Professional Documents
Culture Documents
C iv il
In d ic e a n a l ít ic o
PARTE I
Título
Preliminar - Responsabilidade
Título I
Responsabilidade civil
Capítulo I
Noções e conteúdo. Definições. Evolução
Capítulo III
O ônus da prova
Capítulo IV
A solução unitária de Mar ton
Título II
Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual
C apítulo I
O dolo e a culpa
Capítulo II
A unidade de culpa
61. O C ód igo C ivil b rasileiro ad oto u a d istin ção en tre cu lp a co n tra tu a l e
culpa extracon tratu al.............................................................................................................. 127
62. Responsabilidade e garantia. A responsabilidade deve ser estudada em um
plano único. M azeaud, Pontes de M iranda, C arvalho Santos........................... 128
63. Crítica aos critérios de distinção propostos............................................................... 129
64. O ensinam ento de A m ézaga e sua utilidade.............................................................. 132
65. Contra a tirania do electa una via, non datur recursus ad alteram........................ 135
Capítulo III
Os limites da responsabilidade contratual
Seção I
A questão da existência do contrato
66. A questão da existência do co n tra to .............................................................................. 137
67. D everes existentes lateralm ente ao con trato.............................................................. 137
68. A prom essa de casam en to.................................................................................................. 142
69. A ruptura do concubinato.................................................................................................. 147
70. A concessão de salários à concubina.............................................................................. 151
71. Responsabilidade em face do contrato nulo. A proteção da boa-fé................ 151
Seção II
As prestações gratuitas
72. As dificuldades suscitadas pelas prestações g ra tu ita s......................................... 152
73. Os transportes gratuitos. Outros serviços gratuitos............................................... 153
74. Transportes im propriam ente considerados gratuitos........................................... 154
75. O verdadeiro transporte gratuito.................................................................................... 155
76. A solução contratual. Os argum entos de Savatier................................................... 155
77. A opinião de Peretti-G riva.................................................................................................. 158
78. O sistem a de L alo u ................................................................................................................. 158
79. As opiniões de M azeaud, Jean Liebm ann, Jean Loup, H enoch D. A g u ia r.. 159
80. A rrosa e a tese extraco n tratu al......................................................................................... 161
81. Juan M. Semon e seu estudo sobre a m atéria............................................................ 162
82. N ossa posição sobre o transporte gratu ito................................................................. 164
83. O transporte gratuito nas doutrinas portuguesa e brasileira: Luís Veiga e
Gonçalves de O liveira........................................................................................................... 167
Seção III
¿4s declarações unilaterais de vontade
84. Intimidade da m atéria com a dos atos ilícitos.......................................................... 170
85. A prom essa de recom pensa............................................................................................... 171
86. Licitação pública..................................................................................................................... 173
87. Concursos de beleza.............................................................................................................. 176
Seção IV
A figura do terceiro na responsabilidade contratual
88. Posição do terceiro beneficiário da estipulação. A ção do herdeiro ou suces
sor do contratante................................................................................................................... 177
89. Inexecução do contrato por falta de terceiro.............................................................. 179
Seção V
Obrigações essenciais e obrigações acessórias ao contrato.
Cláusulas de segurança ou incolumidade
90. Dever de segurança com relação às pessoas e coisas............................................. 180
91. A responsabilidade contratual é problema de interpretação da v o n tad e.... 181
92. Influências que concorrem na caracterização da responsabilidade
co n tratu al.................................................................................................................................. 182
Seção VI
Cumulação ou opção das ações de responsabilidade
93. Pluralidade de ações oferecidas ao sujeito ativo da rep aração......................... 183
94. A possibilidade de uma ação mista. A solução só pode ser dada com base
em um a das ações................................................................................................................... 184
95. Ação delitual contra o contratante.................................................................................. 184
96. Responsabilidade delitual e obrigações contratuais.............................................. 185
97. Acidente do trabalho. Evolução para o cam po da previdência social........... 187
Seção VII
Responsabilidade contratual por fato de outrem
Sum ário
98. A interven ção do terceiro no co n trato . O en sin am en to de M azeau d et
M a z e a u d ..................................................................................................................................... 193
99. A lição de Josserand. Teorias p ropostas para caracterizar a figura jurídica
da responsabilidade contratual por fato de terceiro. A doutrina de Soareg. 196
Título III
Responsabilidade contratual
Capítulo I
Os transportes
100. O transporte com o determ inante da civilização.................................................... 201
101. Objeto do contrato de transporte. N atureza de sua responsabilidade no
contrato de pessoas.............................................................................................................. 202
102. O transporte terrestre no direito brasileiro. A obrigação de incolum ida-
de no transporte. Sua extensão. Conseqüências quanto à p ro v a................... 205
103. O transporte de m ercadorias.......................................................................................... 215
104. Responsabilidade contratual das em presas ferroviárias................................... 220
105. A aplicação do Decreto n. 2.681/12 às em presas de transporte urbano..... 228
106. O transporte aéreo. Responsabilidade civil do tran sp ortad o r aéreo no
Código Brasileiro de A eronáutica. C onvenções internacionais..................... 231
107. O transporte m arítim o....................................................................................................... 257
108. O transporte de n o tícias.................................................................................................... 258
Capítulo II
A atividade profissional
Seção I
Responsabilidade dos médicos e dos profissionais auxiliares da medicina
117. Responsabilidade dos farm acêuticos, enferm eiros e p a rte ira s..................... 328
Seção II
Sumário
122. A lcance do m andato advocatício. Q uando há dever de prestar con tas....... 351
Sumário
133. R esponsabilidade do em preiteiro. N atu reza de su a respon sab ilid ad e e
da obrigação que assume. Responsabilidade do dono d a obra em relação
ao em preiteiro........................................................................................................................ 385
134. Responsabilidade de caráter excepcional: art. 618 do Código Civil. A opi
nião de Carvalho Santos, C osta Sena e Alfredo B em a rd e s.............................. 390
135. Responsabilidade extracon tratu al................................................................................ 392
136. Responsabilidade pela execu ção em terreno im p róp rio.................................... 397
137. A responsabilidade do construtor relativam ente ao don o da obra. O pi
nião do Professor Fernand o Pessoa Jorge sobre o assu n to.............................. 398
138. A divisão da responsabilidade do em preiteiro....................................................... 398
139. A responsabilidade do em preiteiro ou construtor no C D C ............................. 399
C apítulo III
Responsabilidade derivada de contratos diversos
140. A locação e a responsabilidade dela d eco rren te.................................................... 403
141. Responsabilidade derivada do dep ósito................................................................... 406
142. Responsabilidade dos hoteleiros................................................................................... 411
143. Responsabilidade dos hospitais..................................................................................... 412
144. Responsabilidade civil dos bancos............................................................................... 414
145. Responsabilidade das em presas de eletricidade, telefones e t c ...................... 426
146. Responsabilidade oriunda d a com pra e venda civil............................................ 427
147. Responsabilidade das em presas de diversões e nas atividades esportivas 428
148. Responsabilidade nos negócios decorrentes da Bolsa de Valores e por lan
çam entos de títulos no m ercado paralelo................................................................. 434
149. Responsabilidade dos adm inistradores de sociedades com erciais.............. 441
150. R esponsabilidade no C ódigo de Defesa do C onsum idor. A ntecedentes.
M om ento atual....................................................................................................................... 447
PARTE II
Título IV
Responsabilidade extracontratual
C apítulo I
Responsabilidade por fato próprio
151. A responsabilidade extraco n tratu al no direito brasileiro. Elem entos do
ato ilícito. Seu conceito...................................................................................................... 477
152. A culpa com o elem ento g erad or da responsabilidade....................................... 479
153. Im putabilidade, capacidade e responsabilidade................................................... 480
154. Responsabilidade da pessoa privada de discernim ento. Fundam ento da
responsabilidade do am en tal.......................................................................................... 481
155. Classificação dos atos ilícitos. A ção e om issão. Responsabilidade por fa
to próprio. As classificações de Planiol, Lalou e Josseran d .............................. 484
156. Atos contra a honestidade. Ofensa à honra da mulher. A dultério. Infra
ções aos deveres conjugais. Injúria e calúnia. M odalidade da ofensa ao
sentimento de h on ra............................................................................................................. 486
Capítulo II
Responsabilidade pelo fato da coisa
Sumário
Capítulo III
Responsabilidade por fato de animais
173. O art. 936 do C ódigo Civil. Sua vantagem sobre o Código francês.............. 563
174. A responsabilidade do proprietário em face da detenção do anim al por
terceiro, contra a sua von tade......................................................................................... 565
175. A responsabilidade em caso de detenção p or incum bência do p roprietá
rio................................................................................................................................................. 566
176. D ano produzido p or animal ou anim ais em g ru p o............................................. 567
177. O dano produzido em propriedade alheia pelo animal em trânsito e a
responsabilidade do proprietário................................................................................. 567
177A. O dano produzido por anim ais em rodovia sob concessão......................... 568
Capítulo IV
Os atos abusivos
178. Os arts. 939 a 942 do C ódigo Civil de 2002. Crítica d a jurisprudência........ 571
179. O protesto de títulos já p ago s......................................................................................... 576
180. O problem a do abuso de direito. Explicação do "nem ine laedit qui jure
suo u titur". A conciliação da tendência socialista com a tendência indivi
dualista...................................................................................................................................... 577
181. Interpretação do art. 188, n 2 1, do C ódigo Civil de 2002. Pontes de M ira
nda, G oldschm idt, Savatier, L. C am pion, Batista M artin s................................ 580
182. A plicações práticas do abuso de direito.................................................................... 590
1 8 3 .0 problem a da responsabilidade e as relações de vizinhança. A R espon
sabilidade civil p or dano ambiental. Histórico. Legislação geral e especí
fica. Responsabilidade civil propriam ente dita. Responsabilidade ad m i
nistrativa. Responsabilidade penal. Sujeito ativos e passivos da responsa
bilidade civil ambiental. A solidariedade passiva, jurisp ru dên cia................ 602
Capítulo V
Responsabilidade por fato de outrem
Sumário
184. Im propriedade da expressão responsabilidade p or fato de o u trem .......... 629
185. Responsabilidade dos pais. Responsabilidade do chefe de fam ília............ 631
186. Responsabilidade dos tutores e cu rad o res............................................................. 642
187. Responsabilidade do em pregador ou com itente................................................. 644
188. As construções que explicam a responsabilidade do em p reg ad or pelo
ato do prep osto...................................................................................................................... 645
189. Responsabilidade dos professores e m estres de ofício....................................... 648
190. Responsabilidade das pessoas que houverem participado dos produtos
do crime. C aráter da ação a que se refere o art. 932, ns V, do Código Ci
vil de 2 00 2 650
191. As em presas que exercem exp loração industrial e sua assim ilação aos
em pregadores e com itentes............................................................................................. 650
Título V
Responsabilidade civil do Estado
Capítulo I
Teorias. Críticas. Doutrina do risco administrativo
Sumário
192. A responsabilidade civil do Estado é m atéria de direito adm inistrativo.
Rejeição universal da irresponsabilidade do Estado. Os sistemas inglês
e norte-am ericano................................................................................................................. 653
193. Crítica das doutrinas de irresponsabilidade do Estado: Paul D uez, A m a
ro Cavalcanti, Guim arães M enegaie........................................................................... 656
194. O art. 15 do Código Civil de 1916, atual art. 43 do C ódigo Civil de 2002,
e sua interpretação. Artificiosidade da solução subjetiva. Falta pessoal e
falta do serviço: delim itação do cam po da responsabilidade pessoal do
agente. Definição de "a g e n te "......................................................................................... 657
195. A questão da solidariedade. O direito de regresso d o E stad o e o qu an
tum sobre que se e xerce........................................................................ ........................... 663
196. Evolução da ideia da responsabilidade do Estado. A lição de D uez......... 663
197. A d ou trin a da culpa ad m in istrativa. A teoria do risco ad m in istrativo .
Votos dos M inistros O rozim bo N onato e Filadelfo A z e v e d o ......................... 666
198. Justificação prática da doutrina do risco adm inistrativo................................... 677
199. O criterio da jurisprudencia em relação à responsabilidade civil do E s
tado. Os atos de guerra. Os m ovim entos revolucionários do Brasil e a
orientação dos tribunais quanto aos danos acarretad os. O problem a
das requisições....................................................................................................................... 679
200. Fórm ula doutrinária a que tende a responsabilidade civil do E stad o...... 698
C apítulo II
Responsabilidade do Estado na Ordem Internacional
Capítulo III
Exceções ao princípio da responsabilidade do Estado
e situações em que elas não se aplicam
204. A tos pelos quais o Estado não responde, em principio. A tos p arlam en
tares. A tos legislativos. D ecretos-leis. D outrinas de H au riou e Scelle. A
crítica de Duez. A lição de A m aro Cavalcanti. A tos adm inistrativos.
A tos de g o v em o .................................................................................................................... 713
205. Irresponsabilidade do Estado pelos atos jurisdicionais. O erro judiciário.
E xten são da rep aração concedida a esse título. Sua justificação d ou tri
nária e prática. O art. 630 do Código de Processo Penal.................................. 718
206. A respon sab ilid ade do E stad o por atos judiciais e alguns de seus estu
diosos ........................................................................................................................................... 741
Capítulo IV
Título VI
Capítulo I
Dano patrimonial e dano moral
219. O dano em sentido jurídico. Definições: Paoli, C am elutti, Fisch er........... 819
220. O dano patrimonial. Dano em ergente e lucro cessante. A questão da asce-
nção profissional como dano ressardvel. Reparação natural e indenização
p ecu n iária................................................................................................................................ 822
221. Distinção entre dano patrim onial e dano m oral. A pena e a indenização. 839
222. O bjeções à reparabilidade do dano m oral. A lição de M in ozzi................... 846
223. C onfusão entre o dano m oral e o dano patrim onial de origem afetiva.
O abalo de créd ito ............................................................................................................... 850
224. O dano m oral e as razões de sua reparabilidade. A doutrina e a legisla
ção estran g eiras.................................................................................................................... 859
225. O dano m oral em face do C ódigo Civil brasileiro de 2 0 0 2 ............................ 861
226. A indenização por m orte de m en or............................................................................ 864
C apítulo II
A liquidação do dano no direito brasileiro
Sumário
227. Direito anterior ao C ódigo de Processo Civil de 1939. R egu lação da
m atéria após o C PC de 1973.......................................................................................... 867
228. O art. 949 d o C ód igo Civil de 2002. C om o se liq u idam os lucros ce s
santes. D espesas de tratam en to ................................................................................... 869
229. Indenização p or esbulho ou u su rp ação do alheio.............................................. 873
230. O d an o afetivo no art. 952, p arágrafo único do C ód igo Civil de 2 0 0 2 .... 873
231. R ep aração do dano cau sad o p or injúria ou calú n ia.......................................... 874
232. A liqu idação de obrigação ind eterm in ad a............................................................. 874
233. Os hon orários de ad vo gad o co m p reen d em -se na re p a ra çã o ....................... 877
234. O princípio da lim itação da responsabilidade..................................................... 877
235. Liquidação de con d en ação expressa em m oeda estran g eira ........................ 878
236. R evisão das indenizações. Inviabilidade de com p en sação da indeniza
ção com segu ro ou pensão de que a vítim a seja b e n e ficiá ria ...................... 887
Título VIII
Sujeitos e efeitos da responsabilidade civil
C apítulo I
Sujeitos ativo e passivo da responsabilidade civil
Capítulo II
Efeito do julgamento criminal sobre a ação cível
Sumário
246. O problem a da influência recíp ro ca das jurisdições. O piniões de M en
des Pim entel, C arvalh o Santos, V icente de A zeved o e C âm ara L e a l....... 919
247. A expressão coisa ju lg ad a não corresp on d e à realid ad e, na q u estão....... 928
248. A lei brasileira e seu m odo de reg u lar o assunto. Justificativas e diri-
m entes. Os arts. 65, 66 e 67 do C ód igo de Processo Penal. Q uad ro sis
tem ático dos casos de influência do juízo penal sobre o cível..................... 929
C a p ítu lo III
Garantias de indenização
Sumario:
1. R e s p o n s a b il id a d e : s e u c o n t e ú d o , n o ç ã o e d e f in iç ã o . 2. M e c a n is m o da r e s p o n s a b il id a d e .
1 Pontes de Miranda, in Paulo Lacerda (Manual do Código Civil, XVI, 3a parte. Direito das Obrigações),
"Das obrigações por atos ilícitos", p. 7 e segs.
José de Aguiar Dias D a R e sp o n s a b il id a d e
2G. Marton, Les fondements de la responsabilité civile, Paris, 1938, n- 97, p. 304.
3 G. Marton, ob. d t, na 33, p. 251.
2
E A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
Marton estabelece com muita lucidez a boa solução, quando define responsabi
lidade como a situação de quem, tendo violado uma norma qualquer, se vê exposto
às conseqüências desagradáveis decorrentes dessa violação, traduzidas em medidas
que a autoridade encarregada de velar pela observação do preceito lhe imponha,
providências essas que podem, ou não, estar previstas4.
2. Mecanismo da responsabilidade.
Desta forma, representa-se exteriormente toda responsabilidade precisamente
pelo esquema sugerido pela etimologia, a dizer, na feição de interrogatório. O órgão
emissor ou zelador na norma indaga e o violador responde, tal como figura Marton:
"por que faltastes a teu dever, praticando (ou omitindo) tal atoT', ao que responde o inter
rogado de forma satisfatória, caso em que é desobrigado, ou de maneira irrelevante,
e, então, é condenado5.
Esta imagem serve para fazer compreender melhor o mecanismo da responsa
bilidade. Cumpre, porém, não exagerar, além desse préstimo, o seu valor, porque a
responsabilidade, excepcionalmente, surge também em casos em que o agente não
responde, ou por impossibilidade de discernir, ou porque não é mesmo admitido a
responder, justificando-se6.
4 G. Marton, ob. e loc. dts. Bonnecase (Précis de droit civil, t. II, 1934, na 471) define: uo termo responsabi
lidade é, em essência, o equivalente do que chamamos a execução indireta da obrigação. Serve para traduzir a
posição daquele que não executou a obrigação, que não pode ser obrigado a executá-la in natura, e que, dessa
forma, vai ser condenado a perdas e danos". O único defeito da definição de Bonnecase é perfeitamente
assinalado por Marton, que lhe atribui arbitrária restrição à noção de responsabilidade. Com efeito,
esta não se resume ao caso de ser impossível extorquir a prestação original ao devedor, por via da
execução forçada. Responsabilidade existe também no caso em que seja possível compelir o devedor
a satisfazer diretamente a obrigação estipulada (Marton, ob. d t, na 84, p. 258, nota 1).
5 G. Marton, Les fondements de la responsabilité civile. Paris, 1938, nfi 86, p. 263. O mesmo autor adverte
que a resposta satisfatória se restringe a quatro pontos: a) ausênda de obrigação a cargo do agente;
b) existênda de obrigação sem que o agente tenha cometido o ato incriminado; c) prática do ato, sem
envolver violação de dever; d) prática do ato com a consequênda, em prindpio, de violação do dever;
mas forrado por uma escusa legal (mesmo local, nota 1).
6 G. Marton, ob. d t, n2 86, p. 264.
3
José de Aguiar Dias D a R e sp o n s a b il id a d i
7 G. Marton, ob. dt, nfi 87, p. 265. Este autor classifica de falso o critério que opõe o foro moral como
puramente interno, ao foro jurídico, puramente externo. "As regras morais e religiosas ", diz ele, "não
são, de maneira alguma, fenômenos exclusivamente intemos[...]". No seu conjunto, constituem "o sistema
positivo de mandamentos morais e religiosos de uma dada sociedade". De sua parte, o direito não deixa de
apresentar seu aspecto interno, revelado na convicção jurídica do homem (ob. d t, p. 266).
8 Henri et Léon Mazeaud, Traité théorique et pratique de la responsabilité civile, délictuelle et contractuelle, 3a
ed.Paris, 1938, t. I a, n2 7, p. 4.
4
6 A g u ia r D ia s Da Responsabilidade GiuH
finalmente nenhuma outra matéria, pode deixar de ser expressão dos princípios
definidos pela moral9.
