“IDEIAS DE UMA HISTÓRIA”: O TEATRO E A PESQUISA ACADÊMICA
EM DEBATE Rodrigo de Freitas Costa*
Afinal, tirar consequências de um livro que trata sobre a escrita da
história do teatro brasileiro significa tomá-lo como uma possibilidade e não como uma resposta definitiva, e é contra as certezas definitivas que os autores escrevem e, com isso, têm plena consciência de que também fazem parte das interpretações sobre o nosso teatro.
O que chama a atenção é o fato de que todo ordenamento
interpretativo de muitas obras que tratam da produção teatral de meados do século XIX são provenientes dos estudos literários e se fundamentam na crença de que a arte e a cultura, em especial o teatro, são essenciais para a formação da sociedade e do país. O teatro carregaria em si mesmo um alto valor social e pedagógico, inspirado em modelos europeus de civilidade, em especial a partir da França. Esse seria o tom que embalaria diversas interpretações sobre as artes cênicas produzidas em solo brasileiro e que definiria o que deveria ser lembrado e, por outro lado, minimizado. O exercício comparativo entre o teatro europeu e o brasileiro permitiu que se tomassem as produções aqui realizadas como obras aquém do ideal almejado. De maneira geral, a experiência teatral brasileira do século XIX vista pela História da Literatura brasileira se fez tendo como parâmetro correntes artísticas e recursos cênicos estrangeiros, o que impossibilitou que a variedade do processo histórico pulsasse no interior das análises críticas. Guardadas as características de cada obra, os autores ressaltam que todas elas, inclusive as de Silva, Galante e Magaldi, são organizadas cronologicamente e possuem uma ideia central: o teatro brasileiro é construído a partir de uma trajetória em direção à modernidade e à modernização. Dessa forma, Os trabalhos apresentados tornaram-se matrizes de uma periodização da História do Teatro Brasileiro cuja força interpretativa concentra-se na busca da modernidade e na ideia de civilização, isto é, salvo o livro de Lafayette Silva, as narrativas dos demais se articularam em torno da ideia e não das nuanças do processo histórico5. Guinsburg e Patriota demonstram como a ideia de modernização se tornou uma “ideia-força” que selecionou, valorizou e minimizou algumas produções teatrais da época. Percebe-se, portanto, a convergência entre artistas e críticos com o objetivo de valorizar a internacionalização e a modernidade do teatro brasileiro. Nesse momento, os autores ressaltam um elemento, a nosso ver, extremamente significativo: o teatro da modernização, almejado por críticos, durante muito tempo seguiu um caminho paralelo ao teatro efetivamente realizado no Brasil, em especial por meio das comédias de costumes O nacionalismo, presente na produção teatral brasileira desde o século XIX, continua efetivo na segunda metade do século XX, porém, devido às circunstâncias históricas, ele perde o caráter civilizador e de aproximação com o exterior e volta-se para os grupos desfavorecidos. O nacionalismo crítico se vê capaz de refletir sobre as condições de vida e de luta da população brasileira. Assim, os palcos assuem compromissos públicos a fim de impulsionar a luta pela igualdade social A partir dessa reflexão, Guinsburg e Patriota recuperam o nome de Anatol Rosenfeld, crítico e pensador alemão que veio para o Brasil fugindo das perseguições de Hitler. Tal crítico foi responsável por inserir no âmbito da análise crítica a percepção do “fenômeno teatral”. A ênfase de sua análise não estava exclusivamente nos textos dramáticos, o teatro não poderia ser entendido somente pela tradição literária, era preciso levar em conta o espaço cênico, local onde o texto ganha materialidade por meio de uma série de elementos. A partir dessa reflexão, o leitor percebe que o nacionalismo crítico permitiu uma produção dramatúrgica de acordo com o momento histórico, ao passo que as análises produzidas pelos críticos, em especial Rosenfeld, trouxeram grande contribuição ao pensamento crítico e estético da época. Nesse contexto, as “ideias- forças” – nacionalismo crítico, identidade nacional e liberdade – foram capazes de organizar o processo interpretativo sobre o período, norteando, assim, estudos críticos e a confecção da História do Teatro Brasileiro, inclusive respaldada pelas contribuições de Rosenfeld. Considerações sobre História do teatro brasileiro
Edelcio Mostaço
A leitura dos dois volumes dá a impressão, num primeiro momento,
