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1.

Introdução
Tilman Evers
supermercados; milhares de camponeses
uem — ou o quê — se está marchando sobre cidades do interior em
movendo nos chamados novos busca de comida; uma rebelião armada
movimentos sociais na Améri- antimodernista (Sendero Luminoso); es-
ca Latina? Como, por que, tigmas de miséria, opressão política e
para onde? Nossas dúvidas aumentam à devastação cultural em praticamente to-
medida que proliferam os novos grupos dos os indivíduos de classe baixa. Para-
sociais: associações de trabalhadores or- lelamente a isso tudo, uma tradição bem
ganizados independentemente ou até em implantada de partidos políticos, dentre
oposição às estruturas sindicais tradicio- eles uma variedade de partidos leninistas
nais e aos partidos políticos; loteamentos semiclandestinos, e também tentativas de
um socialismo renovado e não-leninista
clandestinos que se organizam em mo-
(PT no Brasil; Convergência Socialista
vimentos; núcleos de moradores brotan- no Chile), associações profissionais efi-
do virtualmente em todas as grandes cientes e grupos de influência econômi-
cidades latino-americanas, comunicando- ca... É o suficiente para confundir
se entre si em nível local e até nacional; qualquer observador. Nada combina com
inúmeras comunidades de base da Igreja nada.
Católica expandindo-se em grandes áreas Não é apenas que a realidade esteja
rurais; associações indígenas irrompendo mudando: ela está fugindo a nossos mo-
espontaneamente no cenário político; dos de percepção e a nossos instrumentos
associações de mulheres e até mesmo gru- de interpretação. O que se diz a respeito
pos ostensivamente feministas; comitês dos países industrializados da Europa
de direitos humanos transformando-se ocidental provavelmente se aplica tam-
em focos de comunicação e consciência bém à América Latina: o liame entre os
social; encontros de jovens; atividades movimentos sociais e o conhecimento do
educacionais e artísticas em nível popu- social rompeu-se. Qualquer tentativa de
lar; coalizões pela defesa de tradições emendá-lo deve partir do doloroso reco-
e interesses regionais; movimentos de nhecimento da ruptura (Evers, A. &
defesa do meio ambiente; um tecido Szankay, 1981).
irregular de grupos de ajuda mútua entre Não sabemos o que sejam estes novos
desempregados e pessoas pobres. Tudo movimentos sociais, e qualquer direção
isso para ficar apenas nos exemplos dos que tomemos em busca de uma nova
três países em que tenho um pouco de compreensão, vai levar-nos a erros, em
experiência pessoal: Brasil, Chile e Peru. alguma medida- Paradoxalmente, isto
E nos mesmos países: criminalidade diminuiu o medo de errar e limpou a
causada pela fome; bandos assaltando área para "escolas", latino-americanas ou

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IDENTIDADE: A FACE OCULTA DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS

1
não, de pensamento heterodoxo e criati- las, a começar pelos esforços constantes Ver as contribuições de
LECHNER, Norbert, Qué
vo.1 Uma vez que o erro maior, obvia- de auto-reflexão e expressão dos pró- significa hacer política?, Li-
ma, 1982; de ARAVENA,
mente, seria insistir em velhas categorias, prios movimentos sociais. Talvez uma Francisco Rojas, Autoritarismo
de comprovada inadequação, temos a li- indicação quanto à essência destes mo- y alternativas populares en
América Latina, San José,
berdade de experimentar. De certo modo, vimentos esteja precisamente em seu colección 25 anos FLACSO,
EUNED, 1982; ou então de
esta mesma experimentação fará parte empenho marcante — dos novos sindi- MOISÉS, José Álvaro e ou-
tros, Alternativas populares da
também do movimento. Como ponto de catos "autênticos" e das comunidades de democracia: Brasil, anos 80,
partida, talvez o mais prudente nesse base da Igreja Católica, por exemplo — Petrópolis, Vozes/CEDEC,
1982; ou ainda a coleção de
campo seja, exatamente, refletir sobre a em definir a si próprios como novos e artigos no número 64 da
Nueva Sociedad (Caracas):
ruptura entre realidade e percepção: o diferentes em relação à política tradi- "Nuevas formas de hacer po-
que, nestes novos fenômenos, subverte cional, e em se colocarem como funda- lítica", jan./feb. 1983. Os
trabalhos e autores citados nas
as nossas categorias? dores e guardiães de suas próprias tradi- notas seguintes são alguns
entre muitos exemplos.
As páginas seguintes pretendem ser ções e experiências sociais.
um ensaio nesta direção. As suas limita- A principal investida nesta busca de
ções necessárias estão claras desde o iní- identidade autônoma parece fazer-se con-
cio. O que quero dizer pode ser resumido tra a atitude e prática generalizadas de
em quatro pontos: tutelagem — que têm caracterizado a
1) O poder político como categoria cen- política tradicional na América Latina —
tral das ciências sociais é uma concepção em relação aos movimentos sociais. Isto
excessivamente limitada para o enten- aplica-se ao paternalismo conservador e
dimento dos novos movimentos sociais; à manipulação populista, tanto quanto à
o potencial destes não diz respeito prin- interpretação mecanicista da história que
cipalmente ao poder, e sim à renovação os marxistas latino-americanos herdaram
de padrões sócio-culturais e sócio-psíqui- da Terceira Internacional e que lhes
cos do quotidiano, penetrando a micro- permitiria conhecer o processo social
estrutura da sociedade. antecipadamente, legitimando, assim, a
2) O caminho deste processo criativo vanguarda iluminada que detém o saber
é necessariamente aberto, embrionário, necessário para comandar o processo de
descontínuo e permeado de contradições, gestação da futura revolução.2 De acordo 2
Há uma vasta literatura
portanto difícil de captar. São passos criticando esta concepção de
com esta concepção, aos movimentos so-
iniciais na direção de uma sociedade al- política. Por exemplo GAR-
ternativa, representando algo como a ciais caberia, na melhor das hipóteses, o CÍA, Henry Pease, "Vanguar-
dia iluminada y organización
"parte dos fundos", não organizada, da papel de "movimentos de massa", supos- de masas", Nueva Sociedad
tamente pouco estruturados, devendo (n.° 64) pp. 33-38, jan./feb.;
esfera social, cuja parte da frente — a MIRES, Fernando, "Retaguar-
dos reforços mútuos, sistêmicos e bem integrar-se às organizações de trabalhado- dias sin vanguardias", Nueva
Sociedad (n.° 61) pp. 35-54,
estabelecidos — é ocupada pela sociedade res, como o movimento social do prole- jul./ago. 1982; LECHNER,
tariado; ou ainda, teriam a função de Norbert, Revolución y rup-
dominante. tura pactada, Madrid, traba-
3) Numa primeira tentativa de dar nome fronts políticos especiais, destinados a lho apresentado no simpósio
"Caminhos de la democracia
à direção deste processo, talvez a dicoto- subordinar-se à liderança do partido, en América Latina", Funda-
mia "alienação-identidade" aponte algu- único organismo autorizado a "fazer po- tion Pablo Igresias, 30 de
maio a 5 de junho de 1983,
mas pistas. lítica". mimeo.

