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MANA 4(1):153-163, 1998

ENTREVISTA
CULTURA, IDEOLOGIA, PODER E O FUTURO
DA ANTROPOLOGIA
Eric R. Wolf

Eric Wolf está terminando seu livro pro- Lins Ribeiro


visoriamente intitulado Envisioning Po- Você pode nos falar sobre o livro que
wer. Em uma tarde de inverno em Nova está terminando de escrever?
Iorque, Wolf conversou com Gustavo
Lins Ribeiro sobre seu novo trabalho. A Wolf
partir de uma análise do sacrifício hu- Está sendo elaborado a partir dos cur-
mano entre os aztecas, do potlatch en- sos que dei no Graduate Center da City
tre os kwakiutl e da mobilização para a University of New York sobre ideologia
guerra dos nazistas, propõe uma inter- e seus problemas. Há várias questões
pretação do poder das elites baseada de pano de fundo. Uma delas é a de co-
em um diálogo entre as noções de ideo- mo se fazer uso de uma noção marxia-
logia e cultura. Aqui, Wolf mais uma na de ideologia. É uma idéia útil, de for-
vez demonstra sua grande erudição en- ma que a antropologia deve se interes-
quanto antropólogo heterodoxo e ávido sar por ela. Sempre houve um vácuo
leitor de muitas outras disciplinas. En- entre a noção antropológica de cultura
frenta, igualmente, algumas das ques- e uma abordagem político-econômica.
tões mais candentes para o futuro da As duas não se misturam. Eu pensei
antropologia: como relacionar o parti- que explorando a noção de ideologia tal-
cular e o universal em uma era de glo- vez pudéssemos buscar uma maneira
balização acentuada? Qual a importân- de combinar um interesse em poder e
cia da observação direta na prática da idéias, encontrando quais são as rela-
pesquisa de campo e para o perfil da ções entre ambos. Enfocando essa ques-
antropologia enquanto disciplina com tão, talvez pudéssemos colocar juntas
rosto próprio? Eric Wolf também tece essas duas diferentes perspectivas.
comentários sobre o fim do socialismo
real e aborda velhos e novos problemas Lins Ribeiro
do marxismo. Porém, o que esta entre- Eu sei que você está trabalhando, nesse
vista traz claramente à tona são os es- livro, com kwakiutls, aztecas e nazis-
forços de um dos mais brilhantes antro- tas...
pólogos de sua geração para dar conta
de algumas das questões clássicas da Wolf
antropologia, como o poder da imagi- Sim, tenho de voltar a um antigo artigo
nação humana de estabelecer projetos do Kroeber em que ele fala da possibili-
que transcendem tempo e espaço. dade de se fazer uma investigação natu-
ralista sobre a natureza humana me-
diante a percepção dos limites extremos
de certos tipos de casos. Ele usou os sa-
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crifícios humanos dos aztecas como um combiná-las. A seguir, vêm os três ca-
tipo de situação-limite. Através dos ca- sos, já os reescrevi muitas vezes. Uma
sos extremos poderíamos notar caracte- das coisas que acontecem é que quan-
rísticas que em outras culturas e socie- do trabalho em um caso, certas ques-
dades estariam escondidas, subterrâ- tões aparecem, e estas devem ser le-
neas. É uma idéia interessante. Assim, vantadas para os outros materiais. Eu
esses três casos foram selecionados por- sempre reviso meu trabalho vezes e ve-
que mostram formações ideológicas e zes seguidas. Agora estou trabalhando
fenômenos culturais em formas extre- em uma conclusão. O problema das con-
mas. Não tento fazer uma comparação clusões é que, de uma certa forma, elas
evolutiva, apesar de que se encaixam são muito banais. Isto é, em cada um
em uma tipologia do tipo “chiefdom”, desses três casos, o problema básico co-
estado arcaico e moderno Estado-nação. locado é como você arranja as coisas, ou
Estou mais interessado na justaposição organiza as pessoas de maneira a maxi-
e não na comparação. Não sigo os mes- mizar as oportunidades de vida.