Marton atribui à presunçosa complacência dos doutrinadores, no tocante à
ausência de uma análise séria dos fundamentos da responsabilidade jurídica, o
estágio remoto em que se encontra a doutrina moderna da responsabilidade civil.
Empreendendo a tarefa de suprir tal omissão, não se detém no domínio da respon
sabilidade jurídica, até porque o seu sistema, em dada sociedade, não é senão a re
produção do seu sistema de responsabilidade moral10. Encarecendo a importância
da distinção, sob o ponto de vista de responsabilidade moral, entre as concepções
individual e social, frisa que a primeira é mais profunda, mais fundamental, ao
passo que a segunda é o produto demorado do desenvolvimento humano: numa
palavra, ao lado do egoísmo, a equidade, que o ameniza. A concepção social é o
corretivo da concepção individual da responsabilidade moral11. Quanto à respon
sabilidade jurídica foi, em certo tempo, nos primórdios da civilização, a própria
responsabilidade moral. E o legislador, aparecendo na sociedade primitiva para
estabelecer as normas necessárias à regulamentação da vida social, que se deixa
influir por outros elementos, percebendo que, além daquelas, outras considera
ções, de caráter utilitário, deviam pesar na regulamentação. Foi, antes de qualquer
outra, à ideia da prevenção que teve de atender12.
5
José de Aguiar Dias D a R e sp o n s a b il id a d e
ao passo que a paz sodal só se restaura com a pena. Pode suceder, contudo, que baste ora uma, ora
outra das satisfações, geralmente prestadas em conjunto.
14 Mazeaud et Mazeaud, ob. dt., ns 9, p. 6.
6
iE A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
7
de Aguiar Dias D a R e sp o n s a b il id a d e
16 Mazeaud et Mazeaud, ob. dt., nfl 11, p. 9; Henri Lalou, La responsabilité civile. Paris, 1932,2a ed., n213, p. 7.
17 "O homem que causa dano a outrem", diz Pontes de Miranda, "não prejudica somente a este, mas à ordem
social; a reparação para o ofendido não adapta o culpado à vida social, nem lhe corrige o defeito de adaptação.
O que faz é consolar o prejudicado, com a prestação do equivalente, ou, o que é mais preciso e exato, com a
expectativa jurídica da reparação" (ob. dt., ns 15, p. 42).
18 Ob. dt., n2 23, p. 57.
)E A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
Para efeito da punição ou da reparação, isto é, para aplicar uma ou outra forma
de restauração da ordem social, é que se distingue: a sociedade toma à sua conta
aquilo que a atinge diretamente deixando ao particular a ação para restabelecer-se,
à custa do ofensor, no statu c\uo anterior à ofensa. Deixa, não porque se não impres
sione com ele, mas porque o Estado ainda mantém um regime político que explica
a sua não-intervenção. Restabelecida a vítima na situação anterior, está desfeito o
desequilíbrio experimentado.
Assim, certos fatos põem em ação somente o mecanismo recuperatório da res
ponsabilidade civil; outros movimentam tão somente o sistema repressivo ou pre
ventivo da responsabilidade dvil e a penal, pelo fato de apresentarem, em relação
a ambos os campos, incidência equivalente, conforme os diferentes critérios sob
que entram em função os órgãos encarregados de fazer valer a norma respectiva.
Reafirmamos, pois, que é quase o mesmo, o fundamento da responsabilidade civil e
da responsabilidade penal. As condições em que surgem é que são diferentes, por
que uma é mais exigente do que a outra, quanto ao aperfeiçoamento dos requisitos
que devem coincidir para se efetivar. E não pode deixar de ser assim. Tratando-se
de pena, atende-se ao princípio nulla poena sine lege19, diante do qual só exsurge a
responsabilidade penal em sendo violada a norma compendiada na lei; enquanto
que a responsabilidade civil emerge do simples fato do prejuízo, que viola também
o equilíbrio social, mas que não exige as mesmas medidas no sentido de restabelecê-
-lo, mesmo porque outra é a forma de consegui-lo. A reparação civil reintegra, re
almente, o prejudicado na situação patrimonial anterior (pelo menos tanto quanto
possível, dada a falibilidade da avaliação); a sanção penal não oferece nenhuma pos
sibilidade de recuperação ao prejudicado; sua finalidade é restituir a ordem social
ao estado anterior à turbação. Tomamos apoio para esta opinião na teoria de Merkel,
ao estabelecer, contra a distinção entre ilícito penal e ilícito civil, o princípio de que
todo ilícito representa sempre uma voluntária rebelião contra a lei. Todo ilícito põe
de relevo a discórdia entre a vontade do particular imputável e a vontade geral ob
jetivada na lei penal. A coação civil e a ação penal inspiram-se no interesse geral, e
dirigem-se, segundo ele, contra os fatos antijurídicos. A reação penal, de tom mais
enérgico, tem caráter subsidiário.
19 Filadelfo Azevedo aceita essa diferenciação e lhe dá por base a prevalência dos interesses feridos,
acentuada pelo principio da fixação estrita das figuras de crime, previamente fixadas. A diferença
prática reside áinda no escrúpulo maior que têm os juizes no aplicar pena, ainda que leve (parecer,
na Revista Forense, vol. 91, p. 367).
9
ãe Aguiar Dias D a R e s p o n s a b il id a d e
pela sociedade, outra, pela vítima; uma, tendente à punição, outra, à reparação: a
ação civil aí sofre, em larga proporção, a influência da ação penal20.
11
José de Aguiar Dias D a R e sp o n s a b il id a d e
22 Mazeaud et Mazeaud, ob. cit., t. 1, n2 13, p. 11; cf. Sourdat, Traité générale de laresponsabilité ou de
l’action en dommages-intérêts en dehors des contrats. Paris, 5‘ éd., prefácio.
23 Prefácio a Gardenat et Salmon-Ricd, De la responsabilité civüe (délits et quasi-délits); Mazeaud et
Mazeaud, ob. cit., 1.1, n2 14.
24 Josserand, apud Mazeaud et Mazeaud, ob. cit., 1 .1, ns 15-2. Preocupação exageradamente prag
mática é essa. As questões de fronteira, no campo do direito, são antipáticas e injustificadas,
quando excedem as exigências indispensáveis à caracterização da matéria regulada, pois os
vários ramos do direito se avizinham extraordinariamente, revelando sua fundamental unida
de, como parte do mesmo sistema (Eugênio Florian, com remissão a Mariano D'Amello, in La
Giustizia Penale, ano 44, fac. 6, col. 393).
25 René Savatier, Traité de la responsabilité civile en droit français, Paris, 1939,1.1, n22, p. 1.
26 As novas diretrizes do Direito, in Revista de Direito, vol. 94, p. 15 e segs.
12
)E A g u i a r D ia s Dü Responsabilidade Civil
más que en otro aspecto de la cultura, son difíciles los verdaderos hallazgos; sino en virtud
de un afinamiento y de una educación progresivos de la conciencia jurídica contemporánea
influida por la obra de juristas, legisladores y magistrados en quienes el humo spiritualis
se encarna intermitentemente"77.
Reconhecem Mazeaud et Mazeaud, sem embargo da limitação que opõem à
crescente absorção das regras jurídicas pelo princípio da responsabilidade, que ele
está, nesta hora, em primeiro plano. Exatamente por isso, nele domina a incerteza. O
legislador, na impossibilidade de prever tão espantoso desenvolvimento, limitou-se
a estabelecer algumas regras gerais que, apesar de tudo, merecem admiração, por
que é com elas que se resolvem as questões mais modernas28.
O fenômeno é de todas as legislações e tem sido mesmo causa de quase deses
pero para muitos autores apressados que aí veem tipos de decadência do direito,
quando o que há é tão somente desequilíbrio entre a sua essência - que permanece
íntegra, como indica precisamente essa instabilidade legislativa nos tempos moder
nos, na ânsia de afeiçoar a lei ao direito - e a sua técnica, que por força se há de
subordinar às contingências que pendem, no tempo, sobre o processo científico. E
por isso que Gastón Morin advoga a inserção, na lei, não somente de conceitos reno
vados, mas de normas suficientemente maleáveis para permitir ao Poder Judiciário
larga autonomia para agir, obedecendo a essa moldura, mas individualizando as dis
posições legais, conforme a necessidade do momento29.
Este fato revela mais uma vez a pobreza de técnica em face da pujança da evo
lução da sociedade, exigindo a readaptação das normas jurídicas às situações novas.
Filosoficamente, não é possível conceber responsabilidade sem culpa. Á obrigação
civil decorrente de responsabilidade civil, se, sacrificados à tirania das palavras, qui
sermos guardar a significação rigorosa do termo, só pode ser entendida como conse
qüência da conjugação destes elementos: imputabilidade mais capacidade. E disso
que se aproveitam os partidários mais ardorosos da doutrina da culpa, esquecidos
de que, na verdade, já não é de responsabilidade civil que se trata, se bem que haja
conveniência em conservar o nomen juris, imposto pela semântica: o problema trans
bordou desses limites. Trata-se, com efeito, de reparação do dano.
27 Raul H. Orgaz, Civilización, Cultura, Derecho, in Boletim de la Facultad de Derécho y Ciências Sociales,
Córdoba, março-junho de 1940, p. 12 e segs.
28 Mazeaud et Mazeaud, ob. d t, 1.1, n“ 16, p. 28.
29 Gaston Morin, La loi et le contrat - La décadence de leur souveraineté, Paris, 1927, p. 44. O legislador do
Código Civil de 2002, sensível ao tema, não o deixou sem solução, como se pode ver do art. 927, pa
rágrafo único, em que faculta ao juiz a identificação das situações de risco que acarretam para quem
as cria uma obrigação de reparar em bases objetivas.
13
C a p ít u l o II
TEORIAS. CLASSIFICAÇÃO. CRÍTICA
Sumário:
14. A RESPONSABILIDADE CIVIL É PURA RESULTANTE DO EQUILÍBRIO VIOLADO PELO DAÑO. 15. TEORIA
DA CULPA. A FÓRMULA DE VoN IHERING. 16. A CULPA NO DIREITO ROMANO. 17. A TEORIA DE DOMAT
E POTHIER. A ELABORAÇÃO DO CÓDIGO ClV IL FRANCÉS. D lR EITO ITALIANO. 18. D lREITO ALEMÃO. 19.
D i r e i t o b r a s i l e i r o . A c o n c l u s ã o d e A l v i n o L im a . 20. C r í t i c a d a t e o r í a d a c u l p a . A s s i m i l a ç ã o d a
NOÇÃO DE RESPONSABILIDADE PELA DE CULPABILIDADE. 21. A DOUTRINA DO RISCO. 22. PRECURSORES DA
d o u t r i n a d o r i s c o : T h o m a s i u s e H e i n e c c i u s . B i n d i n g . V e n e z i a n . 23. T e n t a t i v a p a r a s i s t e m a t i z a r
A DOUTRINA DO RISCO NA LITERATURA GERMÁNICA: MATAJA. O s M ERKEL. U nG ER. PRINCÍPIO DO INTERESSE
ATIVO, DA PREVENÇÃO E DA EQUIDADE OU INTERESSE PREPONDERANTE. A INSPIRAÇÃO DE BENTHAM. 2 4 .
OS FRANCESES COMO LANÇADORES DA IDEIA DO RISCO. A INFLUÊNCIA DO POSITIVISMO PENAL E SUAS
VERDADEIRAS PROPORÇÕES. 25. A DOUTRINA DE SALEILLES. 26. As IDEIAS DE JOSSERAND. 27. As SOLUÇÕES
s u b s id iá r ia s . 28. Os a t a q u e s d e H. e L. M a z e a u d . 29. D e f e s a d a t e o r í a
C r ít ic a d a t e o r ía d o r is c o .
o b je t iv a . 30. R e fu t a ç ã o d a s d o u t r in a s e x tr e m is ta s . D i r e i t o s d o h o m em e d i r e it o s d a s o c ie d a d e
DEVEM ORIENTARSE PARA O EQUILIBRIO. 31. Os VERDADEIROS DEFEITOS DA TEORIA OBJETIVA. 32. Os
SISTEMAS DE CONCILIAÇÃO E SUA CRÍTICA. 33. A ACEITAÇÃO DA DOUTRINA OBJETIVA NA LEGISLAÇÃO.
75 Mataja, Das Rechts des Schadenersatzes vom Standpunkt der Nationalökonomie, Viena, 1888, p. 19;
Teisseire, Essai d'une théorie générale sur le fondement de la responsabilité civile, tese, Aix, 1901, p. 154;
Pontes de Miranda, Manual, dt., n“ 20, ps. 53 e 54.
43
José de Aguiar Dias D a R e s p o n s a b ilid a d e (
44
i A guiar D ias Da Responsabilidade Civil
discussão, posta em foco na emdita monografia de Alvino Lima, tem, como salienta
este ilustre autor, mero interesse teórico79, "sem nenhuma influência sobre os problemas
da responsabilidade civil".
De qualquer modo, acreditamos, com os Mazeaud, que a noção da culpa sem
pre foi precária no direito romano, onde jamais chegou a ser estabelecida como prin
cípio geral ou fundamento da responsabilidade, o que de nenhum modo exclui a
convicção de que a evolução se operou definidamente nesse sentido80. A concepção
do direito justinianeu era já a da culpa subjetiva: representava progresso em relação
à Lei Aquilia; mas seria arriscado identificá-la com a moderna noção do instituto,
não obstante constituir a origem comum de legislações atuais fundadas na culpa.
45
José de Aguiar Dias D a R e s p o n s a b il id a d e ç
mais s'ily a une faute ou imprudence, quelque légère que soit leur influence sur le dommage
commis, il en est dû réparation". Queria isso dizer que, se era necessária a culpa para
estabelecer a responsabilidade, qualquer culpa era suficiente. Não era preciso que
o autor do dano tivesse vontade de causar o dano (culpa delitual); bastava a impru
dência ou negligência (culpa quase-delitual). A orientação se expressa no art. 382 do
Código Civil: “Tout fait quelconque de l'homme qui cause à autrui dommage oblige celui
par la faute duquel il est arrivé à le réparer". Mas o ato a que se referiam os redatores do
Código era o que, em confronto com aquele dispositivo, estabelece contraste entre
fait e ato intencional. Prova-o o art. 1.383: "Chacun est responsable du dommage qu'il a
causé non seulement par son fait, mais encore par son négligence ou par son imprudence".
Mas a redação traduzia mal a intenção, dizem Mazeaud et Mazeaud; a ideia de que
no artigo 1.382 se contém princípio exorbitante da simples culpa intencional é au
torizada pela redação, suficientemente clara, para prevalecer sobre a vontade dos
elaboradores do Código. Mas, então, consideram, a culpa não é, nos termos do art.
1.382, condição necessária da responsabilidade? Sem dúvida que sim. Jamais foi in
tenção dos redatores estabelecer responsabilidade sem culpa82.
Ao pôr em relevo o desacordo entre o direito positivo francês e sua teoria, G.
Marton frisa o desenvolvimento da legislação e jurisprudência francesas em contras
te com a alemã.
O Código francês consegue assegurar, com seus artigos breves, precisos, prote
ção muito mais completa que os prolixos e minuciosos dispositivos do Código ale
mão, que ocupam o centro, entre os preceitos da doutrina tradicional e as exigências
da vida econômica.
Em compensação, porém, é chocante a maneira por que a massa dos doutrina-
dores resiste, fiel às ideias hereditárias, contra aqueles dois elementos construtivos
do direito, não querendo aceitar senão a culpa como princípio natural e legítimo da
responsabilidade civil. Sua ingênua convicção é de que a culpa, encarada nos artigos
do Código Civil, é a mesma culpa subjetiva do direito justinianeu. Essa interpretação
errônea se deve ao uso ambíguo, mais ou menos inconsciente, dos dois sentidos da
palavra faute (senso objetivo: infração à maneira de agir de um tipo-modelo deter
minado; e senso subjetivo: censura moral imputável ao agente), e nesse equívoco
incorre o próprio legislador. Acresce que essa interpretação se opera por um sistema
artificial de presunção, as mais das vezes de ficções de culpa. Assim, tem-se como
46
de A g u ia r D ias Da Responsabilidade Civil
47
José de Aguiar Dica D a R e sp o n s a b il id a d e !
48
pE A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
apresentam são insuficientes89. Marton chega, enfim, à conclusão de que não pode
ser reputada como princípio diretor uma regra sujeita a tantas exceções: "O sistema
alemão não pode ser considerado como suficiente, nem teórica, nem juridicamente" 90.
89 Ob. d t, n2 5, p. 19.
90 Ob. d t, nQ16, p. 38.
91 Alvino Lima, Da culpa ao risco, p. 176.
92 Da culpa ao risco, p. 215.
49
José de Aguiar Dias D a R e sp o n s a b il id a d i
reparação dos danos nos acanhados limites da culpa subjetiva, exigindo a impossibilidade
moral, materializaram a noção da culpa"93.
Marton, na percuciente crítica formulada à teoria da culpa, põe de manifesto
que "a doutrina subjetiva da culpa, originária de Bizâncio, aparecendo sob a capa de um
aspecto falseado da culpa moral, como conseqüência das dificuldades inerentes à sua realiza
ção, não conseguiu corresponder à ideia de uma responsabilidade sã e vigorosa, mas, bem ao
contrário, conduz, pelos, seus efeitos, a inconvenientes desmoralizadores"9i.
O reputado professor de Budapeste, investigando a causa que teria levado a
ciência jurídica ao acolhimento de construção teórica tão defeituosa, como é o prin
cípio da culpa subjetiva, chegou à conclusão de que "o fenômeno tem uma explicação
histórica, contida no fato de que a ciência do direito se inspira no direito romano, onde a
responsabilidade extracontratual nunca foi um problema. A imposição do ressarcimento sem
pre teve caráter penal: delito e reparação se identificavam de tal modo que a ação aquilianà
era a única via judiciária por que se podiam estabelecer as obrigações de um e outro caráter.
O grande erro e a grave omissão da teoria moderna do direito civil consistem precisamente
em que, embora assistindo à obra de distinção entre o delito e a reparação, libertando esta
ideia das restrições objetivas da Lei Aquilia - obra realizada pelas codificações européias e,
em primeiro lugar, pelo Código francês - pensava poder manter esse ponto de vista ingênuo
e antiquado, segundo o qual o fundamento da reparação não se poderia encontrar senão no
delito, e que, portanto, sempre que se deparasse uma responsabilidade sem delito, conviria de
qualquer forma imaginá-lo". E prossegue: "La culpabilité, voilàla seule raison imaginable
de toute responsabilité qui doit être presente partout, dans chaque hypothèse, même dans celle
ou la juridiction criminelle, les cas échéant, n'a pas punis l'acte"95.
Realmente, assim foi. E a tal ponto que a significação de responsabilidade
foi inteiramente assimilada pela de culpabilidade. Daí os artifícios, a que a pró
pria teoria do risco não escapa, tendentes a satisfazer o requisito de rigor. Daí,
talvez, a necessidade de estabelecer que o instituto chamado de responsabilidade
civil, na realidade, pelo menos diante do valor que se atribui a essas noções, não
é senão a reparação do dano: “O problema da reparação dos danos sofridos por uma
pessoa", diz Morin, “deve ser proposto desta maneira: quem deve reparar os danos? E
não assim: quem é responsável?"%.
93 Ob. d t, p. 217.
94 Ob. d t, na 58, p. 151.
95 Ob. e Ioc. dts.
96 La loi et le contrat, la décadence de leur souveraineté, Paris,1927, p. 120. Ao ilustrePereira Braga o fe
nômeno sugere uma condusão da mais singela predsão: aexpressão responsabilidade civil nada
50
i de A g u ia r D ias Da Responsabilidade Civil
mais quer representar senão uma antinomia com a responsabilidade criminal (in Revista de Crítica
Judiciária, vol. 7, p. 292 e segs.).
97 Ob. d t, p. 87. Não é outra a lição do Ministro Orozimbo Nonato: "O problema da responsabilidade civil
nunca pode encontrar base segura na teoria da culpa" (voto na Ap. n2 7.127, ac. do Supremo Tribunal
Federal, de 18.08.42, no Diário da Justiça de 02.02.43).
