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Saber

SamuelBasz

"Vocfü; estão vendo o prog-rama qUL! aqui se csboça". 1 �� assim


([lW Lacan, cm "A ciência e a vcrdacfo", anuncia uma pesquisa na
qual a questão do saber ó rl!tornada inúmeras vezes. De fato, no en­
sino de Lacan, a palavra :-wher não permite definir a intenção de
um conceito.

No S<'rninário 2/ h:í antecedentes a rn,se escrito, "A cit\ncia e


a vcnlade", e{\ a partir dele que podemos traçar um arco que cul­
mina nos 8<'minários 17 e 18 para, <im S(\g"uicla, se cristalizar nas
elaboraçÕ<\S de ,Jacqucs-Alain Miller a rrn,1wiLo do qlll' de\ chamou
de "o ultimíssimo ensino de Lacan"." Sua conforência de apresenta­
ção do Congorcsso da AMI > de 201 !f.·1 {\ exmn µlar das consequências
epistt\micas Li políticas quc rnsultam, L\m rcfcdmcia ao saber, em
sua rdação com uma caracterização atualizada do real.

l•�m "J\ ciência e a verdade", Lacan afirma que a resolução da


qtwstiio do objeto da psicanálise modifica a questão do objdo da
ciôncia. Ele trabalha sobre a diferença entre o saber e a verdade,
assim como o estatuto da verdade como causa material na psicaná­
lise, chegando a ponto de afirmar: "Essa teoria do objeto a é neces-

1
Lacan, ,J., "A ciência e a verdade", Escritos, IW, JZE, 1998, p.884.
'Lacan, ,J., O Seminário, Liuro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica, RJ,
,JZE, 1985
"Miller, J.-A., A Orientação Lacaniana. O ultirníssimo ensino de Lacan, Curso 2006-2007,
inédito.
1
Miller, J.-A., "O real no século XXI. Apresentação do IX Congresso da AMP", Opção La­
caniana, n.63, SP, Eólia, jun. 2012, p.11-19.
sária, nós veremos, para uma integração correta da função da ver­
dade como causa, com relação ao saber e ao sujeito"·5

Destacaremos algumas outras ocorrências nas quais Lacan


já não enfatiza o saber vinculado à verdade, mas, dessa vez, ao gozo.
"O saber, então, é colocado no centro, na berlinda, pela experiência
analítica," e Lacan precisa "tal saber é meio de gozo", "[ ...] e, quando
ele trabalha, repito, o que produz é entropia [ ... ], o único ponto re­
gular por onde temos acesso ao que está em jogo no gozo".

"A verdade não tem aqui o lugar de causa material; ela é, isso
sim, 'irmã do gozo'."1;

A questão do saber tem um lugar privilegiado no Seminário


Mais, ainda. Por um lado, Lacan vincula o saber ao fazer, mas ele
precisa que "a análise veio nos anunciar que há saber que não se
sabe, um saber que tem sua sustentação no significante como tal".
Trata-se aqui de um saber articulado ao Outro, na medida em que
o Outro é o lugar onde o significante é postulado e, assim, "o esta­
tuto do saber implica como tal que já há saber, e no Outro". É, então,
de um saber com sujeito e que tem um preço: "Pois a fundação de
um sabor é que o gozo do seu exercício é o mesmo do que aquele de
sua aquisiçiio". 7 Há uma reviravolta sensacional em Mais, ainda,
no capítulo XL Se seguimos Miller, podemos ler nessa aula que há
um inconscienk transferencial, ligado ao fato de que, "para o ser
..
. 4
falante, o saber é o que se articula", 8 um saber do inconsciente es- �
truturado como uma linguagem.

Lacan situa o S2 como um saber que não se limita à comuni­


cação, mas que é dois, pois, ao mesmo tempo, implica o gozo e define
a linguagem como uma elucubração de Raber sobre lalíngua. E ele
define o inconsciente como um saber-fazer com lalíngua. Lacan
afirma que "lalíngua nos afeta primeiro por todos os efeitos que ela
comporta que são afetos";"[ ... ] os efeitos de lalíngua,já aí corno saber,
vão muito mais além de tudo que o falasser é capaz de enunciar".9

"Lacan, .J., "A ciência e a verdade", Escritos, RJ, JZE, 1998, p.877, 889-890.
G Lacan, J., O Seminário, Livro 17, O avesso da psicanálise, RJ, JZE, 1992, p.28, 48, 51.
; Lacan, J., O Seminário, Livro 20, Mais, ainda, RJ, JZE, 1982, p.129-131.
"Ibidem, p.188.
• Ibidem, p.190.
Pode-se ver aqm o fundamento da perspectiva de Miller
quando fala de um "saber sem sujeito". 10

A princípio, Lacan propõe como verdade que a linguagem está


ligada ao fato de que ela "fura o real"; que o "método de observação
não poderia partir da linguagem sem que este aparecesse furando
aquilo que se pode situar como real; é a partir dessa função ele furo
que a linguagem opera sua captura elo real". Por outro lado, "a lin­
guagem come o real". 11

