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Introdução
Tilman Evers
supermercados; milhares de camponeses
uem — ou o quê — se está marchando sobre cidades do interior em
movendo nos chamados novos busca de comida; uma rebelião armada
movimentos sociais na Améri- antimodernista (Sendero Luminoso); es-
ca Latina? Como, por que, tigmas de miséria, opressão política e
para onde? Nossas dúvidas aumentam à devastação cultural em praticamente to-
medida que proliferam os novos grupos dos os indivíduos de classe baixa. Para-
sociais: associações de trabalhadores or- lelamente a isso tudo, uma tradição bem
ganizados independentemente ou até em implantada de partidos políticos, dentre
oposição às estruturas sindicais tradicio- eles uma variedade de partidos leninistas
nais e aos partidos políticos; loteamentos semiclandestinos, e também tentativas de
um socialismo renovado e não-leninista
clandestinos que se organizam em mo-
(PT no Brasil; Convergência Socialista
vimentos; núcleos de moradores brotan- no Chile), associações profissionais efi-
do virtualmente em todas as grandes cientes e grupos de influência econômi-
cidades latino-americanas, comunicando- ca... É o suficiente para confundir
se entre si em nível local e até nacional; qualquer observador. Nada combina com
inúmeras comunidades de base da Igreja nada.
Católica expandindo-se em grandes áreas Não é apenas que a realidade esteja
rurais; associações indígenas irrompendo mudando: ela está fugindo a nossos mo-
espontaneamente no cenário político; dos de percepção e a nossos instrumentos
associações de mulheres e até mesmo gru- de interpretação. O que se diz a respeito
pos ostensivamente feministas; comitês dos países industrializados da Europa
de direitos humanos transformando-se ocidental provavelmente se aplica tam-
em focos de comunicação e consciência bém à América Latina: o liame entre os
social; encontros de jovens; atividades movimentos sociais e o conhecimento do
educacionais e artísticas em nível popu- social rompeu-se. Qualquer tentativa de
lar; coalizões pela defesa de tradições emendá-lo deve partir do doloroso reco-
e interesses regionais; movimentos de nhecimento da ruptura (Evers, A. &
defesa do meio ambiente; um tecido Szankay, 1981).
irregular de grupos de ajuda mútua entre Não sabemos o que sejam estes novos
desempregados e pessoas pobres. Tudo movimentos sociais, e qualquer direção
isso para ficar apenas nos exemplos dos que tomemos em busca de uma nova
três países em que tenho um pouco de compreensão, vai levar-nos a erros, em
experiência pessoal: Brasil, Chile e Peru. alguma medida- Paradoxalmente, isto
E nos mesmos países: criminalidade diminuiu o medo de errar e limpou a
causada pela fome; bandos assaltando área para "escolas", latino-americanas ou
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IDENTIDADE: A FACE OCULTA DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS
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não, de pensamento heterodoxo e criati- las, a começar pelos esforços constantes Ver as contribuições de
LECHNER, Norbert, Qué
vo.1 Uma vez que o erro maior, obvia- de auto-reflexão e expressão dos pró- significa hacer política?, Li-
ma, 1982; de ARAVENA,
mente, seria insistir em velhas categorias, prios movimentos sociais. Talvez uma Francisco Rojas, Autoritarismo
de comprovada inadequação, temos a li- indicação quanto à essência destes mo- y alternativas populares en
América Latina, San José,
berdade de experimentar. De certo modo, vimentos esteja precisamente em seu colección 25 anos FLACSO,
EUNED, 1982; ou então de
esta mesma experimentação fará parte empenho marcante — dos novos sindi- MOISÉS, José Álvaro e ou-
tros, Alternativas populares da
também do movimento. Como ponto de catos "autênticos" e das comunidades de democracia: Brasil, anos 80,
partida, talvez o mais prudente nesse base da Igreja Católica, por exemplo — Petrópolis, Vozes/CEDEC,
1982; ou ainda a coleção de
campo seja, exatamente, refletir sobre a em definir a si próprios como novos e artigos no número 64 da
Nueva Sociedad (Caracas):
ruptura entre realidade e percepção: o diferentes em relação à política tradi- "Nuevas formas de hacer po-
que, nestes novos fenômenos, subverte cional, e em se colocarem como funda- lítica", jan./feb. 1983. Os
trabalhos e autores citados nas
as nossas categorias? dores e guardiães de suas próprias tradi- notas seguintes são alguns
entre muitos exemplos.