51
José de Aguiar Dias D a R e s p o n s a b il id a d e
52
3E A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
dano. A imagem de que se serve Marton, para facilitar a compreensão do.exato papel
da causalidade, é esta: “assim como, no caso da iluminação elétrica, a verdadeira causa
do fenômeno é o dínamo produtor da corrente, e não o fio condutor, a que a lâmpada, para
acender-se, deve estar ligada, assim também é o mandamento do legislador, a verdadeira força
geradora da corrente da responsabilidade; a causalidade é, aí, tão-somente o fio condutor, que
encaminha a sua aplicação aos casos concretos"99.
E a verdade salientada por uma simples indagação ao aspecto prático do pro
blema. Estabelecer a obrigação de reparar diante do simples laço de causalidade
seria tomar a vida insuportável: “O comerciante melhor aparelhado prejudica a seus con
correntes; o cidadão que procura casa e que, por suas relações com o proprietário do imóvel,
obtém o apartamento vago, prejudica o pai de família vítima da crise de habitação; o aluno
que obtém um prêmio lesa os colegas; o bispo que condena o mau livro prejudica o seu autor; o
educador que proíbe o cigarro aos alunos prejudica o negociante dofumo[...]'n°°. E o prejuízo
injusto que deve ser considerado.
Giacomo Venezian, procurando libertar a responsabilidade civil do elemento
psíquico, por influência do positivismo jurídico, concebeu a reparação como con
seqüência lógica do ato ilícito (torto). A reparação está para ele exatamente como
sua outra conseqüência, a pena: “O porquê do ressarcimento, a razão da responsabilidade
encontra-se na própria concepção do ato ilícito. O ilícito deve ter uma sanção na própria
ordem jurídica, ou cessa de ser tido como tal. O direito e o ilícito são uma realidade objetiva ,
social. Não depende da vontade do sujeito, do indivíduo, a modificação da esfera jurídica dos
outros indivíduos. Não é, pois, a vontade de alguém que se deve perquirir para determinar
a sua responsabilidade. Não somente suas ações involuntárias, os movimentos conscientes
ou inconscientes que provenham de sua disposição física, fisiológica e psíquica, mas todos os
movimentos das coisas a que se estende sua atividade, e que se destinem a produzir vantagem
para ele, podem impedir o legítimo desenvolvimento de uma outra atividade. Se, quando
seja possível prevenir o fato perturbador, ele é obrigado a remover a causa da perturbação à
atividade alheia, quando esse fato ocorre, ele é obrigado a compensar o dano que daí deriva.
A causa natural do ilícito deve coincidir com seu efeito jurídico e deste modo se restabelece a
ordem jurídica"101.
53
José de Aguiar Dias D a R e sp o n s a b il id a d e
A tese de Venezian era errônea, o que não importa contestar o precioso subsídio
que seu erro genial prestou ao estudo da responsabilidade civil. Pensa Marton que
a prova mais imediata do erro de Venezian, como o de Binding, está no zelo febril
com que a literatura continuou a investigar os motivos da responsabilidade sem
culpa. E o fato de se limitarem a este campo as suas pesquisas se explica em face da
concepção inveterada de que a responsabilidade fundada na culpa não precisa de
explicações, considerando-se como responsabilidade normal, oposta à responsabili
dade anormal, a objetiva102.
54
: b e A g u ia r D ias Da Responsabilidade Civil
55
José de Aguiar Dias
D a R e sp o n s a b il id a d e Í
que logicamente não podem agir com culpa, a responsabilidade objetiva, ou seja,
uma responsabilidade mais severa que a estabelecida para os homens normais: "Se |
parece eqüitativo condenar um alienado ou um menor rico à reparação deve, ao menos eo ■
magis, ser eqüitativo proceder de igual modo no caso do indivíduo rico, são de espírito, que
causa o dano involuntariamente, e sem que nenhuma culpa se lhe possa atribuir. Limitar
esse tratamento aos alienados é impor-lhes, de maneira injusta, um verdadeiro privilégio ;
odioso"107. Não é outra a opinião de Saleilles, que exclama: "Singular equidade essa,
que agrava a responsabilidade material tão-somente para os inconscientesV'ws.
Mas a equidade não pode, de si mesma, constituir-se em base da respon
sabilidade civil. Se a julgássemos suficiente, teríamos, consequentemente, esta- I
belecido que o rico deveria, sempre e sempre, ressarcir o dano experimentado ;
pelo pobre, conclusão que, por absurda, põe de manifesto a inadmissibilidade
da regra. Posta no seu verdadeiro papel moderador, entretanto, a equidade não
pode deixar de constituir princípio influente na reparação do dano. Atendendo
a ele, e aperfeiçoando as fórmulas de Rodolfo Merkel, é que Marton defende o
princípio do maior interesse social, segundo o qual não se quer expressar que
exista responsabilidade exclusivamente a título de equidade, mas, exatamente ao
contrário, que a sua aplicação pode até não ocorrer109.
d) Princípio da repartição do dano. Tem seu germe na ideia de Bentham, que »
propôs a indenização do dano pelo seguro ou, caso contrário, a reparação a cargo do
Estado. A este sistema, que resulta no seguro do acidente, não importa a origem do
dano. Daí o inconveniente de, talvez, prejudicar o princípio da prevenção, influin
do para que se relaxem a prudência e a diligência do segurado, sem garantia para
o segurador, porque a ação oblíqua de que dispõe só se poderá exercer em face de
culpa manifesta do autor. Considerando os receios nesse sentido manifestados por
Lundstedt, Marton pondera que se o segurado sabe que o segurador fará todo o pos
sível para recuperar o que pagou a título de reparação, isso bastará, praticamente,
para restabelecer a prevenção abalada110.
e) Princípio do caráter perigoso do ato. Baseia-se na concepção de que o homem
cria para o seu próximo um perigo particular. Marton, que aproveita, reajustando-
-lh.es o valor, todos os dados fornecidos pelos princípios anteriormente expostos,
56
A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
57
José de Aguiar Dias D a R e s p o n s a b il id a d e (
58
: A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
59
José de Aguiar Dias D A R e s p o n s a b il id a d ]
60
6 A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
61
José de Aguiar Dias
D a R e sp o n s a b il id a d !
116 De la responsabilité du fait des choses inanimées, Paris, 1897; Cours de droit positiffrançais. Paris, 1930.
117 Évolutions et actualités, Sirey, Paris, 1936; Revista Forense, vol. 86, p. 548, traduçâo de RaulLima.
>E A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
não pode, logicamente, ser uma era de segurança material. A falta desta acarreta
uma geral aspiração de segurança jurídica. Se não estamos a coberto dos riscos, te
nhamos pelo menos a certeza de que não sofreremos impunemente as conseqüên
cias da atividade alheia. A fórmula viver perigosamente, replicamos com esta outra,
que é a sua sanção: responder pelos nossos atos.
Primeira causa do progresso da responsabilidade civil, constituindo a que os
filósofos chamam razão suficiente, é a um tempo de ordem social e de ordem cientí
fica e mecânica. A seu lado, ou melhor, acima dela, está, porém, uma razão de ordem
individual e moral, expressão do aperfeiçoamento de nossas consciências. Não se
pretende, por aí, negar que só agora se preocupem os juristas com a injustiça e a
desgraça imerecida "Qui casse les verres les paye", diz antigo provérbio francês, que
é o próprio princípio do direito e da sabedoria. E os romanos tinham já emitido este
generoso preceito assegurador do equilíbrio social: neminem laedere. Isso, todavia,
não influi a ponto de impedir que os nossos antepassados considerassem com resig
nação, e até com bom humor, a asserção de Montaigne: "o prejuízo de um é proveito de
outro". Por outro lado, em face do acidente de causa desconhecida, dispunha-se de
cômoda evasiva, o damnumfatale, o act ofGod.
Não é o que sucede em nossos tempos: “temos sede de justiça, isto é, de equilíbrio
jurídico, e, quando acontece um desastre, procuramos logo o responsável: queremos que haja
um responsável; já não aceitamos docilmente os golpes do destino e, sim, pretendemos deter
minar a incidência definitiva. Ou, se quiserem, o acidente já não nos aparece como coisa do
destino, mas como ato, direto ou indireto, do homem. Se a palavra não fosse um pouco forte,
diria com gosto que secularizamos a responsabilidade, que afizemos um caso de pura justiça
humana, para vigorar no quadro de nossa comunidade social, na conformidade do equilíbrio
dos interesses e dos direitos e para satisfação da nossa consciência jurídica [...]".
Tudo isso se processa em menos de meio século, e vencendo toda sorte de di
ficuldades. A doutrina tradicional assentava na velha ideia da culpa, dogma mile-
nário, herdado do direito romano e resistente a todas as transformações políticas,
sociais e econômicas. A vítima de um dano, no domínio dessa teoria, encarava ônus
probatório extremamente pesado, arrostava um handicap desanimador: " Como pode
ria o operário que se feriu durante o trabalho demonstrar a culpa do patrão? Como poderia o
pedestre colhido por um automóvel, em lugar solitário, à noite, provar, na ausência de teste
munhas - supondo-se que tenha sobrevivido ao acidente - que o carro estava de luzes apaga
das e corria com excesso de velocidade? Como poderia o viajante que, durante o trajeto efetu
ado em estradas de ferro, caiu no leito da linha, provar que os empregados da estrada foram
negligentes no fechamento da porta do carro, à partida da última estação ? Impor à vítima ou a
63
José de Aguiar D ia s D a R e sp o n s a b il id a d e
seus herdeiros demonstrações desse gênero é o mesmo que lhes recusar qualquer indenização:
um direito só é efetivo quando sua prática está assegurada; não ter direito e tê-lo sem o poder
exercer são uma coisa só. A teoria tradicional de responsabilidade repousava manifestamente
em bases muito estreitas: cada vez mais se mostrava insuficiente e perempta[...]".
Diversos processos técnicos se ensaiaram, sucessivamente, no sentido de asse
gurar a praticabilidade da responsabilidade civil: a) facilidade na admissão da culpa;
b) estabelecimento ou reconhecimento de presunções de culpa; c) substituição da
noção de culpa pelo conceito de risco, ou seja, transformação da responsabilidade
subjetiva em responsabilidade objetiva; d) eliminação da responsabilidade delitual,
por maior extensão da responsabilidade contratual, favorecendo a situação da víti
ma em relação à prova.
Josserand desdobra, a seguir, essas diferentes soluções. Estava na tradição da
Lei Aquilia, onde bastava a culpa levíssima para gerar responsabilidade, a facilita-
ção da prova. A jurisprudência francesa e a belga não só a mantiveram, mas até a
desenvolveram, como testemunham as teorias do abuso de direito e da culpa negativa.
A teoria do abuso de direito era já antiga, mas foi restabelecida e rejuvenesci
da pela jurisprudência, que lhe imprimiu surto novo e mais importante. Consiste,
essencialmente, no princípio de que o exercício de um direito não é, de nenhum
modo, incompatível com a noção de culpa. A velha máxima neminem laedit qui jure
suo utitur exprime um paralogismo, na aparente feição de uma tirada de bom senso.
Os direitos não nos são concedidos para que façamos uso deles discricionariamente,
para prejudicar a outrem. Quando tal acontece, estão sendo desviados do seu fim e
isso é abuso de direito: "os direitos não nos são concedidos com a garantia dos governos,
mas sem garantia alguma; é a nós que compete usá-los de maneira justa, social, legítima; são
armas cujo manejo é delicado; devemos seguir a regra do jogo; do contrário, incidiremos em
culpa e seremos responsáveis pelos danos porventura causados".
A teoria do abuso de direito é, numa palavra, condensação de outro princípio
romano, erguido em contraposição ao neminem laedit qui jure suo utitur e que vem a
ser o summum jus, summa injuria.
Está consagrada nos Códigos como amplo terreno conquistado à ideia da cul
pa, que não recua mais diante da existência de um direito, mas investe contra o seu
exercício, quando degenera em abuso: a culpa no exercício do direito fez-se noção
prática e corrente.
De caráter nitidamente diverso é a teoria da culpa negativa, que vem a ser a
abstenção ou inércia contrária a dever preestabelecido. Aplica-se extensivamente e
64
5E A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
65
José de Aguiar Dias D a R esp o n sa b il id a d ^
prova de sua origem, que são como que assinados; por sua própria natureza, excluem a culpa, ¡
intervenção ou negligência da vítima. E bastante citar, a título de exemplo, os descarrilamen-
tos e as colisões de trens. O viajante, vítima de urna catástrofe desse gênero, não desempenhou ]
senão um papel passivo; seria irrisório exigir-lhe, ou de seus herdeiros, provas da culpa da '
estrada; o fato danoso éfato culposo; o transportador é presumido em culpa, sendo-lhe ressal
vado provar o caso de força maior; o ônus da prova lhe incumbe integralmente".
Por essa forma, restringe-se cada vez mais o domínio da responsabilidade sem
culpa e se torna ponderável até mesmo um fantasma de culpa.
Diante disso, indaga Josserand se não convém ir mais longe, abandonando essa
noção de culpa, tão desacreditada, para admitir que somos responsáveis, não so- j
mente pelos atos culposos, mas pelos nossos atos, pura e simplesmente, desde que
tenham causado um dano injusto, anormal. O faiseur d'actes deve responder pelas
conseqüências de suas iniciativas. Por essa concepção nova, abstrai-se da ídeia de
culpa: aquele que cria o risco responde, se ele se vem a verificar, pelas conseqüências
lesivas a terceiros. Não comete falta quem, com licença da administração, monta um
estabelecimento incômodo, insalubre, perigoso, ruidoso ou pestilencial. Mas é obri
gado a indenizar os vizinhos prejudicados pelo seu funcionamento.
Josserand se reporta a Saleilles, cuja “visão profética encontrou numerosas consa- i
grações parciais de ordem legislativa": a lei de acidentes no trabalho; a que estabelece
a indenização a terceiros prejudicados com a explosão, deflagração, emanação de
substâncias explosivas, corrosivas, tóxicas, nos estabelecimentos do estado ou priva
dos que trabalhem para a defesa nacional, em tempo de paz; a qLie trata dos danos
resultantes dos delitos praticados por força armada, por violência ou por tropa ou
ajuntamentos; a da responsabilidade das empresas de navegação aérea.
Todas essas leis realizam verdadeira revolução. Afastam-se da ideia de culpa.
Em seu lugar se impõe o princípio do risco: "a força da iniciativa, a ação consideram-se ]
em si mesmas geradoras da responsabilidade".
Finalmente, Josserand estuda o último processo de reação da jurisprudência
contra o sistema tradicional da responsabilidade: a substituição da responsabilidade
delitual pela responsabilidade contratual. Particularmente engenhoso, esse sistema
tira partido da privilegiada situação do credor que exige 0 cumprimento de uma
obrigação. Não lhe cabe demonstrar a culpa do devedor, mas somente a invocação
do contrato. Assim, em matéria de transportes: o transportador é considerado como
tendo assumido a obrigação de conduzir o passageiro em segurança. Se não o faz,
está, ipso f acto, violando o contrato: "é a assimilação jurídica do viajante a um fardo de
66
de A g u ia r D ias Da Responsabilidade Civil
mercadoria, o que pode não ser muito lisonjeiro para o seu amor-próprio, mas que o beneficia
em caso de acidente". Aliás, esse critério está consagrado em diversas legislações.
Não só nos transportes, porém, se recorre a essa técnica. Aos empresários de
diversões públicas e de campo de esporte, aos hoteleiros se aplica a exigência de
garantia absoluta aos espectadores ou hóspedes.
Afirmando o progresso da responsabilidade contratual, conclui Josserand, tal
vez com alguma inquietação, que “é lícito perguntar se, um dia, os tribunais não decla
rarão o médico ou o cirurgião responsáveis contratualmente pelos danos causados aos seus
clientes, por um tratamento contra-indicado, por uma intervenção intempestiva ou infeliz
[...]". Mas a sua expansão é também a da responsabilidade em geral, porque orienta
da no sentido de facilitar a reparação devida à vítima do dano.
67
José de Aguiar Dias D a R e sp o n s a b il id ;
68
Æ A gu ia r D ias Da Responsabilidade Civil
125 G. Marton, Les fondements de la responsabilité civile, 1938, n° 70, nota 6, p. 208.
126 A asserção é infundada. O que seir.pre se pôs em foco, no campo objetivo, foi a insuficiência e não a
desnecessidade da culpa.
69
1
de Aguiar Dias RespqnsabIUDAM
negar a culpa, sob o pretexto de que o patrimônio não pode incidir em erro de
procedimento? A prova da falsidade da concepção objetiva, eles a enxergam em
atitude que classificam de contraditória, porque reconhece a ressarcibilidade do
dano moral, o que, longe de apoiar o ponto de vista materialista, vem demonstrar 1
que o problema exorbita do campo patrimonial e penetra no domínio da pessoa,
de seu pensamento, de seus sentimentos, de suas afeições. Com uma propositada
citação de Hauriou e Ricol, insistem no aspecto materialista da doutrina do risco, |
que, em derradeira análise, é contraposta à teoria tradicional como sombria ame- ;
aça de uma era de conservantismo e de regresso às ideias clássicas, ou como fruto |
das forças obscuras do materialismo.
Os Mazeaud não são menos impiedosos para com os que chegaram à doutri- ;
na do risco através do positivismo penal: "E possível, de certa maneira, compreender
o critério positivista em matéria de responsabilidade penal; ele se justifica pela ideia da
defesa social; a pena tem por fim assegurar a defesa da sociedade contra os criminosos; os :
que a aplicam não têm, portanto, de se preocupar senão com o perigo corrido pela sociedade,
jamais com o grau de culpabilidade do agente. Em matéria civil, porém, não pode existir
semelhante justificação: o dano sofrido por um particular não acarreta nenhum perigo à ]
sociedade"127. Imediatamente ligada a esse ponto está a questão do interesse social.
Na situação em que o colocam os irmãos Mazeaud, a doutrina do risco, quan- |
do o afirma, nega, por via de conseqüência, o valor do indivíduo em si mesmo.
Reconhecem, reportando-se a Capitant, que não é possível considerar o indivíduo
como um ser "abstrato e isolado" (quando acabaram de afirmar que o dano sofrido pelo
particular não acarreta perigo à sociedade) e concordam em encará-lo como "elemento de
uma coletividade"12*. Mas isso não pode significar que só o interesse social é digno
de consideração, relegado a desprezo o interesse individual. Censuram os que pre- :
tendem sacrificar o indivíduo à sociedade, recordando-lhes que ela "se compõe de
seres vivos e ativos" e, assim, "a primeira condição de sua existência é incontestavelmente
garantir a cada indivíduo a esfera de liberdade necessária para o desenvolvimento de sua
127 Mazeaud et Mazeaud, ob. cit„ nQs. 350-351, ps. 419 e segs. É outra afirmação temerária. Basta pensar nas
consequendas de um dano impune sobre o espírito dos que calculam, prudentemente, que amanhã tal
vez ocupem, por sua vez, o lugar da vitima de hoje, consideração utilitária que, se quiséssemos negar
qualquer sentimento de solidariedade ao meio social, seria sufidente para determinar o movimento da
defesa da coletividade em face do dano. E defesa supõe perigo, o perigo de que a próxima vítima seja
o espectador porventura desinteressado da desgraça alheia. O que fazem os eminentes autores, enten
dendo sustentarem, e sinceramente, uma concepção idealista do direito e, pois, da responsabilidade
dvil, é pura e simples apologia do mais aperfeiçoado egoísmo. E o direito não o prestigia.
128 Capitant, Introduction à Vétude du droit civil, 5‘ ed., na 11.
f. A cu ia r D ias Da Responsabilidade Civil
71
José de Aguiar Dias D a R espo n sa b il id a d i
para outro lado "A equidade exige que aquele que retira os proveitos suporte os riscos,
mas exige também que não se inquiete aquele cujo procedimento é irrepreensível". Nesta
ordem de raciocínio, admitem que, do ponto de vista da equidade, a teoria do risco
tenha possibilidades no domínio do direito público. Não há nada de imoral, mes
mo na ausência de culpa, em obrigar à reparação a coletividade pública causadora
do dano por ato de seus agentes. Aqui já não se trata de empobrecer um particular,
mas de um problema de repartição de encargos públicos134.