4) Embutida neste processo está a cria- Tentando abandonar as interpretações


ção de seus próprios sujeitos. Estes não da tradição marxista que, de certa manei-
podem ser pensados, por enquanto, como ra, reforçam o monopólio político dos
entidades sociais ou individualidades partidos, os intelectuais latino-america-
completas, mas antes como fragmentos nos viram estes ensaios de ação autôno-
de subjetividade atravessando a cons- ma dos movimentos sociais como um
ciência e a prática de pessoas e organi- alargamento da esfera "do político". Os
zações. esforços das ditaduras militares para
suprimir a participação política, fechando
os canais tradicionais de articulação tive-
2. Algumas interpretações ram o efeito exatamente oposto de poli-
atuais: Expandindo a esfera tizar as primeiras manifestações sociais
"do político" por moradia, consumo, cultura popular
e religião. Surgindo durante um período
aturalmente, reconhecer que
de profunda crise das esquerdas — me-
não sabemos exatamente o que
sejam estes movimentos não nos devido à repressão do que ao próprio
significa que não saibamos malogro teórico e prático — a criação de
nada sobre eles. Ao contrário, dispomos formas novas e autônomas de expressão
de uma quantidade de reflexões parale- social foi tanto uma necessidade quanto

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uma oportunidade. A grande diversidade rar a política como uma esfera especia-
de grupos, cursos, centros de ajuda mú- lizada, para a qual contribuem as várias
tua, comitês, e assim por diante, é "es- manifestações da vida social e a partir
pontânea" apenas no sentido de não se- da qual estas manifestações podem ser
guir planos comuns e de não obedecer a alteradas. Conseqüentemente, a questão
nenhum controle central; com efeito, esta global orientadora desta nova linha de
"espontaneidade" representa um árduo e pensamento não mudou em relação ao
paciente "trabalho de formiga", de orga- raciocínio tradicional. Reavaliar a função
nização e estruturação de pequenos política dos movimentos de base significa
núcleos na tentativa de enfrentar as agru- que ainda estamos procurando o seu po-
ras do quotidiano. Se houve qualquer tencial político, apenas a partir de uma
forma organizativa centralizada por trás ótica melhor.4
disso tudo, foi a Igreja Católica, através Mesmo quando falamos sobre movi-
de seus setores progressistas, que em- mentos sociais, obviamente não estamos
prestou seu teto para muitas destas interessados nos novos agentes sociais
iniciativas. que emergem deles, mas nos agentes po-
Paralelamente à emergência de novos líticos; não estamos prestando atenção às
campos de ação política, começaram a novas formas de "fazer a sociedade",
surgir novas formas análogas de "fazer mas de "fazer política". Numa palavra,
política", e também os novos agentes nossa medida universal continua a ser a
políticos (Lechner, 1983; Mires, 1982). do poder: o que representam estas novas
De acordo com esta linha de interpreta- práticas convertidas à moeda universal
ção, atualmente a tarefa intelectual con- de poder?
siste em "pensar a construção de uma Junto com os pontos de ruptura, pa-
nova hegemonia através da intervenção receram existir linhas de continuidade
direta das massas, assegurando uma re- semiconsciente em nossa maneira de pen-
conceituação da política que amplie sua sar, que fazem com que todo o projeto
esfera e recupere, enquanto ação válida, teórico pareça mais uma "flexibilização"
o vasto campo popular com seu quotidia- de velhos conceitos do que a sua supe- 3
MIRES, Fernando, op. cit.,
no, aceitando deste modo o desafio de p. 35; e do mesmo autor:
ração. A lista "oficial" de atores políticos "Acerca de la necessidad y
visualizar um projeto social a partir do e de formas de ação organizadas em torno las condiciones que se dan en
Chile para el surgimiento no
enfoque da prática das classes populares" do Estado e da esfera da produção, recebe necessariamente en plazos
(H. P. Garcia, 1983, p. 38). Ao invés de os importantes adendos da "sociedade inmediatos de un nuevo par-
tido político". Oldenburg,
uma perspectiva "partidista", trata-se de civil" e dos "movimentos sociais". Com mimeo, agosto 1983.
exigir uma visão "movimentista". 3 isto, a produção cultural, assim como 4
Esta foi a linha básica de
toda a esfera da reprodução, vêem-se meus trabalhos anteriores so-
bre os movimentos sociais la-
aceitas como campos políticos válidos tino-americanos (mas não in-
venção minha); explicitamen-
(Evers, Müller-Plantenberg, Spessart, te, por exemplo, Tilman
Evers, Clarita Müller-Planten-
ste raciocínio — cuja riqueza 1979). Sob a categoria de "hegemonia" berg, Stefanie Spessart: "Stadt-
não me é possível sintetizar está a crença de que dentro da perspec- teilbewegung
Kampfe in
und Staat.
Reproductionsbe-
em poucas frases — tem pos- tiva de um movimento anticapitalista, reich in Lateinamerika", La-
teinamerika, Analysen und Be-
sibilitado valiosos avanços no uma realidade multifacetada (Gramsci) e richte, Vol. 3, Berlin, Olle
uma identidade multiclassista (Laclau e & Wolter, 1979, pp. 118-170.
sentido de uma compreensão adequada (Versão em espanhol: Movi-
dos novos movimentos sociais. Longe de outros) não são apenas inevitáveis mas mientos barriales y estado.
Luchas en la esfera de la
considerar estes avanços como falsos, sin- categoricamente indispensáveis. Admite- reproducción en América La-
tina. Bogotá: CINEP, 1983,
to-me inteiramente aliado a eles; minha se também que estes novos atores políti- Colección Teoria y Sociedad
cos não sejam secundários em relação aos n.° 11.) Versão em português:
dúvida é até onde conseguirão ir na MOISÉS José Álvaro, e ou-
busca de novos conceitos. Creio que al- partidos políticos mas, no mínimo, equi- tros, Cidade, Povo e Poder,
Rio de Janeiro, Paz e Terra/
guns parâmetros das concepções tradicio- valentes. CEDEC, 1981, pp. 110-164;
ver também EVERS, Tilman,
nais criticadas escaparam à crítica e con- Não obstante, o objetivo principal Os movimentos sociais urba-
nos: o caso do "Movimento
seguiram infiltrar-se no interior das novas desta reformulação é encontrar maneira do Custo de Vida" in, MOI-
linhas de pensamento. de intensificar o potencial político no SÉS, J. A. e outros, Alter-
nativas populares da demo-
Basicamente, isto se aplica à idéia âmbito da realidade recentemente des- cracia, op. cit., pp. 73-98 (ver-
são em espanhol); Revista
mesma da posição central da política. coberta. Em conseqüência, no fim da Mexicana de Sociologia (n.°
4), pp. 1371-1393, 1981. Con-
Quando falamos em "repensar a políti- discussão emerge a figura de um novo tudo, a "mensagem central
ca" ou em "alargar a esfera do político", partido político (Mires, 1983). Novo, destes trabalhos era no sen-
tido de afirmar que o poten-
permanece intocada a referência central diferente, incomparável, extraordinário, cial político perdeu-se devi-
do aos métodos de instru-
e definidora da política propriamente democrático — mas, de qualquer modo, mentalização dos movimentos
um partido político. sociais pelos partidos de es-
dita. Como um último reduto do centra- querda, e que sua autono-
Não pretendo questionar a validade mia deveria ser respeitada".
lismo conceitual, continuamos a conside-

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IDENTIDADE: A FACE OCULTA DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS

