Professional Documents
Culture Documents
Construçãoe
o
desmontagem
t
INTRODUÇÃO
bito acadêmico. A imagem, de modo geral,
sempre se viu relegada à condição de “ilus-
tração”.
x
FOTOGRAFIA E CULTURA
nortearam nossa produção teórica e histó-
rica relativamente à imagem fotográfica,
bem como situar novas reflexões que te-
mos agregado a esses estudos. Nosso obje- A documentação iconográfica é uma das
tivo é o de contribuir para um aprofunda- fontes mais preciosas para o conhecimento
mento do debate nessa área de investiga- do passado; trata-se, porém, de um conhe-
e
principais trilhas e autores de onde parti- era possível compreender a própria histó-
mos, nos meados dos anos 70. Quando ini- ria deste meio de expressão sob a ótica da
ciei meus estudos na área da história da história da técnica ou apenas no plano es-
fotografia no Brasil, abordagens sistemáti- tético, desvinculada da história cultural
cas sobre o tema eram inexistentes neste (em seus desdobramentos sociais, políti-
país; de outra parte, investigações especí- cos, artísticos, ideológicos). A contextua-
ficas acerca de questões teóricas e metodo- lização da imagem ao processo histórico e
lógicas eram igualmente ausentes no âm- a percepção de sua natureza inter e multi-
fotográfica:
teoriae
BORIS KOSSOY
é professor do
Departamento de
Jornalismo e Editoração
da ECA-USP.
história
Há cerca de sessenta anos Pierre Fran- para o desenvolvimento de uma crítica que
castel chamava a atenção sobre a impor- se mostrasse eficaz para sua aplicação às
tância das imagens como meios de conhe- fontes fotográficas, busquei outras inspira-
cimento; observava também que as “[…] ções na história das mentalidades, através
Artes servem, pelo menos tanto quanto as de Michel Vovelle, entre outros, de forma
Literaturas, como instrumento aos senho- a melhor compreender a natureza, alcance
res das sociedades para divulgar e impor e valor do documento iconográfico e, pos-
crenças” (1). Sua obra, que procurava esta- teriormente, nos estudos do imaginário,
belecer as bases de uma sociologia da arte, com vistas a um maior aprofundamento na
continua sendo referência, e o sentido que problemática da representação, nas ques- 1 Pierre Francastel, A Realidade
Figurativa: Elementos Estruturais
ele propunha para essa disciplina se funda- tões da manipulação dos fatos históricos, de Sociologia da Arte, São
mentava na afirmação da existência de um tema estudado por Marc Ferro, que encon- Paulo, Perspectiva, 1982, p. 3.
pensamento estético, plástico. Esclarecia tra plena aplicabilidade no uso dirigido que 2 Idem, ibidem.
VERTENTES INTERDISCIPLINARES
abordagem sociocultural.
É necessário que se compreenda o pa-
DE INVESTIGAÇÃO
pel cultural da fotografia: o seu poderio de
informação e desinformação, sua capaci-
dade de emocionar e transformar, de de-
nunciar e manipular. Instrumento ambíguo Poderíamos tornar o enfoque menos
de conhecimento, exerce contínuo fascínio abstrato observando o diagrama “A Expres-
sobre os homens. Ao mesmo tempo em que são Fotográfica”, por meio do qual busco
preserva nossas referências, nossas lem- explicitar algumas das abrangentes verten-
branças, ela também se presta aos mais tes de investigação que podem ser aborda-
interesseiros e dirigidos usos ideológicos. das pelos estudos da fotografia. Situo aqui
O papel cultural das imagens é decisivo, a fotografia como:
assim como decisivas são as palavras. As 1) objeto de estudos históricos e teóricos
imagens estão diretamente relacionadas ao específicos;
universo das idéias e das mentalidades e 2) fonte de informações referentes às mais
sua importância cultural e histórica reside diferentes áreas do conhecimento.
nas intenções, usos e finalidades que Na realidade uma fotografia é, ao mes-
permeiam sua produção e trajetória. mo tempo, objeto e fonte, posto que se re-
Toda fotografia resulta de um processo fere sempre a um mesmo início, a uma
de criação; ao longo desse processo a ima- gênese única: sua criação e materialização
gem é elaborada, construída técnica, cultu- se deu em determinado local e num preciso
ral, estética e ideologicamente. Trata-se de momento. Trata-se de um documento que
um sistema que deve ser desmontado para propicia estudos segundo diferentes abor-
compreendermos como se dá essa elabo- dagens e distintas vertentes de investiga-
ração, como, enfim, se articulam seus ele- ção. No entanto essas investigações não
mentos constituintes. Para tal proposta podem se dissociar, na medida em que
devemos perceber a complexidade episte- ambas têm como núcleo central os próprios
mológica da imagem fotográfica como re- documentos fotográficos (3).
