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Texto expandido da conferência do

autor apresentada por ocasião do


ciclo “La Imagen como Fuente de
Investigación”, promovido pelo Ins-
tituto Mora, Cidade do México,
outubro de 2002.
s

Construçãoe
o

desmontagem
t

INTRODUÇÃO
bito acadêmico. A imagem, de modo geral,
sempre se viu relegada à condição de “ilus-
tração”.
x

Pretendemos neste texto revisitar con-


ceitos e abordagens metodológicas que

FOTOGRAFIA E CULTURA
nortearam nossa produção teórica e histó-
rica relativamente à imagem fotográfica,
bem como situar novas reflexões que te-
mos agregado a esses estudos. Nosso obje- A documentação iconográfica é uma das
tivo é o de contribuir para um aprofunda- fontes mais preciosas para o conhecimento
mento do debate nessa área de investiga- do passado; trata-se, porém, de um conhe-
e

ções, principalmente se levarmos em conta cimento de aparência: as imagens guardam


o interesse cada vez maior que os pesquisa- em si apenas indícios, a face externa de
dores de diferentes campos do conhecimen- histórias que não se mostram, e que preci-
to vêm manifestando em relação às possi- samos desvendar. Desde cedo percebi que,
bilidades da fotografia. Não foi possível quanto mais avançava nas investigações,
evitar o tom autobiográfico que permeia maior necessidade sentia de buscar dados
estas linhas, porém era necessário situar as em diferentes disciplinas. Constatei que não
t

principais trilhas e autores de onde parti- era possível compreender a própria histó-
mos, nos meados dos anos 70. Quando ini- ria deste meio de expressão sob a ótica da
ciei meus estudos na área da história da história da técnica ou apenas no plano es-
fotografia no Brasil, abordagens sistemáti- tético, desvinculada da história cultural
cas sobre o tema eram inexistentes neste (em seus desdobramentos sociais, políti-
país; de outra parte, investigações especí- cos, artísticos, ideológicos). A contextua-
ficas acerca de questões teóricas e metodo- lização da imagem ao processo histórico e
lógicas eram igualmente ausentes no âm- a percepção de sua natureza inter e multi-

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disciplinar se constituíram em marcos re- que “[…] existe um pensamento plástico
ferenciais dos quais jamais me afastaria. como existe um pensamento matemático
Era necessário, porém, buscar outras ins- ou um pensamento político e é essa forma
pirações e reflexões para uma compreensão de pensamento que até hoje foi mal estuda-
aprofundada do papel da imagem fotográfi- da” (2).
ca como documento histórico e social, como As leituras dos textos de Francastel fo-
meio de conhecimento e elemento de fixa- ram decisivas. Tive também como motiva-
ção da memória, como fonte de informação ção os estudos filosóficos sobre a crítica de
e deformação dos fatos, como instrumento fontes, tal como foi pensada e discutida
de análise e interpretação da vida histórica, pelas diferentes correntes da teoria da his-
como objeto de arte, entre outros de seus tória, porém, definitivamente embasada na
múltiplos usos e aplicações. Faço aqui uma linha da École des Annales, nos
rápida digressão em relação aos autores e ensinamentos de Marc Bloch, Lucien Fèvre,
linhas de abordagem que sinalizavam ca- Henri Irenée-Marrou, entre outros. Além
minhos promissores de investigação. dessas reflexões que iluminaram caminhos

dainformação BORIS KOSSOY

fotográfica:
teoriae
BORIS KOSSOY
é professor do
Departamento de
Jornalismo e Editoração
da ECA-USP.