desta interpretação: quem poderia negar específico, e sim a fatores situados nas
a importância do poder político? Entre- raízes do atual desenvolvimento social
tanto, pergunto-me se o poder é o único das sociedades capitalistas.
ou o mais importante potencial para a
transformação social que podemos encon-
trar nestes movimentos e grupos.
Muito menos pretendo postular a exis- 3. Pistas para uma
tência de domínios da vida social isentos compreensão diferente
de política; uma coisa que aprendemos
é que as relações de poder penetram em udo isso conduz à seguinte
todos os poros da vida social. Proponho- pergunta: é possível imaginar
me, em vez disso, a completar o raciocí- que a contribuição histórica
nio: está suficientemente claro que toda que os novos movimentos po-
relação de poder é permeada, em medida dem oferecer não esteja na ampliação do
ainda maior, pela vida social? Tratar de potencial político de uma esquerda re-
política como algo destacável da realidade volucionária, mas, ao contrário, na pos-
social não é, de modo algum, uma lei sibilidade de resgatar das tenazes da
natural, mas uma construção histórica da política (inclusive das da esquerda) frag-
sociedade burguesa que está profunda- mentos de uma vida social significativa?
mente arraigada nas formas de percepção Em outras palavras será que a "novida-
de gregos e troianos. É claro que a de" destes movimentos consiste no fato
secular prática social e intelectual desta de terem por objetivo a reapropriação da
separação teve seus suportes materiais sociedade por si mesma? Frente à ne-
nas estruturas sociais. Assim, um conhe- cessidade de organizar em argumentos o
cimento social organizado em torno da que é pouco mais que uma intuição, pro-
abstração de poder está muito bem esco- curarei defender esta idéia numa seqüên-
rado na experiência histórica. cia de quatro teses.
Contudo, sendo uma construção histó-
rica, nossa prática diária — a começar
por nosso modo de percepção — pode
ser orientada para reforçar ou atenuar Primeira Tese - O potencial
esta posição central e separada do poder. transformador dos novos
Minha impressão é que o elemento "no- movimentos sociais não é político
vo" dos novos movimentos sociais con- mas sócio-cultural
siste exatamente na criação de pequenos
espaços de prática social nos quais o á nos habituamos a encontrar
poder não é fundamental; e não conse- uma série de traços em comum
guiremos entender esta potencialidade na maioria dos novos movi-
enquanto a encararmos do ângulo de um mentos sociais (naturalmente,
poder apriorístico. não em todos eles). Dentre essas carac-
Um aspecto que sugere a possível terísticas repetidas, podemos destacar:
insuficiência das interpretações atuais é um número relativamente baixo de par-
que o surgimento dos novos movimentos ticipantes; estruturas não burocráticas e
sociais não está vinculado a situações até informais; formas coletivas de tomada
políticas específicas criadas pelas ditadu- de decisões; distanciamento social rela-
ras militares, nem a fragorosas derrotas tivamente pequeno entre liderança e de-
dos partidos de esquerda. Encontramos mais participantes; modos pouco teóricos
tais movimentos em países como a e imediatos de perceber e colocar os
Venezuela, que não sofreu ruptura na objetivos do movimento, etc. Muitos
orientação liberal, ou no Peru, onde a destes grupos estão diretamente envolvi-
esquerda tem reforçado sua influência dos em atividades culturais (no sentido
paralelamente ao surgimento de novos mais amplo); outros lançam mão da mú-
movimentos sociais. sica, teatro, dança, poesia e outras ma-
nifestações culturais para divulgar seus
O fato deste mesmo termo estar sendo objetivos. Para muitos membros, o sim-
usado para definir novas formas de ma- ples fato da participação implica forte
nifestação social também em países in- apelo de caráter educacional, mesmo
dustrializados, e de existirem analogias quando a motivação originária tenha sido
óbvias entre esses movimentos, é uma uma necessidade material como, por
indicação adicional de que eles não de- exemplo, a obtenção de reconhecimento
vem sua existência a um contexto político legal de áreas ocupadas para moradia.

14 NOVOS ESTUDOS N.º 4


Muito freqüentemente, os observado- damente em ação pelos atores sociais.
res vêem nessas características uma indi- São os milhões de pequenos atos quoti-
cação da natureza fraca e pré-política dianos de obediência irrefletida à ordem
desses agrupamentos. De acordo com esse existente que criam, reproduzem e refor-
ponto de vista, atividades culturais são çam as estruturas sociais.
uma camuflagem tática ou uma ingenui- Esta prática diária é pré-representada
dade política. E enquanto estes movimen- nos indivíduos através dos modos de
tos forem obrigados a sobreviver e lutar percepção, crenças, valores e orientações,
dentro de uma dada realidade de poder, a maior parte deles operando inconscien-
este postulado é justificável. temente. Nenhuma estrutura de domina-
Entretanto, pode ser que haja um ou- ção social poderia resistir se não existisse
tro lado da moeda em que estas formas essa representação nos planos sócio-cultu-
de associação e atuação não apareçam ral e psíquico-social.
negativamente como formas imaturas de
É dentro desta estrutura celular da
fazer política, mas sim positivamente,
embriões de uma vida social menos es- sociedade que o "fazer diferente" quoti-
tigmatizada pelos flagelos do capitalismo diano dos novos grupos sociais guarda
atual na sua versão periférica. Por que a suas metas. Exatamente porque esta "mi-
experiência da cooperação deveria ser crofísica do poder" depende de realização
ilegítima numa sociedade marcada pela subconsciente, até mesmo os modelos
feroz competição pela sobrevivência? Por raros e débeis de uma prática social di-
que relações pessoais fundadas em bases vergente representam um perigo em po-
mais igualitárias do que utilitárias deve- tencial, pelo menos enquanto a tendência
riam ser consideradas imaturas num meio for no sentido de questionar o au-
capitalista cuja tendência é converter tomatismo inconsciente da obediência.
toda vida social em relações de mercado? Criando espaços de relações mais solidá-
A cultura, enquanto campo originário da rias, de consciência menos dirigida pelo
expressão humana, terá de esperar pela mercado, de manifestações culturais me-
revolução? A solidariedade tem somente nos alienadas ou de valores e crenças
valor instrumental no contexto de certos básicas diferentes, estes movimentos re-
fins políticos? E com relação às ativida- presentam uma constante dose de ele-
des explicitamente políticas de alguns mento estranho dentro do corpo social do
destes movimentos, como por exemplo capitalismo periférico.
os sindicatos "autênticos" em São Paulo: Naturalmente, qualquer resultado que
por que suas tentativas de juntar inte- esperemos desta "contra-cultura microló-
resses sociais com a expressão política gica" só aparecerá a longo prazo. Mas
destes interesses em suas próprias mãos durante este longo processo, ter-se-á de-
deveriam ser consideradas formas polí- monstrado algo muito mais incontestável
ticas menos válidas do que aquelas pra- e irreversível do que as muitas transfor-
ticadas por mediadores burocráticos pro- mações abruptas na cúpula do poder,
fissionais? exatamente porque terá criado raízes na
Assim, a capacidade inovadora desses prática diária e nas orientações essen-
movimentos parece basear-se menos em ciais correspondentes, em que se funda-
seu potencial político e mais em seu mentam todas as estruturas sociais. Por
potencial, para criar e experimentar for- essas razões, e por acreditar que política
mas diferentes de relações sociais quoti- é um elemento constante dentro da vida
dianas. É evidente que este processo está social e não separada desta última, creio
ocorrendo nos subterrâneos das estrutu- que o potencial sócio-cultural dos novos
ras de poder; provavelmente jamais con- movimentos sociais pode revelar-se como
seguirão desenvolver-se de forma autô- mais político do que a ação imediata-
noma até transformar-se numa ameaça mente orientada na direção das estruturas
revolucionária à sociedade dominante. de poder existentes.
Mas isto seria relevante? Quando discuto este ponto com minha
A consciência de que as estruturas compañera, suas Objeções surgem de ime-
sociais não têm existência fora da prática diato. Ela diz: "você deve estar pensando
social está cada vez mais difundida. As nas associações de classe média ou, na
retificações destas estruturas — tecno- melhor das hipóteses, nas comunidades
logia, interpretações, leis, etc. — não eclesiais de base de São Paulo, com seu
poderiam, por si mesmas, sustentar o forte componente de classe trabalhadora.
sistema dominante por um minuto se- Os setores realmente marginalizados da
quer, não fossem elas colocadas adequa- população pobre simplesmente não têm