presentação e documento visual. A ima- A história da fotografia é centrada no
gem fotográfica é construída sempre, como estudo sistemático da fotografia em seu
já tive a oportunidade de afirmar não pou- passado histórico: as causas que levaram
cas vezes; além disso, ela é plena de códi- ao seu advento em diferentes espaços numa
gos: formais e culturais. Essa codificação mesma época, seu aperfeiçoamento técni-
diz respeito, pois, a fatores técnicos e ma- co, sua adoção como meio de informação e
teriais que corporificam o documento, expressão, sua popularização e penetração
materializam a representação, e aos ele- nos diferentes setores da sociedade, sua
mentos icônicos, propriamente ditos, que expansão comercial e industrial, sua evo-
conformam a imagem. Imagem que se liga lução estética, tecnológica, sua abrangên-
ao fato que representa pelos laços invisí- cia temática, seus autores consagrados e
veis da história; laços que, uma vez des- anônimos. Além desses e outros temas é de
vendados, carregam o iconográfico de decisiva importância a reflexão acerca dos
3 Boris Kossoy, Fotografia & His- sentido. Antes, porém, de avançar nessa usos e aplicações das imagens ao longo de
tória, 2 ed., rev., São Paulo,
Ateliê, s/d, pp. 53-4. trilha, devo me referir à abrangência da sua história.
A informação fotográfica
A NATUREZA INDICIÁRIA DA
gráfica, como ferramentas para a recons-
tituição histórica. Esses documentos se
FOTOGRAFIA
constituem nas fontes primordiais para
ambas as vertentes, disso resultando uma
retroalimentação contínua de informações.
Outra natureza de investigações que po- Giovanni Morelli, Sherlock Holmes, o
demos observar pelo diagrama poderia, para famoso detetive criado por Conan Doyle, e
efeito didático, enquadrar-se na primeira ver- Sigmund Freud foram mestres no emprego
tente assinalada (a fotografia como objeto de métodos de investigação a partir de in-
de estudos). Trata-se da proposição de fun- dícios, sintomas e sinais. Trata-se de um
damentos teóricos da expressão fotográfica “paradigma indiciário” como definiu Ginz-
que reúne um corpus conceitual através do burg. Morelli se notabilizou pela descober-
qual buscamos estabelecer parâmetros para ta de exemplares não-autênticos de obras
o estudo das imagens; um arcabouço teóri- de arte pictóricas a partir do exame de de-
co, enfim, que possibilita o desenvolvimen- talhes aparentemente sem importância de
to de um modelo metodológico de análise e um retrato como, por exemplo, os lóbulos
interpretação das imagens. das orelhas ou o formato das unhas. “O co-
Esses fundamentos e a metodologia se nhecedor de arte”, para Ginzburg, “é com-
constituem no eixo conceitual para o de- parável ao detetive que descobre o autor do
senvolvimento das linhas de investigações crime (do quadro) baseado em indícios im-
históricas assinaladas antes, sua espinha perceptíveis para a maioria” (6). Freud ad-
dorsal. Poderia mesmo dizer que esse eixo mitia que o método de Morelli estava “es-
conceitual seria, praticamente, uma tercei- treitamente aparentado à técnica da psica-
4 Idem, Realidades e Ficções na ra vertente, um campo de estudos em si nálise médica”, na medida em que esta
Trama Fotográfica, São Paulo,
Ateliê, 1999, p. 31. mesmo, isto é, uma disciplina autônoma do igualmente penetrava “em coisas concre-
5 Idem, ibidem. conhecimento que possibilita ampla articu- tas e ocultas através de elementos pouco
6 Carlo Ginzburg, Mitos, Emble- lação com outras áreas das ciências huma- notados ou desapercebidos” (7). Esse pa-
mas, Sinais, São Paulo, Com-
panhia das Letras, 2001, p.
