sine actione,
sine culpa, sine iudicio, sine accusatione, sine probatione, sine defensione).
19
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: Teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 95.
20
Op. cit., p. 229.
21
MONTESQUIEU, Charles Louis de. O espírito das leis. São Paulo: Martins, 1996, p. 198.
22
PRADO, Luiz Regis, Op. cit., p.122.
23
Idem, p. 120.
491
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
agente pelo simples fato de ter ele agido voluntariamente, ainda que não houvesse dolo ou
culpa24. Hodiernamente, porém, o princípio da culpabilidade possui três dimensões 25: a)
proibição da responsabilidade penal sem dolo ou culpa; b) vedação de aplicação da pena sem
culpabilidade; c) a gravidade da pena deve ser proporcional à gravidade do fato cometido.
24
CEREZO MIR, José. Direito penal e direitos humanos: experiência espanhola e européia. Trad. Luiz Regis
Prado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, 1994, v. 6, p. 60 e ss.
25
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. ver. e aum. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris
Editor, 2003, p. 33.
26
XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação
do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do
valor do patrimônio transferido;
XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou
interdição de direitos;
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de
trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis;
XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o
sexo do apenado;
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
27
ESTEFAM, André. Op. cit., p.120.
492
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
4 EXPANSIONISMO PENAL
Já não se encontra o Estado autoritário que quer assegurar seu poder (como é, não
esqueçamos, uma das tradições em matéria penal); nas raízes programáticas encontramos, isto
sim, um grupo de fatores que são os seguintes 29: a) O desenvolvimento tecnológico e as
ciências naturais, que, como seus riscos específicos, parece exigir uma reação estatal; b)
Novos agentes criminais, que querem utilizar o Direito Penal para novos propósitos -muitas
vezes bastante sedutores – tais como: proteger o meio ambiente contra a sociedade, proteger
as mulheres e as crianças contra os homens; c) Mencione-se, ainda, o mito da dirigibilidade
através do Direito, e, particularmente, por meio do Direito Penal; denomino-a mito porque
essa ideia (plausível) mostrou-se surpreendentemente resistente a argumentos empíricos.
E todos esses fatores devem ser avaliados no contexto de uma percepção, a de que as
liberdades dos cidadãos são ameaçadas, cada dia menos, pelo Estado e cada vez mais, por
seus próprios co-cidadãos30.
Essa expansão do Direito Penal, aliada a demandas crescentes de segurança, vem
seguida de ajustes do Direito que, do ponto de vista preventivo, parecem plausíveis ou até
mesmo indispensáveis, mas que, sob a perspectiva do Direito Penal, podem ser resumidos
como deformações do perfil garantista do Direito Penal que não se limitam, porém, às novas
divisões do Direito Penal, mas que ameaçam infectar o Direito Penal como um todo.
E essa análise não se torna mais otimista quando nos damos conta do punitivismo
atual, um punitivismo avesso a explicações e, às vezes, à própria culpa individual. Essa
epidemia penalizadora acaba por contaminar todo o sistema penal, chegando a proporções
28
Derecho penal: parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Trad. da 2. ed.
(1994) por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid:
Thomson-Civitas. Reimpressão: 2008, p. 63.
29
PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal em uma encruzilhada: abolição, diversificação, retornar à razão ou
entrar em razão? (Título original: ¿El Derecho Penal en la encrucijada: abolición, diversificación, volver a la
razón o entrar en razón?). Trad. Érika Mendes de Carvalho. Maringá: Revista de Ciências Jurídicas - UEM, v.7
n.1, jan./jun. 2009, disponivel em: periodicos.uem.br/ojs/index.php/RevCiencJurid/article/.../5944, p. 7-10.
30
Idem, p. 8-10.
493
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Luis Gracia Martín em sua obra 33 sobre a expansão do Direito Penal defende a
modernização do Direito Criminal, dispondo que há, nos dias atuais, um incremento
quantitativo de tipos penais, em razão do que o Direito Penal vê crescer e aumentar,
formalmente, o número de delitos ou, ao menos, a imposição de penas com maior rigor e
restrição de direitos fundamentais em prol da coletividade. Assim sendo, o autor defende que
temos, atualmente, duas espécies de Direito Penal:
a) Direito Penal clássico: inerente a um Estado Liberal que prevê princípios penais
e processuais penais de forma garantista, tutelando bens jurídicos individuais, tais como a
vida, o patrimônio, a honra etc. É, portanto, o Direito Penal em sentido estrito, aplicador da
pena privativa de liberdade, com penas intimamente vinculadas ao ser da pessoa, e não ao ter
ou ao estar. Trata-se do Direito Penal nuclear.