mos elementos através dos casos. Na O potlatch resulta ser não apenas a
verdade, tento verificar o que em cada oferenda de presentes – e isto não é
um deles tornou possível o crescimento uma descoberta minha, mas de pessoas
dos traços diferenciados. Realmente co- que têm trabalhado na costa noroeste –,
mecei com os aztecas. Julguei que seria mas, também, a transmissão de subs-
interessante fazê-lo, em parte porque já tância das almas, poder espiritual de
havia trabalhado na Mesoamérica an- um grupo para o outro. Assim, todas
tes. Assim, já conhecia, de alguma for- aquelas peles de animais e cobertores
ma, esse material. A seguir, voltei-me são embrulhos de material invisível que
para os nazistas, um assunto que tam- estão sendo dados de um grupo para o
bém me era familiar, simplesmente por- outro. Poder-se-ia dizer que o problema
que tive de viver esse período. Os kwa- é como fazer a vida a partir da morte,
kiutl, por sua vez, surgiram de um cur- como vencer a morte. E o caso kwakiutl
so, o último que dei no Graduate Cen- é muito interessante porque é, de fato,
ter, “Etnografia e Teoria”. Selecionei um fenômeno do século XIX – estavam
um certo número de casos e constatei sendo abalados por assentamentos e
como diferentes pessoas haviam inter- invasões coloniais. Os chefes estavam
pretado distintamente os dados etnográ- perdendo poder porque uma economia
ficos. Os casos foram escolhidos de for- alternativa estava penetrando e os jo-
ma mais ou menos aleatória, mas existe vens se dirigiam para a pesca comercial
uma certa semelhança entre eles. ou para a cidade de Victoria, onde
abriam bares ou se engajavam na pros-
Lins Ribeiro tituição. Os chefes estavam perdendo o
E qual é essa semelhança? controle. Então, o aumento do potlatch
precisa ser visto como uma resposta a
Wolf uma crise cultural real por intermédio
Ainda não tenho certeza. Estou fazendo da qual os chefes lutavam por seus po-
o seguinte com o livro. Uma discussão deres. Eles estão demonstrando que são
teórica do problema de tentar integrar realmente os organizadores do univer-
o marxismo, a economia política, com a so. Mas já estavam perdidos.
cultura; o porquê de as duas coisas não No que diz respeito ao caso azteca,
se ajustarem e como se poderia então temos de notar que o sacrifício humano
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é muito mais antigo do que os aztecas tário interessante. Ele apontou para o
que são recém-chegados ao poder. fato – provavelmente a primeira pessoa
Mas, para demonstrar que são os legíti- a fazê-lo – de que todo esse movimento
mos ocupantes do poder isto é o que fa- não era apenas voltado contra os ju-
zem. E acaba se tornando a resposta ge- deus, dirigia-se também contra os ale-
ral para todos os problemas da vida: o mães, já que Hitler disse que os alemães
calendário requer sacrifício humano, a agora são compostos de cinco ou seis
guerra requer sacrifício humano. Exis- raças, algumas delas não valendo nada,
te, então, esse ciclo contínuo de violên- outras sendo muito mais significantes.
cia que prossegue relacionado, em par- É um movimento de purificação do cor-
te, à necessidade de fazer o tempo fluir po social através da violência. Em últi-
em intervalos regulares. É preciso ma- ma instância, as pessoas que avançam
tar as pessoas para que os deuses ve- e transformam isso em um objetivo são
nham e representem o próximo ciclo de aquelas capazes de implementar a vio-
tempo, e outro grupo vem... e assim por lência e a guerra. E não existe uma luz
diante. O poder central do Estado se no fim do túnel; não existe a promessa
apossa dessa função de regular a se- de um futuro melhor, para dizê-lo as-
qüência do calendário. Quanto mais sim. Essa é a maneira como a vida é, a
complicada a sociedade se torna e luta de todos contra todos, e os que ob-
quanto mais expande seu poder sobre têm sucesso só o fazem porque subju-
outras regiões, mais exacerbado se tor- gam outras pessoas. E isto fica mais cla-
na esse sistema. Tenochtitlán, a Cidade ro nas palavras de Hitler: “não estáva-
do México, expande-se de um bando mos à altura da tarefa que nos impuse-
de cabanas de pau-a-pique no começo mos e, em um certo sentido, os soviéti-
do século XIV para uma cidade de 150 cos são superiores a nós porque são
mil, 200 mil habitantes. É preciso inte- vencedores”.