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IDENTIDADE: A FACE OCULTA DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS

energia física para andar por aí criando Assim como a sociedade burguesa preci-
cultura popular e novas formas de so- sou de séculos de premonições culturais
ciabilidade. Com relação à cultura, a para sua gestação, permanecendo impro-
primeira preocupação é assegurar a si vável e inconcebível até o século XVIII
próprios sua dignidade humana, o que — argumentam eles — a cultura prole-
provavelmente consistirá num esforço de tária não encontrará sua própria expres-
imitação da cultura dominante. Qualquer são até o advento do socialismo. Na
forma de associação criada por eles será sociedade atual, a cultura proletária é
ditada por mera necessidade e desapa- perversamente organizada de modo a
recerá no momento mesmo em que as realçar a sua situação de dominada; qual-
necessidades mudem". quer elemento emancipatório que encon-
Sérias Objeções. A própria realidade tremos parecerá sempre desorganizado e
social parece conspirar contra o fato de capenga.
os "novos" movimentos sociais estarem
representando qualquer coisa de novo. Se Deixando de lado o fato de eu estar
há algo novo, sob que forma podemos atualmente bem menos seguro sobre o
encontrá-lo? Isto nos leva à próxima caráter proletário de futuras sociedades,
tese. essa é uma indicação precisa da dificul-
dade que estamos propensos a enfrentar
quando tentamos repensar o potencial
dos novos movimentos sociais. Não se-
Segunda Tese - A direção desta remos capazes de entender a lógica dos
fragmentos da nova prática social, a não
remodelação contra-cultural de ser no quadro de uma projeção utópica
padrões sociais está dispersa, de uma sociedade alternativa não-capita-
fazendo parte de uma utópica lista. Esta utopia teria de ser projetada
"face oculta" da esfera social a partir dos fragmentos de experiência
social que temos, numa tentativa de es-
deformada por sua "face visível" tabelecer seu hipotético ponto de con-
vergência. Mas, ao mesmo tempo, isto
se torna impossível pela pressão da so-
bviamente, os novos movimen- ciedade existente, que deforma estes frag-
tos sociais estão inseridos nos mentos deixando-os praticamente irreco-
contextos social e político do- nhecíveis .
minantes de seus respectivos Alguns exemplos:
países e de lá recebem seus contornos
originais. É neste quadro que a questão • No Brasil há constantes lutas entre
do potencial político desses movimentos posseiros, pequenos camponeses expulsos
é válida e necessária, e até aí nosso modo pela expansão do latifúndio capitalista,
de percepção habitual é adequado. Mas e tribos indígenas cujas terras os pri-
não captaremos nada de substancialmen- meiros invadem. É claro que ambos são
te novo nestes movimentos olhando-os vítimas do mesmo sistema de proprie-
por este prisma. dade da terra, ainda que colocados um
Se existirem mesmo elementos novos, contra o outro na luta pela sobrevivência.
é provável que apareçam sob formas tão • Por ocasião do II Encontro Feminista
desajeitadas que seremos incapazes de
da América Latina e Caribe, realizado
avaliá-las como tais, a não ser que antes
tenhamos adaptado nossas expectativas. perto de Lima, em julho de 1983, ocor-
Levando em consideração a pressão cons- reram graves tensões entre grupos femi-
tante da realidade existente, qualquer nistas e mulheres no que respeita à eman-
modelo que não se encaixe perfeitamente cipação feminina enquanto parte de uma
a esta realidade parecerá fraco, implausí- luta social geral. Além disso, represen-
vel, fragmentado, desorganizado, descon- tantes índias e negras sentiram-se excluí-
tínuo e contraditório. das por causa do local relativamente re-
A esta altura lembro-me de algo escrito finado da conferência e pelas altas taxas
dez anos atrás por Negt e Kluge um de inscrição. As lésbicas detectaram bar-
sociólogo e um cineasta que trabalharam reiras psicológicas contra a colocação de
juntos com cultura proletária: "sob a seus interesses. Todas estas divisões são
dominação capitalista plenamente esta- muito palpáveis e dificultam a solidarie-
belecida, a cultura proletária é coerente dade feminina que, em perspectiva, con-
apenas na perspectiva da não-emancipa- tribuiria para superar todos os mecanis-
ção; na perspectiva da emancipação é mos da sociedade capitalista e patriarcal
incoerente" (Negt & Kluge, p. 485). que criou estas cisões.

16 NOVOS ESTUDOS N.º 4


• Atualmente, no Chile, há tensões con- subordinada; ou tentar sustentar autono-
sideráveis entre as tendências de oposi- mamente uma identidade, ao preço de
ção identificadas com a lealdade partidá- continuarem fracos, ineficazes e permea-
ria tradicional e os grupos autônomos que dos de contradições. Na realidade, a úni-
surgiram durante os anos de ditadura, ca chance de sobrevivência dos novos
alguns deles fundados por jovens que não movimentos sociais enquanto tais con-
têm memória ativa dos anos anteriores siste numa precária combinação de am-
a 1973. Coloca-se, para estes grupos, um bas as alternativas. Talvez a experiência
dilema permanente dos novos movimen- brasileira com o Partido dos Trabalhado-
tos sociais em todas as partes do mundo: res seja o exemplo mais substancial desta
serão obrigados a integrar-se às estrutu- combinação.
ras políticas estabelecidas para ganhar Nossas elaborações de conhecimento
eficácia, pagando o preço do sacrifício de social sobre estes movimentos são presas
suas identidades específicas? inevitáveis do mesmo dilema. Do ponto
• Ou, finalmente, a objeção citada por de vista do poder a priori, permanecemos
minha compañera: para o habitante da no terreno seguro da realidade conhecida,
favela que gasta seus últimos trocados contribuindo até mesmo, com este modo
para tentar imitar o padrão de consumo de percepção, para a manutenção desta
da burguesia — comprar para o filho o realidade. Não poderemos errar muito
brinquedo de plástico feito em Hong em nossas análises, mas tampouco con-
Kong e anunciado na televisão como seguiremos justificar por que chamamos
aquele que "todas as crianças têm" — esses movimentos de "novos". Se, ao con-
este ato objetivo de submissão tem o trário, tentarmos chegar a uma compre-
significado simbólico de reafirmar sua ensão destes novos elementos, devemos
dignidade humana. Para usar uma ima- antes adaptar nossos órgãos de percep-
gem: os novos movimentos sociais mar- ção à quase imperceptibilidade dos mes-
cam presença ao longo das franjas da mos, sabendo que estamos à procura de
esfera social, como reação às várias defi- algo que, até agora, é predominantemen-
ciências da sociedade dominante que se te "sentido por sua ausência" (Bloch, p.
manifestam na periferia do sistema. Na- 223): uma sociedade mais solidária.
turalmente, a sociedade não está organi- Trata-se de um enfoque idealista? Pro-
zada de acordo com os problemas da pe- vavelmente. Mas qualquer pensamento
riferia, e sim a partir das necessidades antecipatório deve ser parcialmente idea-
da acumulação e do controle político dos lista. Não pode existir um esforço de
setores centrais, aos quais todo o resto investigação política íntegro sem utopia;
está relacionado sistematicamente. e não pode existir uma projeção de uma
Ao contrário, a soma de deficiências sociedade mais justa e humana para a
não faz sentido em termos de sistema, América Latina que não leve em consi-
exceto quando projetada contra o pano deração os novos movimentos sociais e
de fundo hipotético de uma sociedade suas premonições.
alternativa. A sociedade dominante é,
portanto, a face frontal, iluminada e só-
lida da esfera social, que exerce uma
pressão permanente sobre sua franja con-
testadora a fim de adaptá-la às realidades
Terceira Tese - Os aspectos centrais
de poder existentes. A utopia positiva
da construção contra-cultural
dos novos movimentos sociais
para a qual apontam os novos elementos podem ser entendidos a partir da
dos movimentos sociais permanece ainda dicotomia "Alienação-Identidade"
como a face oculta na obscuridade do fu-
turo, antecipada somente pela fantasia
social. Não fosse esta franja se mexer,
e é uma temeridade juntar os
não poderíamos sequer imaginar que a
novos elementos heterogêneos
esfera tem um lado oculto.
destes movimentos sociais a
Estes movimentos dispõem, então, das fim de interpretá-los como as-
seguintes alternativas: ceder ao peso da pectos embrionários de uma utopia social
realidade, aceitando algum espaço para comum, é ainda mais audacioso preten-
respirar e talvez algumas pitadas de po- der adivinhar a direção que esta constru-
der — enquanto oposição oficial dentro ção utópica tomará. Por outro lado, ape-
da estrutura da sociedade dominante — nas antecipações audaciosas podem aju-
ao preço de conformar-se a uma posição dar a transformar utopias em realidade.