31
CANOTILHO, J. J. Gomes. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 82-83.
32
Idem, p. 4.
33
GRACIA MARTIN, Luis. Prolegomenos para la lucha por la modernizacion y expansion del derecho penal y
para la critica del discurso de resistência. 1ª. ed. Valencia. 2003.
494
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
ambiente, o patrimônio genético entre outros34, bens jurídicos estes que situam-se ao redor do
núcleo do Direito Penal (Direito Penal clássico). Diante disso, temos então uma “pró-
expansão” do Direito Penal, uma modernização, ou seja, uma ampliação do alcance do Direito
Penal para fora do núcleo rígido, passando a salvaguardar outros bens jurídicos localizados ao
seu redor.
No Brasil, a modernização do Direito Penal deu-se por meio da legislação penal
especial, com a criação de estatutos como o ECA, o CDC, a Lei Antidrogas, a Lei de
Biossegurança, a Lei de Crimes Ambientais etc, o que mantém-nos, ainda, dentro da seara
penal.
Questiona-se, então, se este seria o melhor caminho, pois dificulta, e muito, para o
aplicador do Direito, em especial do Direito Penal, que deve estar a par de todos estes
microssistemas, bem como, dessa grande multiplicidade de crimes esparsos em toda a
legislação extravagante, em sua maioria, incompatíveis entre si. Um grande exemplo é a Lei
de Crimes Ambientais (Lei n.º 9.605/98) que traz em seu bojo nada menos do que 40 tipos
penais (arts. 29 a 69-A).
Diante desse grande número de delitos e da dificuldade na aplicação do direito pelo
aplicador, temos como consequência, a marginalização do Direito Penal, que em razão de sua
constante infringibilidade sem a devida repressão, estabelece no meio social uma sensação de
impunidade, de insegurança jurídica, tirando toda a credibilidade do Direito Penal, que passa
a ser apenas simbólico.
34
A pro-expansão do Direito Penal, no Brasil, se deu por meio da legislação penal especial, com a criação de
estatutos como o ECA, o CDC, a Lei Antidrogas, a Lei de Biossegurança, a Lei de Crimes Ambientais etc.
35
HASSEMER, Winfried. Crisis y características del moderno derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde.
Madrid. Actualidad Penal, n. 43-22, 1993, p. 635-646.
36
Op. cit.
495
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Direito forem insuficientes, sendo esta a última ratio, utilizável somente na proteção de bens
jurídicos essenciais.
Para Hassemer 37 são colocados em risco os fundamentos do Direito penal garantista
quando este é utilizado para resolver os problemas sociais. Assim, o Direito de Intervenção
surge como uma alternativa possível para o problema, isto é, um Direito que seria mais
flexível e adequado para resolver os problemas específicos das sociedades modernas; que
seria algo entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, mas também algo entre o Direito
Penal e o Direito civil, e que, finalmente, seria caracterizado por um menor número de
garantias e de normativas processuais, acompanhado de uma menor gravidade das sanções.
Verifica-se então que Hassemer38 propõe a elaboração de um novo ramo da ciência
jurídica, situado entre os Direitos público e privado, com sanções próprias - como por
exemplo a reparação do dano -, com a possibilidade de responsabilização dos entes coletivos e
a relativização dos institutos e garantias do Direito Penal. Temos então, como consequência,
uma administrativização do Direito Penal, restando ao núcleo criminal somente a proteção
dos bens jurídicos individuais e alguns poucos coletivos, quando possível sua harmonização
com o sistema penal (clássico). Como exemplo aproximado do Direito de Intervenção no
Brasil, temos o Jecrim (Juizado Especial Criminal), onde temos a aplicação, para as infrações
penais de menor potencial ofensivo, de penas restritivas de direitos, a realização de transações
penais, suspensão do processo etc.
37
PRITTWITZ, Cornelius. Op. cit., p. 35-36.
38
Op. cit., p. 640.
39
SILVA SÁNCHES, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 147.