As páginas seguintes pretendem ser ções e experiências sociais.
um ensaio nesta direção. As suas limita- A principal investida nesta busca de
ções necessárias estão claras desde o iní- identidade autônoma parece fazer-se con-
cio. O que quero dizer pode ser resumido tra a atitude e prática generalizadas de
em quatro pontos: tutelagem — que têm caracterizado a
1) O poder político como categoria cen- política tradicional na América Latina —
tral das ciências sociais é uma concepção em relação aos movimentos sociais. Isto
excessivamente limitada para o enten- aplica-se ao paternalismo conservador e
dimento dos novos movimentos sociais; à manipulação populista, tanto quanto à
o potencial destes não diz respeito prin- interpretação mecanicista da história que
cipalmente ao poder, e sim à renovação os marxistas latino-americanos herdaram
de padrões sócio-culturais e sócio-psíqui- da Terceira Internacional e que lhes
cos do quotidiano, penetrando a micro- permitiria conhecer o processo social
estrutura da sociedade. antecipadamente, legitimando, assim, a
2) O caminho deste processo criativo vanguarda iluminada que detém o saber
é necessariamente aberto, embrionário, necessário para comandar o processo de
descontínuo e permeado de contradições, gestação da futura revolução.2 De acordo 2
Há uma vasta literatura
portanto difícil de captar. São passos criticando esta concepção de
com esta concepção, aos movimentos so-
iniciais na direção de uma sociedade al- política. Por exemplo GAR-
ternativa, representando algo como a ciais caberia, na melhor das hipóteses, o CÍA, Henry Pease, "Vanguar-
dia iluminada y organización
"parte dos fundos", não organizada, da papel de "movimentos de massa", supos- de masas", Nueva Sociedad
tamente pouco estruturados, devendo (n.° 64) pp. 33-38, jan./feb.;
esfera social, cuja parte da frente — a MIRES, Fernando, "Retaguar-
dos reforços mútuos, sistêmicos e bem integrar-se às organizações de trabalhado- dias sin vanguardias", Nueva
Sociedad (n.° 61) pp. 35-54,
estabelecidos — é ocupada pela sociedade res, como o movimento social do prole- jul./ago. 1982; LECHNER,
tariado; ou ainda, teriam a função de Norbert, Revolución y rup-
dominante. tura pactada, Madrid, traba-
3) Numa primeira tentativa de dar nome fronts políticos especiais, destinados a lho apresentado no simpósio
"Caminhos de la democracia
à direção deste processo, talvez a dicoto- subordinar-se à liderança do partido, en América Latina", Funda-
mia "alienação-identidade" aponte algu- único organismo autorizado a "fazer po- tion Pablo Igresias, 30 de
maio a 5 de junho de 1983,
mas pistas. lítica". mimeo.
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desta interpretação: quem poderia negar específico, e sim a fatores situados nas
a importância do poder político? Entre- raízes do atual desenvolvimento social
tanto, pergunto-me se o poder é o único das sociedades capitalistas.
ou o mais importante potencial para a
transformação social que podemos encon-
trar nestes movimentos e grupos.
Muito menos pretendo postular a exis- 3. Pistas para uma
tência de domínios da vida social isentos compreensão diferente
de política; uma coisa que aprendemos
é que as relações de poder penetram em udo isso conduz à seguinte
todos os poros da vida social. Proponho- pergunta: é possível imaginar
me, em vez disso, a completar o raciocí- que a contribuição histórica
nio: está suficientemente claro que toda que os novos movimentos po-
relação de poder é permeada, em medida dem oferecer não esteja na ampliação do
ainda maior, pela vida social? Tratar de potencial político de uma esquerda re-
política como algo destacável da realidade volucionária, mas, ao contrário, na pos-
social não é, de modo algum, uma lei sibilidade de resgatar das tenazes da
natural, mas uma construção histórica da política (inclusive das da esquerda) frag-
sociedade burguesa que está profunda- mentos de uma vida social significativa?
mente arraigada nas formas de percepção Em outras palavras será que a "novida-
de gregos e troianos. É claro que a de" destes movimentos consiste no fato
secular prática social e intelectual desta de terem por objetivo a reapropriação da
separação teve seus suportes materiais sociedade por si mesma? Frente à ne-
nas estruturas sociais. Assim, um conhe- cessidade de organizar em argumentos o
cimento social organizado em torno da que é pouco mais que uma intuição, pro-
abstração de poder está muito bem esco- curarei defender esta idéia numa seqüên-
rado na experiência histórica. cia de quatro teses.