grar todo esse povo e o calendário faz
isso: organiza áreas da cidade, suas ati- Lins Ribeiro
vidades, em linha com os sacrifícios hu- Você disse que o seu problema princi-
manos. Existe, então, uma expansão ur- pal era capturar a relação entre ideolo-
bana e uma expansão política que ali- gia e poder. Quando você se detém nos
mentam esse tipo de violência. três casos, como vê essa relação ope-
Já sobre os nazistas, há muitas ma- rando?
neiras de se falar sobre eles, mas trata-
se aqui da organização da sociedade Wolf
para a guerra. Não necessariamente Em cada caso existe um objetivo imagi-
para fazer a guerra contra outros povos, nário. E este objetivo imaginário está
mas para organizar as pessoas de tal sendo implementado via poder. A ideo-
maneira que as atividades sejam reali- logia delineia a possibilidade imaginá-
zadas ordenadamente, de uma forma ria. Em um determinado nível, imagi-
quase militar. Os participantes treinam nar não é loucura... Na verdade, eu ve-
seus corpos e mentes para fazerem par- nho tentando contornar esse problema.
te desse processo. À medida que isso se Essas são todas criações da imaginação
expande, cria-se esse corpo comunitá- humana. Alguém pensou e um número
rio puro que deve continuamente extir- de pessoas cooperou na produção des-
par os diferentes, pessoas que não se ses corpos de idéias. Mas elas são real-
ajustam. Louis Dumont fez um comen- mente o que Castoriadis chama l’ima-
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ginaire. Assim, a ideologia tem essa princípio dos tempos. O animal ances-
qualidade de l’imaginaire, relacionada tral tira sua pele e dá a pele, a máscara,
com o poder. Porque os chefes, os diri- os implementos para que eles sejam
gentes do Estado azteca, a elite nazista chefes. Estas são todas idéias que estão
vêem a si mesmos como executores de sob a rubrica do que chamamos de cul-
projetos. E, em todos os casos, são pro- tura. Entre os aztecas também. O calen-
jetos sem fim, não existe o dia em que dário é extremamente antigo na Mesoa-
se dirá: agora paramos com o sacrifício mérica e a noção de que o tempo não
de pessoas. Já os chefes kwakiutl estão flui por si mesmo, que precisa ser leva-
ansiosos por mostrar quem são. Em do, que tudo está organizado em termos
uma situação de perda de população há de relações entre espaço e tempo, de
também recém-chegados que têm di- maneira que você se ordena em relação
nheiro da nova economia capitalista. a pontos no ambiente e em situações ri-
Por exemplo, a existência de um homem tuais com o Leste, Oeste, Norte e Sul.
que coletava de Boas taxas de infor- Onde as pessoas sentam em uma casa
mantes e mandava suas mulheres para ou em uma reunião tem a ver com o po-
trabalhar em prostituição em Victoria. sicionamento com o Leste e o Oeste.
Ele começa a ter um papel no sistema Quando funcionários do governo mexi-
de potlatch e os antigos chefes o vêem cano são convidados para sentar com os
como um arrivista. Fazem, então, um índios, eles são colocados no lado Oeste
potlatch em que destroem grande quan- do recinto e, eles não sabem disso, es-
tidade de propriedades, de riquezas, e tão sendo basicamente empurrados pa-
esse homem não consegue responder à ra uma posição inferior. Assim, o que
altura. Assim, os antigos chefes fazem costumávamos chamar de cultura é a
com que ele retorne a um status co- matéria-prima a partir da qual essas
mum. Mas cada vez que isso ocorre, a ideologias são construídas e ganham in-
quantidade de riquezas que tem de ser fluência, em parte, através disso.