496
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
b) Direito Penal de 2ª velocidade: por sua vez, o autor advoga pela criação de um
Direito Penal de 2ª velocidade, moderno, para tutelar novos bens jurídicos, sobretudo os de
caráter coletivo, difusos e transindividuais, flexibilizando-se, com isso, as garantias penais e
processuais asseguradas pelo Direito Penal tradicional, posto que, nesta segunda velocidade
não serão admitidas penas privativas de liberdade. Trata-se de uma ideia que se aproxima do
Direito Penal moderno explanado por Luis Gracia Martín.
Em suma, defende-se aqui a aplicação do Direito Penal em duas vertentes
(velocidades), sendo uma punida com penas privativas de liberdade (Direito Penal nuclear,
mínimo e rígido), e outra com penas de caráter cível e administrativo, porém, nesta última,
ter-se-á a relativização das garantias penais e processuais penais - Direito Penal amplo e
flexível40.
Silva Sánches observa ainda que, para que o Direito Penal de 2ª velocidade seja
eficiente, apesar da aplicabilidade de penas de caráter não-corporal, necessário seria que suas
sanções fossem impostas por meio da instância judicial penal, preservando-se os elementos de
estigmatização social e a capacidade simbólico-comunicativa própria do Direito Penal41.
40
Idem, p. 145.
41
Idem, p. 139.
42
Para maior aprofundamento sobre o assunto vide JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano y derecho
penal del enemigo. Trad. Manuel Cancio Meliá. In: JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho
penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003. p.47 e ss.
43
JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano y derecho penal del enemigo. Trad. Manuel Cancio Meliá.
In: JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003, p. 48.
44
ROUSSEAU, Jean-Jacques: O contrato Social (Título original: Le Contrat Social revisado por Antonio Carlos
Marquês). Trad. Pietro Nasseti. 20. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001.
497
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
nenhuma segurança cognitiva, pois não conseguem assimilar a norma e a ordem, por isso,
para eles não há Direito, mas sim uma legislação de luta, de combate, que no fundo traduz-se
em um “não Direito”, de pura coação, com escopo unicamente de neutralizar o indivíduo,
oferecendo-lhe respostas diferenciadas para recuperar e preservar o sistema normativo por ele
ferido e rejeitado.
Desta forma, teríamos dois Direitos Penais: um para o cidadão - cindido em Direito
Penal de 1ª e de 2ª velocidade – e outro para o inimigo – Direito Penal de 3ª velocidade.
Apresar de sólida, sedutora e muito bem fundamentada a tese de Günther Jakobs, alguns
questionamentos ainda estão sem a devida resposta, tais como: quem é o inimigo? A quem
compete rotular o inimigo? Quando nasce tal rótulo? No Inquérito Policial, no processo ou já
nasce com o indivíduo? Ademais, não é possível se rotular indivíduos em um Estado
Democrático de Direito como “não pessoa”, posto que a Dignidade da Pessoa Humana é
essência do homem, ao passo que, admitindo algo assim, estar-se-ia relativizando toda a
ordem constitucional.
7 CONCLUSÃO
Tendo em vista que, nos dias atuais a demanda social de proteção por meio do
Direito Penal não se vê satisfeita de um modo funcional com o Direito Penal reduzido a seu
núcleo principal, é inevitável a sua expansão.
Essa ampliação do Direito Criminal, contudo, não pode basear sua requerida força
comunicativa na imposição de penas privativas de liberdade. Assim, observa-se que o
problema não é tanto a expansão do Direito Penal em geral, senão especificamente a expansão
do Direito Penal da pena privativa de liberdade e de outras medidas de cunho preventivo
especial, pois a expansão do Direito Punitivo carece de razoabilidade político-jurídica.
Constata-se, dessa forma, a existência de dois problemas atuais.
Por proêmio, o fato de o Direito Penal vir sendo utilizado, e até com certa frequência
pelo legislador como “resposta imediata” a “todos” os problemas sociais relatados – com
requintes de sensacionalismo – pela mídia (Direito Penal de emergência), sem maiores
reflexões, gerando um populismo penal inadmissível, onde nossa ciência acaba por ser
concebida como verdadeira panaceia contra todos os males.