história
Há cerca de sessenta anos Pierre Fran- para o desenvolvimento de uma crítica que
castel chamava a atenção sobre a impor- se mostrasse eficaz para sua aplicação às
tância das imagens como meios de conhe- fontes fotográficas, busquei outras inspira-
cimento; observava também que as “[…] ções na história das mentalidades, através
Artes servem, pelo menos tanto quanto as de Michel Vovelle, entre outros, de forma
Literaturas, como instrumento aos senho- a melhor compreender a natureza, alcance
res das sociedades para divulgar e impor e valor do documento iconográfico e, pos-
crenças” (1). Sua obra, que procurava esta- teriormente, nos estudos do imaginário,
belecer as bases de uma sociologia da arte, com vistas a um maior aprofundamento na
continua sendo referência, e o sentido que problemática da representação, nas ques- 1 Pierre Francastel, A Realidade
Figurativa: Elementos Estruturais
ele propunha para essa disciplina se funda- tões da manipulação dos fatos históricos, de Sociologia da Arte, São
mentava na afirmação da existência de um tema estudado por Marc Ferro, que encon- Paulo, Perspectiva, 1982, p. 3.

pensamento estético, plástico. Esclarecia tra plena aplicabilidade no uso dirigido que 2 Idem, ibidem.

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se tem feito das imagens ao longo da histó- expressão fotográfica e às amplas possi-
ria. A semiótica de Pierce foi provocadora, bilidades de investigação que podem ser
assim como foram basilares para as minhas encetadas acerca desse meio e a partir do
reflexões a iconologia de Panofsky e a fe- estudo de suas aplicações como instrumen-
nomenologia de Husserl. De forma sucinta to de registro das inumeráveis atividades
poderia dizer que minha aproximação ao humanas.
estudo das imagens se fez a partir de uma
postura fenomenológica e segundo uma

VERTENTES INTERDISCIPLINARES
abordagem sociocultural.
É necessário que se compreenda o pa-

DE INVESTIGAÇÃO
pel cultural da fotografia: o seu poderio de
informação e desinformação, sua capaci-
dade de emocionar e transformar, de de-
nunciar e manipular. Instrumento ambíguo Poderíamos tornar o enfoque menos
de conhecimento, exerce contínuo fascínio abstrato observando o diagrama “A Expres-
sobre os homens. Ao mesmo tempo em que são Fotográfica”, por meio do qual busco
preserva nossas referências, nossas lem- explicitar algumas das abrangentes verten-
branças, ela também se presta aos mais tes de investigação que podem ser aborda-
interesseiros e dirigidos usos ideológicos. das pelos estudos da fotografia. Situo aqui
O papel cultural das imagens é decisivo, a fotografia como:
assim como decisivas são as palavras. As 1) objeto de estudos históricos e teóricos
imagens estão diretamente relacionadas ao específicos;
universo das idéias e das mentalidades e 2) fonte de informações referentes às mais
sua importância cultural e histórica reside diferentes áreas do conhecimento.
nas intenções, usos e finalidades que Na realidade uma fotografia é, ao mes-
permeiam sua produção e trajetória. mo tempo, objeto e fonte, posto que se re-
Toda fotografia resulta de um processo fere sempre a um mesmo início, a uma
de criação; ao longo desse processo a ima- gênese única: sua criação e materialização
gem é elaborada, construída técnica, cultu- se deu em determinado local e num preciso
ral, estética e ideologicamente. Trata-se de momento. Trata-se de um documento que
um sistema que deve ser desmontado para propicia estudos segundo diferentes abor-
compreendermos como se dá essa elabo- dagens e distintas vertentes de investiga-
ração, como, enfim, se articulam seus ele- ção. No entanto essas investigações não
mentos constituintes. Para tal proposta podem se dissociar, na medida em que
devemos perceber a complexidade episte- ambas têm como núcleo central os próprios
mológica da imagem fotográfica como re- documentos fotográficos (3).
presentação e documento visual. A ima- A história da fotografia é centrada no
gem fotográfica é construída sempre, como estudo sistemático da fotografia em seu
já tive a oportunidade de afirmar não pou- passado histórico: as causas que levaram
cas vezes; além disso, ela é plena de códi- ao seu advento em diferentes espaços numa
gos: formais e culturais. Essa codificação mesma época, seu aperfeiçoamento técni-
diz respeito, pois, a fatores técnicos e ma- co, sua adoção como meio de informação e
teriais que corporificam o documento, expressão, sua popularização e penetração
materializam a representação, e aos ele- nos diferentes setores da sociedade, sua
mentos icônicos, propriamente ditos, que expansão comercial e industrial, sua evo-
conformam a imagem. Imagem que se liga lução estética, tecnológica, sua abrangên-
ao fato que representa pelos laços invisí- cia temática, seus autores consagrados e
veis da história; laços que, uma vez des- anônimos. Além desses e outros temas é de
vendados, carregam o iconográfico de decisiva importância a reflexão acerca dos
3 Boris Kossoy, Fotografia & His- sentido. Antes, porém, de avançar nessa usos e aplicações das imagens ao longo de
tória, 2 ed., rev., São Paulo,
Ateliê, s/d, pp. 53-4. trilha, devo me referir à abrangência da sua história.