Consideram, por último, os Mazeaud, o argumento do método histórico.
Segundo este, a distinção entre responsabilidade civil e responsabilidade penal,
cada vez mais precisa, conduz ao resultado inevitável de eliminar a culpa civil. O ar
gumento, sem maior atenção ao fato de que não há razão para acreditar em evolução
jurídica fatal, automática, não pode vingar, uma vez que se recorde que culpa civil e
culpa penal são noções perfeitamente distintas. Para os notáveis autores, pois, o mé
todo histórico se volta contra aqueles que o pretendem utilizar, como, aliás, já opi
navam Planiol et Ripert, classificando a doutrina do risco de “recuo que nos transporta
aos tempos bárbaros, anteriores à Lei Aquilia, quando atendia somente à materialidade dos
fatos. Das regras formuladas por essa lei, fizeram os juristas surgir lentamente, graças a um
longo trabalho de análise, que teria de recomeçar, se a ideia simplista do risco o desfizesse"135.
Rejeitando a alegada evolução, os Mazeaud concentram seu segundo ataque so
bre a pretensa influência do desenvolvimento social e econômico contemporâneo na
regra de direito. As grandes iniciativas se desenvolveram, multiplicam-se os aciden
tes, toma-se cada vez mais necessário atender às vítimas, tudo isto é certo. Mas para
isso não há necessidade de subverter noções que, como a da culpa, resultam de evolu
ção secular. Basta encontrar o meio de saber servir-se delas: "Inteligentemente tomado,
o conceito da culpa satisfaz plenamente. A jurisprudência francesa o demonstrou, conseguindo
atender a todas as necessidades práticas, sem jamais negar a necessidade da culpa"136.
Proclamando vitória sobre a teoria do risco, em face das objeções que lhe
opõem, os Mazeaud têm ainda uma censura a lhe imputar: a de não ter situação ver
dadeira no terreno jurídico. O direito não se contenta com mal definidas noções de
sabor filosófico ou econômico. Quer princípios certos e definidos. Os juizes hão de
saber a que os conduz a aplicação das normas que lhes são propostas. Podem, mais
72
je A g u ia r D ias Da Responsabilidade Civil
137 Mazeaud et Mazeaud, ob. dt., nQ355, p. 370. De duas, uma: ou se reconhece na expressão responsa
bilidade civil o equivalente de reparação do dano, e assim não há nenhum mal em que se considere
' responsável quem agiu sem culpa; ou se conserva ao termo sua significação estrita e, então, o sistema
defendido por Mazeaud et Mazeaud tem de despojar-se dos artifícios com que se arma, para solucio
nar casos como a responsabilidade dos menores, dos anormais, as famosas presunções absolutas, o
reconhecimento dos chamados fantasmas de culpa etc.
73
José de Aguiar Dias D a R esp o n sa b il id a d !
e, se a sua aplicação dá bom resultado, provará que foi um erro abandoná-las. M as:;
nem isso se dá, porque não há assimilação possível entre a concepção bárbara da s
vingança privada e a doutrina do risco. Aquela não tinha a justificá-la nenhum prin- j
cípio de ordem moral. Esta é essencialmente fundada na moral e na equidade, aten-1
dendo ao imperioso clamor em favor das vítimas dos acidentes, multiplicados pela ;
vida moderna, d) Que a ausência de proveito não influi na concepção objetivista e é ;
superficial a objeção a este propósito levantada. Na doutrina do risco, não se alude
a proveito in concreto, mas como finalidade da atividade criadora do risco; este é o
mais provável, não o realizado, e) Que, se se admitir que a teoria do risco não oferece
um princípio definido, igual defeito se pode atribuir à doutrina da culpa. É confis
são comum de todos os seus próprios partidários que a noção da culpa é imprecisa,
vaga e incerta. O que se deve recordar, porém, a este respeito, é que "não há princípio
jurídico, por mais lógico nas suas conclusões, por mais primoroso no seu conceito, por mais
preciso nos seus contornos, que possa abranger todos os casos que pretende regular[...]"13S.
74
de A o uíak D ias Da Responsabilidade Civil
Parece que é tempo de desfazer esses equívocos: nem admitir o Leviatã, nem
reconhecer o indivíduo todo-poderoso espécie de contradictio in adjectou0, porque o
exercício de direito tão vasto haveria de invadir, forçosamente, o círculo do direito
de outro indivíduo, do que resultaria ser tal concepção antiindividualista, antes de
anti-social, pelo menos em relação aos indivíduos atingidos pelo absolutismo do
direito daqueles.
Meditando nisso, hão de concluir os espíritos democráticos que a situação
desejável é a do equilíbrio, onde impere a conciliação entre os direitos do homem
e seus deveres para com os seus semelhantes. O conflito de interesses não é per
manente, como quer fazer crer a doutrina extremista, mas ocasional. E quando
ele ocorra, então, sem nenhuma dúvida, o que há de prevalecer é o interesse da
coletividade. Não hesitamos em consentir na amputação do membro que põe em
risco a nossa vida. Não podemos, por qualquer motivo, permitir que o direito do
indivíduo todo-poderoso atinja, não outro indivíduo, mas toda a coletividade. Na
doutrina do risco, nitidamente democrática, não se chega jamais à conseqüência
de afirmar o princípio, aparentemente individualista, mas, em essência, de sentido
oposto, nitidamente autocrático, de que o direito de um pode prejudicar a outro,
pode ultrapassar as raias da normalidade e fazer do seu titular um pequeno mo
narca absoluto141.
Também não pode ser aceita-nos termos em que é proposta pelos Mazeaud, a
diferença entre culpa civil e culpa penal. O argumento, a que os eminentes autores
parecem emprestar tanto valor, é, na realidade, contraproducente.
Estudaremos, mais adiante, a figura da culpa, mas é conveniente adiantar
algumas considerações sobre o assunto.
Para nós, a culpa é a situação contrária ao que consideramos, recorrendo à
linguagem teológica, o estado de graça, isto é, aquele em que não há possibilida
de de censura, em face da lei moral, da lei positiva ou de quaisquer espécies de
mandamento imposto ao homem, como tal, como membro da sociedade ou como
como a consciência da unidade familiar, nacional e humana [...]" . (A fórmula - Liberdade, igualdade e fra
ternidade, sociologicamente considerada, em Jornal do Comércio, 4 de julho de 1943, p. 4).
140 O individualismo integral nunca existiu (John M. Clark, Social Control of Business, N. Y., 1939,
2* ed., p. 32).
141 Diz Pontes de Miranda, muito a propósito, que: "Se todos têm de per si direitos, se o espaço A pode sei'
preenchido pelo exercício de mais de um direito, é de mister que se regule esta possibilidade de relação entre
direitos" (ob. cit., n9 83, p. 160).
75
José de Aguiar Dias D a R e s p o n s a b ilid a d |
142 A engenhosa criação do bonus paterfamilias, do homem prudente e diligente, do average man, não resiste
a um confronto com o princípio de que parte a teoria da culpa: in lexAquilia et levíssima culpa venit.
143 Revue Trimestrielle de Droit Civil, 1935, p. 65.
144 Marton, ob. cit., na 70, nota 5, p. 212.
76
de A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
77
José de Aguiar Dias
D a R e sp o n s a b iiid a i
147 Essai historique et critique sur le fondement de la responsabilité civile en droitfrançais, tese, Lille, 1921, n8 55.
148 Traité de la responsabilité civile en droit français, prefâdo, XII.
149 Mazeaud et Mazeaud, nQ360, p. 372.
150 Marton, ob. cit., n° 72, nota 2, p. 218.
151 Lalou, La responsabilité civile, n2 1.684, p. 768.
78
pé A g u ia r D ias Da Responsabilidade Civil
79
José de A guiar Dias D a R e s p o n s a b iu d a J
C lá u su la P en a l. A rras P e n it e n c ia is . O u t r o s ca so s d e p r e s u n ç ã o d o p r e ju íz o . 3 9 . P ro va de
4 1 . F ic ç ã o e presu n çã o . A l iç ã o d e A rn o ld o M e d e ir o s .
81
C a p ítu lo IV
A SOLUÇÃO UNITÁRIA DE MARTON
Sumário: 42.
A VIOLAÇÃO DA OBRIGAÇÃO PREEXISTENTE É A FONTE DA RESPONSABILIDADE. 43. A RESPONSABILIDADE
POR FATO DE OUTREM E SUA CONCILIAÇÃO COM O SISTEMA. 44. EFEITO S DA RESPONSABILIDADE. A
IDEIA DA PREVENÇÃO. 45. FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL: a ) PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO
B) PRINCÍPIOS ACESSÓRIOS DE CARÁTER ECONÔMICO-POLÍTICO. 46. C R ÍTIC A DA DOUTRINA DE M ARTO N .
O PRINCÍPIO DA RESTITUIÇÃO. 47. A INFLUÊNCIA DA EQUIDADE. 48. SENTIDO DE CONSERVAÇÃO DA
IDEIA DA CULPA. 49. CONVERGÊNCIA DAS DIVERSAS CORRENTES AO FIM COMUM DE ASSEGURAR JUSTIÇA
AO PREJUDICADO.
176 Marton, ob. cit., nQ84, p. 84. Sua definição tem os melhores fundamentos. Esse caráter objetivo
da responsabilidade é posto em relevo por uma verdadeira legião de bons autores: Venezian: "O
conceito de responsabilidade [...] corresponde ao de obrigação derivada do ilícito". Sertilianges: "Onde não
houvesse normas, não haveria responsabilidade, porque não se teria de responder a questão impossível de
formular". Fauconnet: "É responsável aquele a quem a condenação deve ferir". Savatier: "[...] a responsa
bilidade civil deve definir-se como a obrigação de tomar a nosso cargo as conseqüências de nossa atitude".
Dabin: "responsabilidade se entendem [...] as sanções consecutivas à transgressão". Kelsen: "Quando se
diz que uma pessoa responde, isso significa que, mediante certos fatos, uma sanção foi estabelecida contra
ela" (apud Marton, ob. e loc. cits., nota 1).
95
José de Aguiar Dias D a R e sp o n s a b il id a d
-porque a simples vontade das partes, se não as tomasse a lei sob proteção, não poderia ter essa
força"177.
Estabelecido o primeiro elemento, temos o segundo, aquele intimamente liga
do: é a violação do dever preexistente. Neste segundo elemento é que o estado de
responsabilidade se distingue do estado de simples obrigação: "O estado de responsa
bilidade não é senão o estado sobrevindo em conseqüência da inexecução da obrigação, dando
lugar à aplicação de sanções"17*.
96
Da Responsabilidade Civil
falta qualquer sentido. Mostra-o Marton, lembrando que aquele que responde como
garante o faz em virtude de sua própria obrigação, como qualquer outro devedor"*1.
97
si
de Aguiar Dias
D a R e spo n sa b il id a d I
c iv illss, censura que endereça ao próprio Rümelin186, porque, apesar de tudo, não •
fez da prevenção o seu princípio capital187. Em compensação, sua convicção é ex- J
posta com pleno desassombro: "[...] a prevenção é o primeiro princípio não somente da
repressão penal, mas também da repressão civil. Pena e reparação, profundamente diferen- ,]
tes na estrutura interna, são, sem embargos, meios iguais da mesma política legislativa; J
servem, como disse muito bem Von Liszt, em derradeira análise, ao mesmo fim social, a 1
defesa da ordem jurídica, lutando contra a injustiça"m . A culpa não é elemento indis- I
pensável da ideia de prevenção, que exige, contudo, o laço de causalidade entre o ]
dano e o responsável189, e fica sujeita a limitações: a força maior (limite natural) e j
a causa estranha (limite jurídico), o que é facilmente compreensível, porque exigir
prevenção em relação a fatos que ninguém pode prever seria exigência absurda190;
b) ao lado da prevenção, Marton coloca motivos auxiliares ou princípi
acessórios da responsabilidade civil, de caráter econômico-político: 1) princípio i
do interesse ativo, em dupla função: a positiva, adequada a criar ou aumentar a í
responsabilidade, pela consideração de que, na maioria dos casos em que o pro
blema da responsabilidade se apresenta, é o resultado de uma atividade exercida jj
185 Com efeito, não é bem assim. O elemento prevenção foi muitas vezes assinalado na responsabilidade
dvil e até, por certos autores, com grande força. O que deixaram de fazer, e Marton realizou, foi
destacá-lo como prindpio fundamental. Nesse caráter, na verdade, ele não se encontra em nenhum
dos autores, que, entretanto, algumas vezes, com acentuado vigor, lhe denundaram a presença na
origem da responsabilidade dvil. Cf. a este respeito Demogue, ob. d t, n2 317; Dabin, ob. dt., n2 524;
Teisseire, ob. cit, p. 312. Marton, aliás, se refere a esses autores, sem reconhecer, entretanto, que só
lhes faltou admitir francamente a prevenção como fundamento essendal e não como simples ele
mento da responsabilidade dvil.
186 Gustave Rümelin admite a prevenção, em seu sistema, como o prindpio diretor da responsabilidade
dvil; no seu Culpahaftung und Causahaftung, o ideal do legislador não é o homem prudente, o bom pai
de família, mas o homem que de um relance calcula as possibilidades. Essa atitude que a lei indica,
fazendo com que o agente responda pelo resultado de procedimento contrário a ela (apud Marton,
ob. d t, n9 66, p. 178 e segs).
187 Marton, ob. d t, n2 108, p. 344 e segs.
188 Marton, ob. d t, n2109, p. 363.
189 Marton, ob. d t, n2 110, p. 357.
190 Marton, ob. d t, n2 112, p. 362.
191 Marton, ob. d t, n2s. 114-115, ps. 366 e segs.
Da Responsabilidade Civil
um meio de reparar que cause maior dano do que o que quer remediar. O summum
jus, summa injuria é o preceito a que aqui se atende, influindo nas particularidades
do problema. Delas, assume grande relevo a situação econômica das partes192; 3)
principio da repartição dos danos, "exigência econômica em virtude da qual o
dano, para ser suportado facilmente, deve, de acordo com planos metódicos, ser
repartido entre os interessados[...]''193.
A prevenção é também exigência económico-política. Marton, porém, sem
deixar de o assinalar, explica por que enxerga diferença entre o seu princípio es
sencial e esses acessórios. E que, para ele, a prevenção é "uma tendência, uma ati
vidade do Estado, de caráter universal, desenvolvida com a finalidade de manter a ordem
pública... E a ideia da prevenção que luta pela existência da sociedade [...]", não contendo
os outros princípios senão meios de regular, moderar ou modificar a tática dessa
luta (ob. cit., ne 113, p. 365).
Herotides da Silva Lima entende também que o fundamento da responsabi
lidade civil é quase o mesmo da responsabilidade penal: "a proteção da integridade
física, do direito à saúde e à incolumidade do corpo, da classe desses direitos elementares e
irredutíveis das coletividades civilizadas, sobre os quais as leis e as próprias Constituições
dos Estados fortes, como o nosso, o alemão e o italiano, ocuparam-se, de expresso, com a
maior solicitude e oportunidade". O douto magistrado paulista ainda acha ensejo,
pouco adiante, para classificar de românticos (como se ao jurista ficasse mal ser
idealista) os elaboradores da Constituição de 1891 (Revista dos Tribunais, vol. 139,
ps. 8 e segs.). Já temos, aliás, ouvido mais de uma vez, a suposta ironia de classificar
como românticos os autores da Constituição de 1891. A censura lhes foi uma vez
endereçada precisamente com base em haverem condenado a guerra de conquista.
Mas isso não espanta, pois sempre se observa que os censores ou são ignorantes
ou desafetos da norma jurídica. Proferida por um jurista do valor do magistrado
paulista, entristece, porque parte de autoridade. Se é certo que o fundamento da
responsabilidade civil é quase o mesmo da responsabilidade penal, duvidamos,
data venia, de que a proteção aos direitos elementares seja uma preocupação dos
chamados Estados fortes, máxime se, por aí, se pretende estabelecer um contraste
desprimoroso para as democracias.
Nossa convicção irredutível é, pois, que a responsabilidade civil, no seu
magnífico padrão moral, é conquista nitidamente democrática. Sem embargo dos
99
José de Aguiar Dias D a R e sp o n sa b iu d a í
194 Marton, ob. dt., na 118, p. 381. Este princípio foi erradamente tomado como consagrador da justiça
de Salomão, dizendo-se que esta não pode ser tomada como modelo de justiça. Marton refuta com
muita felicidade essa objeção irônica, discreteando sobre o que pode significar justiça de Salomão.
Se com isso se quer referir uma justiça que corta as dificuldades dividindo cegamente, por sistema, o
direito em litígio, ela é a negação da justiça. Mas se visa à justiça em que, em lugar de se entrinchei
rar em noções antiquadas, o julgador procura aproximar a justiça humana no texto, então não pode
haver melhor forma de justiça (ob. cit, n2 122, p. 396).
100
oe-A g u ia r D ias Da Responsabilidade Civil
195 Com efeito, prevenção, ação ou efeito de prevenir é o aviso prévio, a precaução, a informação an
tecipada, a disposição preparatória, ação de obstar ou impedir. De todas essas acepções, nenhuma
alcança sentido mais amplo que o de simples intimidação.
196 Marton, ob. cit., n9113, p. 365.
101
José de Aguiar Dias DA R eS P O Ñ sab iu d I
197 Deve ser tido em conta que essa opinião não importa a presunção de que tal problema fique, por
aí, definitivamente resolvido. Como já tivemos ocasião de dizer, animado à autoridade de Pontes |
de Miranda, a responsabilidade civil se fundamenta conforme a época, variando com a concepção
sociológica dominante. Mas é nossa convicção - e já a repetimos algumas vezes - que a responsabi
lidade civil, em qualquer tempo, tende a conservar o equilíbrio sodal estabeleddo. Exatamente por •
isso é que, aceitando o sistema de Marton, quisemos ressalvar o valor fundamental que atribuímos à
reconstituição do statu quo como preocupação determinante da responsabilidade dvil.
Obra de profundo valor, aparedda simultaneamente à I a edição deste livro, ensina: "A responsabilida- ■ ;
de se justifica por si mesma[...]. o que a lei tem em vista ao estabelecê-la é a reparação dos danos" (M. Gomes -
da Silva, O dever de prestar e o dever de indenizar, Lisboa, 1944, p. 243, passim).
198 Petrazycki, apud Marton, ob. dt., n2 117, nota 2, p. 379.
199 Em sessão da "Sodété de Legislation Comparée", cf. Bulletin, 1934, ps. 199 e segs., apud Marton, ob.
cit., n2 67, nota 1, p. 183, e n2 120, p. 385. Em compensação, Dabin sustenta que nenhum assunto é
tão fecundo em aplicação dos deveres de equidade como o da reparação de danos (La philosophie de
Vordre jundique positif, p. 529).
102
u a Kesponsaoiaãaae l ,m i
letra, mas ao seu espírito,200 o que não é senão a prevenção ao julgador contra o risco
do summum jus, summa injuria.
Sem dúvida que há empenho, e irredutível, na segurança da jurisdição. Mas
esse empenho, encarado de critério absolutista, leva à denegação de justiça e não
pode haver jurista que considere prestigiada uma lei que, aplicada ad unguem, re
sulte em fonte deiniquidade. Há, decerto, um choque indisfarçável entre a preocu
pação de assegurar o direito e a tendência para melhorá-lo, forjando a sua instabili
dade. E a missão do jurista é exatamente conciliar as duas tendências, sacrificando
ao mínimo a ordem jurídica estabelecida, no interesse da justiça material201, sem
permitir, contudo, que, por amor exagerado à forma em que aquela se encerra, falte
precisamente à finalidade que toda ordem jurídica deve objetivar. Ademais, como
adverte Marton, respondendo vantajosamente aos que censuram o critério referi
do, "o sistema de responsabilidade agudo e sensível exigido pelo serviço da justiça
material jamais poderá funcionar adequadamente sem o magistrado de senso moral
elevado, com perfeita compreensão das necessidades sociais. Aquele que não con-
sinta em dar essa liberdade ao juiz deve, por isso mesmo, renunciar à perfeição do
sistema de responsabilidadef...]"202.