Contudo, sendo uma construção histó-
rica, nossa prática diária — a começar
por nosso modo de percepção — pode
ser orientada para reforçar ou atenuar Primeira Tese - O potencial
esta posição central e separada do poder. transformador dos novos
Minha impressão é que o elemento "no- movimentos sociais não é político
vo" dos novos movimentos sociais con- mas sócio-cultural
siste exatamente na criação de pequenos
espaços de prática social nos quais o á nos habituamos a encontrar
poder não é fundamental; e não conse- uma série de traços em comum
guiremos entender esta potencialidade na maioria dos novos movi-
enquanto a encararmos do ângulo de um mentos sociais (naturalmente,
poder apriorístico. não em todos eles). Dentre essas carac-
Um aspecto que sugere a possível terísticas repetidas, podemos destacar:
insuficiência das interpretações atuais é um número relativamente baixo de par-
que o surgimento dos novos movimentos ticipantes; estruturas não burocráticas e
sociais não está vinculado a situações até informais; formas coletivas de tomada
políticas específicas criadas pelas ditadu- de decisões; distanciamento social rela-
ras militares, nem a fragorosas derrotas tivamente pequeno entre liderança e de-
dos partidos de esquerda. Encontramos mais participantes; modos pouco teóricos
tais movimentos em países como a e imediatos de perceber e colocar os
Venezuela, que não sofreu ruptura na objetivos do movimento, etc. Muitos
orientação liberal, ou no Peru, onde a destes grupos estão diretamente envolvi-
esquerda tem reforçado sua influência dos em atividades culturais (no sentido
paralelamente ao surgimento de novos mais amplo); outros lançam mão da mú-
movimentos sociais. sica, teatro, dança, poesia e outras ma-
nifestações culturais para divulgar seus
O fato deste mesmo termo estar sendo objetivos. Para muitos membros, o sim-
usado para definir novas formas de ma- ples fato da participação implica forte
nifestação social também em países in- apelo de caráter educacional, mesmo
dustrializados, e de existirem analogias quando a motivação originária tenha sido
óbvias entre esses movimentos, é uma uma necessidade material como, por
indicação adicional de que eles não de- exemplo, a obtenção de reconhecimento
vem sua existência a um contexto político legal de áreas ocupadas para moradia.
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IDENTIDADE: A FACE OCULTA DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS
energia física para andar por aí criando Assim como a sociedade burguesa preci-
cultura popular e novas formas de so- sou de séculos de premonições culturais
ciabilidade. Com relação à cultura, a para sua gestação, permanecendo impro-
primeira preocupação é assegurar a si vável e inconcebível até o século XVIII
próprios sua dignidade humana, o que — argumentam eles — a cultura prole-
provavelmente consistirá num esforço de tária não encontrará sua própria expres-
imitação da cultura dominante. Qualquer são até o advento do socialismo. Na
forma de associação criada por eles será sociedade atual, a cultura proletária é
ditada por mera necessidade e desapa- perversamente organizada de modo a
recerá no momento mesmo em que as realçar a sua situação de dominada; qual-
necessidades mudem". quer elemento emancipatório que encon-
Sérias Objeções. A própria realidade tremos parecerá sempre desorganizado e
social parece conspirar contra o fato de capenga.
os "novos" movimentos sociais estarem
representando qualquer coisa de novo. Se Deixando de lado o fato de eu estar
há algo novo, sob que forma podemos atualmente bem menos seguro sobre o
encontrá-lo? Isto nos leva à próxima caráter proletário de futuras sociedades,
tese. essa é uma indicação precisa da dificul-
dade que estamos propensos a enfrentar
quando tentamos repensar o potencial
dos novos movimentos sociais. Não se-
Segunda Tese - A direção desta remos capazes de entender a lógica dos
fragmentos da nova prática social, a não
remodelação contra-cultural de ser no quadro de uma projeção utópica
padrões sociais está dispersa, de uma sociedade alternativa não-capita-
fazendo parte de uma utópica lista. Esta utopia teria de ser projetada
"face oculta" da esfera social a partir dos fragmentos de experiência
social que temos, numa tentativa de es-
deformada por sua "face visível" tabelecer seu hipotético ponto de con-
vergência. Mas, ao mesmo tempo, isto
se torna impossível pela pressão da so-
bviamente, os novos movimen- ciedade existente, que deforma estes frag-
tos sociais estão inseridos nos mentos deixando-os praticamente irreco-
contextos social e político do- nhecíveis .