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A expressão fotográfica:
vertentes interdisciplinares de investigação

A informação fotográfica

a fotografia como objeto de a fotografia como fonte de informações


investigações específicas históricas referentes às mais diferentes áreas
e teóricas do conhecimento

História da Fotografia Iconografia Fotográfica

evolução da fotografia como meio


meio de conhecimento e elemento de
de comunicação e forma de expressão
fixação da memória histórico-cultural
ao longo de sua história

história da tecnologia fotográfica desde o advento do


meio até os dias atuais

história das origens e da expansão do ofício e da


atividade dos fotógrafos nos diferentes espaços e períodos

história do retrato fotográfico, da documentação social e


dos incontáveis usos e aplicações da imagem: nas ciências
exatas, biológicas e humanas, nas artes, arquitetura e
demais áreas do conhecimento; no comércio, indústria,
turismo e em outras atividades econômicas; na publici-
dade, propaganda e na imprensa, em especial no fotojor-
nalismo; da crescente difusão mundial da imagem através
dos meios eletrônicos; da fotografia como forma de
expressão artística, cultural e ideológica; trata-se dos
assuntos fotográficos: amplo espectro temático de
múltiplas naturezas, documental e criativo, registrados
nos últimos 160 anos

fundamentos teóricos da expressão fotográfica


corpus conceitual básico para a proposição de um

modelo metodológico de análise e interpretação das imagens


decifração das realidades exterior e interior do documento

instrumentos para a desmontagem técnica, cultural, estética e ideológica

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A iconografia fotográfica diz respeito te, como mencionado antes, o chamado tes-
a partes ou ao conjunto da documentação temunho fotográfico não é inócuo. Não há
pública ou privada, que abrange um largo registro ou testemunho fotográfico inde-
espectro temático, produzida em lugares e pendente do ato criador. Refiro-me à rela-
períodos determinados. As fontes que a ção registro/criação ou testemunho/cria-
compõem são meios de conhecimento: re- ção: um binômio indivisível. A imagem
gistros visuais que gravam microaspectos fotográfica é antes de tudo uma represen-
dos cenários, personagens e fatos, daí sua tação a partir do real segundo o olhar e a
força documental e expressiva, elementos ideologia de seu autor. Entretanto, em fun-
de fixação da memória histórica individual ção da natureza do registro, no qual temos
e coletiva. Em função de tais característi- gravado o vestígio/aparência de algo que
cas são documentos decisivos para a se passou na realidade concreta, em dado
reconstituição histórica. espaço e tempo, nós a tomamos, também,
Em resumo, a primeira dessas vertentes como um documento do real, uma fonte
trata das investigações acerca da produção histórica (4). Nessa linha percebemos que
(materiais, técnicas e processos) dos docu- o documento e a representação constituem
mentos fotográficos em si; de seu valor uma relação indissociável: documento/re-
como exemplificação da expressão docu- presentação (5); dizem respeito ao mesmo
mental e estética na perspectiva da história objeto fotográfico.
do próprio meio e, a segunda, das investi-
gações a partir da documentação icono-