ABRIL DE 1984 17
IDENTIDADE: A FACE OCULTA DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS

No meu modo de ver, a rebelião con- O que significa identidade? Pode ser
tra a sociedade existente embutida nos que não haja uma definição precisa para
novos movimentos sociais não é dirigida o termo, como também é possível que
contra qualquer aspecto específico da so- não existam definições para os outros
ciedade capitalista, ainda que os diferen- dois termos que formam um continuum
tes movimentos tendam para a especiali- com o primeiro: "autonomia" e "eman-
zação em torno das questões que trou- cipação". "Identidade" é, provavelmen-
xeram à luz cada um deles. A investida te, uma das noções mais multifacetadas
parece voltar-se contra a alienação en- e intrigantes das ciências humanas; tomá-
quanto tal, sob todos os aspectos. Alie- la como um aspecto central dos novos
nação do homem em relação a si mesmo, movimentos sociais não é uma resposta
ao produto do seu trabalho, a outros se- aos enigmas destes movimentos, e sim
res humanos e à natureza (Kärner, p. 26). uma pista para as possíveis respostas.
Na direção oposta, a perspectiva final é O termo "identidade" refere tantos
a de uma sociedade libertária, igualitária aspectos quanto o termo "alienação", ao
e comunitária, de "uma associação na qual se contrapõe. Qualquer dominação
qual o desenvolvimento pleno de cada é uma usurpação de identidade — e que
um é a condição para o desenvolvimento forma de dominação deixou de se abater
pleno de todos" (Marx/Engels, Manifes- sobre a América Latina? Dentro dos li-
to Comunista). mites de suas forças, nenhum movimen-
É possível que este seja um objetivo to social pode ir além de tentar recuperar
que nunca poderá ser atingido; e o sim- fragmentos muito específicos de identi-
ples fato de mencioná-lo não seria puro dade, lutando em um (ou em alguns pou-
sarcasmo frente à realidade atual na Amé- cos) dos muitos fronts possíveis de do-
rica Latina? Mesmo para se dar o pri- minação e aceitando, assim, o status quo
meiro passo é necessário ter uma dire- em todos os outros fronts. Exatamente
ção em mente; uma das razões da crise por isso são inevitáveis as contradições
da esquerda latino-americana pode ser a dentro dos movimentos e também entre
perda de utopia, ao menos enquanto eles, o que lhes dificulta a coesão tanto
perspectiva libertária. prática quanto conceitualmente.
Naturalmente, durante o longo pro- Contudo, neste sentido de locus de um
cesso de ruptura com a alienação, o que problema central, a idéia de identidade
pode ser de relevância prática para os — nesse enunciado ou em outro — pa-
movimentos sociais atuais são os primei- rece estar cada vez mais na mente dos
ros e tímidos passos no sentido de tor- participantes e observadores desses mo-
narem-se sujeitos de sua própria história. vimentos. Para citar alguns exemplos re-
Talvez a noção de identidade seja mais centes — e muitos incidentais: "Talvez,
adequada para esboçar os conteúdos bá- o grande tema produzido pelos movimen-
sicos destes primeiros passos: tanto a tos sociais para a prática da esquerda seja
nível individual ou coletivo, a primeira a questão da autonomia", escreve Mari-
tarefa, difícil, consiste em chegar a uma lena Chauí, membro do PT (Chauí, 1982,
autopercepção realista de suas próprias p. 77). Com relação à Argentina, Juan
características, potenciais e limitações, Carlos Portantiero define a crise atual
superando falsas identidades outorgadas "como uma crise de identidade numa
de fora, e atravessando as tempestades sociedade com a necessidade de mudar
em que se alternam excesso e ausência todos os seus valores fundamentais" 5
Citado por Clatita Müller-
de auto-estima. Fundamentalmente, isto (Portantiero, 1983, p. 15). Para o caso Plantenberg, Wer sind die
Subjekte der Interessenver-
significa reafirmar a própria dignidade chileno, Tomás Moulián clama por uma tretung im neoliberalen Wirts-
chafts-und Gesellschaftsmodell
humana diante da experiência diária de visão de política "na qual o centro de in Lateinamerika?, trabalho
miséria, opressão e devastação cultural. ação repouse na reconstrução do movi- apresentado ao seminário:
"Massenkultur und religiose
Nos casos mais favoráveis, isto pode sig- mento social, de células de uma hegemo- und soziale Bewegungen",
nificar uma contribuição para a cultura nia alternativa" (Moulián, 1982, p. 663). Bielefeld (West Germany),
7 /8 d e junho 1 9 8 3 , m im eo ,
popular ou mesmo para a auto-identífi- Um folheto convocando para o Segundo p. 3 8. Ver do mesmo autor:
La vida por la vida. Autono-
cação nacional, especialmente depois de Dia Nacional de Protesto no Chile, em me Frauenkomitees, Indianer-
crises sociais. Poderíamos traçar a linha 4 de julho, resume a experiência do Pri- rate und Basisgruppen, in,
mesmo autor (ed.): Frauen
divisória entre organizações sociais tradi- meiro Dia de Protesto (11 de maio) como und Familie im chilenischen
cionais e o campo dos fenômenos "dife- Befreiungsproze, Frankfurt,
"um sucesso, porque nos permitiu re- Vervuert, 1983; e também
rentes" que, a partir desta busca de uma descobrir nossa identidade como povo Überlebenskampf und Selbst-
b estim mu n g . Zu r A rb eiter
identidade autônoma, convencionamos livre e soberano". 5 Na Venezuela, já und Volksbewegung in Ko-
chamar de "novos movimentos sociais". existe um movimento sintomaticamente
lumbianiscben Stadten, Frank-
furt, Vervuert, 1983.

18 NOVOS ESTUDOS N.º 4


batizado de "Movimento de Identidade Quarta Tese - Paralelamente a 6
MIERES, Francisco, “Alter-
Nacional".6 emergência de um projeto nativas de organización y po-
der popular”, Nueva Socie-
Não é por acaso que esta é uma noção alternativo, os novos movimentos dad (n.º 64) pp. 47-55, p.