Identifica-se, ainda, outra causa da desconfiança com que a equidade é enca
rada por certos autores: a concepção errônea que dela fazem, considerando-a como
licença para a intervenção, no julgamento do juiz, de considerações sentimentais, ao
sabor dos mais extravagantes caprichos. Longe disso, a equidade é inseparável do
bom direito, como já o fazia ver a definição de Celso: jus est ars boni et aequo. As
necessidades da vida social e econômica, em perpétuo movimento, diz Morin, esta
belecem, pela observação dos fatos, essa "parte contingente do direito superior às leis e
aos contratos", que hoje se afirma na “ideia social da proteção dos fracos, do público ante
as grandes companhias, do operário em face do patrão, de todos os deserdados contra os riscos
da vida, da criança no seio da família"203.
Ora, a equidade que influi no julgamento não é essa energia desordenada, mas
força disciplinada, que os demais princípios que compõem o sistema condicionam e
200 Alei não é mais um imperativo despótico para o juiz, diz Morin (ob. dt., p. 163), que deve corrigi-la
e completá-la, para harmonizar o direito com as necessidades da vida e as exigências da justiça.
201 Precisamente como sempre disse o grande juiz José Antônio Nogueira: o fiat justitia, floreat mundus
deve substituir o bárbaro fiat justitia, pereat mundus, axioma que, a justo título, se considera mais
próximo da justiça de Shylock que da justiça de Cristo (Marton, ob. cit., n° 129, p. 410).
202 Marton, ob. dt., na 110, ps. 385 e segs.
203 Morin, ob. dt., p. 163.
103
a
José de Aguiar Dios D a R espo n sa b
limitam, além de que não entra a funcionar senão em presença da causalidade. Esta,
aliás, regula também esses princípios, pois não é qualquer interesse que provoca a
responsabilidade, mas o interesse causai, assim como não é entre a coletividade que
o dano deve ser repartido, mas entre as pessoas que se viram envolvidas no fato, por
um laço de causalidade mais ou menos estreito204.
desde a culpa até o risco criado206 como casos de alteração do equilíbrio que se deseja ;
preservar e cuja manutenção é a função essencial da responsabilidade civil, como já
vimos. Não há que duvidar, outrossim, da aplicabilidade do sistema à responsabili- I
dade contratual. A identidade fundamental entre os dois aspectos, cuja discrimina
ção se conserva, por motivos de método, já não é hoje objeto de controvérsia.
104
A g u ia r D ias Da Responsabilidade Civil
207 Orozimbo Nonato, “Reparação do dano causado por pessoa privada de discernimento", na Revista
Forense, voi. 83, ps. 371 e segs.
105
José de Aguiar Dias D a R espon sabilid ad *
Seção Preliminar
P r in c íp io s C o m u n s a t o d o s o s C a s o s d e R e s p o n s a b ilid a d e C i v i l
208 As cauções prestadas para garantir o dano eventual serão exceção a esta regra? Lalou sustenta a
afirmativa, em face da legislação minerária francesa, que contém dispositivos que estabelecem para
o pesquisador ou explorador da jazida, em caso de trabalhos que possam afetar a estabilidade das
habitações, a obrigação de dar caução do dano futuro [La responsabilité civile, ne 139, p. 75). Temos
dúvida em aceitar essa conclusão, porque à eventualidade do dano corresponde a eventualidade da
responsabilidade, isto é, se aquele não é certo, esta também não o é, tanto que a caução, se o dano
não se verifica, volta às mãos de quem a presta. Parece-nos que o caso é mais de garantia, de favore-
dmento ao possível prejudicado - sujeito, em outras condições, aos azares de uma demanda, em que
teria de enfrentar um contendor capaz de defender-se amplamente - do que de reconhecimento de
uma responsabilidade em face do dano incerto, até porque o beneficiário não a recolhe, como seria,
normalmente, a conseqüência daí resultante, se de fato se tratasse de responsabilidade concretizada.
209 Causalidade é o que se exige e não mera coincidência entre o dano e o procedimento do imputado
responsável.
210 Lalou, ob. cit., n2 134, p. 73. Assim acontece porqLie as autorizações administrativas são concedi
das em termos de regulamentos que, indicando tão-somente o mínimo de precauções a exigir, não
podem, naturalmente, prever todos os casos particulares. A licença para conduzir, por exemplo, é
dada após a verificação das condições mínimas de prevenção contra o perigo daí resultante. Se o
dano ocorre ainda assim, revela que essas precauções não bastavam. As medidas judiciais tampouco
eximem da responsabilidade aquele que as utiliza, v.g., no caso de abuso do direito de demandar (cf.
Lalou, ob. d t, n9s. 371-393, ps. 211 e segs.).
107
C a p ít u l o I
O DOLO E A CULPA
S u m a r io :
51. N o ç ã o d e c u lp a . E r r o e c u lp a , a l i ç ã o d e A n d r é T u n c . 52. D i s t i n ç ã o e n t r e d o l o e c u lp a .
53. A c o n c e p ç ã o d e C h ir o n i s o b r e a u n id a d e d a c u lp a . 54. D e f i n i ç ã o d e c u lp a : S a v a t ie r ,
LaLOU, OS AUTORES FRANCESES, ITALIANOS E ALEMÃF.S. 55. A CRÍTICA DE MAZEAUD ET MAZEAUD ÀS
d e fin iç õ e s c o n h e c id a s . 56. D e fi n i ç õ e s im p r e c is a s : i l i c i t u d e e im p u t a b ilid a d e . 57. A con cepção
de M azeau d e t M azeau d . 58. C r ít ic a d o seu s is te m a . A o p i n i ã o d e A l v i n o L im a . 59. C u lp a
g e n é r i c a : d o l o e c u l p a p r o p r i a m e n t e d i t a , i m p r u d ê n c i a , IMPERÍC1A. 60. A c u lp a n o s is te m a d o
C ó d ig o C iv il b r a s il e i r o .
211 G. P. Chìroni, La colpa nel diritto civile odierno. Colpa extracontrattuale, voi. I, 2- ed., Turim, 1903, ne 11,
p. 38
ü r-
109
José de Aguiar Dias
D a R espon sa 3 iu
652
T ítu lo V
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Capítulo I
TEORIAS. CRÍTICAS. DOUTRINA DO RISCO ADMINISTRATIVO
S u m á r io :
| 192. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO É MATÉRIA DE DIREITO ADMINISTRATIVO. REJEIÇÃO
UNIVERSAL DA IRRESPONSABILIDADE DO ESTADO. O s SISTEMAS INGLÊS E NORTE-AMERICANO. 1 9 3 . CRÍTICA
DAS DOUTRINAS DE IRRESPONSABILIDADE DO ESTADO: PAUL D u EZ, ÁM ARO CAVALCANTI, GUIMARÃES
M e n e g a le . 19 4 . O a r t . 15 d o C ó d ig o C iv il d e 1 9 1 6 , a t u a l a r t . 4 3 d o C ó d i g o C iv i l d f 2 0 0 2 , s
su a i n t e r p r e t a ç ã o . A r t i f i c io s id a d e d a s o l u ç ã o s u b ie tiv a . F a l t a p e s s o a l e f a l t a d o s e r v iç o :
| d e lim it a ç ã o d o c a m p o d a r e s p o n s a b ilid a d e p e s s o a l d o a g e n t e . D e t in iç ã o d e " a g e n te " . 195. A
q u e s t ã o d a s o l i d a r i e d a d e . O d / re/ to d e r e g r e s s o d o E s t a d o e o " Q u a n t u m " s o b r e q u e s e e x e r c e .
196. E v o l u ç ã o d a id e ia d a r e s p o n s a b ilid a d e d o E s t a d o . A l i ç ã o d e D u ez. Os e x p e d ie n te s da
ju r is p r u d ê n c ia . 197. A d o u t r in a d a c u lp a a d m in is t r a t iv a . A t e o r ia d o r i s c o a d m in is t r a tiv o .
V o to s d o s M in is t r o s O r o z im b o N o n a t o e F il a d e l f o A z e v ed o . 198. J u s t i f ic a ç ã o p r á t ic a d a
d o u t r in a d o r i s c o a d m in is t r a t iv o . 2 0 0 . F ó r m u la d o u t r i n á r i a a q u f. t e n d e a r e s p o n s a b ilid a d e ,
c iv il d o E s ta d o .
901 Nota do atualizador - Gustavo Teppedino advoga posição diametralmente oposta, sustentando que
os que enquadram a responsabilidade do Estado no âmbito do direito administrativo assim o fazem
por "mero equívoco metodológico, que reduz gradcitivamente a amplitude temática do direito civil". Com
todo o respeito que devotamos ao ilustre professor, não pensamos dessa forma, preferindo a lição de
Celso Antônio Bandeira de Mello, que assim justifica a "originalidade da responsabilidade pública":
"Um dos pilares do moderno Direito Constitucional é, exatamente, a sujeição de todas as pessoas, púlicas ou
privadas, ao quadro da ordem jurídica, de tal sorte que a lesão aos bens jurídicos de terceiros engendra para o
autor do dano a obrigação de repará-lo.
José de Aguiar Días Da R eshW S I
___________________________________________________________
Sem embargo, a responsabilidade do Estado governa-se por princípios próprios, compatíveis com a peculiarida- - ■
de de sua posição jurídica, e, por isso, é mais extensa que a responsabilidade que pode calhar às pessoas privadas.
As funções estatais rendem ensejo à produção de danos mais intensos que os suscetíveis de serem gerados pelos
particulares. As condições em que podem ocasioná-los também são distintas.
Com efeito: seja porque os deveres públicos do Estado o colocam permanentemente na posição de obrigado a
prestações multifárias das quais não se pode furtar, pena de ofender o Direito ou omitir-se em sua missão pró
pria, seja porque dispõe do uso normal de força, seja porque seu contato unímodo e constante com os adminis
trados lhe propina acaretar prejuízos em escala macroscópica, o certo e que a responsabilidade estatal por danos -
há de possuir fisionomia própria, que reflita a singularidade de sua posição jurídica. Sem isto, o acobertamenio ||
dos particulares contra os riscos da ação pública seria irrisório e por inteiro isuficiente para resguardo de seus
insteresses e bens jurídicos.
Ademais, impende observar que os administrados não têm como se evadir ou sequer minimizar os perigos de
dano provenientes da ação do Estado, ao contrário do que sucede nas relações provadas. Deveras: é o próprio ¿
Poder Público quem dita os termos de sua presença no seio da coletividade e é ele quem estabelece o teor ea
intensidade do seu relacionamento com os membros do corpo social" - Ob. dt. ps. 879/880.
654
LaoüiarDias Da Responsabilidade
9005 n. 2712, que entrou em vigor em 1° de outubro de 2005, estão promovendo mo
dificações nessa lei, com o objetivo de revogar privilégios da Coroa, especialmente
em matéria processual, contida na Parte II da lei.
Como recorda Lord Hope of Craighead, num julgamento ocorrido na House of
Lord s em 13 de fevereiro de 2003 (Matthews v. Ministry o f Defence), "There is no doubt
¡jiat the Crown Proceedings Act 1947 was designed to make new law. Until the coming mto
force of that Act the Crown had been protected from liability by two rules which were deeply
rooted in English law. These were the rule o f substantive law that the King could do no
wrong, and the procedural rule that the King could not be sued in his ozon courts. The pro
duct of these rules was not only that the Crown could not be sued in respect o f wrongs which
¡t had expressly authorised but that it was also immune from liability in respect o f wrongs
committed by Crown servants in the course of their employment".
Entretanto, o sistema inglês ainda não é idêntico ao dos demais países em que
se reconhece a responsabilidade da Administração por ato de seus agentes. Há, ain
da, algumas imunidades e uma série de dificuldades procedimentais às ações contra
os funcionários.
Não falta, entretanto, quem sustente as vantagens do regime atual. Argumenta-
se que o júri será mais benevolente em relação ao autor, se a ação for dirigida dire
tamente contra o Estado. Ora, isso prejudica o interesse público em maior escala, do
que as ameaças que as restrições do sistema vigente representam para o interesse
privado. Por outro lado, o sistema da irresponsabilidade do Estado, aumentando
a responsabilidade do funcionário, toma-o muito mais prudente e reservado902. A
estes argumentos responde-se com vantagem que: "A responsabilidade pessoal dos fun
cionários será sempre ilusória e, então, é necessário que a coletividade suporte e indenize os
danos cometidos por seus governantes. Assim se assegurará também o progresso político do
país, porque sabendo o eleitor que os erros ou as faltas dos que o governam se traduzirão em
encargos que ele próprio há de suportar, será mais cuidadoso na eleição dos seus candidatos
e tomará mais zelo do que toma na atualidade nas questões políticas ou administrativas que
interessem à marcha da Nação"903.
E verdade, como assinala Bullrich, que as nações como a Inglaterra e os Estados
Unidos têm religioso respeito pelas instituições e pelos seus semelhantes, isto é, pela
liberdade, o que não se observa nos países em período de evolução, carentes de
902 Beryadal Keath, "By and agains the Crown", no Journal o f Comparative Legislation and International
Law, 35 série, vol. 10, ps. 4 e segs.
903 Rodolfo Bullrich, La responsabilidad del Estado, Buenos Aires, 1920, p. 7, Introdução.
José de Aguiar Dias Da R e s p o n s a b i i ir,
656
¡ ¿ guiak D ias Da Responsabilidade Civil
D e T e p e d in o , o c o n f r o n t o d ir e t o r e l a t i v a m e n t e a o a r g u m e n t o p o s t o :
" Argumenta-se [...] que “a omissão pode ser uma condição para que outro evento cause
o dano, mas ela mesma (omissão) não pode produzir o efeito danoso. A omissão poderá ter
condicionado sua ocorrência, mas não o causou". Daqui decorreria que, "no caso de com
portamento omissivo, a responsabilidade do Estado é subjetiva, atraindo a teoria da culpa '
anônima ou falta de serviço".
O argumento impressiona por sua argúcia, mas não colhe. Não é dado ao intérprete res- 5
tringir onde o legislador não restringiu, sobretudo em se tratando do legislador constituinte
[...]. A Constituição federal, ao introduzir a responsabiliade objetiva para os atos da adminis
tração pública, altera inteiramente a dogmática da responsabilidade neste campo, com base
em outros princípios axiológicos e normativos (dentre os quais se destacam o da isonomia e o
da justiça distributiva), perdendo imediatamente base de validade o art. 15 (do Código Civil
de 1916, atual art. i3 do Código Civil de 2002), que se torna, assim, revogado, ou, mais tec
nicamente, não recepcionado pelo sistema constitucional"911.
910 Almiro do Couto e Silva, A Responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro, Revista
de Direito Administrativo, n. 202, out./dez., 1995, apud Danielle Armoni, A Responsabiliade do
Estado pela demora na prestação jurisdidonal, ps. 46/47.
911 Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, Renovar, Rio de Janeiro, 2a edição atualizada, ps. 190-191.
658
.(¿AfflliAR Dias Da Responsabilidade Civil
912 Nota do atualizador - Praça-de pré é o soldado raso, o de menor patente na hierarquia militar.
659
Jo sé de Aguiar Dias D a R espo n s ,
contribuído de algum modo para a prática do ato danoso, ainda que simplesmente lhe pro_
porcionando a oportunidade para o comportamento ilícito, responde o Estado pela obrigação
ressarcitória. Não se faz mister, portanto, que o exercício da função constitua a causa eficiente
do evento danoso; basta que ela ministre a ocasião para praticar-se o ato"913.
A artifiriosidade da teoria da culpa como fundamento único da responsabilida
de civil se mostrava também aqui, já que não era possível falar em culpa do Estado;
Agora, está claro que o Estado responde, isto é, fica estabelecido o seu dever de re
parar, sem se indagar se agiu levianamente na escolha ou se não exerceu a necessária 1
vigilância sobre o agente. Mais: não altera a questão o fato de provar o Estado que o
agente foi nomeado após rigorosíssimo concurso de provas e que, submetido a um
chefe exigente, não se descuidou a Administração um só momento da vigilância que
devia exercer e que o fato só ocorreu no campo estreito da indispensável autonomia
em que atua o homem.
Contra o entendimento dominante a respeito do artigo 15 do Código Civil de
1916, atual art. 43 do Código Civil de 2002, julgou-se possível sustentar que, ao im
por que o agente agisse nessa qualidade, o dispositivo estabelecia que o Estado só
responderia quando aquele não exorbitasse de suas funções. Ora, o agente se consi
dera como exercendo, em representação, e no setor a ele designado, as funções que
o Estado exerceria, se não fosse pessoa moral e se fosse capaz de estar, a um tempo,
em todas as atribuições em que se faz representar. Assim, a locução nessa qualidade '
nada quer expressar senão essa situação, em que o Estado atua, por intermédio do
agente, a quem, certamente, fica livre certa margem onde manifestar sua condição
de criatura humana, sujeita a contingências que possibilitam o ato abusivo. E o que
esclarece Menegale, quando, depois de caracterizar a qualidade de representante,
lhe delimita o campo de ação: "[...] o ato danoso de um indivíduo que usurpou o poder
é ato ilegal, pelo qual o Estado, em tese, não responde. E ato jurídico inexistente, consoan
te a teoria moderna do direito administrativo que, de resto, a faz derivar do direito civil.
Ordinariamente, distingüem-se nos atos dos funcionários públicos aqueles que são praticados
em razão de sua condição humana, sob a influência de sentimentos, ambições, ou paixões
pessoais, capazes de os animarem em qualquer situação, independentemente, portanto, de
sua qualidade de funcionários; e os que, mesmo se misturados de impulsos íntimos, eles pra
ticarem necessariamente na situação de serviço, em relação de dependência com as funções
913 Aut. e ob. citados, p. 244. Nota do atualizador - À essa lição só acrescentamos que o agente não obri
ga o Estado apenas pela prática de atos ilícitos, mas também pelos atos lícitos praticados, desde que,
especiais e anormais, sejam danosos ao particular.
660
yjfeUIAR Dias £>a Responsabilidade Civil
I
Jy
f • qu e exerce. Com esse critério, não se dirá que, em dada hipótese, o Estado não é responsá-
. - vel pelo ato de seu funcionário porque exorbitou, desde que o ato é inerente à qualidade de
; representante"91i.
O ensinamento de Menegale é prestigiado pelos melhores autores, que reco-
■: nhecem a necessidade da distinção, nos quadros da doutrina subjetiva clássica. Jèze
oferece, com base na jurisprudência francesa, indicações para identificação da falta
pessoal, que, segando sua classificação, ocorre: a) quando revela intenção má; b)
quando há violação de uma lei penal, constituindo culpa delitual grave; c) quando,
■embora não delitual, a culpa do funcionário excede os riscos ordinários da função,
; implica erro grosseiro na apreciação dos fatos ou da extensão dos seus poderes915.
Barthélemy observa que a circunstância de praticar o funcionário ato culposo
em obediência a ordem do superior hierárquico influi na falta pessoal, acarretando,
por vezes, a sua assimilação à falta do serviço, solução em que a jurisprudência leva
em conta o grau de subordinação e de inteligência e instrução do subalterno916.
A caracterização exata encontra-se ainda em Menegale-. "Caracteriza-se a falta
pessoal quando o ato do funcionário não se pode confundir com a execução, mesmo irregular,
de um ato de função. Logo, se o ato, mesmo ilícito, é inerente à função, a falta é do serviço"917.
Da concepção da responsabilidade do Estado por ato de seus agentes surge,
naturalmente, a noção da responsabilidade do agente. E o que recordam os autores:
"A responsabilidade do funcionário público é o substractum da responsabilidade do Estado;
onde, de fato, não houver responsabilidade direta do funcionário, não pode haver responsabi
lidade indireta do Estado"91s.
Convém que se esclareça a extensão que se dava ao vocábulo "funcionário",
que não difere da que hoje damos ao vocábulo "agente". Nota Lalou919 que a expres
são é vaga, variando segundo a matéria com que se relacione. O que se deve ter em
914 Ob. d t , p. 359. Não pretendemos, ao insistir pela responsabilidade do Estado, disfarçar ou atenuar
a responsabilidade do agente, convém advertir. Só o seu estabelecimento pode “[...] evitar o abuso de
poder da burocracia e assegurar garantias efetivas aos cidadãos. Não é lícito dizer que se vive em um Estado
de direito, se não se consegue fazer efetiva a responsabilidade do funcionário" (Gascon y Marin, Tratado de
Derecho Administrativo, 1928,1.1, p. 324).
