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A sombra me traz indícios da passagem das coisas pelos lugares. Ela prolonga
os objetos no espaço. Ela se materializa como lugar que não é ocupado por
nada, além da ausência de luz. Mas ela não é só isso. Nela repousa também o
ao redor do mundo, que se conscientiza de sua presença graças ao poder do
rastro, da marca, do indicial que todo signo deseja pertencer. Através do indício
sabemos de um evento que não está ali, naquele momento, mas é possível saber
de sua existência.
Assim é um texto sobre outra coisa senão sobre o próprio texto. Assim é um
documento. Assim é uma foto: ela conserva a luz do que já morreu. E, no entanto,
ao apontar para uma situação passada, para um evento ocorrido, ela o refaz,
primeiro na memória e, em seguida, no próprio método usado para que aquela
sombra possa se prolongar a partir de um anteparo no espaço.
Alguns artistas são reconhecidos pela sua capacidade técnica, pela sua
obsessão pela manufatura, pela disciplina aplicada ao seu material de trabalho.
Não são poucos os esforçados. Eles passam anos fazendo a mesma coisa,
produzindo o mesmo trabalho, com variações mais ou menos previsíveis.
Evoluem à medida em que dominam suas ferramentas de trabalho. Fazem séries
intermináveis. O artesanato neles, é impecável. E, em muitos artistas, essa
obsessão pela técnica também reverbera, enquanto linguagem, na parte
conceitual de sua obra, tornando-a extremamente potente.
Mas há outros em que a técnica não interessa tanto. O artesanato existe mais
para estruturar as ideias. A obsessão, nesses caso, está mais relacionada às
ideias. O atelier deles é a própria cabeça, que mais se assemelha à uma usina
do que a uma oficina. Ficam anos sem produzir obras e, de repente, como que
do nada, nos assombram pela capacidade de articular matéria e pensamento.
Claro que esse esquematismo apenas serve para um discurso sobre polos
opostos que, em verdade, os artistas, de forma geral, estão poucos preocupados
em mantê-los, em sua rigidez maniqueísta. Duchamp era um habilidoso artesão.
Picasso simplesmente foi um dos pais do Cubismo, que deu origem a todos os
movimentos de vanguarda do século 20. Quando Volpi foi descoberto pelos
Concretistas, em São Paulo, ele era um dos pintores do grupo Santa Helena e
ponto final. Depois tornou-se um pintor de formas, planos, cores...
Além disso, este texto não se refere a nenhum artista modernista, mas a um
artista contemporâneo, cuja exposição findou-se a pouco no Museu do Centro
Cultural Oscar Niemeyer, em Goiânia. Juliano Morais, para mim, está mais para
o primeiro grupo citado do que o segundo. Esse texto é uma sombra que se
alonga a partir dos objetos de sua exposição Contraarquitetura.
O que ele faz também não é um “não-objeto”, no sentido conceituado por Ferreira
Gullar, porque as peças de Juliano não se esgotam no objeto. Elas são um
“quasi-não-corpus”, fazendo oposição à ideia de Gullar de que a obra dos
Neoconcretistas brasileiros estaria entre a máquina e um ser vivo. As do artista,
eu diria, estão entre o tempo e o espaço. Elas habitam tanto nossa produção de
consciência quanto de inconsciência.
Talvez seja por isso que ele pode ousar fazer uma mostra tão cheia de trabalhos
desiguais e, no entanto, eles se completam. Figuração e abstração não são
fronteiras para sua produção. Nesta ocupação do Museu do CCON, coabitam
um cavalo de madeira com fios de cobre dançando no espaço. Uma chapa de
madeira recortada representa um líder diante das massas (ou eu achei que era
isso), apontando o dedo, em riste, como que indicando um caminho. O objeto
repousa ali, no centro da sala inferior do grande espaço do museu. À sua volta
apresentam-se dois vulcões de porcelana, um corrimão de escada que se torna
uma espécie de fita de moébius, além de outras peças, num jogo emaranhado
de signos.
Há uma dubiedade. Ela me parece ser proposital. Como se, para a obra existir,
ela necessariamente devesse passar pela imaginação do espectador,
completando seu sentido. Você se pergunta: “mas o que quer dizer um chão de
gramíneas tendo um óleo sujo jogado por cima delas?”. Juliano, me parece, não
está preocupado em denunciar a devastação da natureza. Sua referência é
outra. É um grande leitor de Lacan. É mais provável que a grama sugira forças
que se levantam do chão (do subconsciente?) desafiando o mundo subterrâneo,
enquanto o óleo pode ser aquilo que pesa sobre esta tentativa de lucidez
(procura por luz), chegando até ao interior da própria terra de onde germina o
vegetal.
Mas aí, também, se mostram algumas questões em que podemos pensar tanto
na elaboração do objeto quanto as referências que Juliano usou na feitura de
sua exposição. Segundo o filósofo Jacques Rancière, a arte moderna não foi
feita por oposições e negações, mas sim como continuidade descontínua.
Quando nos apropriamos da arte de outros artistas o fazemos como uma
homenagem, ainda que, muitas vezes, em contraste ao que o outro está
mostrando ou dizendo. O compositor Belchior quando canta “Veloso, o sol não
é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua” ele o faz de um modo a
reverenciar a obra do artista baiano, Caetano Veloso, que compôs uma música
onde diz que “o sol é tão bonito, nas bancas de revista”.
O mais importante, para mim, porém, nessa exposição, é o modo como Juliano
cria tensões entre forma e conteúdo. Se o neo-expressionismo dos anos 1980,
buscava fazer emergir o inconsciente para a consciência, com gestos
“espontâneos e naturais”, aqui as problematizações vão além. Não se trata de
fazer emergir o inconsciente para a consciência, penso eu, mas de usar a
inconsciência como material de produção artística e poética. Poderíamos, por
exemplo, aproximar a ideia do jorro com o gesto do gozo. Enquanto no primeiro
caso os artistas promoviam uma espécie de catarse com os materiais, no
segundo caso, os artistas levam em consideração os dispositivos onde operam
suas ações. Juliano mantém o jorro e até o exibe – como no caso dos 2 vulcões
de porcelana, do caminho de grama com graxa; do óleo acumulado em uma
peça de argila – mas o gozo é metafórico pois, assim como em “A noiva despida
pelos seus celibatários, mesmo”, mais conhecido como “O grande vidro” (1915-
1923), de Marcel Duchamp, os personagens da obra vivem seu moto contínuo,
girando eternamente a máquina/noiva, sem tocá-la.
Goiânia, 23/11/2017