de longa tradição dentro da literatura sociais geram os embriões dos 53. A lista de citações poderia
ser indefinida. Ver por exemplo:
latino-americana. Antes, e mais insisten- sujeitos correspondentes SINGER, Paul e Brant,
Vinicius Caldeira, (org.): O
povo em movimento, Petró-
temente que os cientistas sociais, os es- polis, Vozes/CEBRAP, 1980.
critores latino-americanos interpretaram
a irresolvida "questão nacional" como o decorrer da criação de novos
uma questão de falta de identidade. padrões da prática sócio-cultu-
ral e de reconstrução de frag-
É possível que as tentativas de resol-
mentos de uma identidade au-
ver a "questão nacional" dentro dos pa- tônoma, os indivíduos e os grupos como
radigmas da política tradicional estives- um todo constituem-se em sujeitos deste
sem desde o início destinadas ao fracasso. processo. Para ser mais preciso, desen-
Por definição, identidade é algo do tipo volvem dentro de si mesmos os fragmen-
faça-você-mesmo, que não nos pode ser tos correspondentes de um novo "ser su-
dado por outrem e, menos ainda, vir da jeito". Naturalmente, isto implica uma
estratosfera do poder político. Deve ser profunda revisão das concepções tradi-
construída desde baixo, sobre a base de cionais sobre sujeitos sociais e sobre o
uma prática social consciente e autode- processo de sua constituição.
terminada — mais uma vez, aspectos que
eu associo aos novos movimentos sociais. Dentro da tradição marxista, os sujei-
tos sociais têm existência objetiva a
Ao mesmo tempo, os problemas princi-
priori, sob a forma de classes sociais.
pais que certos movimentos devem en-
Elas se constituem subjetivamente como
frentar têm origem na dominação e ex- classe através do desenvolvimento de
ploração das classes mais baixas. Assim, uma consciência que aos poucos se apro-
também a "questão social" está muito xima desta realidade objetiva; a conver-
presente nestes movimentos. Talvez, o são em atores políticos passa pela amplia-
elo muito procurado entre a questão na- ção da organização que representa esta
cional e a questão social possa efetiva- consciência plena da realidade através da
mente ser encontrado no "trabalho-de- incorporação de um número crescente de
formiga" diário destes movimentos para indivíduos.
resgatar à sociedade dominante pedaços
Nada disso parece sustentar nossa com-
de vida expressiva individual e coletiva.
preensão atual dos processos sociais na
Ademais, é provável que este tipo de América Latina. Não podemos mais con-
existência dotada de sentido não possa ceber uma utopia positiva como uma
ser encontrado em nenhum outro lugar. meta histórica fixa, a ser atingida atra-
As altitudes olímpicas da totalidade na- vés de mecanismos preestabelecidos; de-
cional, de onde alguns herdeiros da teo- vemos imaginá-la como um processo lon-
ria da dependência estão buscando este go e sinuoso de emancipação cujo des-
elo, estão definitivamente longe demais fecho — se é que existe um — é desco-
da base social para captar esta constru- nhecido. Conseqüentemente, o sujeito se-
ção popular. ria o indivíduo plenamente realizado den-
E, quem sabe, este lado oculto dos tro de uma sociedade desalienada — em
novos movimentos sociais pode esconder outros termos, um sujeito não encontrá-
também a profunda necessidade da rea- vel no começo, mas que aparecerá apenas
valiação da democracia enquanto noção no hipotético final do processo. É até
central no âmbito das recentes discussões. que chegue este momento haverá algu-
A identidade não pode ser encontrada mas dialéticas difíceis: um progresso em
dentro de estruturas autoritárias e, mais termos de estruturas sociais dependerá
que isso, exclui a uniformidade: só pode de um progresso do sujeito e vice-versa.
se desenvolver na diversidade, que re- É mais que provável que não haja nada
quer um cenário político no qual "todas além de um rudimentar sujeito-por-ser,
as vozes, todas" (como diz uma canção lutando contra as inacabadas estruturas-
chilena) possam ser ouvidas. Assim, em- sendo-feitas que lhe correspondem.
bora fracos e fragmentados, os novos mo- Se isto for verdade, as conseqüências
vimentos sociais detêm uma posição cha- para as nossas maneiras tradicionais de
ve para qualquer projeto emancipatório conceituar sujeitos históricos não pode-
na América Latina. Eles são um projeto riam ter mais alcance. Dois aspectos sal-
emancipatório. tam à vista.

ABRIL DE 1984 19
IDENTIDADE: A FACE OCULTA DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Em primeiro lugar, se o processo de consciência e ação humanas, lingua-


emancipação jamais se conclui, também gem. . . Por exemplo, é antiteórico quan-
é permanente o processo de constituição do passamos de Marx a Freud?
de seus sujeitos. Portanto, nenhum indi-
víduo e nenhuma coletividade podem ser
considerados sujeitos totais- São, em vez
disso, portadores de fragmentos de sub- 4. São realmente novos os
jetividade enquanto conseguirem superar novos conhecimentos sociais?
alguns aspectos da alienação e construí-
rem algumas características iniciais de
uma identidade autônoma. or acaso não foi sempre assim,
e é apenas nossa percepção que
Esta maneira de conceber o sujeito
está desajeitadamente colocan-
social como um fenômeno necessaria-
mente fragmentado atravessando a cons- do em dia a realidade? Estas
ciência e a prática sociais pode parecer linhas não poderiam ter sido escritas an-
artificial e contraditório à primeira vista, teriormente?
uma vez que, em nossa atual percepção, Sim e não.
indivíduos são exatamente isto: indivisí- É provável que tenha sido falso desde
veis. Entretanto, refletindo um pouco o início colocar a socialização dos meios
mais, verificamos que esta suposição de de produção como única e absoluta meta
uma subjetividade transpessoal é a única de emancipação, e o proletariado como
compatível com tudo aquilo que sabemos seu sujeito exclusivo. E, sem dúvida, pro-
sobre a complexa e contraditória compo- blemas como identidade, emancipação e
sição da consciência individual. Com re- utopia são temas permanentes.
lação à coletividade, a pressuposição de Mas também é óbvio que estes pro-
heterogeneidade repousa em ainda mais blemas estão embutidos num processo
evidências. histórico de mutações sócio-econômicas
e culturais, de acordo com o qual certas
Em segundo lugar, as possíveis dire- questões são levantadas e abandonadas,
ções da emancipação são tão multifor- enquanto espaços se abrem e fecham no-
mes quanto são os aspectos da alienação vamente.
— e todas elas são importantes! Não há
Dentro desta incessante substituição
hierarquia préestabelecida das metas
de ênfases, é novo, em minha opinião, o
emancipatórias e, correspondentemente,
fato de os movimentos sociais não esta-
não há sujeitos ontologicamente privile- rem questionando uma forma específica
giados (Lechner, 1983, p. 10). de poder político, mas a própria situação
Isto não significa negar que dentro central do critério de poder. A questão
das estruturas sociais existam pontos da reapropriação da sociedade das mãos
nodais, e que há barreiras mais difíceis do Estado tornou-se pensável. Por quê?
e mais importantes do que outras a serem Será um recuo idealista aos proto-socia-
superadas. E na sociedade capitalista, ex- listas e anarquistas do século XIX?
ploração e apropriação privada são, in- Não tenho resposta definitiva, mas al-
discutivelmente, pontos nodais. Mas não gumas idéias que podem apontar a dire-
é o único front que importa, e qualquer ção da busca da resposta. Em grande
avanço numa direção nova — por exem- parte, as estruturas políticas atuais, da
plo, sócio-cultural, psicossocial — é re- maneira como estão corporificadas no es-
levante. tado burguês, e ainda mais nos partidos
Isto é antiteórico? O fato é que ne- leninistas, são uma reprodução da hierar-
nhum aspecto da vida social tem sido tão quia da fábrica capitalista. Não é por aca-
inteiramente e eficazmente teorizado so que tenham evoluído com a industria-
quanto o campo da economia política e, lização capitalista e reflitam, embora mais
é claro, basicamente por Marx. Mas será grosseiramente, as utopias socialistas tra-
que os outros aspectos da vida social não dicionais: expressões como "desenvolver
existem — enquanto possíveis campos as forças produtivas" ou "ditadura do
de teorização — simplesmente porque es- proletariado" são apoteoses do desenvol-
capam ao domínio da teoria de Marx e vimento industrial.
não foram eficazmente teorizados por A industrialização capitalista atingiu
outros? Talvez seja necessário um outro uma fase habitualmente denominada "ter-
Marx para refletir sobre problemas como ceira revolução industrial". Com a gene-
patriarcalismo, psicologia da dominação, ralização da eletrônica e da cibernética,