colocada em circulação também au-
menta. Trata-se de um beco sem saída. Lins Ribeiro
Nesse caso, o conceito de ideologia en-
Lins Ribeiro globa o de cultura e, de certa forma, o
Eu estava pensando sobre o nexo entre dilui...
ideologia, poder e cultura. Você faz uma
clara relação entre ideologia e poder, Wolf
mas onde colocaríamos a cultura? A ideologia seleciona do plano mais ge-
ral da cultura aquilo que lhe é mais
Wolf adequado, o que pode atuar como mar-
Em cada um dos três casos, as noções cas, símbolos ou emblemas de relações
que legitimam as ideologias são retira- que se quer destacar.
das daquilo que pensamos ser a cultu-
ra. No caso kwakiutl, a relação básica é Lins Ribeiro
a busca de poder espiritual, ganhar in- O conceito ou noção de cultura nunca
fluência e poder indo à praia, encon- foi um ponto pacífico. Na verdade, é um
trando o sobrenatural, lutando contra o campo de batalha. Talvez nos últimos
sobrenatural, entrando em relação com dez ou vinte anos, o ponto mais quente
o sobrenatural. Os chefes são as pes- desse campo de batalha nos EUA tenha
soas que recebem esse tipo de poder no sido a relação entre estudos culturais e
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antropologia que teve uma série de im- foi desconhecida nos primórdios da an-
plicações para a antropologia, sobretu- tropologia. Quando Boas toma essas
do para a antropologia norte-america- idéias e as traz para os Estados Unidos
na. Poderia explorar essa idéia de que o e o Canadá, todo mundo passa a ter sua
conceito de cultura é um locus de con- própria cultura. Mas a agenda política
flitos entre diversas disciplinas? de alguns grupos tentando definir es-
paço e poder para eles mesmos não é
Wolf considerada.
Na história da noção de cultura, há que
destacar uma pessoa, Herder, geral- Lins Ribeiro
mente associado aos princípios dessa Em certo sentido, quando a noção de
noção no final do século XVIII, começo cultura é apropriada pela antropologia
do XIX. Herder era um alemão da área ela é despolitizada.
do Báltico, uma área de fronteira com
poloneses, falantes do alemão, lituanos, Wolf
estonianos, finlandeses. Assim, a noção Sim, ela é despolitizada. Já os estudos
de diferença revela-se importante na culturais fizeram duas coisas importan-
criação da noção de cultura. Herder in- tes. Uma é mostrar a cultura enquanto
teressou-se por aquilo que mais tarde construção, não se trata mais de um es-
foi chamado de folclore, de literatura pírito interior que movimenta a todos –
folclórica. Ele tentou definir o que era o essa é uma tendência geral que, na ver-
espírito interior que distinguia um gru- dade, não se restringe aos estudos cul-
po do outro. Os finlandeses tinham o turais. A outra é que, rapidamente, se
seu espírito, os alemães o deles. O mo- levantam questões sobre hegemonia:
mento inicial dessa idéia se relaciona quem impõe essas idéias a quem, quem
com a situação política de ausência de está inventando os cânones, as regras
um Estado-nação alemão unificado. De que definem os jogos, existem contrajo-
modo que a concepção de uma forma gos? Feminismo, os afro-americanos,
de unidade espiritual entre os alemães qualquer que seja o tipo de afirmação.
precede a formação do Estado, ao con- Assim, os estudos culturais focalizaram
trário do que aconteceu na França, on- nos pontos fracos do conceito antropo-
de o Estado possui uma unidade e, em lógico de cultura. Mas eu acho que a
conseqüência, todos se tornam cida- fraqueza deles é o exagero no que diz
dãos daquele Estado. Assim, a noção de respeito à construção, exagerando, em
cultura sempre se encaixa em situações conseqüência, a concepção de uma eli-
em que, por um lado, há diferenças en- te que se estabelece e que constrói he-
tre a população, e por outro, apelos po- gemonia mais ou menos como quiser.