A NATUREZA INDICIÁRIA DA
gráfica, como ferramentas para a recons-
tituição histórica. Esses documentos se

FOTOGRAFIA
constituem nas fontes primordiais para
ambas as vertentes, disso resultando uma
retroalimentação contínua de informações.
Outra natureza de investigações que po- Giovanni Morelli, Sherlock Holmes, o
demos observar pelo diagrama poderia, para famoso detetive criado por Conan Doyle, e
efeito didático, enquadrar-se na primeira ver- Sigmund Freud foram mestres no emprego
tente assinalada (a fotografia como objeto de métodos de investigação a partir de in-
de estudos). Trata-se da proposição de fun- dícios, sintomas e sinais. Trata-se de um
damentos teóricos da expressão fotográfica “paradigma indiciário” como definiu Ginz-
que reúne um corpus conceitual através do burg. Morelli se notabilizou pela descober-
qual buscamos estabelecer parâmetros para ta de exemplares não-autênticos de obras
o estudo das imagens; um arcabouço teóri- de arte pictóricas a partir do exame de de-
co, enfim, que possibilita o desenvolvimen- talhes aparentemente sem importância de
to de um modelo metodológico de análise e um retrato como, por exemplo, os lóbulos
interpretação das imagens. das orelhas ou o formato das unhas. “O co-
Esses fundamentos e a metodologia se nhecedor de arte”, para Ginzburg, “é com-
constituem no eixo conceitual para o de- parável ao detetive que descobre o autor do
senvolvimento das linhas de investigações crime (do quadro) baseado em indícios im-
históricas assinaladas antes, sua espinha perceptíveis para a maioria” (6). Freud ad-
dorsal. Poderia mesmo dizer que esse eixo mitia que o método de Morelli estava “es-
conceitual seria, praticamente, uma tercei- treitamente aparentado à técnica da psica-
4 Idem, Realidades e Ficções na ra vertente, um campo de estudos em si nálise médica”, na medida em que esta
Trama Fotográfica, São Paulo,
Ateliê, 1999, p. 31. mesmo, isto é, uma disciplina autônoma do igualmente penetrava “em coisas concre-
5 Idem, ibidem. conhecimento que possibilita ampla articu- tas e ocultas através de elementos pouco
6 Carlo Ginzburg, Mitos, Emble- lação com outras áreas das ciências huma- notados ou desapercebidos” (7). Esse pa-
mas, Sinais, São Paulo, Com-
panhia das Letras, 2001, p.
nas, assunto sobre o qual voltarei adiante. radigma indiciário, na verdade, derivaria
145. Se a imagem fotográfica é elaborada de um antigo saber caracterizado pela “ca-
7 Idem, ibidem, p. 147. técnica, estética, cultural e ideologicamen- pacidade de, a partir de dados aparentemen-