915 Revue de Droit Publique, 1909, p. 263.
916 L'influence de L'ordre hiérarchique sur la responsabilité des agentes, em Revue de Droit Public, 1914, p. 537.
Cf. Duez, ob. Cit, p. 154.
917 Ob. d t p. 361. Exemplifica, recorrendo a Barthélemy: “Um professor é acusado de haver proferido em aula
expressões obscenas e ultrajes ao Exército: faltas pessoais. Ele ensina que dois e dois são cinco: falta ao serviço"
(ob. d t loc. Cit.). Cf. Watkins, The State as a party litigant, ps. 109 e segs.
918 Menegale, ob. dt., p. 360, apoiado em Sabatini.
919 Ob. d t, n9 1.390, p. 659.
661
Jo sé de Agí liar Dias D a R esponse
662
¡¡guiAR D ws Da Responsabilidade Civil
663
Jo s é de Aguiar Dios Da R e s P O N « *
664
||j$.GUlAR D ias JJa Responsabilidade Civil
privado, como porque legislavam em tempos onde ainda estava em pleno vigor o
dogma da irresponsabilidade do Estado. 35) Errado conceito sobre a natureza jurí
dica das relações existentes entre a administração pública e seus agentes. O Estado,
na verdade, não está para o funcionário assim como o preponente para o preposto, o
patrão para o empregado. Não seria acertado compreender as relações do funcioná
rio com o Estado como contratuais, e hoje ninguém mais incorre em tal equívoco927.
A teoria da falta do serviço público, elaborada na França pelo Conselho de
Estado como concepção autônoma, se caracteriza, segundo o insigne Paul Duez,
pelos seguintes pontos essenciais: l 9) A responsabilidade do serviço público é uma
i responsabilidade primária. A administração não é declarada responsável em con
seqüência do jogo dos dados preponente-preposto, patrão-empregado etc., mas
absorve a penalidade do agente, que se toma simples peça na empresa adminis
trativa, em cujo corpo se funde. 2a) A falta do serviço público não depende de falta
do agente. E suficiente estabelecer a má condição do serviço, o funcionamento
defeituoso, a que se possa atribuir o dano. Aplicação típica desse critério é uma
célebre decisão do Conselho de Estado, tomada a 3 de fevereiro de 1911. Um in
divíduo de nome Anguet se apresentou em uma agência postal alguns minutos
antes do fechamento, de forma que este se deu quando ele se encontrava ainda aí.
Terminado o serviço que o trouxera à agência e procurando sair, foi convidado a
retirar-se pela sala de triagem. Aí ocorreu um incidente entre ele e dois carteiros,
que o expulsaram violentamente, daí resultando um movimento infeliz, em que
fraturou uma perna. Houve ação contra o Estado, proposta pelo prejudicado. De
acordo com o critério civilista, sendo manifesta a culpa dos carteiros (aliás conde
nados penalmente pelas lesões infligidas ao autor), o juiz teria baseado a respon
sabilidade do Estado nesse fato de seus agentes. Não foi o que fez o Conselho de
665
Estado: estabeleceu a existencia da falta do serviço público, demonstrando o Sea
mau funcionamento e apontando as faltas anónimas que o revelavam. Verifico!
que alguém, para apressar a hora do fechamento, adiantou o relógio da repartição
coisa que não poderia suceder em serviço bem organizado. Assinalou a existénn?
de um ressalto na porta, causa imediata do acidente. Ora, numa agencia mate
rialmente bem aparelhada, tal defeito não deveria apresentar-se. Portanto, havia
falta do serviço, sem indagar quem teria adiantado o relógio, quem ordenara o
estabelecimento do ressalto ou quem o tolerava. O Conselho de Estado fixava, en
tão, que, não obstante a responsabilidade pessoal dos agentes autores da violência
contra a vítima, o acidente deveria ser imputado ao mau funcionamento do serviço
público. 32) É preciso, entretanto, notar que o que dá lugar à responsabilidade é a
falta, não o fato de serviço. Distinção útil, no sentido de que a teoria não pode ser
assimilada à doutrina do risco. 4a) Nem todo defeito do serviço acarreta a respon
sabilidade: requer-se, para que esta se aperfeiçoe, o caráter de defectibilidade, cuja
apreciação varia segundo o serviço, o lugar, as circunstâncias928.
929 Nota do atualizador - Premier Jus (Oleo Stock) é-o produto obtido ao se manter em baixa temperatura
(não maior do que 60° C) a gordura fresca (killing fresch) de coração, rim e mesentério, coletada no
momento do abate de animais bovinos que gozem de boa saúde e estejam adequados ao consumo
humano.
930 Voto na Apelação n2 7.127, em 10.08.42, Diário da Justiça de 02.02.43.
osé de A g u ia r Dias D a R e sp o n sa ®
bilidade do Estado, quando ocorrem fatos ilícitos, porque dos termos do art. 15 <j0
Código de 1916, atual art. 43 do Código de 2002, se reconhecia que ele se valia da regra
do art. 159 do Código de 1916, atual art. 186 do Código de 2002931. Fleiner ensina qUe
"el Estado se hace responsable respecto dei prejudicado solo en la medida en cfue exista una
responsabilidad dei funcionário mismo, reconocida en el derecho vigente"932. Gaudemet, en
tretanto, afirma que as leis de caráter administrativo, concernentes à responsabilidade
do Estado, tendem muito nitidamente a estabelecer uma responsabilidade objetiva® '
Amaro Cavalcanti sustentava preponderar na responsabilidade da Administração pú- j
blica o caráter objetivo, tendo como ponto de partida, na advertência de Vachelli, a í
causalidade do ato e não a culpabilidade934. Otto Mayer, cujo livro não pode ser con
siderado atual, dizia que essa responsabilidade dependia apenas do prejuízo causado
à administração: " sobretudo, uma vez dada a causa, pouco importa a qualificação moral que
mereça o agente por intermédio do qual o efeito se tenha produzido: que tenha querido esse feito
diretamente, em virtude de autorização da lei e no exercício regular de seus poderes".
Pedro Lessa, num dos seus votos, declarou, com vistas ao Código Civil de
1916 e à Constituição de 1891, que o nosso legislador perfilhava a doutrina da res- j|
ponsabilidade fundada no direito público e desprezava a vetusta e inqualificável
teoria civilista, antiqualha que hoje só tem préstimos de nos mostrar como nossos
antepassados eram atrasados na matéria. Assim, a teoria da culpa administrativa
está longe de ser a única a dominar a doutrina. Ao lado dela florescem a do risco
integral e a do acidente administrativo a que se referia Pedro Lessa, citando Tirard. -
Aliás, ao falar em culpa administrativa não se tem em vista a culpa civil. Ela ocorre
quando há acidente imputável à Administração. Neste sentido, esclarece Hauriou
que "ela nada tem de comum com a teoria civil dos atos ilícitos e significa simplesmente o
não funcionamento dos serviços"935.
Mostrou, em seguida, o Ministro Orozimbo Nonato, que a disposição do art. 15
do Código de 1916, ainda que inserta no Código Civil, era matéria de direito público.
A soberania, que é inerente ao poder público, não se harmoniza com as limitações ~
que formam o conteúdo da ideia da responsabilidade. Não são razões de ordem
jurídica as que qualificam a responsabilidade do Estado. São, como diz Hauriou936,
668
¡ ¡ guiar D ia s D a Responsabilidade Civil
•‘razoes de alta política e de equidade". A naturales aequitas é que dá vida e impõe à cons
ciência jurídica a aceitação do princípio. O artigo 15 do Código Civil de 1916, agora
repetido no art. 43 do Código de 2002, proclama a responsabilidade do E stad o por
ato contrário ao direito do seu representante. A ideia do ato contrário ao direito é
mais ampia que a do ato "contrário à lei expressa". E a aplicação da teoria da culpa
objetiva ao Estado é insustentável. A Administração não se pode impor esse critério,
sob pena de ser impossível, em qualquer caso, a responsabilidade do Estado, cujo
conceito de soberania repele o de responsabilidade por culpa937.
Quanto ao Ministro Filadelfo Azevedo, seu ponto de vista foi manifestado em
voto magistral, que procuraremos resumir938. Começa, manifestando a impressão
que externamos a princípio, a saber, que o problema da responsabilidade civil so
fre a influência da incerteza com relação à exata delineação do instituto entre nós.
No direito pré-codificado, a opinião dominante sustentava a responsabilidade do
Estado em virtude dos danos causados por movimentos armados. Nesse sentido, o
parecer de Rui Barbosa939, orientado pelo critério mais avançado. Pedro Lessa, por
sua vez, sintetizou brilhantemente as soluções apresentadas, encarando o assunto
com sua soberba visão de jurista. Como na Constituição de 1891 não havia um
princípio que consagrasse expressamente a responsabilidade do Estado, os parti
dários da tese contrária serviram-se do dispositivo que aí acentuava a responsabi
lidade do funcionário940 para fundamento principal de sua argumentação, no que
937 Aliás, fique dito desde logo, quando se investiga o fato com maior rigor, é raríssimo que não coinci
dam as soluções, quer se adote a doutrina da culpa civil, quer a da culpa administrativa, quer a do
risco, desde que se trate de atos de funcionários (cf. voto de Pedro Lessa, no ac. publicado na Revista
de Direito, vol. 63, p. 345).
938 Ac. do Supremo Tribunal Federal, em 12.04.43, no Diário da Justiça de 17.06.43, ps. 21.600 e segs.
939 O parecer de Rui Barbosa, a que se refere o Ministro Filadelfo Azevedo, é, como tudo o que escreveu,
lição lapidar.
940 "Art. 82. Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que
incorrem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não respon
sabilizar efetivamente os seus subalternos". O grande Pedro Lessa mostrou que esse dispositivo era
reprodução do art. 179, n2 29, da Constituição do Império e provou que o legislador constitucional
não foi, como se tem pretendido, insensível ao progresso jurídico de seu tempo, a ponto de ignorar
o que se assentara a respeito da responsabilidade do Estado. E melhor reler as suas incisivas pala
vras, quando observa que fora preciso o constituinte "[...] não tivesse o mais vago sentimento da radical
e fecunda revolução jurídica que se estava realizando, e ainda continua, no que diz respeito à responsabilidade
do poder público[...]". (ob. dt, p. 161), para que consagrasse a irresponsabilidade do Estado.Esse prin-
dpio, que, ao contrário do que comumente se afirma, não era desconheddo do constituinte de 1891,
foi reafirmado, depois, sucessivamente, por várias outras leis: a Lei n2 221, de 1894 (art. 13), a Lei na
1.151, de 1904, o Decreto n21.939, de 1908, e a Lei n2 2.945, de 1945. Depois do Código Civil, novas leis
confirmaram a adoção do prindpio, notadamente o Decreto n2 14.722, de 1921, o Decreto n2 15.673,
de 1922, e o Decreto n2 16.983, de 1925.
669
Jo s é de Aguiar Dias D a R e s p o n s a b i^ S
941 Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1934, vol. II, p. 488; Carvalho Santos, Código Ciuil
Interpretado, vol. I, ps. 371 e segs.
942 Interessante estudo sobre o art. 15 do Código Civil de 1916 é feito pelo jurista baiano Jaques Horta,
que conclui pela responsabilidade ampla do Estado pelos atos dos funcionários, tomados na sua
qualidade de representantes e sem admissão de distinção quanto à natureza dos atos (Responsabilidade
civil decorrente de omissão dos deveres do poder público, em Fórum, 1940, ps. 368 e segs.). É a boa doutrina,
antecipando-se à sua consagração nas Constituições brasileiras a partir da de 1946.
943 Contudo, em alguns casos, poucos, conseguiram os prejudicados ver satis feitas suas pretensões.
Entre eles, cita o Ministro Filadelfo o que veio, talvez providencialmente para o interessado, a ser
solucionado longos anos depois, por decisão unânime do Supremo Tribunal (Diário da Justiça, 1941,
p. 1.732).
670
pÃGUlAR D ia s £>íí Responsabilidade Civil
671
José de Aguiar D ias Da Responsas®]
950 Vide, conforme a indicação do preclaro Ministro Filadelfo Azevedo, Diário da Justiça, citado; Arquivo
judiciário, vol. 41, p. 505; Revista Forense, vol. 72, p. 362; Boletim Judiciário, vol. 21, p. 140; Diário da
Justiça, 1941, p. 2.776. Favoravelmente ao prejudicado, decidiram também os tribunais em casos
isolados de motim e empastelamento de jornais (Revista Forense, vols. 27, p. 293, e 70, p. 110; Diário da _
Justiça, vol. 16, p. 617).
951 O Ministro Filadelfo Azevedo assinala que não podem ser tomados em tal sentido certos pronuncia
mentos do Ministro Carvalho Mourão, que permitem, à primeira vista, essa impressão, desmentida:
entretanto, por outras, em que há alusões expressas à exigência da culpa. Assim, o risco administrati
vo só é defendido positivamente em votos do desembargador Antão de Morais (Revista dos Tribunais,
vols. 101, p. 181, e 111, p. 601) e, ultimamente, nos votos do Ministro Orozimbo Nonato (Arquivo-
Judiciário, vol. 63, p. 250).
952 "Responsabilidade civil do Estado", na Revista Forense, vol. 90, p. 62.
953 Na completa bibliografia do Ministro Filadelfo Azevedo: Mendes Pimentel, Revista Forense, vol. 40,
p. 116; Orozimbo Nonato, Revista Forense, vol. 62, p. 119; Milton Campos, Revista Forense, vol. 52,
p. 249; Epitácio Pessoa, Azevedo Marques e Paulo Lacerda, Revista de Direito, vol. 115, ps. 41 e 63;
Luís Correia, Estados e obrigações de indenizaçao, p. 119; Carvalho Mourão e Olímpio de Carvalho,
memoriais nas Apelações Cíveis nB4.589 e 6.416; Pinto Pereira, Revista Judiciária, vol. I, p. 650; Astolfo ;
Resende, Trabalhos do Instituto dos Advogados, 1911, p. 143; Paulo Lacerda, Arquivo Judiciário, vol.
17, suplemento, p. 55; Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, vols. I, p. 281, e XXVI
p. 136; Lino Morais Leme, Responsabilidade civil fora do contrato, p. 93; Guimarães Menegale, Direito
Administrativo e Ciência da Administração, vol. II, p. 363; Luís Gallotti, Arquivo Judiciário, vol. 47, p. 67;
672
Aguiar D ia s D a Responsabilidade Civil
Melo Rocha, Revista Geral de Direito, Legislação e Jurisprudência, vol. V, p. 615; Abner de Vasconcelos,
Pareceres, ps. 253-262; Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1934, vol. II, p. 488; Clovis
Bevilaqua, Código Civil Comentado, comentário ao art. 15; João Luís Alves e Lacerda de Almeida.
954 Ainda de acordo com a notável documentação do Ministro Filadelfo Azevedo: Noé Azevedo, Revista
dos Tribunais, vol. 50, p. 293; Antão de Morais, Revista de Direito, vol. 124, p. 226, e Revista Forense, voL
84, p. 633; Plínio Barreto, Revista de Jurisprudência Brasileira, vol. 54, p. 127; San Tiago Dantas, Revista
dos Tribunais, vol. 130, p. 499; Matos Vasconcelos, Arquivo Judiciário, vol. 32, suplemento, p. 125, e
Direito Administrativo, vol. II, p. 499; Aldno Salazar, Responsabilidade do Estado por atos judiciais, ps. 51
e 96; Francisco Campos, Pareceres, vol. I, p. 430; Amoldo Medeiros, Revista de Crítica Judiciária, vol.
18, p. 261; Româo Cortes de Lacerda, Responsabilidade Civil, ps. 51 e 96. Citaremos ainda: Numa P.
do Vale, Responsabilidade Civil do Estado, São Paulo, 1925, obra adstrita ao critério dvilista. No campo
legislativo, releva notar o histórico do art. 18 das Disposições Transitórias da Constituição de 1934,
que, ao contrário do que sustentam alguns leigos, mal informados sobre o problema da repartição
dos riscos, pressupunha a responsabilidade do Estado. A mesma ordem de ideias pertence o projeto
apresentado em 1937 à Câmara dos Deputados, sobre que se manifestou, em brilhante parecer, fran
camente favorável à tese objetivista, o ilustre jurista, deputado José Augusto (Revista Forense, vol. 71,
p. 50). E se atentarmos, já em direção precisamente inversa, na índole do Decreto-Lei na 4.166, de 11
de março de 1942, verificaremos que outro não é o princípio em que se inspira senão o de compor, à
custa dos bens dos súditos do Eixo, os prejuízos causados pelo afundamento dos navios nacionais.
955 Arquivo Judiciário, vol. 35, sup., p. 195; Mandado de Segurança, Rio, 1937, p. 352.
956 Revista dos Tribunais, vol. 100, p. 571, e Diário da Justiça, vol. 20, p. 1.
José de A&uar Dias Da R e s JS
alguém, com repercussão favorável para outros, deve ser estendido e repartido na proporção
dos beneficios".
Assim se pode entender na guerra interna como na externa, pois os sacrificios j
devem ser equitativamente repartidos, para atender a que o resultado visou à res»
tauração ou à manutenção do equilíbrio social. Nem é de impressionar o argumenta j¡¡
do vulto das reparações, porque, para cobri-las, pode o Estado recorrer a maiores ■-
tributações, o que representa verdadeira fórmula compensadora.
Registra-se, assim, "[...] a crescente preponderancia da ideia igualitária da repartição
genérica com abstração do problema das requisições e sem voltar a discutir a
distinção entre atos de execução e atos de preparação de guerra, posta em má situa
ção pela crítica penetrante de San Tiago Dantas957. Por igual, dispensável é recorrer
à ideia da desapropriação “[...] até porc¡ue se poderia redargüir com a [...] exceção, jí
admitida no caso do tombamento de bens de valor histórico [...]", solução a que o emérito
Ministro Filadelfo Azevedo nao empresta sua adesão. O principio se liga ao enrique
cimento sem causa e foi insuficiente, por isso, para evitar os desastrosos efeitos eco
nômicos da abolição da escravatura no Brasil, mas fundamento idóneo para autori
zar a indenização aos industriais prejudicados pelo estabelecimento, na França, do
monopólio da aguardente e dos fósforos958. No Uruguai, já ocorreu aplicação idênti
ca dos princípios que vedam o enriquecimento sem causa, a propósito do estabeleci
mento, pelo Estado, do monopólio da fabricação de aguardente. A criação, em favor
do Estado, do monopólio de uma atividade lícita, até então exercida por particulares
e assumida pela administração pública a partir da sanção da lei respectiva, acarreta a
obrigação de indenizar os prejudicados, mesmo sem indagação sobre a legitimidade
da lei. Atendeu-se a que: a) o princípio do enriquecimento sem causa estabelece que
ninguém pode enriquecer a expensas de outrem, sem a devida indenização, e esse
princípio alcança o Estado, como não podia deixar de ser, porque a proteção jurídica
é um dos seus fins primordiais e compreende a dos princípios gerais de direito, en
tre os quais atua sua equidade; b) o silêncio da lei que estabelece o monopólio não é
obstáculo à indenização; c) para esse efeito, não há que distinguir entre produtos ge
nuínos e produtos artificiais, além de que a execução da mesma exploração pelo ente
monopolístico tira qualquer mérito ao argumento; d) não se admite, tampouco, dis
tinção quanto ao caráter nocivo das indústrias sujeitas ao monopólio, uma vez que
a lei que o estabeleceu não tenha sido ditada no interesse da saúde pública; e) a ação
674
i
JL
Ü^gUIAK D ia s Da Responsabilidade C¡
959 Do Poder Judiciário, p. 170. Essa distinção, na exata menção de Filadelfo Azevedo, é empírica e pode
ensejar denegação de justiça. O indivíduo que é vítima de um assalto bem poderia ter continuado
incólume, quando funcionasse com a necessária eficiênda o serviço polidal que é um dos primeiros
deveres do Estado (cf. Barthélemy, Traité de droit administratif 2* ed., 1926, p. 624). O serviço de ordem
pública, bem o disse insigne juiz brasileiro, é predpuamente preventivo: "O Estado não arma seus
cidadãos para florearem apenas em vistosas paradas e para serem arrogantes com os tímidos e passivos contra
os afoitos" (voto do Ministro Pedro dos Santos, no ac. de 27.11.23, na Revista de Direito, vol. 73, p. 111)-
960 O Código de Processo Penal, art. 630, com efeito, seguiu, nesse passo, tão-somente a generosa tradi
ção de nosso direito.