nas, assunto sobre o qual voltarei adiante. radigma indiciário, na verdade, derivaria
145. Se a imagem fotográfica é elaborada de um antigo saber caracterizado pela “ca-
7 Idem, ibidem, p. 147. técnica, estética, cultural e ideologicamen- pacidade de, a partir de dados aparentemen-
CONSTRUÇÃO E DESMONTAGEM
pesquisa e interpretação nas ciências hu-
manas, exatas e biológicas. As análises que
DA INFORMAÇÃO FOTOGRÁFICA:
técnicos da Nasa vêm fazendo, através das
fotografias de rochas e do solo, enviadas
FUNDAMENTOS E MÉTODOS
pelo jipe-robô Opportunity, relativas à
possibilidade da existência de oceanos e
mesmo de formas de vida em épocas remo-
tas no planeta Marte, constituem contribui- Essas proposições teóricas e metodoló-
ção única para o progresso da ciência. Cons- gicas constituintes do tema foram expli-
tituem, igualmente, valiosa contribuição as citadas em Fotografia & História (1989,
fotografias que registram os anéis de 2001) e Realidades e Ficções na Trama
Saturno, a erosão das rochas, a forma do Fotográfica (1999), e em outros ensaios. A
cume das montanhas, a presença de neve seguir me refiro brevemente às questões
na paisagem, as ossadas de animais, o solo centrais das obras assinaladas.
árido, o movimento de uma rua na segunda Fotografia & História é uma incursão
década do século XX: a arquitetura dos interdisciplinar, que aborda as múltiplas
edifícios, as fachadas de estabelecimentos relações entre o documento fotográfico e
comerciais e de serviços, o vestuário dos o complexo de informações do mundo vi-
transeuntes, a pavimentação urbana e ou- sível que nele se acham inscritas e cir-
tros melhoramentos urbanos, etc. cunscritas.
Trata-se dos indícios explícitos, exis- Pretendeu-se no citado trabalho estabe-
tentes na imagem (iconográficos), os quais, lecer um conjunto de princípios fundamen- 8 Idem, ibidem, p. 152.
AS CORRENTES HISTORIOGRÁFICAS:
conjuntos de conceitos:
1) o fenômeno fotográfico;
IMAGENS E IDEOLOGIA.
2) a construção da representação;
3) os processos de criação/construção de
O PASSADO IMAGINADO E O
sas, condição essa conquistada sobre o ci-
mento de sua incontestável “credibilidade
DOCUMENTO PRESENTE
documental”.
Como conceber hoje o estudo da ima-
gem fotográfica desvinculada do contexto
cultural, postura que caracterizou os mo- A imagem fotográfica, finalmente, vai
delos clássicos da história da fotografia e além do que mostra em sua superfície. O
serviu de exemplo para a aplicação de tal tema registrado tem sua explicação, seu
modelo na própria América Latina? Não porquê, sua história naquilo que não tem de
imagino que possamos pensar a história da explícito. Seu mistério se acha circunscri-
fotografia desarticulada da história da cul- to, no espaço e no tempo, à própria ima-
tura em seus múltiplos desdobramentos gem. Isto é próprio da natureza da fotogra-
sociais, econômicos, políticos, ideológicos, fia: ela nos mostra alguma coisa, porém
artísticos, etc. A imagem pensada fora do seu significado a ultrapassa. Existe um
seu contexto é pura abstração, seu signifi- conhecimento implícito nas fontes não-
cado é vazio. Apesar de tudo isso é interes- verbais como a fotografia; descobrir os
sante observar que esses aportes descom- enigmas que guardam em seu silêncio é
prometidos do tecido cultural, social e po- desvendar fatos que lhe são inerentes e que
lítico de uma época seguem se constituin- não se mostram, fatos de um passado desa-
do nos modelos desse gênero de história. parecido que imaginamos, em eterna ten-
Desde há muito se tem falado na neces- são com a imagem presente que vemos no
10 Para um aprofundamento des- sidade de criarmos uma crítica latino-ame- documento: realidades superpostas.
sa questão ver, do autor, “La
Fotografia em Latinoamérica em ricana verdadeira para as artes, edificada Existe, sim, um pensamento plástico
el Siglo XIX: la Experiência
Europea y la Experiência Exóti-
em função de nossas realidades; gostaria como afirmava Francastel. Não raro, me-
ca”, in Wendy Watriss e Lois P. de acrescentar, no que diz respeito à foto- mória, informação, propaganda, testemu-
Zamora, Image and Memory.
Photography from Latin America grafia, que temos uma necessidade premen- nho e ficção se confundem numa única ima-
1866-1994, Houston, FotoFest/ te de expandir a obra de reflexão teórica e gem. Seguir decifrando essa forma de co-
Texas University Press, 1998,
pp. 18-54. histórica latino-americana. É fundamental nhecimento é o desafio que nos move.