498
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Por outro lado, em decorrência de a pena privativa de liberdade estar sendo utilizada
sem razoabilidade político-jurídica - agora camuflada por outras modalidades punitivas de
caráter preventivo especial (controle telemático, castração química, cadastro de características
genéticas de criminosos sexuais), porque constatada a falência da prisão - como resposta aos
“anseios sociais” (fabricados pelos agentes de reprodução do poder social), a tendência é que
tenhamos, nas próximas décadas, um punitivismo sem limites, para além da gigantesca
população carcerária, cuja realidade não responde ao princípio da adequação, porque longe
de cumprir as finalidades preventivo socializadoras da pena, aplicada em detrimento de
grupos vulneráveis de uma sociedade de estruturas deformadas e inadequadas.
Diante desse estado de coisas, mesmo que valiosa a proposta trazida por Silva
Sánches, considerando-se que outros meios, que não a aplicação da pena privativa de
liberdade, eficazes para reparar danos causados por meros ilícitos de acumulação ou perigo
presumido, e distantes de um perigo real para bens individuais, nota-se que essa postura
flexibilizadora de garantias, poderá, como de fato já ocorre, contaminar todo esse sistema de
garantias, permitindo um punitivismo desenfreado de práticas de duvidosa eficácia, atrelados
e fundamentados por preceitos de utilitarismo prevencionista especial, característicos do
positivismo naturalista. Passa-se a adotar como respostas penais adequadas a sociedade de
risco, característica da pós-modernidade, cujo medo e insegurança se difundem
diuturnamente, reclamando resposta garantidoras da “paz social e ordem pública”, conceitos
esses de absoluta imprecisão jurídica.
Estatísticas confiáveis demonstram que a insegurança experimentada pela é mais
comunicacional do que real. Há uma forte percepção do fenômeno da violência integrante no
cotidiano, onipresente na sociedade, difundindo um estado de pânico no cidadão ante seus
potenciais “inimigos”.
Essa angústia percebida pelos cidadãos necessita de contraprestações, mesmo que
simbólicas, de modelos ou respostas de natureza penal, aptas a conter o alarme social
observado, eis que a essa sensação de incremento da criminalidade violenta, passa a gerar
uma forte demanda por políticas criminais duras.
O desenvolvimento científico propicia respostas penais alternativas, como o
assim chamado monitoramento eletrônico (Lei 12.258/10, que alterou a Lei de Execuções
Penais) a criação de cadastros de criminosos (Lei 12.654/2012, que ainda não entrou em
vigor), são a tônica do momento. O Direito Penal estrutura-se em torno de suas respostas,
calcadas em um utilitarismo duvidoso.
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finalista. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001.
503
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
NO SISTEMA PUNITIVO
PUNITIVE IN SYSTEM
Resumo. Este artigo tem por objetivo explicar as relações de poder no interior do sistema penal, ou
seja, mostrar como se exerce os poder punitivo e como o saber penal dá azo a diferentes adaptações do
poder de punir. Por meio da configuração das ideias de defesa social nas escolas penais, parte-se das
diferentes bases epistemológicas do saber penal para tentar explicar como se dá a continuidade do
poder de punir em sistemas tão diferentes, quanto a escola clássica, a escola positiva e a escola
técnico-jurídica. A análise de Focault sobre as relações de poder no sistema punitivo é empregada com
forte fundamentação no livro “Em defesa da sociedade”.
Summary. This article aims to explain the power relationships within the criminal justice system, ie,
to show how the power is exercised as punitive and criminal knowledge gives rise to different
adaptations of the power to punish. By setting the ideas of social defense in schools criminal breaks of
different epistemological foundations of knowledge for criminal attempt to explain how is the
continuity of power to punish in systems as diverse as the classical school, the school and positive
school technical and legal. Foucault's analysis of power relations in punitive system is employed with
a strong foundation in the book "In defense of society."
INTRODUÇÃO
*
Bartira Macedo de Miranda Santos é doutora em História da Ciência e professora de Direito Penal e Direito
Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás.
504
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 17 - Direito Penal e Criminologia
Este artigo articula as relações de poder analisadas por Foucault com o saber penal que
se constroem nas escolas penais. Para tanto, parte-se da configuração da ideia de defesa social no
interior das escolas penais. Isto porque o poder se exerce em nome da sociedade. Assim, é preciso que
se pergunte: em que escola o direito penal se tornou um instrumento de defesa social? Deve-se ou não
entender que a sociedade em sua estrutura política é organizada de modo que alguns possam se
defender contra outros? Quem exerce essa defesa?