líticos à unidade, soberania, dominação Mas há algo sobre o conceito de cultura
etc. Existe sempre a idéia que sob os di- que não explicamos bem para nós mes-
versos elementos da cultura – comida, mos. E talvez eu esteja falando sobre is-
habitação, vestuário, sistemas de cren- so porque ensinei “cultura e personali-
ças – há alguma forma de espírito inte- dade” por tantos anos. Psiquês e corpos
rior. E, claro, esse espírito interior ne- tomam forma via socialização e cultura.
cessita trabalhar através de uma elite Você aprende a andar, falar, comer e o
que o expresse. Isso não seria para os que comer, o que é aceitável e o que
camponeses... Então, existe uma agen- não é, o que é prestígio e o que não é, o
da política embutida em tudo isso e que que é moral e o que não é. O conceito
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de cultura possui suas próprias cama- Lins Ribeiro


das. Existem traços, como formas de en- Também, marcados pela análise literá-
terrar as pessoas, de comer certos ali- ria, não dão suficiente atenção àquilo
mentos. Esse conceito também inclui que chamamos de realidade etnográfi-
múltiplas realidades imperativas que ca.
são sempre formadas e trabalhadas. A
história alemã fornece um desses exem- Wolf
plos, de como camponeses eram leva- E claro que essa realidade etnográfica
dos às igrejas onde eram forçados a opera com oportunidades e constrangi-
confessar, se não o fizessem se torna- mentos que são aprendidos. É como um
vam fora da lei. Isto é, existem manei- rato correndo em um labirinto que apren-
ras através das quais forças externas de como sair dele e chegar ao queijo.
nos constroem enquanto vivemos. Mas
a natureza do que subjaz ao contato en- Lins Ribeiro
tre essas forças é algo que creio ser al- Falemos da consciência de coisas maio-
tamente real. Os que falam dos espíri- res do que aquelas que o observador
tos dos alemães, finlandeses e estonia- constata. Acho, por exemplo, que no-
nos, colocam essas questões em uma ções como níveis de integração socio-
linguagem literária extremamente so- cultural, de Julian Steward, foram indi-
fisticada. Mas existe algo na experiên- cativas, décadas atrás, da tomada de
cia de crescer em uma cultura que cria consciência por parte dos antropólogos
diferenças, cria hábitos que não são os norte-americanos da existência da na-
mesmos do outro lado da fronteira. E ção. Nos anos 80, o que aconteceu, e
esses pontos de ancoragem se tornam não estou sendo evolucionista aqui, foi
importantes. A idéia que os nazistas ti- a tomada de consciência da existência
nham de transformar alguém em um de forças globais. E o seu livro Europe
soldado permanente, só poderia vingar and the People Without History foi alta-
em um lugar onde ser um soldado sig- mente influente nesse processo. Você
nificava prestígio e recompensas, onde começou sua carreira nos anos 50. Ini-
as pessoas tinham essas experiências e ciando com Steward na década de 50
os velhos conversavam sobre como era até os anos 90, como vê esses desenvol-
ser um soldado vitorioso contra os desa- vimentos no tempo? Existem momen-
jeitados franceses etc. Dessa forma, o tos, períodos? Foi apenas uma questão
conceito de cultura esconde uma quan- de construir categorias mais abrangen-
tidade tremenda de relações interes- tes ou de ter consciência de que os con-
santes. ceitos não eram mais capazes de expli-
car aquilo que se experimentava na
Lins Ribeiro pesquisa de campo?
É como se às vezes fosse abstrato em
excesso, às vezes ao contrário. Wolf
Houve uma grande mudança desde a
Wolf época do difusionismo que contava tra-
Mas o que me chama a atenção nos es- ços e visava descobrir onde uma cultu-
tudos culturais é que tudo parece ser ra terminava e a outra começava – e co-
“manufaturado”, uma espécie de frau- mo os traços migravam de uma para ou-
de imposta a outros. tra. O que foi algo interessante. Trata-
se de uma dimensão de comunicação.