de que poderiam ter sido forjados por Décio de Almeida Prado. Como se sabe, o notável crítico paulistano almejou tal projeto, tendo estudos nessa direção. Tal impressão diz respeito não apenas ao aproveitamento desse material nos três capítulos iniciais, mas também à arquitetura conceitual que a presidiu em sua totalidade, fortemente lastreada na literatura dramática – a despeito de Décio ter clareza da natureza performática da cena. Adepto da postura metodológica de Antonio Candido, o crítico fazia uma leitura de nosso passado cênico paralela ao campo literário, onde “momentos decisivos” foram valorizados em detrimento de outros componentes Em função do aludido viés estetizante, a obra não efetiva correlações bem articuladas entre a cena e os processos socioculturais do país. Corre-se o risco de supor que a atividade cênica nacional deu-se acima dos acidentes de percurso da nação, de sua institucionalização enquanto Estado, de seus conflitos de poder, de suas lutas internas e externas, seus golpes de Estado, períodos de censura ou suas oscilações econômicas que geraram crises na circulação da moeda e, sobretudo, acima dos dilemas da sociedade para a qual tal teatro foi apresentado e que o sustentou ou deu-lhe as costas, ao sabor de suas preferências Embora Décio defendesse a tríade “obra, autores e público” como fundadora do fenômeno histórico teatral, o terceiro elemento passou incólume nessa coletânea, não havendo qualquer consideração sobre o público, as plateias que acorriam aos espetáculos, impedindo uma visão mais objetiva sobre o fenômeno. O país não era civilizado não porque a cena nacional se mostrasse “inculta”, mas porque um tenebroso regime escravocrata andava de mãos dadas com um Estado ainda imperial, num momento em que toda a América já superara tais patamares “bárbaros”. Não se compreende, portanto, o raciocínio da autora em relação ao predomínio do encenador na segunda metade do século xx se, desde Renato Vianna e sua A última encarnação de Fausto, em 1924, já se sabia ser o mesmo a figura mestra e indispensável ao teatro moderno, a despeito daquele fracassado empreendimento. A crítica de Antônio Alcântara Machado, a atuação do casal Álvaro-Eugênia Moreyra e sobretudo a encenação de Flávio de Carvalho para seu Bailado do deus morto, em 1933 lastrearam e disseminaram em toda extensão o ideário e as implicações cênicas modernas, décadasantes, portanto, da segunda metade do século xx, como cogita Brandão. Ainda, a segmentação temática adotada relegou à condição de apêndice o teatro de rua e o teatro de animação como expansões secundárias, como se o país não tivesse reconhecimento internacional nessas modalidades e inúmeros artistas não se dividissem entre os modos de palco e esses outros meios expressivos, e um ininterrupto diálogo não tivesse se produzido entre todos eles na configuração global dos fenômenos cênicos das décadas mais recentes. Por outro lado, o processo de modernização ou o advento da modernidade nos países industrializados não foi uniforme nem cabal, fazendo que uma data ou evento isolado desfrute pouco peso quanto a tais processos amplos e diversificados que, em não raros casos, abarcaram mais de uma geração. Num país periférico como o Brasil, com uma abolição da escravatura tardia e uma jovem república autoritária mantida por estamentos, mais formal que real, somente um ato de força como a Revolução de 1930 conseguiu pôr fim à política oligárquica vigente desde o Império, onde se opunham liberais a conservadores na manutenção de um mesmo status quo. A década compreendida entre 1938 e 1948 (fundações do Teatro do Estudante do Brasil – teb e do Teatro Brasileiro de Comédia – tbc) foi crucial para a implantação da modernidade estrutural no país e, igualmente, de nosso modernismo estético cênico por meio da atuação de amadores subsumidos aos imperativos da encenação. Eles atuaram, é bom frisar, contra um pano de fundo autoritário e persecutório sob censura. Vestido de noiva (1943), nesse contexto, é apenas uma data simbólica, que tanto pode regredir a 1938 com o Hamlet ou ser adiantada para 1948, com o tbc. O que esse decênio evidencia é uma progressiva instalação do modernismo nos palcos, sua claudicante absorção por parte de nossas plateias e os embates causados com os profissionais. O termo ruptura foi empregado pela crítica moderna, vale dizer Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, para caracterizar Vestido de noiva. Mais tardiamente, Sábato voltou a invocá-lo a propósito de O rei da vela (1937), para regredir o marco simbólico até o texto de Oswald de Andrade. Houve sim, para a mentalidade moderna, a necessidade de fixar balizas, de estourar a monotonia dos relógios, pois todas as revoluções modernas almejaram iniciar um novo calendário, um simbólico ano zero de renovação Vejamos o fio desses cálculos. Segundo ela, a história do