minantes de seus respectivos Alguns exemplos:
países e de lá recebem seus contornos
originais. É neste quadro que a questão • No Brasil há constantes lutas entre
do potencial político desses movimentos posseiros, pequenos camponeses expulsos
é válida e necessária, e até aí nosso modo pela expansão do latifúndio capitalista,
de percepção habitual é adequado. Mas e tribos indígenas cujas terras os pri-
não captaremos nada de substancialmen- meiros invadem. É claro que ambos são
te novo nestes movimentos olhando-os vítimas do mesmo sistema de proprie-
por este prisma. dade da terra, ainda que colocados um
Se existirem mesmo elementos novos, contra o outro na luta pela sobrevivência.
é provável que apareçam sob formas tão • Por ocasião do II Encontro Feminista
desajeitadas que seremos incapazes de
da América Latina e Caribe, realizado
avaliá-las como tais, a não ser que antes
tenhamos adaptado nossas expectativas. perto de Lima, em julho de 1983, ocor-
Levando em consideração a pressão cons- reram graves tensões entre grupos femi-
tante da realidade existente, qualquer nistas e mulheres no que respeita à eman-
modelo que não se encaixe perfeitamente cipação feminina enquanto parte de uma
a esta realidade parecerá fraco, implausí- luta social geral. Além disso, represen-
vel, fragmentado, desorganizado, descon- tantes índias e negras sentiram-se excluí-
tínuo e contraditório. das por causa do local relativamente re-
A esta altura lembro-me de algo escrito finado da conferência e pelas altas taxas
dez anos atrás por Negt e Kluge um de inscrição. As lésbicas detectaram bar-
sociólogo e um cineasta que trabalharam reiras psicológicas contra a colocação de
juntos com cultura proletária: "sob a seus interesses. Todas estas divisões são
dominação capitalista plenamente esta- muito palpáveis e dificultam a solidarie-
belecida, a cultura proletária é coerente dade feminina que, em perspectiva, con-
apenas na perspectiva da não-emancipa- tribuiria para superar todos os mecanis-
ção; na perspectiva da emancipação é mos da sociedade capitalista e patriarcal
incoerente" (Negt & Kluge, p. 485). que criou estas cisões.
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IDENTIDADE: A FACE OCULTA DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS
No meu modo de ver, a rebelião con- O que significa identidade? Pode ser
tra a sociedade existente embutida nos que não haja uma definição precisa para
novos movimentos sociais não é dirigida o termo, como também é possível que
contra qualquer aspecto específico da so- não existam definições para os outros
ciedade capitalista, ainda que os diferen- dois termos que formam um continuum
tes movimentos tendam para a especiali- com o primeiro: "autonomia" e "eman-
zação em torno das questões que trou- cipação". "Identidade" é, provavelmen-
xeram à luz cada um deles. A investida te, uma das noções mais multifacetadas
parece voltar-se contra a alienação en- e intrigantes das ciências humanas; tomá-
quanto tal, sob todos os aspectos. Alie- la como um aspecto central dos novos
nação do homem em relação a si mesmo, movimentos sociais não é uma resposta
ao produto do seu trabalho, a outros se- aos enigmas destes movimentos, e sim
res humanos e à natureza (Kärner, p. 26). uma pista para as possíveis respostas.