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Mas chegou a extremos, tornou-se ma- as pessoas em termos de “áreas do mun-


tematizado, formalizado. Então, vieram do”. Talvez, e isto é uma provocação, se
os estudos de aculturação que, qual- quisermos estudar tópicos e objetos glo-
quer que seja a forma que pensemos bais possamos aprender mais sobre cul-
sobre eles hoje, foram a introdução de tura afro-brasileira na cena global, fo-
uma noção, de um campo de relações calizando escolas de samba em São
entre o povo “A” e o povo “B”, entre a Francisco (Califórnia), do que indo para
cidade e o campo. Foi uma mudança o Rio ou para a Bahia. Acho que existe
importante. Levou a todo tipo de pro- um reembaralhamento muito radical na
blemas, mas, em vez de apenas contar forma como imaginamos dar conta de
traços e reconstruir culturas tal como certas questões através da pesquisa.
existiram no passado, havia a idéia de
enfocar pessoas vivas interagindo, pes- Wolf
soas em diferentes tipos de cenários. Existe, agora, uma multiplicidade de
Em certo sentido, então, o que o Ste- campos. Parece-me que também é ne-
ward faz é tomar esse campo de intera- cessário expandir essa visão para as
ções e representá-lo como um edifício, pessoas, os indivíduos, o self. Há, no
como uma arquitetura, onde existe um presente, tanta preocupação com a
primeiro andar, as comunidades, depois identidade, justo quando as identidades
um segundo andar, as regiões, e um ter- estão desaparecendo. Mas o self nunca
ceiro, as nações. A gente nunca sabe foi uma coisa única. Freud falou em id,
muito bem como passar de um para o ego e superego, ao menos três níveis,
outro, mas... há, provavelmente, muitos mais. Em
um interessante artigo, Felix Keesing,
Lins Ribeiro pai de Roger Keesing, argumentava,
E o nome dos andares pode variar. muitos anos atrás, que na aculturação
algumas coisas mudam mais facilmente
Wolf que outras. Acho que os exemplos que
Pode variar. Era um esquema altamen- ele deu eram errados, mas quando pen-
te imperfeito, mas agregou uma quarta samos dessa forma, a noção de pessoa
dimensão à idéia de interações em um unitária aparece como falsa tanto quan-
campo. O campo agora tem muitos pla- to a de um grupo unitário. Processos in-
nos, muitos níveis, são múltiplos cam- cidem sobre eles, por exemplo, o ciber-
pos. Acho que a mudança para a pers- espaço repentinamente incide sobre to-
pectiva global implica muito mais, não das as pessoas de um grupo, e vai dife-
apenas explode tudo isso, mas qualquer renciar o grupo, o que causará efeitos
que seja a arquitetura que permaneça é distintos tanto sobre ele mesmo quanto
muito mais complicada. sobre as pessoas. Assim, pessoas que ti-
verem aprendido a dançar samba po-
Lins Ribeiro dem se conectar com vários outros gru-
Já se discutiu tanto sobre globalização pos de dança em diversos níveis, do po-
que estamos chegando a um ponto de pular a formas artísticas altamente ela-
saturação. Mas a localização da pesqui- boradas. Contudo, existem também obs-
sa antropológica em cenários globais táculos. Fui uma vez a um teatro ver o
complica muito como fazer pesquisa e José Leguizamo, um comediante vene-
nós ainda olhamos esse assunto de uma zuelano, representando um persona-
forma muito tradicional. Ainda se treina gem que era um hispânico, um imigran-
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te latino-americano que se fazia passar teriam feito o marxismo muito mais ri-
por japonês, ensinando hispânicos co- co. Então, ficamos presos em um só mo-
mo vencer na vida seguindo modelos delo que não conseguia ser suficiente-
japoneses. O que acontece é que en- mente flexível para acomodar a reali-
quanto ele dava suas aulas, se alguém dade. Existem outras razões. Uma delas
ligasse um aparelho e começasse a to- é que o próprio sucesso do comunismo,
car cha-cha-cha suas pernas começa- no que se refere às relações étnicas na
vam automaticamente a mexer (risos) União Soviética, fornecendo a diversos
de acordo com o ritmo. Isto me chamou povos identidades nacionais, permitin-
a atenção como um tipo peculiar de pa- do o florescimento de culturas nacio-
rábola, o tipo de fato que provavelmen- nais, de línguas, acabou tendo seus efei-
te acontece em vários níveis, naqueles tos. Porque todas essas pessoas decidi-
diferentes níveis da pessoa diferencia- ram que, tendo sido educadas em aca-
damente expostos a impulsos externos. demias marxista-leninistas, estavam
prontas para assumir o poder. Bem, isto
Lins Ribeiro sobre o marxismo. Se ele sobreviver te-
Vamos mudar um pouco. Ainda no âm- rá de ser de uma forma muito mais di-
bito do novo ambiente das ciências so- versificada. Já a antropologia, parece-
ciais e da antropologia. Talvez a coisa me, sempre teve problemas com o “po-
mais forte que aconteceu nos últimos der” – o tipo de coisas de que falávamos
dez anos foi o fim da União Soviética. antes –, nunca reconhece seus próprios
Qual o impacto disto sobre a antropolo- aspectos políticos e o cenário político
gia? Talvez em termos de economia, so- em que opera. Acho que ela perdeu o
ciologia e ciência política esta seja uma bonde durante a transição dos anos 80.