A ideia de um direito que pudesse impor limites ao poder punitivo é obra dos
clássicos, que assim foram denominados por Ferri, quando chamou de clássicos todos aqueles
que não aderiram ao positivismo penal da escola italiana.1 Segundo Ferri, há uma escola
“clássica” do direito penal, fundada por Beccaria, integrada por todos os penalistas não
1
Sobre o assunto, vide Zafaroni & Pierangeli, Manual de Direito Penal, 299-301. A denominação de “Clássica”
era, inclusive, estranha ao tempo do seu advento e apogeu tendo sido cunhada apenas em 1880 por Ferri. Cf.
Andrade, A ilusão de segurança jurídica, 45.
505
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A primeira fase da chamada Escola Clássica foi inaugurada por Beccaria, com
o livro Dos delitos e das penas (1764), escrito com base no contratualismo, que representa a
ideia de que a ordem jurídica resulta de um grande e livre acordo entre os homens, que cedem
parte dos seus direitos no interesse da ordem e segurança comuns. Beccaria (2003:27)
afirmava que “as leis são as condições em que os homens isolados e independentes uniram-se
em sociedade, cansados de viver em um contínuo estado de guerra e de gozar de uma
liberdade que não tinham certeza da utilidade de conservá-la”.
2
Enrico Ferri, Princípios de Direito Criminal, 51.
3
A ideia de contrato social foi formulada por Jean-Jacques Rousseau, que no livro “Contrato Social”, explicou
que a sociedade é formada pela associação de indivíduos e dessa associação forma-se o Estado. A ideia
formulada por Rousseau serve para explicar que a relação que se estabelece entre os indivíduos e o Estado é uma
relação de associação e não de submissão. Essa ideia foi criticada por muitos teóricos principalmente pelo fato
de não restar provado tal associação. De todo modo, essa ideia foi utilizada por Beccaria para argumentar que o
poder do Estado não é ilimitado.
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Com essa concepção, se justificava o castigo mais severo para aquele que não
quisesse ser livre. E, “ser livre”, naquele momento, significava ser obediente e passivo diante
da própria exploração pelo sistema capitalista. A ideologia liberal clássica deduz que a
liberdade individual se realiza pela espontânea submissão da pessoa ao sistema de produção,
que a propriedade privada é justa e se organiza automaticamente em termos de igualdade.
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delitos e das penas. O homem, sendo livre, pode optar entre conduzir-se dentro da legalidade
ou fora dela, ficando sujeito à pena se incorrer nas condutas proibidas por lei.
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“como”. A questão do poder começou a colocar-se para ele por volta de 1955, contra o pano
de fundo dessas “duas sombras gigantescas”, dessas “duas heranças negras” que foram, para
ele e para a sua geração, o fascismo e stalinismo. “A não-análise do fascismo é um dos fatos
políticos importantes destes últimos trinta anos”. “Se a questão do século XIX foi a pobreza, a
questão colocada pelo fascismo e pelo stalinismo foi o poder” – dizia ele em 19774.
Foucault parte da afirmação de que o poder não se dá, nem se troca, nem se retoma,
mas que ele se exerce e só existe em ato. O poder é uma relação de força. Se o poder se
exerce, o que é esse exercício? Em que consiste? Qual é a sua mecânica? A essas perguntas,
Foucault começa sua análise afirmando que “o poder é essencialmente o que reprime. É o que
reprime a natureza, os institutos, uma classe, indivíduos”. Assim, em vez de analisar o poder
XVIII, e esta análise “se articularia em torno do poder como original que se cede, constitutivo
da soberania, e tendo o contrato como matriz do poder político.” O poder que ultrapassa a si
mesmo, ou seja, quando vai além dos próprios termos do contrato, torna-se opressão. O
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Foucault, Dits et écrits, v. III, 218, apud Alessandro Fontana e Mauro Bertani, Situação do curso, In: Foucault,
Em defesa da sociedade, 331-2.