Na direção oposta, a perspectiva final é O termo "identidade" refere tantos
a de uma sociedade libertária, igualitária aspectos quanto o termo "alienação", ao
e comunitária, de "uma associação na qual se contrapõe. Qualquer dominação
qual o desenvolvimento pleno de cada é uma usurpação de identidade — e que
um é a condição para o desenvolvimento forma de dominação deixou de se abater
pleno de todos" (Marx/Engels, Manifes- sobre a América Latina? Dentro dos li-
to Comunista). mites de suas forças, nenhum movimen-
É possível que este seja um objetivo to social pode ir além de tentar recuperar
que nunca poderá ser atingido; e o sim- fragmentos muito específicos de identi-
ples fato de mencioná-lo não seria puro dade, lutando em um (ou em alguns pou-
sarcasmo frente à realidade atual na Amé- cos) dos muitos fronts possíveis de do-
rica Latina? Mesmo para se dar o pri- minação e aceitando, assim, o status quo
meiro passo é necessário ter uma dire- em todos os outros fronts. Exatamente
ção em mente; uma das razões da crise por isso são inevitáveis as contradições
da esquerda latino-americana pode ser a dentro dos movimentos e também entre
perda de utopia, ao menos enquanto eles, o que lhes dificulta a coesão tanto
perspectiva libertária. prática quanto conceitualmente.
Naturalmente, durante o longo pro- Contudo, neste sentido de locus de um
cesso de ruptura com a alienação, o que problema central, a idéia de identidade
pode ser de relevância prática para os — nesse enunciado ou em outro — pa-
movimentos sociais atuais são os primei- rece estar cada vez mais na mente dos
ros e tímidos passos no sentido de tor- participantes e observadores desses mo-
narem-se sujeitos de sua própria história. vimentos. Para citar alguns exemplos re-
Talvez a noção de identidade seja mais centes — e muitos incidentais: "Talvez,
adequada para esboçar os conteúdos bá- o grande tema produzido pelos movimen-
sicos destes primeiros passos: tanto a tos sociais para a prática da esquerda seja
nível individual ou coletivo, a primeira a questão da autonomia", escreve Mari-
tarefa, difícil, consiste em chegar a uma lena Chauí, membro do PT (Chauí, 1982,
autopercepção realista de suas próprias p. 77). Com relação à Argentina, Juan
características, potenciais e limitações, Carlos Portantiero define a crise atual
superando falsas identidades outorgadas "como uma crise de identidade numa
de fora, e atravessando as tempestades sociedade com a necessidade de mudar
em que se alternam excesso e ausência todos os seus valores fundamentais" 5
Citado por Clatita Müller-
de auto-estima. Fundamentalmente, isto (Portantiero, 1983, p. 15). Para o caso Plantenberg, Wer sind die
Subjekte der Interessenver-
significa reafirmar a própria dignidade chileno, Tomás Moulián clama por uma tretung im neoliberalen Wirts-
chafts-und Gesellschaftsmodell
humana diante da experiência diária de visão de política "na qual o centro de in Lateinamerika?, trabalho
miséria, opressão e devastação cultural. ação repouse na reconstrução do movi- apresentado ao seminário:
"Massenkultur und religiose
Nos casos mais favoráveis, isto pode sig- mento social, de células de uma hegemo- und soziale Bewegungen",
nificar uma contribuição para a cultura nia alternativa" (Moulián, 1982, p. 663). Bielefeld (West Germany),
7 /8 d e junho 1 9 8 3 , m im eo ,
popular ou mesmo para a auto-identífi- Um folheto convocando para o Segundo p. 3 8. Ver do mesmo autor:
La vida por la vida. Autono-
cação nacional, especialmente depois de Dia Nacional de Protesto no Chile, em me Frauenkomitees, Indianer-
crises sociais. Poderíamos traçar a linha 4 de julho, resume a experiência do Pri- rate und Basisgruppen, in,
mesmo autor (ed.): Frauen
divisória entre organizações sociais tradi- meiro Dia de Protesto (11 de maio) como und Familie im chilenischen
cionais e o campo dos fenômenos "dife- Befreiungsproze, Frankfurt,
"um sucesso, porque nos permitiu re- Vervuert, 1983; e também
rentes" que, a partir desta busca de uma descobrir nossa identidade como povo Überlebenskampf und Selbst-
b estim mu n g . Zu r A rb eiter
identidade autônoma, convencionamos livre e soberano". 5 Na Venezuela, já und Volksbewegung in Ko-
chamar de "novos movimentos sociais". existe um movimento sintomaticamente
lumbianiscben Stadten, Frank-
furt, Vervuert, 1983.
de longa tradição dentro da literatura sociais geram os embriões dos 53. A lista de citações poderia
ser indefinida. Ver por exemplo:
latino-americana. Antes, e mais insisten- sujeitos correspondentes SINGER, Paul e Brant,
Vinicius Caldeira, (org.): O
povo em movimento, Petró-
temente que os cientistas sociais, os es- polis, Vozes/CEBRAP, 1980.