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te negligenciáveis, remontar a uma reali- acrescidos de informações de natureza his-
dade complexa não experimentável direta- tórica, geográfica, geológica, antropológi-
mente” (8). ca, técnica, etc., se carregam de sentido.
A fotografia se incluiria nesse “para- Um conjunto de informações escritas e vi-
digma indiciário”, assim como os documen- suais que, associadas umas às outras, nos
tos e vestígios que nos vieram do passado, permite datar, localizar geograficamente,
apesar de que indícios falsos também exis- identificar, recuperar enfim, micro-histó-
tem. De qualquer maneira, os indícios es- rias de diferentes naturezas congeladas no
tão presentes na imagem fotográfica, se- plano do documento.
jam eles voluntários ou involuntários, e se No entanto, a chamada evidência foto-
explicitam (materializam) mediante o sis- gráfica pode fornecer pistas, indícios de algo
tema de representação fotográfica. que nunca ocorreu, ou omitir, fragmentar,
Os indícios da medicina (sintomas de distorcer, tratar-se, enfim, de pura manipu-
uma doença) se referem à realidade imedia- lação. A fotografia, como as demais fontes
ta, assim como os monumentos arquitetô- históricas, deve ser submetida ao devido
nicos, os palácios, os sarcófagos, os uten- exame crítico que a metodologia da histó-
sílios de povos pré-colombianos, as inscri- ria impõe aos documentos. O modelo que
ções rupestres, etc. Na fotografia os indí- proponho tem por base um conjunto de
cios são constituintes formais do documen- conceitos que estabelecem os fundamentos
to, quando este se tratar de um artefato fo- teóricos e é erigido segundo pressupostos
tográfico do passado; estão presentes tam- metodológicos de análise e interpretação
bém na própria imagem. Os indícios na pensados especificamente para a fotogra-
imagem fotográfica são as pistas inscritas fia como documento e representação; um
na própria representação. Referem-se, modelo que visa à desmontagem do signo
portanto, a uma determinada realidade. As fotográfico seja no plano técnico e
representações fotográficas contêm em si iconográfico seja na sua dimensão cultural
informações iconográficas, evidências (in- e ideológica.
dícios) sobre o dado real e nesse sentido
são instrumentos de grande valor para a

CONSTRUÇÃO E DESMONTAGEM
pesquisa e interpretação nas ciências hu-
manas, exatas e biológicas. As análises que

DA INFORMAÇÃO FOTOGRÁFICA:
técnicos da Nasa vêm fazendo, através das
fotografias de rochas e do solo, enviadas

FUNDAMENTOS E MÉTODOS
pelo jipe-robô Opportunity, relativas à
possibilidade da existência de oceanos e
mesmo de formas de vida em épocas remo-
tas no planeta Marte, constituem contribui- Essas proposições teóricas e metodoló-
ção única para o progresso da ciência. Cons- gicas constituintes do tema foram expli-
tituem, igualmente, valiosa contribuição as citadas em Fotografia & História (1989,
fotografias que registram os anéis de 2001) e Realidades e Ficções na Trama
Saturno, a erosão das rochas, a forma do Fotográfica (1999), e em outros ensaios. A
cume das montanhas, a presença de neve seguir me refiro brevemente às questões
na paisagem, as ossadas de animais, o solo centrais das obras assinaladas.
árido, o movimento de uma rua na segunda Fotografia & História é uma incursão
década do século XX: a arquitetura dos interdisciplinar, que aborda as múltiplas
edifícios, as fachadas de estabelecimentos relações entre o documento fotográfico e
comerciais e de serviços, o vestuário dos o complexo de informações do mundo vi-
transeuntes, a pavimentação urbana e ou- sível que nele se acham inscritas e cir-
tros melhoramentos urbanos, etc. cunscritas.
Trata-se dos indícios explícitos, exis- Pretendeu-se no citado trabalho estabe-
tentes na imagem (iconográficos), os quais, lecer um conjunto de princípios fundamen- 8 Idem, ibidem, p. 152.