Ijj/tóUlM1Dias Qa Kssponsabiljdade Civi
p re s tíg io já apontam solução mais humana e tanto mais defensável porque "[...] não
-=ojende a letra da lei, inteiramente omissa a tal respeito, antes pressupõe sua lídima aplicação,
fyada aos fins sociais e às exigências do bem comum". A exigência de texto expresso não
se justificaria,
pois a construção da jurisprudência estatal tem frequentemente pres
cindido dela, como sucedeu na Itália961.
O notável voto do Ministro Filadelfo Azevedo termina aceitando a composição
¿os danos pelo poder público, e recomenda a sua repartição, em face das circuntân-
óas, entre a União e o Estado em que se verificaram os acontecimentos prejudiciais
ao queixoso.
t é, satisfeitos pelo Estado, a fim de que, por este modo, se restabeleça o equilíbrio da justiça
| comutai iva: Quod omnes tangit ab omnibus debet supportari"962. Quando não fosse pela
|r convicção de que ela corresponde à evolução da consciência jurídica, em progressivo
J í afastamento do egoísmo e da fatuidade da dura lex, sed lex, ao menos, por circuns-
| tândas de fato, capazes de estabelecer, aos olhos do jurista, a presunção da respon-
f _ sabilidade do Estado, mesmo nos moldes clássicos, isto é, fundada na culpa. Até em
í - casos de culpa pessoal do funcionário, a análise profunda do fato levará à convicção
da culpa do Estado, que terá agido mal, no mínimo, por via da circunstância de
haver posto o agente em contato com a vítima, como que proporcionando àquele a
| 961 Gilberti, Responsabilità civile dello Stato, apud Filadelfo Azevedo, loc. dt.
962 Responsabilidade Civil do Estado, p. XL
Jo s é de Aguiar Dias D a R^po^g
963 José Gabriel Pinto Coelho, ob. cit., Coimbra, 1906, p. 200.
678
^CUIAR D ia s p a Responsabilidade Civil
onerosa, observando que, a suceder tal coisa, o fato só revelaria o mau fundonamen-
¡0 do serviço público e a desordem da administração964.
679
Jo s é de Aguiar Dias
D a R esponsab
desde que não encarregadas da manutenção da ordem, mas de outra missão (TFg
vol. 18, p. 31). Certa a orientação do acórdão, relatado pelo eminente Ministro Esdias
Gueiros, que salientou a omissão do Governo Estadual, instado a intervir, sem aten-
der a tal apelo, para o que dispunha de meios, inclusive requisitando regularmenè
o auxílio das tropas federais.
A intervenção do governo central nos Estados sempre foi urna fonte de des~ jlí
mandos, e não podia ser de outro modo, porque ela própria era, frequentemente,
um abuso. O interventor sempre foi considerado delegado do governo federal5*, .
Qualquer que seja a incumbência que receba, desempenha-a em nome e por autori- -
dade desse governo, que responde pelos atos do seu delegado, nenhuma influência
tendo a esse respeito o fato de haver a Assembléia Legislativa estadual aprovado os
atos do interventor966.
Essa jurisprudência frisou sempre que a aprovação dada pelo Congresso aos
atos do Executivo não tem caráter de bill de indenidade. Somente abrange os atõs ;
que se conformam com a Constituição, e jamais qualquer procedimento ofensivo:jí
de direito, fora dos estritos limites traçados. Os abusos da intervenção devem ser
amplamente reparados967.
A lição é aplicável em toda a sua extensão aos atos praticados em estado de sítio
ou situações semelhantes, destinadas a facilitar medidas de salvação, mas usualmen
te adotadas para servir a prepotência, ao arbítrio e à ambição de poder. Restabelecida
a ordem constitucional, responde o Estado por todos os atos de desconhecimento
965 Ac. do Supremo Tribunal Federal, na Revista do Supremo Tribunal Federal, vol. 60, p. 29.
966 Ac. do Supremo Tribunal Federal, na Revista Forense, vol. 59, p. 401, e na Revista de Crítica Judiciária,.
vol. 17, p. 261. Tratava-se de ato de interventor federal, rescindindo, ex próprio Marte, contrato em que
não havia cláusula resolutiva, sob o fundamento de que o contratante não o cumpria.
967 Ac. do Supremo Tribunal Federal, em 19.09.28, na Revista de Direito, vol. 94, p. 199. Este acórdão, porém,
ao contrário do anteriormente citado, condenou a Fazenda do Estado sob intervenção e não a União
Federal. Votou vencido o Ministro Soriano de Souza, que ponderou, cheio de razão, que a responsabi
lidade é da Fazenda Nadonal e não do Estado, porque o autor do ato ilírito era delegado do governo
federal. De fato, a autoridade culpada não fora designada como interventor e sim como comandante dè ; ■
forças federais encarregadas de restabelecer a ordem, que assumiu o poder, abandonado pelo governar :
dor. Essa, porém, não se nos apresenta como razão sufidente para, como julgou o Supremo, transforma.- - j
-lo em governo local de fato, para eximir de responsabilidade a União. O caso oferece, ao que pensamos, ^
mais os característicos de responsabilidade solidána, dada a intervenção de agentes do govemo do
Estado na produção dos danos. Mas atento à realidade foi o acórdão do Supremo, de 03.09.26, na Reoistá. j
Forense, vol. 47, p. 663, ao salientar que a União é responsável pelos danos oriundos de atos ilegais do
interventor enquanto durar a intervenção c persistirem os efeitos desses atos. Pela manutenção da situ-
ação criada abusivamente pelo interventor, responde a administração estadual se, podendo revogá-la, ■
não o faz. Ponderou-se que, nos regimes em que se pratica a intervenção, é pacífica a opinião de que o . í
interventor c delegado da União e não do Estado, de forma que a responsabilidade é da União pelos
danos derivados da intervenção, enquanto essa persiste, e não do Estado em que ela se realiza.
680
Aguiar D ias Da Responsabilidade Civil
¿os direitos do particular, fora dos precisos limites das necessidades emergentes.
Isso mesmo acentuou o Supremo Tribunal Federal, transcrevendo de um constitu-
cionalista argentino: "O estado de sitio seria um poder monstruoso, se o cidadão não es
tivesse amparado em sua liberdade, em sua existência e em seus bens. O estado de sítio, por
seus efeitos, não cria a ditadura"968. Outra não é a enérgica advertência do excelso Rui:
é absurdo que um regime de exceção e de ocasião possa imprimir às suas conseqüências
perpetuidade. Se o faz, deixou de ser recurso de polícia, ou de política, ou de polícia-política:
transformou-se em expoliação"9í‘9.
Agentes do DOPS970, em abril de 1964, praticaram depredações em escritórios
de particular, que pleiteou indenização do Estado. Defendeu-se este, alegando que
era parte ilegítima para a causa, pois os autores dos excessos estariam sob ordens
do poder central. A tese, bem como a de possível imunidade judicial para o caso, foi
repelida pela I a Câmara Cível do Tribunal do antigo Estado da Guanabara, sendo
relator o eminente Gracho Aurélio, que assentou estar em pleno vigor, ao tempo,
o art. 194 da Constituição Federal de 1946, não sendo ademais admissível que as
autoridades militares federais compelissem os agentes arbitrários às depredações
praticadas ou as aprovassem (RTJ, vol. 21, p. 257).
Atuamos em um caso de intervenção, não da União nos Estados, mas do pró
prio Estado em associação de natureza privada, em que a responsabilidade do
Estado com base no risco administrativo ficou assente. Cuidava-se de intervenção
motivada por questões políticas, que deveria ter-se encerrado com o "saneamento
ideológico" da referida associação. Contudo, agentes do Estado apoderaram-se de
dois prédios da associação, deixando que um deles, por falta de cuidados adequa
dos, viesse a ruir, mantendo o outro em seu poder, também depredado, com o ânimo
de aí permanecerem indefinidamente, levando os associados a ingressar na justiça
pleiteando a sua devolução e uma indenização para reparar os danos do remanes
cente e para substituir o que desaparecera. A Sétima Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sendo relator o desembargador Décio Cretton,
971 Supremo Tribunal Federal, Revista Forense, vol. 47, p. 322. Decisão acertada. Mas parece afastar a
responsabilidade da administração em qualquer caso, isto é, ainda quando a ação seja dirigida con
tra ela. Nesse caso, discordaríamos do acórdão. O particular que a demandasse devia obter a sua
condenação, embora ela pudesse, depois, exercer contra o concessionário o regresso que ele não teve
contra ela. A razão desse ponto de vista é que cabe à administração, quando enseja ao concessionário
a execução de obras públicas, velar para que ele não exorbite nas atribuições que lhe são concedidas.
682
p A g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
683
fosé de Aguiar Dias Da R^p^,
972 Para perfeito conhecimento da doutrina assentada pelo Conselho de Estado francês, veja-se Mareei
Beurdeley, Le détournement de pouvoir dans 1'intérêt financier ou patrimonial de Vadministration, Paris,
1928.
973 E do plano racional haveria, forçosamente, de passar para a órbita internacional em que progressi
vamente se vai conhecendo a necessidade de estabelecer sanções contra o uso imoderado do próprio
direito de forma a acarretar dano aos interesses sociais e internacionais. Ainda não aprofundado,"
o aspecto internacional do abuso do direito oferece, entretanto, larga margem para aplicação dá
doutrina, porque é nas relações internacionais que o excesso de suscetibilidade e a preocupação de
masiada de resguardar os interesses nacionais dão frequentemente margem ao arrogante desprezo:
pelo direito das nações menores. E em homenagem a essas considerações que se prediz um direito:
internacional baseado no conceito de uso moderado do direito e, assim, logicamente, contrário aos
abusos da soberania (Mário Scemi, Uabuso di diritto nel rapporti intemazionali, Roma, 1930).
684
JjgAGUiAR D ia s Da Responsabilidade Civil
H
-I de interesse coletivo, em princípio, importe abuso ou desvio de poder, é que pode
lífc
P acarretar obrigação de reparar (RTJ, vol. 33, p. 720).
Sfp
Is Em outro julgamento relativo à hipótese de intervenção do Estado no domínio
econômico, decidiu o STF dar provimento a recurso extraordinário interposto por
u destilaria contra acórdão do ST[ que, em recurso especial, reformara decisão que con
denara a União a indenizar os prejuízos advindos da intervenção do Poder Público
Uno domínio econômico, a qual resultara na fixação de preços, no setor sucro-alcooleí-
§ ro, abaixo dos valores apurados e propostos pelo Instituto Nacional do Açúcar e do
■ Álcool. A recorrente alegava ofensa ao art. 37, § 62, da CF, sustentando que, não obstan
te o referido ato tivesse decorrido de legítima atividade estátal, deveria ser indenizada
pelo dano patrimonial por ela sofrido. Entendeu-se que a intervenção estatal na eco-
I nomia possui limites no princípio constitucional da liberdade de iniciativa e a respon-
: sabilidade objetiva do Estado é decorrente da existência de dano atribuível à atuação
f ■■
9 deste. Nesse sentido, afirmou-se que a fixação, por parte do Estado, de preços a serem
: praticados pela recorrente em valores abaixo da realidade e em desconformidade com
a legislação aplicável ao setor constitui-se em óbice ao livre exercício da atividade
econômica, em desconsideração ao princípio da liberdade de iniciativa. Assim, não
: é possível ao Estado intervir no domínio econômico, com base na discricionariedade
quanto à adequação das necessidades públicas ao seu contexto econômico, de modo a
desrespeitar liberdades públicas e causar prejuízos aos particulares (RE 422941, relator
I Ministro Carlos Velloso).
O acórdão antes reformado pelo STJ tinha sido do Tribunal Regional Federal da
IaRegião, e dizia que o Estado deveria responder pelos atos de intervenção no domí
nio econômico porque "o Governo não -pode estabelecer uma política que cause prejuízos
aos particulares, de tal maneira que possa levá-los à falência, e assim, o Estado responde pelos
danos causados, nos termos do art. 37, § 6a da Constituição Federal" (AC 95.01.10451-DF,
; relator o juiz Tourinho Neto).
Parece-nos que, em face do que dispõem as Constituições Federais, a partir de
1946, não deve o abuso ou desvio de poder ser considerado como fonte da obrigação
de reparar, a cargo das pessoas jurídicas de direito público, com exclusão do prin-
■ cípio consagrado na Constituição, que submete essa responsabilidade a base mais
ampla. Todavia, a decisão nos parece acertada em sua conclusão, porque o tabela-
mento não produz o chamado prejuízo anormal, como tal considerado o dano que
não constitua ordinária conseqüência da álea de um negócio ou de uma atividade.
Caso típico de mau funcionamento do serviço público foi julgado pelo Tribunal
de Apelação de São Paulo. Certa mulher, de condição humilde, precisando dedicar-se
685
José de Aguiar Dios Da
ao trabalho, internou seu filho de dois anos em abrigo mantido e administrado pelo=
Estado. A criança, por ocasião da entrada, nada de anormal apresentava,
depois, entretanto, manifestou-se-lhe na vista virulenta infecção de fundo gonoci
dco. Foi a princípio tratada no estabelecimento, por especialistas. Não debelado o 1
mal, 35 dias depois foi o menor removido para a Santa Casa, onde foi operado, resul
tando da intervenção ficar cego de uma vista e prejudicado da outra.
A infecção foi atribuída ao fato de serem as roupas dos menores lavacE
por moças recolhidas pelo abrigo, entre elas, presumivelmente, alguma atacai
do mal, possibilitando o contágio, tanto mais quanto outras sete crianças foram
contaminadas.
A culpa do Estado ressaltava, desde logo, do fato de confiar esse serviço a pes
soas que abrigava, sem verificar o seu estado de saúde. Mas, quando não se desse
como provada essa causa de infecção, outra circunstância caracterizaria nitidamente
a responsabilidade do Estado: a demora no diagnóstico exato e, consequentemente,
no tratamento requerido, visto ficar apurado que, se à criança fossem dispensados:
cuidados oportunos e convenientes, teria sido o mal atalhado em tempo.
Erudita nota da redação de Giustizia Penale a acórdão da Cassação italiana fo- 5
caliza particularmente o problema da responsabilidade da Administração pública j ;
pelos danos causados aos particulares em hospitais do governo. Frisa-se aí que a
ação para ressarcimento de danos é admissível quanto à Administração sempre que,
i / /
no desempenho do serviço público, seus órgãos, isto é, as pessoas físicas prepostas,
tenham violado as normas jurídicas autolimitativas ou as regras fundamentais
diligência comum relativas à tutela da integridade alheia. Cessa a responsabilidade
da Administração quando se verifica, por parte dos seus agentes, um desdobramen
to da sua competência específica, de modo a transformá-la em atividade de ordi
privada, o que ocorre quando o excesso seja exteriorizado de forma que o particular
possa conhecê-lo, dando pela exorbitância da função, e concorrer, se quiser, para
Ml
estrita observância da norma de serviço. Nesses termos, é cabível a ação de res
sarcimento contra a Administração pelos danos resultantes de atos de enfermeira
de hospital público que, em lugar de chamar o médico, como lhe preceituava o re-
gulamento, entendeu ela própria de aplicar o remédio ao paciente, a quem cegou,
por haver trocado o colírio por um corrosivo. Acentua a nota ao aresto que a discn-
cionariedade da Administração não se pode entender ampliada a ponto de atingir ■
as limitações que ela deve observar, no interesse da incolumidade pública, não só :
impostas por leis e regulamentos, mas, genericamente, pelo princípio do neminem .
laedere. Reconhece-se, desta forma, a responsabilidade da administração pública m
686
g u ia r D ia s Da Responsabilidade Civil
687
José de Aguiar Dias D aR esp o n sab i
uma oportunidade para verificar que sua freguesia se transferira aos concorrentes,
seja em virtude da falta de concorrência anterior, seja por perdurar no seu espírito a
má impressão a respeito da doença da mulher. Ficou provado que a administração 7
municipal obrara precipitadamente e interditara o açougue por mera suspeita, sem
ouvir o parecer de um médico. Assumira essa atitude tão-só em homenagem ao
rumor popular, que se verificou não ter fundamento. Nessas condições, nada mais S
acertado do que a sua condenação às perdas e danos sofridos pelo açougueiro. A
espécie dá ideia bem nítida da distinção a fazer entre atos de mero arbítrio e os de
polícia, no caso, sanitária. Provado o fundamento, a cessação das atividades do esta- .
belecimento se legitimaria, como ato de defesa da saúde da população.
Interessante questão foi decidida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, com
relação à responsabilidade por incêndio de mercadorias depositadas em armazéns .
portuários. Julgou o tribunal local improcedente a defesa da empresa concessionária
das docas, que se baseava no art. 246, parágrafo único, da Consolidação das Leis
da Alfândega, porque a demonstração da culpa estrita do preposto, a que alude o
dispositivo, regula as relações entre este e o proponente e não a responsabilidade
civil perante terceiros, pois, do contrário, ficaria a concessionária em situação privi
legiada em relação ao próprio Estado, que responde pelos atos dos prepostos, que
causem danos a terceiros.
No Supremo Tribunal Federal, a decisão local foi reformada sustentando-se |
que, sem demonstração de culpa, nos termos do dispositivo citado, não se pode im
por a obrigação de reparar (RTJ, vol. 34, p. 510).
974 Sentença do Dr. Afonso José de Carvalho, na Revista Forense, vol. 48, p. 539.
688
Ç ...
975 Assim, na Argentina, o Estado se considera responsável: a) pelos prejuízos derivados da entrega
de mercadorias a um despachante sem o necessário conhecimento, único documento que prova a
propriedade de coisa por parte de quem solicita a sua retirada. Não escusa tal responsabilidade o
fato de ser a carga de natureza perecível e ter a entrega sido feita sob fiança de solicitantes, por se
tratar de favor não autorizado pela lei (Câmara Federal de Buenos Aires, em 02.07.41, na Revista de
Jurisprudência Argentina, t. 75, p. 585); b) pelos danos causados a um campo em consequênda do
incêndio ateado em virtude de haver um operário do Ministério de Obras Públicas agido negligen
temente ao usar um aparelho de matar pragas da lavoura, não valendo de escusa o fato de ter o ope
rário desobedecido a ordens expressas dos seus superiores (ac. da Câmara Federal de Buenos Aires,
em 27.05.40, na Revista de Jurisprudência Argentina, t. 70, p. 915); c) pelos danos resultantes da outorga
de certidão inexata por parte do oficial de registro de imóveis, que dá como livre e desembaraçado
um imóvel gravado (Corte Suprema, em 05.09.41, na Revista de Jurisprudência Argentina, t. 75, p. 812).
689
José de Aginar Dios Da ^
976 Nota do atualizador - Infundada assim, com todas as vênias, decisão da 40a Vara Cível da Comarca
do Rio de Janeiro, publicada em 05 de agosto de 2005, e reproduzida no website da Associação/
Sindicato dos Notários e Registradores do Estado do Rio de Janeiro (www.anoregrj.com.br) que,
invocando duas decisões, uma do STF, de que foi relator o eminente Ministro Carlos Velloso (RE
209.354-PR), e, outra, do STJ, de que foi relatora a eminente ministra Nancy Andrighi (Resp 489511-
SP), sustentou a tese segundo a qual a vítima não poderia propor ação direta contra o notário, por
faltar a esse legitimidade passiva ad causam, devendo a vítima dirigir sua ação exclusivamente contra
o Estado. Ocorre que, na verdade, nenhum dos acórdãos citados defendeu essa ultrapassada tese,
sendo até surpreendente a sua invocação. De fato, no primeiro acórdão, o Estado do Paraná se in
surgiu contra sua denundação à lide em ação de nulidade de ato jurídico, alegando que "só deveria
responder por atos que os seus agentes nessa qualidade, causarem a terceiros, o que não seria o caso dos autos",
pois "o art. 28 da Lei n°.6.015/73, Lei dos Registros Públicos, consigna, expressamente, que o tabelião como
690
¿ g ijiar D ia s Da Responsabilidade Civil
m-
Caso muito especial foi decidido pelo antigo Tribunal Federal de Recursos.