critores latino-americanos interpretaram
a irresolvida "questão nacional" como o decorrer da criação de novos
uma questão de falta de identidade. padrões da prática sócio-cultu-
ral e de reconstrução de frag-
É possível que as tentativas de resol-
mentos de uma identidade au-
ver a "questão nacional" dentro dos pa- tônoma, os indivíduos e os grupos como
radigmas da política tradicional estives- um todo constituem-se em sujeitos deste
sem desde o início destinadas ao fracasso. processo. Para ser mais preciso, desen-
Por definição, identidade é algo do tipo volvem dentro de si mesmos os fragmen-
faça-você-mesmo, que não nos pode ser tos correspondentes de um novo "ser su-
dado por outrem e, menos ainda, vir da jeito". Naturalmente, isto implica uma
estratosfera do poder político. Deve ser profunda revisão das concepções tradi-
construída desde baixo, sobre a base de cionais sobre sujeitos sociais e sobre o
uma prática social consciente e autode- processo de sua constituição.
terminada — mais uma vez, aspectos que
eu associo aos novos movimentos sociais. Dentro da tradição marxista, os sujei-
tos sociais têm existência objetiva a
Ao mesmo tempo, os problemas princi-
priori, sob a forma de classes sociais.
pais que certos movimentos devem en-
Elas se constituem subjetivamente como
frentar têm origem na dominação e ex- classe através do desenvolvimento de
ploração das classes mais baixas. Assim, uma consciência que aos poucos se apro-
também a "questão social" está muito xima desta realidade objetiva; a conver-
presente nestes movimentos. Talvez, o são em atores políticos passa pela amplia-
elo muito procurado entre a questão na- ção da organização que representa esta
cional e a questão social possa efetiva- consciência plena da realidade através da
mente ser encontrado no "trabalho-de- incorporação de um número crescente de
formiga" diário destes movimentos para indivíduos.
resgatar à sociedade dominante pedaços
Nada disso parece sustentar nossa com-
de vida expressiva individual e coletiva.
preensão atual dos processos sociais na
Ademais, é provável que este tipo de América Latina. Não podemos mais con-
existência dotada de sentido não possa ceber uma utopia positiva como uma
ser encontrado em nenhum outro lugar. meta histórica fixa, a ser atingida atra-
As altitudes olímpicas da totalidade na- vés de mecanismos preestabelecidos; de-
cional, de onde alguns herdeiros da teo- vemos imaginá-la como um processo lon-
ria da dependência estão buscando este go e sinuoso de emancipação cujo des-
elo, estão definitivamente longe demais fecho — se é que existe um — é desco-
da base social para captar esta constru- nhecido. Conseqüentemente, o sujeito se-
ção popular. ria o indivíduo plenamente realizado den-
E, quem sabe, este lado oculto dos tro de uma sociedade desalienada — em
novos movimentos sociais pode esconder outros termos, um sujeito não encontrá-
também a profunda necessidade da rea- vel no começo, mas que aparecerá apenas
valiação da democracia enquanto noção no hipotético final do processo. É até
central no âmbito das recentes discussões. que chegue este momento haverá algu-
A identidade não pode ser encontrada mas dialéticas difíceis: um progresso em
dentro de estruturas autoritárias e, mais termos de estruturas sociais dependerá
que isso, exclui a uniformidade: só pode de um progresso do sujeito e vice-versa.
se desenvolver na diversidade, que re- É mais que provável que não haja nada
quer um cenário político no qual "todas além de um rudimentar sujeito-por-ser,
as vozes, todas" (como diz uma canção lutando contra as inacabadas estruturas-
chilena) possam ser ouvidas. Assim, em- sendo-feitas que lhe correspondem.
bora fracos e fragmentados, os novos mo- Se isto for verdade, as conseqüências
vimentos sociais detêm uma posição cha- para as nossas maneiras tradicionais de
ve para qualquer projeto emancipatório conceituar sujeitos históricos não pode-
na América Latina. Eles são um projeto riam ter mais alcance. Dois aspectos sal-
emancipatório. tam à vista.
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IDENTIDADE: A FACE OCULTA DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS
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IDENTIDADE: A FACE OCULTA DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS
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