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tais que pudessem trazer mais luzes sobre que existe entre a evolução da fotografia
a natureza da fotografia. Era necessário (em suas diferentes manifestações) e o con-
compreender melhor sua gênese e trajetó- texto histórico-cultural específico em que
ria, sua condição de objeto e imagem, sua ela tem lugar.
natureza de fragmento e registro documen- Pretendia, com o citado trabalho, trazer
tal e expressivo, sua autonomia e realidade uma contribuição ao terreno pouco palmi-
própria (uma segunda realidade), sua in- lhado da iconografia, entendida como disci-
trigante ambigüidade. plina autônoma, meio de conhecimento vi-
Os fundamentos teóricos levaram à for- sual e instrumento para o estudo e reflexão
mulação de um modelo centrado na acerca dos cenários e fatos da história. Se,
compreensão da essência do fenômeno fo- em trabalhos anteriores, enfatizava mais a
tográfico: trata-se de uma proposição feno- idéia da imagem fotográfica como documen-
menológica que tem por objetivo a des- to, em Realidades e Ficções na Trama Fo-
montagem da imagem com vistas à detec- tográfica, procurei melhor explicitar o cará-
ção dos seus elementos constitutivos e de ter de representação que lhe é inerente. As
suas coordenadas de situação. Buscava, imagens fotográficas, entendidas como do-
assim, um paradigma para a reconstituição cumento/representação, contêm em si rea-
do processo que originou a representação, lidades e ficções. É nessa relação ambígua
a partir de indicadores constantes nas que se acha o cerne de nossa reflexão.
imagens fotográficas: a determinação pre- A criação e a interpretação das imagens
cisa de que, quem, como, quando e onde, – a partir do real ou das fantasias indivi-
de forma a individualizar cada documen- duais e coletivas que povoam nosso imagi-
to fotográfico, estabelecer sua identidade nário – inserem-se em processos de cria-
e unicidade. ção de realidades. Melhor dizendo, de cons-
O livro estabelece, pois, além do arca- trução de realidades. A fotografia resulta
bouço teórico mencionado antes, um mo- sempre dessa construção seja ela obtida
delo metodológico de investigação e exa- como expressão do autor (sem finalidades
me crítico das fontes fotográficas. São in- utilitárias), seja como registro fotojorna-
dicados caminhos para a análise técnica e lístico ou instrumento de criação publicitá-
iconográfica desse tipo especial de docu- ria, seja através de tecnologias tradicionais
mentos, assim como discutidas as questões ou digitais. Vemos diariamente como a pu-
acerca de uma hermenêutica particular que blicidade e a imprensa constroem “realida-
as imagens demandam para sua compreen- des” e “verdades”.
são interior. Foi, nessa linha, proposta uma A partir da desmontagem desses pro-
interpretação iconológica para a decifra- cessos pode-se perceber em que medida a
ção daquilo que o fragmento visual não tem fotografia, seja em sua produção (processo
de explícito em seu conteúdo. Em síntese, de construção da representação), seja em
determinei, de início, seus elementos cons- sua recepção (processo de construção da
titutivos e identifiquei seu conteúdo, o apa- interpretação), sempre dá margem a um
rente da representação, sua realidade exte- complexo e fascinante processo de cons-
rior (análise iconográfica) para, a seguir, trução de realidades, processo que se es-
decifrar seus alicerces mais profundos, sua triba em sua ambígua e definitiva condição
trama histórica e social, sua dimensão cul- de documento/representação.
tural e ideológica, seu significado intrínse- Nessa perspectiva pretende-se chamar
co, o oculto da representação, sua realida- a atenção ao componente ficcional que o
de interior (interpretação iconológica). documento fotográfico contém em si. Pen-
Reiterei, por outro lado, a necessidade samos numa natureza ficcional, que seria
de se investigar a finalidade da produção intrínseca à imagem fotográfica, alicerce
das imagens como fulcro metodológico para cultural, estético e ideológico das manipu-
a compreensão histórica. Nessa linha de- lações que ocorrem antes (finalidade, in-
monstrou-se, também, o vínculo definitivo tenção, concepção), durante (elaboração

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técnica e criativa) e após (usos e aplica- nha proposição para o estudo crítico das
ções) a produção de uma fotografia e, fontes fotográficas.
identicamente, as múltiplas interpretações Foi com tais preocupações que nasceu
(“leituras”) que a mesma permite ao longo Realidades e Ficções na Trama Fotográfi-
de sua recepção. É em função de tal cons- ca, que não apenas complementa a incur-
tatação que a desmontagem dos processos são teórica desenvolvida em Fotografia &
de criação/construção de realidades é a História como, também, dá um passo além,
meta a ser perseguida. À medida que bus- creio, nesse percurso de compreensão das
camos compreender a construção social fontes fotográficas e de decifração dos enig-
dessas representações codificadas vamos mas e manipulações que se escondem sob
simultaneamente percebendo os mecanis- suas superfícies iconográficas.
mos para a sua desmontagem. Esses funda-
mentos compreendem, basicamente, três