20 NOVOS ESTUDOS N.º 4


a automação e a comunicação tornaram- Todos reconhecem que a hegemonia
se aspectos definidores do capitalismo deve ser reconstruída. Não é por acaso
atual. Todos sabemos o que isto acarreta que muitas das ditaduras militares apre-
em sua versão centralizadora dominante, sentaram projetos com a pretensão de se-
gerada pelo capital transnacional e pelo rem os patriarcas de uma Nova Repúbli-
aparato de estado das principais potên- ca; de todas, apenas a brasileira alcançou
cias ocidentais: o trabalhador industrial um sucesso parcial e transitório. Mas a
clássico torna-se cada vez mais raro; o sensação de se viver uma fase da história
setor terciário incha e, pior, a massa de latino-americana marcada pela necessida-
desempregados aumenta. Com a automa- de amarga de um projeto fundamental
ção da produção, a existência social de é partilhada por todos os segmentos
indivíduos e grupos é cada vez mais de- sociais.
finida por seus potenciais de consumo. De um certo modo, o novo padrão
Em termos menos eufemísticos: a vida sócio-cultural da sociabilidade diária que
social está mercantilizada e desumanizada germinou nos novos movimentos sociais
ao extremo, grandes setores da popula- é parte daquele esforço fundamental: são
ção encontram-se marginalizados, a cul- os embriões de uma contra-criação popu-
tura, a sociedade, a existência humana lar, em resposta aos malfadados esforços
dotada de sentido estão sendo dissolvidas vindos de cima. A dissolução de estrutu-
e reduzidas a relações de mercado, para ras sócio-econômicas estabelecidas e de
as quais não é necessária nenhuma outra orientações sócio-culturais causou — jun-
estrutura política, à exceção de uma po- tamente com uma desintegração social
lítica de mercado que reprima eficiente- devastadora — a "liberação" do que res-
mente qualquer manifestação de vida hu- tava de potencial construtivo no sentido
mana, menos aquela dos possuidores de da busca de caminhos novos e autô-
mercadorias. Em sua obsessão necrófila, nomos.
as forças destrutivas liberadas com a ter-
Alguns observadores apontaram para
ceira revolução industrial estão prestes o fato enigmático que alguns dos novos
a destruir o ambiente natural da huma- impulsos vindos destes grupos de base
nidade, senão a própria humanidade têm similaridades com a ideologia ultra-
numa guerra nuclear. De fato, a guerra
liberal de Friedman e seguidores. Têm
já foi desencadeada, com milhões de ví-
em comum, dizem eles, uma postura an-
timas da violência ou da inanição. Mais
ti-estatista e uma revalorização da liber-
uma vez, os efeitos negativos desta revo-
dade individual. . . Olhando mais de per-
lução estão concentrados nos países do to, porém, o que eles compartilham é a
capitalismo periférico. contemporaneidade da crise e a necessi-
Para a América Latina, a conseqüência dade de encontrar alguma solução para
é que projetos sociais centrados na idéia ela. Mas as metas que estão buscando são
de industrialização aparentemente per- diametralmente opostas: a solução cen-
tencem ao passado, pelo menos do ponto tralizadora dominante pretende desmon-
de vista da viabilidade. Num nível cons- tar todas as funções não-repressivas do
ciente, o equilíbrio entre industrialização Estado, deixando intactos, e até realçan-
e emancipação, tão defendido por gera- do, seus aspectos de dominação pura e
ções da esquerda latino-americana, per- abstrata através do aparato repressivo.
deu credibilidade. Analogamente, formas Os novos movimentos sociais, ao contrá-
de organização e ação que imitem o pro- rio, não adotam uma postura contra as
cesso produtivo da velha fábrica capita- funções organizacionais e auxiliares do
lista não são mais plausíveis. Hierarquias Estado, mas sim contra sua face de domi-
rígidas seriam aceitáveis desde que pu- nação. A liberdade individual menciona-
dessem ser apresentadas como indispen- da por Friedman e seguidores é a liber-
sáveis para o projeto social que se busca. dade do proprietário de mercadorias no
Por que ainda submeter-se a elas uma mercado. Para os novos movimentos
vez que este projeto se desvaneceu? sociais, são exatamente os elementos
Naturalmente, o mesmo aplica-se aos não-mercantis dentro das relações sociais
tradicionais projetos burgueses na Amé- que estão sendo revalorizados, e o mes-
rica Latina. Há um sentimento difundido mo ocorre às manifestações humanas em
de beco sem saída. A crise econômica todos seus aspectos, exceto no do poder
corroeu o pouco da legitimidade que res- aquisitivo.
tava e mesmo os estados caíram em des- Automação e comunicação não são
crédito. "coisas más" em si mesmas e poderiam
ser acionadas de modo a realizar velhos

ABRIL DE 1984 21
IDENTIDADE: A FACE OCULTA DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS

sonhos de realização humana. O "lado rior aos "fatos duros" da economia e da


oculto" das sociedades atuais — do qual política. Muito freqüentemente, encon-
os novos movimentos sociais são uma tramos autores analisando o progresso
vaga premonição — poderia estar enco- (sic) de um movimento social a partir do
brindo uma alternativa, popular e descen- estágio de manifestação cultural "ainda
tralizadora, ao modelo dominante da ter- pura", via suas articulações sociais, até a
ceira revolução industrial. Não por aca- atuação política. De modo muito natural
so, dentro destes movimentos reaparecem este percurso é descrito como um cresci-
elementos e valores pré-capitalistas e até mento de consciência. Não duvidamos
pré-mercantis. Nesse sentido, o "novo" que seja (se analisado corretamente) um
dentro destes movimentos é também o crescimento da consciência política; o
pré-velho. problema é que há outras formas e con-
teúdos de consciência social que ficam BIBLIOGRAFIA
BLOCH, E., Prinzip Hoff-
perdidos nesta análise. Por exemplo, um nung, Frankfurt, Suhrkamp,
movimento pela defesa de uma região 1980, 7.ª ed.
CHAUÍ, M., "Notas sobre la
5. Como ser político sem contra a devastação ecológica e a desa- crisis de la izquierda en
Brasil", Nueva Sociedad,
ser apenas isto gregação social provocadas pela agricul- (n.° 61) pp. 67-80, jul./ago.
tura de exportação resultará num enorme 1982.
EV ER S, A. & SZANKAY,
avanço em termos ecológicos, econômi- Z., ("Das gerissene Band.
cos, históricos, regionalísticos, etc., na Überlegungen zum Verhal-
claro que a realidade do poder consciência de seus participantes, favore-
tnis von sozia len Wissen
und Sozialer Bewegung",
político é concreta. Os novos cendo ainda o fortalecimento de laços de Prokla, Berlin, (n.° 43) pp.
movimentos sociais são os pri- 43-59, 1981.
solidariedade e cooperação. Tudo isso EVERS, T., "De costas para
meiros a sentirem seu peso em pode perder-se no momento em que este o Estado, longe do Parla-
mento. Os movimentos al-
cada pequena tentativa para criar outras movimento "ganhar consciência política" ternativos na Alemanha
relações que não as de poder. Resgatar a ao indicar seus líderes para candidatos
Ocidental", Novos Estudos
CEBRAP, São Paulo, v. 2
sociedade da política é, em si mesma, pelos partidos estabelecidos. (n.° 1) pp. 25-29, abr. 1983.
uma tarefa política que exige poder polí- , Kleinerer Goliath,
tico para prosseguir. E num nível ainda Desse modo, o aumento do potencial oder David? Erage na ch
nem Subjeki in den grün/
mais clássico, a vida quotidiana da maio- de acordo com o critério de poder paga o alternativen Bewegungen,
ria destes grupos é marcada pela opres- preço da diminuição, a longo prazo, do Berlin/Todtmoos, Rütte, mi-
meo, ago. 1983.
são política e pela miséria econômica, potencial sócio-cultural. Quase que inva- EVERS, T., MÜLLER-PLAN-
TENBERG, C. & SPES-
tornando cada parcela de potencial polí- riavelmente, mais poder significa menos SART, S., "Stadtteilbewe-
tico amargamente necessário para a so- identidade, mais alienação. gung und Staat. Kampfe in
Reproductionsbereich in
brevivência. De que modo esta realidade Para usar uma comparação: ver os mo- Lateinamerika", Lateiname-
rika, Analysen und Berichte,
adapta-se a uma busca de relações sociais vimentos sociais apenas sob o enfoque do v. 3, Berlin, Olle & Wolter,
que não sejam, essencialmente, relação poder é como preocupar-se apenas com a 1979.
GARCÍA, H. P., "Vanguar-
de dominação? porcentagem de calorias contidas numa dia iluminada y organiza-
certa quantidade de petróleo. Uma ques- ción de masas", Nueva So-
A questão de um "novo partido" deve tão razoável, mas que pressupõe petróleo
ciedad (n.° 64) pp. 33-38,
jan./feb., 1983.
ser enfrentada, apesar de tudo. somente para queimar, e descarta as suas KARNER, H., "Los movi-
mientos sociales: revolucio-
Não é raro que movimentos sociais, qualidades de transformação química. nes de lo cotidiano" Nueva
após uma fase de ampla mobilização em Os movimentos sociais não podem
Sociedad (n.° 64), pp. 25-32,
jan./feb., 1983.
torno de questões concretas, ganhem existir sem expressão política. Esta, por LECHNER, N., "Que signi-
algum acesso às estruturas políticas esta- fica hacer política?" Lima,
sua vez, deve articular as metas do movi- 1982.
belecidas. Em nome de uma eficácia mento com as alienadas e alienantes es-
, Revolución y rup-
tura pactada. Madrid, mi-
maior, as lideranças engajam-se nessas truturas de poder existentes. Em termos meo, 1983.
estruturas — e o movimento entra em de alienação versus identidade, a expres-
MIRE S, F., "Retaguard ias
sin Vanguardias", Nueva
decadência, pelo menos enquanto mani- são política dos movimentos sociais é, Sociedad, (n.° 61) pp. 35-54,
festação autêntica de interesses sociais por conseguinte, uma porção retrógrada
jul./ago., 1982.
, Acerca de la neces-
determinados e uma experiência de vida e necessária de sua existência. Extrapo- sidad y las condiciones que
dan le en Chile para el
social intensa. Isto pode ser evitado? lando para a questão de um "novo tipo surgimiento (no necesaria-
mente en plazos inmedia-
É provável que não o possa ser total- de partido" que em algum país, algum tos) de un nuevo partido
mente. Mas algo bastante distinto é evi- dia, poderá pretender ser a expressão po- po lítico, Oldenburg, mi-
meo, agosto 1983.
tar de maneira ativa (embora inconscien- lítica da ampla cultura dos novos movi- MOULIÁN, T., La crisis de
te) que aconteça qualquer outra coisa. E mentos sociais, isto significa que estes la izquierda, Revista Mexi-
cana de Sociologia, (n.° 2)
é este precisamente o efeito do critério partidos teriam de aceitar não apenas o pp. 649-664, 1982.
ainda dominante do potencial de poder. NEGT, O. & KLUGE, A.,
papel de vanguarda, mas também de reta- Offenlichkeit und Erfabrung,
Talvez enquanto resquício do pensa- guarda em relação aos conteúdos desses Frankfurt, Suhrkamp, 1972.
PORTANTIERO, J. C, Tran-
mento tradicional, em termos de base e movimentos. Teriam que ser concebidos sición a la democracia en
superestrutura, permanece quase intoca- como servidores e não como donos dos Argentina: un trabajo de
Sísifo? Cuadernos de Mar-
do o consenso de que cultura é algo infe- movimentos. Naturalmente, está excluída cha, México, jul. 1983.