Ao reforir-sc ao n•al gt!nético e ao fato de que a linguagem


permite ahonl:'t-lo em Lermos de mt•nsagPns, Lacan considera que,
na forma de l'ncarar os distintos níveis de informação genética no
DNA, vPrifica-sc uma "suhutiliY.ação do que nPlc {! o real", dt!vido à
quantidad<! d<\ tais nwnsagcns. Por isso, "o real, mentindo efetiva­
mente, niío aparece sem comportar realmente o furo que nele sub­
siste". Uma consc!qll{!ncia, <intiío. sobre o saber: "o estigma do real
{i (fo a nada S<' lig·ar". 1::

l'od<!lllos c:ipL:ir, 110 q11Ci v<im n s<iguir, :1 disLin�:iio quc Miller


op<irn (\lll.rn o i1u:011scirn1L<! Lr:rnsf'Pr<incial ti o n•al, <\ suas consl\quên­
cias sohni o salH•r. Para Fn\lHI, o ineonscÍ(\llÜ\ {! "in!.tiiranwnte re­
duLÍv<d a um sa!H'r. 1;; o mínimo que supÕ(' o l'aLo de t�le poder ser
int(•rprl'Lado". l'od•m, para L:wan, as coisas não se limitam a esse
saht•r, j:í. qtw "a insUl.ncia do salwr renovada por Freud, quero dizer
renovada sob a forma do inconsciente, niio supõe obrigatoriamente
de modo algum o n!;tl do qual mti sirvo". "O real é, devo dizê-lo, sem
lei 1 ... 1 o real niio tem ordem". 1:1

S<! o real {i sem l<ii, niío há saber no real. O que a psican:í.lise


nos <msina {! qlw a linguagem, no falasser, vem perfurar o necessá­
rio na rnla�:iío entre os sexos, e antecipa assim os efeitos desarticu­
ladores da t.ócnica como saber significante sobre a validade da lei
natural. O Princípio de lncertmm de Heisenberg para a física quân­
tica é exemplar nesse sentido. Mas, qual saber-fazer, então, em face
desses efeitos?

'º Miller, J.-A., !,os signos dei goce, BsAs, Paidós, 1997, p.4:m.
11 Lacan, J., O Seminário, Livro 28, O sinthoma, RJ, ,JZE, 2007, p.31-32, él7.
12
Ibidem, p.120.
13
Ibidem, p.127-128, 13:'l.
Resta a invenção sintomática como resposta epistêmica e po­
lítica. Essa resposta sintomática, essa invenção, podemos chamá­
la de saber: "como analista, pois é dali que eu falo: eu não descubro
a verdade, eu a invento. Ao que acrescento que é isso, o saber". 14

Tradução: Cláudia Aldigueri Rodriguez


Rcvi8ão: Maria do Carmo Dias Batista

14 Lacan, J., O Seminário, Livro 21, Les non-dupes errent, Aula de 19 de fevereiro de 1974,
inédito.
Verdade
Marita Hamann

Verdade, desejo, gozo, saber e real são termos estreitamente


relacionados, cujo valor se modifica ao longo do ensino de Lacan,
assim como em relação à teoria freudiana. Quanto mais irrompe o
real no ensino de Lacan, menor é o valor atribuído à verdade.

Em princípio, o que se afirma se apresenta como verdadeiro,


o probluma HC� coloca quando o saber fracassa. Surge então a per­
gunta pelo referente: a verdade se manifestaria com o desvelamento
ou com a adequação entre os ditos e os fatos, mas os fatos dependem
dos ditos. Assim, o saber se constrói para Htilimdcr isso contra o
qual ele se choca: sua verdade.

O ponto de partida da psicanálise é que o referente, mesmo


cifrado no inconsciente, em última itrntância, está perdido. Segundo
Freud, não se trata somente do fato de o recalque deformar a per­
' · : i i.
cepção da realidade, mas que, mais além, a realidade psíquica está
!ll ·
profundamente determinada pelos traços do objeto perdido. 1 Assim,
o tratamento freudiano exigia afrontar o horror da verdade, última
defesa contra a verdade.

Lacan, apelando à linguística e à lógica, precisa que o refe­


rente é interno ao dito. Ele pode ser situado no intervalo entre o
enunciado e a enunciação, mas, em suma, ele é o impossível de dizer
que, por sua vez, segundo o momento de seu ensino, toma a forma
do desejo como rebento do recalque originário, do objeto a ou do real

1
Freud, S., "A negativa", RJ, Imago, 1980, p.295-308. (ESB, v.XIX).
sem lei. É esse impossível de dizer aquilo que o real e a verdade têm
em comum, diz Miller,2 citando Lacan: "Dizê-la toda é impossível
materialmente: faltam as palavras. É por esse impossível, inclusive,
que a verdade tem a ver com o real".'1

O primeiro ensino de Lacan se caracterizou pela "foraclusão


do real".'1 Em favor da linguagem, confundia o Isso com o Outro, o
que promovia a categoria da verdade. O desejo era o nome da verdade
do demandado. Mas, como ficará demonstrado, o amor à verdade é a
recusa da verdade, ch�sl!jo de um esquecimento, como se revela na
fan tasia l'rm1dia11a "hatc-Hl� numa criança": a verdach� do go:r.o (um
abi-;olut.o impoi-;i-;ível) pmdm; o gozo do Outro (proibido para o sujeito)
como forma invertida do prí,prio gozo (objdo a maii-;-dl!-gozar, a re­
cuperar). A verdade {• irmã do gozo e impoü!rll.e frenU! a de.''