AS CORRENTES HISTORIOGRÁFICAS:
conjuntos de conceitos:
1) o fenômeno fotográfico;

IMAGENS E IDEOLOGIA.
2) a construção da representação;
3) os processos de criação/construção de

A IMAGEM DA AMÉRICA LATINA


realidades;
Esse corpus conceitual vem alicerçar o
quarto e último conjunto, que se constitui
numa: Ainda uma palavra acerca das aborda-
4) proposição metodológica de análise e gens metodológicas que marcaram os estu-
interpretação das fontes fotográficas. dos desse meio de comunicação e expres-
As informações obtidas através da aná- são. O fulcro dessa discussão reside nos
lise iconográfica nos revelam dados con- modelos clássicos da história da fotografia
cretos sobre o documento no que diz res- propostos ao longo da primeira metade do
peito à sua materialização e à imagem nele século XX, caracterizados pelo acento epi-
gravada. A análise iconográfica situa-se ao sódico, de forte cunho positivista e despro-
nível da imagem: a identificação e a recu- vidos de qualquer preocupação conceitual.
peração de informações de diferentes natu- Já tive a oportunidade de analisar em ou-
rezas contidas no documento fotográfico tros trabalhos a validade desses modelos
são tarefas importantes, todavia, ainda nos seja sob o aspecto histórico específico, seja
encontramos a meio caminho da busca do numa perspectiva cultural mais ampla (9).
significado do conteúdo. Os “modelos clássicos” da história da
A interpretação iconológica pressupõe fotografia – apesar de se proclamarem “his-
uma incursão em profundidade na cena tórias (mundiais) da fotografia” – foram
representada. Para tanto é necessário, a par centrados no desenvolvimento da fotogra-
de conhecimentos sólidos acerca do mo- fia nos centros hegemônicos na medida em
mento histórico retratado, uma reflexão que que foram entendidos como “marcos da ci-
tem seu ponto de partida no conteúdo da vilização”. Essas e outras histórias, que aca-
imagem, mas que deve ir além do docu- baram se firmando como referências, re-
mento visível, além da chamada evidência forçaram estereótipos cristalizando deter-
documental. A interpretação iconológica minados conceitos (e preconceitos) acerca 9 Tratei inicialmente do assunto
em Fotografia & História (op.
se desenvolve na esfera das idéias, das men- da América Latina, por exemplo, região de cit., ver capítulo VI, “História
talidades. paisagens exóticas e costumes curiosos, da Fotografia: Metodologias
da Abordagem”). Aspectos cen-
Residem nos fundamentos teóricos e “atrasados”, povoada por raças etnicamen- trais da ideologia dominante
nos volumes clássicos da histó-
no modelo metodológico os elementos te inferiores. Imprimiam assim, na história ria da fotografia foram aborda-
para a percepção da construção, assim da fotografia, o paradigma do atraso mate- dos especificamente por mim
em “Reflexiones sobre la
como os instrumentos para a desmontagem rial, da miséria moral e da inferioridade Historia de la Fotografia” (in
técnica, cultural, estética e ideológica das racial cristalizado no imaginário europeu e Joan Fontcuberta (org.), Fotogra-
fia; Crisis de Historia, Barcelo-
fontes fotográficas. É essa, enfim, a mi- norte-americano acerca da América Lati- na, Actar, 2004, pp. 94-106).