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gostaria de tentar ver, neste curso Em defesa da sociedade, em que medida o esquema binário
da guerra, da luta, do enfrentamento das forças, pode ser efetivamente identificado com o
fundamento da sociedade civil. É mesmo do funcionamento da guerra que se deve falar para
analisar o funcionamento do poder? Sob o tema agora tornado corrente, de que o poder tem a
estrutura política é organizada de maneira que alguns possam se defender contra os outros?
também todos as instituições que, no interior do corpo social, vão fazer o discurso da luta das
da sociedade.
contra nossos inimigos porque de fato os aparelhos do Estado, a lei, as estruturas do poder,
não só não nos defendem contra os nossos inimigos, mas são também instrumentos com os
quais os nossos inimigos nos perseguem e nos sujeitam.” Segundo Foucault, este discurso,
neste Curso, vai desaparecer. Diz Foucault que, a partir de agora, “não será: ‘Temos que nos
defender contra a sociedade’, mas “Temos que defender a sociedade contra todos os perigos
biológicos dessa outra raça, dessa sub-raça, dessa contra-raça que estamos, sem querer,
constituindo”.
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É nesse esquema que se insere, por exemplo, Beccaria, ao afirmar que a pena de morte é ilegítima porque
ultrapassa o poder outorgada ao soberano.
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Quanto ao racismo, foi um tema que apareceu e que foi abordado nos
seminários e nos cursos sobre a psiquiatria, sobre as punições, sobre os
anormais, sobre todos esses saberes e práticas em que, em torno da teoria
médica da ‘degenerescência’, da teoria médico-legal do eugenismo, do
darwinismo social e da teoria penal da ‘defesa social’, elaboram-se, no século
XIX, as técnicas de discriminação, de isolamento e de normalização dos
indivíduos ‘perigosos’: a aurora precoce das purificações étnicas e dos campos
de concentração (1999, p. 344).
Foucault dizia na última aula do curso de 1974-1975, sobre Os anormais: “Vocês vêem como
nada mais faria que “ligar”, por sua vez, esse novo racismo, como meio de defesa interna da
sociedade contra os anormais, ao racismo étnico que era endêmico no século XIX.
partir do século XVII, levando-a até o aparecimento do racismo de Estado no século XX.
Assim, Em defesa da sociedade pode ser entendido como “o ponto de encontro, a junção, a
racismo a partir dos discursos históricos sobre a luta das raças, no século XVII e no século
que serviu de pano de fundo para todas as suas análises sobre a guerra, as raças etc. Na teoria
clássica da soberania, o soberano tem o direito de vida e de morte, o que significa que ele tem
o direito de fazer morrer e deixar viver. É por causa do soberano que o súdito tem direito
de estar vivo ou tem direito, eventualmente, de estar morto. Em todo caso, a vida e a morte
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dos súditos só se tornam direitos pelo efeito da vontade soberana. Que quer dizer, de fato,
exerce a partir do momento em que o soberano pode matar. Em última análise, o direito de
matar é que detém efetivamente em si a própria essência desse direito de vida e de morte: é
porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida. É essencialmente um
século XIX consistiu, não substituir, mas completar esse velho direito de soberania – fazer
morrer e deixar viver – com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai
penetrá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso:
Foucault, o de fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito é que se instala: o
do direito. Quando os juristas do século XVII e XVIII dizem que os indivíduos se reúnem em
um contrato social para constituir um soberano, por que o fazem? Eles o fazem porque estão
premidos pelo perigo ou pela necessidade. Eles o fazem para proteger a vida. É para poder
viver que constituem um soberano. E, nesta medida, a vida pode efetivamente entrar nos
direitos do soberano? Não deve a vida ficar fora do contrato, na medida em que ela é que foi o
motivo primordial, inicial e fundamental do contrato? Tudo isso é uma discussão filosófica
política que mostra bem como o problema da vida começa a problematizar-se no campo do
pensamento político.