Hú aqui uma chave da ordem contemporánea, úvida por di­


namizar 08 nwrcado8 com a 8Uposta verdade nua do gozo. J\ ciência,
aliada ao capitali8mo, à maneira do di8ctirHo da histeria, promove
o objeto maii-;-de-gozar como 8ü se trat:rnse da única verdade que
contaria para todos. A di ferença ó que agora parece ao alcance da
miío l\ como niio 1!Hl::Í proibido, torna-SI! obrigatório.

Niio ohi-;tant.e, o real que o objeto a parecia indicar por i-;eu


v ínculo com um gozo puli-;ional ó um Hcntido gozado, ficção de real.
Foi o i1lt1\n!HHC de Lacan pelo gozo fominino que permitiu este salto:
da impoi-;i-;ihilidade de nomeú-lo deduz-i-;c a inexistência da mulher
e da não relação sexual, "[ ... J só h1i uma maneira de poder escrever
a mulher ::mm ter que barrar o a; ó no nível cm que a mulher ó a
l l l '. verdade. [� ó por isHo que só podemoH semi-dizê-la",'; comenta Lacan.
Note-se, de passagem, que os fundamentalismos, que se pretendem
detentores da verdade, rejeitam as mulheres como tais na medida
cm que elas remetem a um real imprevisível. O semblante que o
objeto a sustenta "só se resolve, no fim das contas, em seu fracasso,
em não poder sustentar-se na abordagem do real". 7

' Miller, ,J.-A., El muy último Lacan, Lição de 22 de novembro de 2006, inédito.
" Lacan, J., "Televisão", Outros escritos, R.J, JZE, 2003, p.508.
4
Miller, ,J.-A., De la naturaleza de los semblantes, BsAs, Paidós, 2005, p . 1 92.
' Lacan, J., O Seminário, Livro 1 7, O avesso da psicanálise, RJ, JZE, 1992, p.51-64.
6
Lacan, J., O Seminário, Livro 20, Mais, ainda, RJ, JZE, 198fi, p . 1 40-141.
7
Ibidem, p. 128.
\ .,.\ • 1 -d : l ;_ 1 : )

Esse Outro que sancionava a verdade é agora o corpo impac­


tado pelo significante.

A própria linguagem se torna aparelho do gozo e não só


aparelho para produzir significação [ . . . ] o significante não
é só causa do significado, causa do sujeito, mas causa do
gozo [ . . . ] . E, nessa linha, Lacan chegará a inventar lalíngua
(em uma palavra) tecida de significantes, mas anterior à
linguagem. 8
O banho de lalíngua sobre o corpo constitui um real sem lei
que dará lugar ao "forçamento de uma escritura do real que tem
valor de traumatismo." 11 Retorna crraticamente e não espera nada
da palavra: "Não é um significante que falta mas uma significação
eatranha que o sujeito n�o pode, falando com propriedade, comuni­
t:ar ao Outro". 10 Em seu S�mínárío 23, Lacan sustenta não somente
que o simbólico fura o real com seu "não há", mas que "o verdadeiro
furo está aqui onde se revela que não há Outro do Outro". 1 1
Desprender-se do amor à verdade que recusa a falha do saber
ó uma exigência da prática contemporânea; disso depende ser pos­
Hivel desbaratar as fantasias que suportam a verdade cínica do ob­
jdo mais-de-gozar como defesa frente ao real sem lei.

Tradução: Ruth Jeunon �;: . .

" Miller, J.-A., Sutilezas analíticas, BsAs, Paidós, 2011, p .297.


" Lacan, J., O Seminário, Livro 23, O sinthoma, RJ, JZE, 2007, p.127.
10
Miller, J.-A., El muy último Lacan, Lição de 20 de novembro de 2006, inédito.
11
Lacan, op. cit., p.130.
Copyright © dos autores, 2014.

Diagramação
Fernanda Moraes e José Arnaldo Mendes I UTOPIKA EDITORIAL

Revisão
Luciana Lobato

Produção
Silvano Moreira

R:CUO Um real para o século XXI / Ondina Machado,


Vera Lúcia Avellar Ribeiro, org. - Belo Horizonte:
Scriplmn, 20H.
4.55 p.

ISBN: 9788589014769

1. Psicanálise 1. Machado, Ondina Maria, org. 11.


Ribeiro, Vera Lúcia Avellm; org.

CDU: 159.964.2
CüD: 150.195.2

Editora Scriptum Escola Brasileira de Psicanálise


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