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na. Uma região do planeta cujo passado a difusão de modelos de investigação e
fotográfico seria, provavelmente, igual- interpretação pensados a partir de nossas
mente desinteressante. realidades. Não mais os modelos que repi-
As abordagens desvinculadas da reali- tam a experiência exótica – os quais nos
dade social e política, dadas por aqueles servirão apenas como exemplificações di-
autores em relação ao objeto da investiga- dáticas sobre a produção historiográfica
ção, estabeleceram um padrão de narrativa elaborada segundo a ótica da história ofici-
histórica que vem sendo repetido há muito al (panorâmica, porém parcial) – e sim
tempo e encontrando seguidores em todas modelos que expressem a experiência lati-
as partes. É fundamental que se constate a no-americana, gerados da nossa percep-
influência que exerceram tais posturas ideo- ção sobre o fenômeno fotográfico nos dife-
lógicas sobre os autores locais, muitos dos rentes países do continente (10).
quais internalizaram os citados modelos Livres da ideologia do exotismo e da
endossando as histórias oficiais. mentalidade do olhar hegemônico, “civili-
As histórias da fotografia exigem uma zatório”, a contribuição latino-americana
compreensão aprofundada do fenômeno certamente produzirá um importante con-
fotográfico assim como abordagens cultu- traponto em relação às histórias “panorâ-
rais consistentes. Através dos usos e apli- micas”, clássicas da fotografia. É este um
cações da imagem ao longo da história compromisso que temos: estabelecer nos-
percebemos seu poderoso alcance, seja sas referências, segundo nossa visão de
como meio de conhecimento e elemento de mundo.
fixação da memória histórica e cultural, seja
como ferramenta de manipulação das mas-

O PASSADO IMAGINADO E O
sas, condição essa conquistada sobre o ci-
mento de sua incontestável “credibilidade

DOCUMENTO PRESENTE
documental”.
Como conceber hoje o estudo da ima-
gem fotográfica desvinculada do contexto
cultural, postura que caracterizou os mo- A imagem fotográfica, finalmente, vai
delos clássicos da história da fotografia e além do que mostra em sua superfície. O
serviu de exemplo para a aplicação de tal tema registrado tem sua explicação, seu
modelo na própria América Latina? Não porquê, sua história naquilo que não tem de
imagino que possamos pensar a história da explícito. Seu mistério se acha circunscri-
fotografia desarticulada da história da cul- to, no espaço e no tempo, à própria ima-
tura em seus múltiplos desdobramentos gem. Isto é próprio da natureza da fotogra-
sociais, econômicos, políticos, ideológicos, fia: ela nos mostra alguma coisa, porém
artísticos, etc. A imagem pensada fora do seu significado a ultrapassa. Existe um
seu contexto é pura abstração, seu signifi- conhecimento implícito nas fontes não-
cado é vazio. Apesar de tudo isso é interes- verbais como a fotografia; descobrir os
sante observar que esses aportes descom- enigmas que guardam em seu silêncio é
prometidos do tecido cultural, social e po- desvendar fatos que lhe são inerentes e que
lítico de uma época seguem se constituin- não se mostram, fatos de um passado desa-
do nos modelos desse gênero de história. parecido que imaginamos, em eterna ten-
Desde há muito se tem falado na neces- são com a imagem presente que vemos no
10 Para um aprofundamento des- sidade de criarmos uma crítica latino-ame- documento: realidades superpostas.
sa questão ver, do autor, “La
Fotografia em Latinoamérica em ricana verdadeira para as artes, edificada Existe, sim, um pensamento plástico
el Siglo XIX: la Experiência
Europea y la Experiência Exóti-
em função de nossas realidades; gostaria como afirmava Francastel. Não raro, me-
ca”, in Wendy Watriss e Lois P. de acrescentar, no que diz respeito à foto- mória, informação, propaganda, testemu-
Zamora, Image and Memory.
Photography from Latin America grafia, que temos uma necessidade premen- nho e ficção se confundem numa única ima-
1866-1994, Houston, FotoFest/ te de expandir a obra de reflexão teórica e gem. Seguir decifrando essa forma de co-
Texas University Press, 1998,
pp. 18-54. histórica latino-americana. É fundamental nhecimento é o desafio que nos move.

232 REVISTA USP, São Paulo, n.62, p. 224-232, junho/agosto 2004

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