22 NOVOS ESTUDOS N.º 4


7
desde o início qualquer idéia de contro- Isso tudo pressupõe um con-
"nova" individualidade é, ao mesmo tem- ceito diferente da política.
le. Isto exige estruturas abertas e demo- po, a mais avançada e a mais velha. Para uma metáfora interessan-
te, ver VEGA, Jorge Sanchez,
cráticas, nas quais a manifestação livre É nova também na capacidade de sub- El ajedrez y el Go: Dos for-
de diversidades, incluindo as contradi- verter nossas formas de percepção. Nos- mas de hacer política? Tra-
balho apresentado no II En-
ções entre participantes, seja mais impor- sos conceitos monolíticos de sujeito so- contro de Chantilly, 2 a 4 de
tante do que a unidade da ação externa.7 cial explodiram e descobrimos que o
setembro 1983, Paris, CE-
TRAL. Ver também GAR-
Possivelmente, a crise atual do Partido estado agregado do "ser-sujeito" não é o RETÓN M. Manuel Antonio,
Democracia, transición política
dos Trabalhadores — a única experiência sólido, e sim o líquido ou mesmo o gaso- y alternativa socialista en el
prática de relevância nessa direção — é capitalismo autoritário del
so, que se infiltra e mistura aos mais Cono Sur, Madrid; trabalho
resultado de tentativas de "libertar-se" variados elementos da textura social. Pa- apresentado no Simpósio "Los
caminos de la democracia en
dos compromissos para com os movimen- radoxalmente, temos pensado o sujeito América Latina", Fundación
tos soci ais que t rouxer a m o par tido social como passível de ser objetivado e Pablo Iglesias, 30 de maio a
3 de junho, 1983, mimeo,
à luz.8 utilizado como uma ferramenta. Agora esp. p. 14.
entendemos que sujeito social é algo de- 8
Enquanto estava escrevendo
finitiva e radicalmente subjetivo, indele- estas páginas, recebi uma
velmente ligado à existência dos homens carta de um colega de Bo-
6. Afinal, o que são os e, portanto, tão insubordinado à reifica-
gotá: "Há alguns dias assisti
ao Congresso para a funda-
novos movimentos sociais? ção quanto a própria vida. E compreen-
ção de um "Movimiento Po-
pular Nacional", organizado
demos, afinal, que quando falamos em por Orlando Fals Borda e
outros que poderiam generi-
sujeito social ou político como algo sepa- camente ser chamados de so-
cialistas não dogmáticos. O
stamos de volta à nossa ques- rado da subjetividade humana, a distin- movimento deverá reunir to-
tão inicial: quem ou o que se ção é basicamente artificial e analítica. dos os movimentos populares,
mantendo suas individualida-
está movendo nos novos mo- O que implica um sacrifício de antigas des respectivas e excluindo
quaisquer tentativas de instru-
vimentos sociais? certezas intelectuais. Mas em compensa- mentalização pela esquerda
No início, indaguei especificamente so- ção, ganhamos um campo de ação e refle- ( . . . ) Apesar disso, ninguém
duvida que este movimento
bre os novos movimentos na América xão infinitamente maior e mais frutífero. não existiria sem Fals Borda".
Contradições da realidade!
Latina, com alguma evidência empírica a E como explicar tudo isto ao morador
partir de três países. Agora estou deixan- de uma estera na periferia de Lima?
do de lado esta especificação: depois de Precisamos mesmo explicar? Ele co-
tudo que disse, está claro que, para mim, nhece os obstáculos que deve e possivel-
a essência destes movimentos é a mesma mente pode superar no futuro, talvez
em qualquer lugar. melhor que um trabalhador fabril na
Alemanha Ocidental. Seria cinismo afir-
Não fosse assim, seria injustificável mar que cada um deve ocupar-se de sua
usar o mesmo termo para definir fenô- própria emancipação e deixar que os po-
menos aparentemente tão dissociados bres façam a deles. O processo de supe-
como, por exemplo, o movimento antinu- rar a alienação terá que usar mecanismos
clear na Alemanha Ocidental e um cace- modernos que, por sua vez, não estão
rolazo no Chile (Tilman Evers, 1983). livres da alienação. Qualquer purismo
É claro que as enormes diferenças que seria fugir da responsabilidade.
separam as várias manifestações da mes- Mas não há dúvida de que sempre que
ma essência devem ser levadas em consi- um passo na direção da des-alienação é
deração de acordo com circunstâncias dado com a ajuda alheia, ele contém um
históricas específicas. E, na verdade, é elemento de re-alienação e deve ser dado
este o campo de estudo dos novos movi- novamente pelo beneficiado. Qualquer
mentos sociais. Fora da perspectiva deste fragmento de alienação que é superado
vasto campo de experiências históricas, de forma autônoma por um indivíduo ou
a visão geral que tentei passar seria redu- por um grupo deixa de existir definiti-
zida a pura ideologia. E vice-versa: sem vamente. Esta é talvez a ajuda mais con-
visão geral, nossos esforços para entender creta que alguém pode dar a outra
casos concretos correm o risco de perder pessoa.
o essencial, e, desta forma, contribuir ati- Pelo menos isto. Nós somos os novos
vamente para asfixiá-lo. movimentos sociais.
Outubro, 1983
essência destes movimentos,
creio está em sua capacidade
de gerar embriões de uma nova Tilman Evers é sociólogo e professor adjunto na Uni-
versidade Livre de Berlim.
individualidade social — nova
tanto em conteúdo quanto em autocons- Novos Estudos Cebrap, São Paulo,
ciência. Retomando velhos temas de v. 2, 4, p. 11-23, abril 84
emancipação e autodeterminação, esta

ABRIL DE 1984 23

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