Pemandada certa entidade, por morte ocorrida em hospital sob sua gestão e atri
buída à negligência do serviço, o douto juiz de primeira instância aplicou o disposi
tivo constitucional relativo à responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito
público. Na instância de apelação, o eminente Ministro Armando Rollemberg ad
vertiu que não se podia dar essa extensão ao dispositivo, pois a entidade demanda
da era de direito privado. Foi relator dos embargos o eminente Ministro Amarílio
Benjamim, que aceitou a orientação da sentença, ponderando que a situação especial
da entidade impunha tratamento reservado às pessoas jurídicas de direito público,
mas acentuou que, mesmo afastada a tese, a condenação se impunha, com base na
responsabilidade de direito comum, porque evidente a relação de causalidade entre
a negligência dos prepostos daquela entidade e o dano sofrido (Apelação Cível n2
24.384, de São Paulo).
Legal ou ilegalmente detido, o preso tem direito a completa segurança na pri
são, respondendo o Estado por todo e qualquer dano que sofra no período de de
tenção. Assim decidiu a 5a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
na Apelação Cível nfi 18.174, sendo Relator o eminente desembargador Barbosa
Moreira. No mesmo sentido, sentença da então juíza Tânia de Melo Bastos Heine,
da I a Vara Federal do Rio de Janeiro, na ação declaratória proposta pela família do
jornalista Mário Alves, torturado e morto pelo terrorismo oficial.
No acórdão proferido na Apelação nQ32.784, Relator o desembargador Paulo
Dourado de Gusmão, teve a 8a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
ocasião de tratar de um tema que tem sido objeto de unânime reprovação da consci
ência universal, em contraposição à mórbida conduta de elementos que, detentores
da força, dela usaram para demonstrar a infinita capacidade de degradação da mo
ral a que pode chegar o culto da violência por parte de certas autoridades: o tema
não é considerado agente estatal, possui responsabilidade civil própria pelos atos que pratica", e que "se a pró
pria tabeliãfoi denunciada á lide efoi condenada, ela mesma já respondendo pelos danos ocasionados ao autor"
não teria aplicação a responsabilidade objetiva, pois isso resultaria “em enriquecimento ilícito por parte
do autor”. Vê-se, com fadlidade, que a discussão girou em tomo da qualificação da natureza jurídica
do tabelião, se agente do Estado, ou não, em nenhum momento tendo sido discutida a sua legitimi
dade ad causam. No segundo aresto, embora o TJSP tenha efetivamente concluído pela ilegitimidade
passiva do notário, o STJ decidiu manter a decisão, não pelos fundamentos do acórdão recorrido,
mas "por economia processual" e "ausência de prejuízo para a Fazenda, a quem ficou assegurado o direito de
regresso deforma expressa". Na verdade, o que se discutiu foi a possiblidade de denunriação à lide do
tabelião, lembrando a ministra Nancy Andrighi que nesse terreno prevaleceu a posição "no sentido
de não ser obrigado o autor que sofreu o dano a uma árdua espera para formação da prova do dolo ou culpa
do agente público, enquanto deforma absolutamente simplista é possível imputar-se ao Estado a obrigação de
indenizar dano causado por ato ilícito, por se tratar de responsabilidade objetiva, só afastada em duas hipóteses:
a) se houver culpa da vítima; b) pela ocorrência de caso fortuito ou força maior''.
da tortura. O aresto citado confirmou decisão que mandou o Estado indenizar parti
culares por ato de agente seu, no exercício de suas funções. Nenhuma reprovação p
bastante para fustigar a covardia e a brutalidade da tortura, tão primária de espírit0‘
e consciência e tão inventiva na torpeza de métodos de humilhação e sofrimento;
A reparação oferece às vítimas uma aproximação de reparação, mas esta se faz p0l
imposição da condenação ao Estado e, por isso mesmo, à custa do contribuinte. É
preciso que se estabeleça como prática a ação regressiva de que cogita o art. 37 § gs -
g&jl
da Constituição Federal. Só assim os verdugos insensíveis poderão sentir devida-
mente o castigo de seus crimes.
O acidente em vôo de aeronave em mau tempo, impróprio para esse fim, acarreta
responsabilidade do Estado, pelo nexo de causalidade entre a autorização do pessoal
controlador dos aeroportos e o desastre. Mas o antigo Tribunal Federal de Recursos,
julgando caso dessa natureza, teve como pressuposto da responsabilidade a culpa e ■:
caracterizou como fortuito o mau tempo (TFR, vol. 13, p. 40). A culpa não é pressu- .
posto da responsabilidade do Estado, para a qual basta o nexo de causalidade entre o ;
dano e a atividade das pessoas jurídicas de direito público. E o mau tempo só constitui ;
caso fortuito quando não sujeito a operações de previsão que, como é sabido, integram
o controle da aviação em geral, a cargo da infra-estrutura montada nos aeroportos. A
decisão de primeira instância, reformada pelo tribunal, é que estava certa.
Por acidentes causados por veículos de sua propriedade ou dirigidos por seus
funcionários, o Estado responde sempre. Entretanto, pelo Tribunal de Apelação
de Minas Gerais, foi decidido, com fundamentos inverossímeis, que o Estado não
respondia civilmente pelo atropelamento e morte de um pai de família, praticado
por um funcionário, na direção de veículo seu e a seu serviço. Considerou o ares
to, que pode figurar como legítimo anacronismo nestes tempos, que não havia
prova de que o Estado houvesse confiado o veículo ao preposto e assim não podia
ser condenado977. Pela sua própria exposição se vê que o acórdão fez, quanto ao
problema da responsabilidade civil, abstração total de três considerações, cada
uma das quais suficiente para a condenação: a) guarda da coisa: ainda que não se
tratasse de preposto e não estivesse a serviço, a responsabilidade era certa, pois
não se compreende que a repartição zele tão mal pela propriedade pública que
permita a sua utilização abusiva; b) mau funcionamento do serviço, a aceitar a
alegação do acórdão: é claro que não funciona bem um serviço em que se enseja
a utilização do veículo quando a administração não o confia ao agente; num ser
977 Ac. nos embargos à Apelação n9 10.163. Estado de Minas Gerais versus Leonor Abjaudi e seus fiJhos.
^ A guiar D ia s Da Responsabilidade Civil
viço que funcione bem, não há utilização de coisa, aparelho ou bem senão por
incumbência dos responsáveis; c) preposição: o funcionário que praticou o ato
ilícito não era motorista profissional da repartição, onde exercia o ofício de me
cânico, mas motorista amador. O desastre ocorreu fora das horas do expediente.
Mas nenhuma dessas circunstâncias escusava o Estado, antes agravava a sua res
ponsabilidade, por dois lados: não devia confiar (ficou provado que o motorista
fazia habitualmente esse serviço, que lhe não competia) o carro a motorista não
licenciado e não podia empregá-lo fora das horas do expediente.
Felizmente, essa decisão não fez jurisprudência, sendo numerosos os julga
dos no sentido de responsabilizar civilmente o Estado pelos danos causados por
veículos a seu serviço978.
As pessoas jurídicas de direito público respondem pelas irregularidades
praticadas na repartição, em detrimento de terceiros que a procuram, para enta-
bularem negócios lícitos. A exoneração do servidor, com base nesses fatos, não
isenta a pessoa jurídica da obrigação de compor os danos por ele causados. Foi
essa a orientação do STF, no Recurso Extraordinário na 33.157, publicado na RTJ,
vol. 34, p. 418.
Relatado pelo Ministro Temístocles Cavalcanti, acórdão do Supremo
Tribunal Federal (RTJ, vol. 48, p. 136) negou a responsabilidade do Estado por
erro de registro sobre a propriedade de veículo, com prejuízo para o adquirente
que se fiou nesse registro.
978 Entre outros, acórdãos do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Norte, em 20.08.41, na Revista Forense,
vol. 89, p. 226. O Supremo Tribunal Federal deddiu, de sua parte, contra aquele critério do Tribunal de
Minas, pois condenou a União a ressarcir os danos causados pelo atropelamento praticado pelo moto
rista de um carro militar, que procedeu com imprudênda manifesta, passando entre um bonde parado
e o meio-fio, manobra interdita pelo regulamento do trânsito. O motorista do carro militar não estava
habilitado ofidalmente para conduzir automóvel. E a União, no voto esdareddo do eminente Ministro
Carvalho Mourão, vencedor, foi condenada como proprietária do automóvel causador do desastre e pa
trão do condutor do veículo (ac. de 13.11.34, na Revista de Jurisprudência Brasileira, vol. 38, p. 155).
Na França e na Itália, não sofre discussão a obrigação de indenizar atribuída ao Estado, em consequên-
da dos danos causados pela queda de aeronaves públicas, de qualquer tipo, mormente quando devida
a manobras de acrobadas do aviador. Não se pode dizer, em defesa do Estado, que a queda ocorreu
em serviço da defesa nadonal, porque esta bem pode ser tutelada sem o virtuosismo acrobático do
aviador (Perrudo Ferrero, in Rivista di Diritto Aeronáutico, 1932, p. 90). Com relação à França, cf. ded-
são do Conselho de Estado, de 09.11.28, in Breitüng, ob. dt., p. 86. Quando fosse diferente a doutrina
estrangeira a respeito, nem assim poderia ser negada a responsabilidade dvil do Estado pelos danos
causados na superfíde por aviões de sua propriedade. O Código Brasileiro de Aeronáutica é expresso
em consagrar essa responsabilidade sem qualquer restrição, pois dedara abrangidas no regime da
responsabilidade objetiva, estabeledda para tais espédes de danos, "quaisquer aeronaves que trafeguem
no território brasileiro, sejam públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras" (cf. Floriano Aguiar Dias, Da
reparação dos danos no direito aéreo, no Boletim da Diretoria da Aeronáutica Civil, ano I, nQ3, ps. 15 e segs.).
693
José de Aguiar Dias
RE SP O N SA B lL É g
694
¿A ou iA R D ia s Da Responsabilidade Civil
696
^ A guiar D ia s Da Responsabilidade Civil
979 Epitácio Pessoa, parecer na Revista de Direito, vol. 94, ps. 118 e segs. Cf. Lafayette, Pareceres, vol. I, p.
60; João Monteiro, Aplicações de Direito, p. 351; Amaro Cavalcanti, Responsabilidade Civil do Estado, na
88, p. 531; acs. do Supremo Tribunal Federal nes 2.084, de 1917, e 2.674, de 1920, na Revista do Supremo
Tribunal Federal, vols. 13, p. 290 e 31, p. 66; ac. do Supremo Tribunal Federal de 28.09.38, na Revista
Forense, vol. 79, p. 431; Digest N. S. S. C. Reports, vol. V, p. 5.789; Federal Stat Anot., vol. VIU, p. 337.
No mesmo sentido, a magistral sentença do então juiz Otávio Kelly, na Revista Forense, vol. 58, p. 40,
decidindo que o poder publico, quando explora industrialmente dado serviço, está sujeito aos mes
mos preceitos que regem a situação dos particulares que se entregam a esse gênero de atividade.
980 Ob. dt., n" 66-A, p. 374.
697
José de AgUiar Uias Da R esp o n sab ^ «
981 Na resistência que opõem a essa teoria, os partidários das concepções dvilísticas perdem o amparo
inestimável de Mazeaud et Mazeaud, que reconhecem, no terreno do direito público, a influência
preponderante da ideia do risco (ob. dt., na 81, p. 93), apesar de todo o seu extremado apego à dou
trina da culpa.
698
A gu lar D ia s Da Responsabilidade Civil
igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, ideia inserta na consciência jurí
dica moderna" 982.
Para caracterizar a situação em que se configura a vioteção do princípio da
igualdade é ainda Duez que nos oferece a doutrina exata: "Todo prejuízo anormal,
excepcional, exorbitante pela sua natureza ou por sua importância, os incômodos e sacrifícios
correntes exigidos pela vida em sociedade e pela manutenção pacífica dessa sociedade, devem
ser considerados como violação da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos" 9S3.
Hauriou, pouco simpático à teoria do risco administrativo, procura restringir-
-lhe o alcance, advogando o reconhecimento de duas normas dominantes: a) o risco
deve permanecer como teoria excepcional, para ser aplicada somente quando a teo
ria da culpa se revele insuficiente; b) a evolução da culpa para o risco deve ser obra
da consagração legislativa e não expediente insidioso da jurisprudência984.
Embora rendendo homenagem ao mestre, Duez não deixa sem refutação a opi
nião acima resumida, observando que em primeiro lugar cumpre não perder de vis
ta a vítima do dano, a quem a teoria do risco é eminentemente favorável, facilitando-
-lhe a prova e assegurando-lhe reparação equitativa, no caso do acidente anônimo.
Por outro lado, é preciso considerar as obrigações pecuniárias da coletividade, con
seqüentes à adoção da teoria do risco. É quando os receios de Hauriou se revelam
ilógicos, pois nada nos pode levar a crer que, perigosa quando exercida pelos juizes,
a aplicação da doutrina deixe de o ser só pelo fato de se dar em conseqüência da con
sagração legislativa. Acontece, para mais, que a teoria do risco não se revela tão one
rosa como se receia, em relação ao patrimônio administrativo: " Incontestavelmente,
ela acarreta ônus suplementares; mas é preciso considerar, mais uma vez, as exigências da
equidade e da consciência jurídica moderna; não podemos negar que a solidariedade social se
acentua continuadamente e que é ela que induz à extensão da responsabilidade: torna-se cada
vez mais odioso sacrificar, mesmo por motivo de economia, o particular à razão do Estado.
982 Duez, ob. dt., p. 61. O emérito Amaro Cavalcanti já o dissera, ensinando que no objeto e fim do ente
coletivo - Estado - se incluem um poder superior, destinado a reger as relações ou interesses comuns,
e a obrigação desse poder de guardar e fazer guardar os direitos dos membros da coletividade. O
Estado existe em vista e para o bem dela. Pode, consequentemente, sacrificar os direitos individuais
quando o bem geral o exija. Mas o bem coletivo é o bem dos indivíduos que compõem o Estado. De
forma que os efeitos do mal imposto pelo Estado devem ser distribuídos pela coletividade, assim
como aufere ela os efeitos do bem comum, e isso vem a ser "[...] a obrigação lógica da coletividade de
indenizar o mal sofrido individualmente por um ato do Estado, repartida a sua cota pelos indivíduos, como o
exige a igualdade dos direitos e encargos que cada um deve ter na coletividade-Estado" (ob. dt., p. 312).
983 Ob. e loc. dts.
984 Em nota de jurisprudência, apud Duez, ob. cit., p. 62.
699
José de Aguiar Dias Da ResponsahI
>ade
O que convém estabelecer, para prevenir, o excesso prejudicial ao erário, são as suas
cláusulas de salvaguarda: a) a força maior exonera o Estado de responsabilidade; b) a culpa
da vitima constitui causa de isenção total ou parcial; c) o daño eventual, incerto, inexistente
afortori ou não apreciável não acarreta a responsabilidade; d) para que provoque a reparação,
é preciso que o dano seja direto; e) desconhecimento do dano moral",ss.
A crítica de Hauriou ao sistema do risco atribui-lhe também o defeito de adotar
ponto de vista anacrônico, pois que a doutrina, algum tempo fascinada pela teo
ria do risco, regressa às ideias clássicas986. E Duez quem reproduz a objeção, para
destruí-la. E preciso não confundir o ponto de vista legislativo com o direito positi
vo. Realmente, à luz do art. 1.382 do Código Civil francês, é difícil defender a ideia
do risco, mas em outros terrenos a doutrina objetiva não recuou: estabelecimentos
perigosos, incômodos e insalubres, minas, navegação aérea etc. Ao contrário do que,
iludidos, supõem seus adversários, a doutrina do risco não se retraiu porque sofres
se uma derrota, mas exatamente em virtude do bom êxito registrado na legislação.
Havendo recolhido esse triunfo, os partidários do risco se detiveram prudentemen
te, não querendo impor o risco como princípio universal da responsabilidade987.
No seu Direito Administrativo Brasileiro, 1966, p. 531, Hely Lopes Meireles
alude aos que sustentam a adoção, pela nossa Constituição, da teoria do risco inte
gral, declarando-se energicamente contrário a esse entendimento e preconizando a
do risco administrativo.
Sua opinião foi invocada, para admissão da influência da culpa da vítima, na
composição do dano a ser reparado pelas pessoas jurídicas de direito público (RTJ,
vol. 55, p. 49).
A opinião do exímio Seabra Fagundes é no sentido de que a Constituição ado
tou o princípio do risco criado (O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder
Judiciário, 2a ed., p. 218). Ela não importa, entretanto, adesão ao princípio do risco
integral, pois as expressões não são sinônimas e as conseqüências que o grande tra
tadista tira daí não comportam essa conclusão.
Escrevendo sobre o tema da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de di
reito público, o insigne jurista Alcino Pinto Falcão demonstrou, com a sua conhecida
força de argumentação: a) a superioridade do nosso direito relativo ao problema, em
985 Duez, ob. e loc. cits. Não vamos tão longe, no que toca ao dano moral. Apenas admitimos a neces
sidade de restiingir o seu reconhecimento, principalmente em presença da indenização do dano
patrimonial.
986 Ob. d t, p. 66.
987 Ob. e loc. dts.
700
R a o u ia R D ia s Da Responsabilidade Civil
701
José de Aguiar Dias
D a R bsponsabo©^^
988 Nota do atualizador - Para demonstrar a fatuidade da adjetivação em certas situações, Aguiar Dias pro
duziu esse saboroso comentário: "[...] Que é risco integral? Esta a indagação a que obriga a boa interpreta
ção, porque há quem sustente que o risco a que se deve ater o intérprete não é risco. Nós entendemos que
a definição de risco integral só pode referir-se à atividade do Estado, exercida mediante o desempenho,
por seus agentes, da parcela dessa atividade que lhes é atribuída. Fatos estranhos ao serviço não empe
nham a responsabilidade do Estado, por faltar-lhes a relação de causalidade, essencial à configuração da
responsabilidade civil. Se atentarmos para esse aspecto do problema e o tivermos como indispensável
à aplicação do princípio do risco, podemos definí-lo como integral, embora para a definição bastasse o
substantivo, porque o adjetivo, como acontece com a democracia, por exemplo, só provoca equívoco".
702
C a p ít u l o II
RESPONSABILIDADE DO ESTADO NA ORDEM
INTERNACIONAL
Sumário:
201. O E sta d o responde na ordem A in t e r v e n ç ã o
in t e r n a c io n a l com o um a u n id a d e .
202. N a t u r e z a j u r í d i c a
d ip l o m á t ic a c o m o r e s u l t a n t e d o e s g o t a m e n t o d o s r e c u r s o s i n t e r n o s .
989 Raul Fernandes, "Responsabilidade do Estado por dano irrogado ao estrangeiro", na Revista Forense,
vol. 55, p. 121.
990 L. A. Podestá Costa condensa em livro a doutrina sustentada em trabalhos anteriores e que se
resume na defesa da posição assumida pela generalidade dos países americanos com relação às
reclamações apresentadas pelas nações da Europa pelos danos sofridos pelos seus súditos em
conseqüência de movimentos revolucionários, endêmicos em certa parte da América. Expõe com
muita clareza e penetrante senso crítico os argumentos em que baseia sua tese de irresponsabi
lidade, e os sistematiza em um projeto de regulamento internacional, inspirado nos princípios
da comunidade da fortuna (La responsabilidad dei Estado por daños irogados a la persona o bienes de
estrangeros en luchas civiles, Havana, 1939).
991 Reconhecendo a existênda de uma lei superior, o armamentismo e o orgulho nacionalistas têm impe
dido, entretanto, um mais perfeito ordenamento jurídico controlador das atividades do Estado em
relação aos outros países. De forma que, progredindo em relação aos danos causados aos estrangei
ros em território do Estado ou por seus agentes, o direito internacional continua no plano platônico,
703