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Nos séculos XVII e XVIII, viram-se aparecer técnicas de poder que eram
espacial dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em
uma outra tecnologia de poder. Essa nova técnica de poder não disciplinar se dirige não ao
seguinte:
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dessa biopolítica. É nesse momento, na segunda metade do século XVIII, que se lança mão da
introdução de uma medicina que vai ter, agora, a função maior de higiene pública, com
assistência (que existiam faz muito tempo vinculadas à Igreja), de seguros, de poupança
as relações entre a espécie humana, os seres humanos enquanto espécie, enquanto seres vivos,
e seu meio de existência: as epidemias ligadas à existência dos pântanos e o problema das
constituído pelo contrato voluntário ou implícito dos indivíduos. A biopolítica lida com a
população, como problema político e científico, como problema biológico e como problema
globais, vai intervir nas causas dos fenômenos que atingem a população e sobre ela exercer
uma regulamentação.
mecanismos regulamentadores, que incidem sobre a população enquanto tal e que induzem
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regras de higiene, pressões sobre a sexualidade, portanto sobre a procriação; a higiene das
poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e
sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos
regulamentadores.
vigilância permanente. Depois, por outro lado, a sexualidade se insere e adquire efeito, por
seus efeitos procriadores, em processos biológicos amplos que concernem não mais ao corpo
De uma forma geral, pode-se dizer que o elemento que vai circular entre o
que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar. Dizer que o poder,
no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfície que se
que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o poder
da morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no biopoder?
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A extrema valorização da sexualidade no século XIX teve seu princípio nessa posição privilegiada da
sexualidade entre o organismo e população, entre corpo e fenômenos globais. Daí a ideia médica de que a
sexualidade devassa, pervertida (que gera doenças individuais), tem efeitos no plano da população, uma vez que
se supõe que aquele que foi devasso sexualmente terá uma hereditariedade, uma descendência degenerada. A
teoria médica da degenerescência muito cedo adotada pela medicina legal, teve efeitos consideráveis sobre as
doutrinas e as práticas eugênicas e não deixou de influenciar toda uma literatura, toda uma criminologia e toda
uma antropologia.
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É aí, crê Foucault, que intervém o racismo. Não é que o racismo tenha sido
inventado nessa época. Ele existia há muito tempo. Mas foi a emergência do biopoder que
corte entre o que deve viver e o que deve morrer. A distinção das raças, a hierarquia das raças,
a qualificação de certas raças como boas e outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai
ser uma maneira de subdividir a espécie. Essa, na visão de Foucault, é a primeira função do
De outro lado, o racismo terá a segunda função: terá como papel permitir uma
relação positiva, se vocês quiserem, do tipo: “quanto mais você matar, mais
você fará morrer”, ou “quanto mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo,
você viverá”. Eu diria que essa relação (“se você quer viver, é preciso que você
faça morrer, é preciso que você possa matar”) afinal não foi o racismo, nem o
Estado moderno, que inventou. É a relação guerreira: “para viver, é preciso que
você massacre seus inimigos”. Mas o racismo faz justamente funcionar, faz
atuar essa relação de tipo guerreiro – “se você quer viver, é preciso que o outro
morra” – de maneira que é inteiramente nova e que, precisamente, é compatível
com o exercício do biopoder. De uma parte, de fato, o racismo vai permitir
estabelecer, entre a minha vida e a morte do outro, uma relação do tipo
biológico: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto
mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em
relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo mas enquanto espécie –
viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar”. A morte
do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha
segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou
do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia;
mais sadia e pura (1999, p. 305).
poder tirar a vida de alguém. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que
CONCLUSÃO
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A Escola Clássica não aceitava a ideia de defesa social, a não ser que por essa
expressão se entendesse a defesa que a sociedade deve fazer em favor do indivíduo contra o
Estado arbitrário. Para esta Escola, o poder punitivo não é ilimitado. O Direito Penal é o
conjunto das normas jurídicas que regulam (e, portanto, limitam) o poder punitivo, que só
será considerado legítimo quando exercido dentro da legalidade. As relações de poder que se
oposto, vão provocar a expansão do poder punitivo. Para esta Escola, a função do Direito
As causas do crime vão ser procuradas na pessoa do criminoso. Para defender a sociedade, é
justificada a supressão de direitos humanos dos indivíduos. Nesta direção, as teorias de defesa
social desenvolvidas pela Escola Positiva vão preparar o caminho para a justificação da
punição sem crime. Substituindo-se a ideia de responsabilidade penal pessoal dos clássicos
No início do Século XX, quando essas ideias de defesa social se acoplam com
indesejáveis.
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Para Focault, o racismo foi a condição para que o Estado exercesse o seu poder
de matar.
Interessante notar que ainda nos tempos atuais o Estado reproduz a relação
difícil imaginar como se justifica a supressão de direitos humanos àqueles que ainda hoje são
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