teatro brasileiro não pode ou não deve ser comparada àquela internacional, uma vez que possui pulsação própria e obedece designíos “peculiares”. Devemos, portanto, esquecer que Oswald de Andrade passou longas temporadas em Paris, que Renato Vianna conhecia Stanislávski, Antoine, Bragaglia ou Meyerhold, que Eugênia e Álvaro Moreyra assistiram ensaios no Vieux Colombier, que Flávio de Carvalho morou dez anos na Europa, que Paschoal Carlos Magno foi embaixador em Londres, que Alfredo Mesquita foi aluno de Dullin, que Décio de Almeida Prado conheceu o circuito teatral norte americano, que Sábato Magaldi foi aluno de Ettiène Souriau em Paris, que Bibi Ferreira, Itália Fausta, Dulcina de Moraes e até Maria Della Costa passaram longas temporadas atuando ou estudando em Lisboa, além de inúmeros outros nomes decisivos nesse processo que tornaram a ponte Brasil-Europa um vai e vem contínuo. Para concluir, talvez seja elegante recordar um dístico de François Dosse, ao comentar a natureza dessa tarefa: “a revisitação histórica tem, portanto, essa função de abrir para o presente um espaço próprio, marcando o passado para redistribuir os espaços dos possíveis. A prática historiadora é, por princípio, aberta a novas interpretações, a um diálogo sobre o passado aberto sobre o futuro, a ponto que se fala, cada vez mais, de ‘futuro do passado’” (2003, p. 87). THEATRE HISTORIOGRAPHY CLAIRE COCHANE
Nevertheless as a re-presentation of the past, the
gap between the actuality of the historical moment and the attempt to speak for it again in the historian’s ensuing moment is fundamentally unbridgeable. To put it in human terms, we speak for the dead but we cannot speak to the dead and they cannot speak back to us. Even when the agents of the past are still available to bear live witness, such is the unreliability of memory and the instability of the mediating efficacy of interpersonal and intertextual exchange that the constructedeness of the historian’s representation remains obstinately incontrovertible. (p.2) ‘The fundamental
principle of historical enquiry’ is, they affirm, the ‘attempt to represent
the past truthfully’, but ‘whose truth, what truth, which truth?’ (2010,
11) (p.2)
FRANÇOIS DOSSE- A HISTÓRIA
"Nan mais os determinant<~s; mas seus efeitos; nao
mais as a\oes memorizadas ou ate comenloradas, mas o vestigio dessas a\oes·e 0 jogo dessas comeillora\oes; nao OS acontecimentos em si mesmos, mas sua constrw; ao)1o tempo, 0 apagar e 0 ressurgir de suas significac; 6es; nao 0 passado tal como se passou mas .suas retomadas pernlanentes, seus usos e seus desusos, , sua pregnanda sabre os sucessivos presentes; nao a tradi<;ao: mas a maneira pela qual ela se constituili e transmitiu". (p.10)
Mais alem da yoga comemorativa atual, sintomatica
da crise de horizonte de urn presente marcado pela ausencia de projeto de nossa sociedade modema, a disciplina historica e chamada a vincular-se aos imperativosdo presente. 0 novo regime de historicidade , que resulta disso permanece aberto para 0 futuro, mas ele e apenas a simples proje<;ao de urn projeto plenamente pensado, fechado sobre si mesmo. A propria 10gica cta a<;;,ao mantem aberto 0 campo dos possiveis. Ela instiga 0 historiador a reabrir as potencialidades do presente, baseando-se nos possiveis nao verificados do passado. A fun<;ao da historia permanece, portantd, viva e 0 Into das visaes teleologicas pode tomMais alem da yoga comemorativa atual, sintomatica da crise de horizonte de urn presente marcado pela ausencia de projeto de nossa sociedade modema, a disciplina historica e chamada a vincular-se aos imperativosdo presente. 0 novo regime de historicidade , que resulta disso permanece aberto para 0 futuro, mas ele e apenas a simples proje<;ao de urn projeto plenamente pensado, fechado sobre si mesmo. A propria 10gica cta a<;;,ao mantem aberto 0 campo dos possiveis. Ela instiga 0 historiador a reabrir as potencialidades do presente, baseando-se nos possiveis nao verificados do passado. A fun<;ao da historia permanece, portantd, viva e 0 Into das visaes teleologicas pode tomar-se uma chance de repensar 0 mundo de amanha:ar-se uma chance de repensar 0 mundo de amanha: (p.10) As r'!1pturas necessarias para reconhecer- se como disciplina de carater cientific6 deixaram sobre a margem potencialidades inexploradas de urn passarlo que sempre predsa ser reinterrogado quanto ao nosso ,presente. A interroga<;;,ao sobre noc;6e's e conceitos utilizados pelos historiadores hoje nao pode mais eliminar a volta ao passado da disciplina, nao para fins autocomemorativos mas para entrar plenamente em uma nova era, aquela do momenta reflexivo da operac; ao hist6rica. (p.11)