questão mais evidente. Mas sempre O Brian Ferguson organizou várias ses-
existiu a relação entre o marxismo e o sões na Academia de Ciências de Nova
socialismo real. Uma vez que não existe Iorque e nos encontros da Associação
mais o modelo real operando e aqui não Americana de Antropologia, nas quais
importa tanto a nossa opinião sobre es- os antropólogos falavam sobre lugares
se modelo, um espaço vazio se estabe- problemáticos no mundo, como eles en-
lece. Como você vê isto? tendiam a Bósnia, a Somália. Todas as
apresentações foram extremamente in-
Wolf teressantes, muito diferentes do que
Vamos falar primeiro sobre o marxismo. normalmente é descrito pela ciência po-
Acho que o que aconteceu com suas lítica. Existe um antropólogo holandês
muitas variações foi que todas submer- chamado Mart Bax que escreveu um li-
giram sob a ortodoxia stalinista. Na his- vro sobre um centro de peregrinação na
tória das diferentes vertentes do mar- Bósnia. Ele coloca os peregrinos, o Par-
xismo há algumas mais culturológicas, tido Comunista, os padres, o bispado,
outras menos, algumas mais social-de- como atores em uma mesma situação,
mocratas, outras utópicas etc. Eu sem- na qual todos estão interagindo para
pre achei que essa riqueza de possibili- decidir sobre quem tem poder sobre
dades deveria ter mais espaço. Agora quem. É uma visão antropológica, mui-
se encontra muda, de certa forma. to mais rica do que qualquer coisa que
Quem é que vai ler todos esses caras? você possa obter nos meios de comuni-
Marxismo positivista, materialismo dia- cação e que poderia contribuir para um
lético... Todas essas diferenças, creio, seguimento e entendimento do conflito.
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Lins Ribeiro mero de pessoas como o William Rose-


Eric, você se definiria como um marxis- berry, Joe Heyman, eu mesmo, que se
ta na antropologia norte-americana ? autodenominam ecologistas políticos,
que provavelmente continuarão um
Wolf modo de análise que poderia ser cha-
Sim, defino-me como um marxista sim- mado de marxista, ao menos em algu-
plesmente porque não quero dar a ou- mas das suas características. Mas so-
tros a satisfação de fazê-lo (risos). Exis- mos uma espécie de marxistas margi-
te algo forte no marxismo que é a pro- nais, em um certo sentido. Companhei-
cura de estruturas que governam rela- ros de viagem, mais do que crentes au-
ções concretas entre as pessoas. Não é tênticos.
o bastante, é um ponto para começar.
Mas se você não o tem, você se perde. Lins Ribeiro
Um tópico associado é o do socialismo.
Lins Ribeiro Você ainda faz parte de um grupo de
Então, como você acha que o marxismo acadêmicos socialistas que se reúne pe-
continuará a se desenvolver, a mostrar riodicamente...
sua face, na antropologia americana,
com o fim do socialismo real? Existe al- Wolf
go já perceptível em muitos meios aca- Eles vão se encontrar de novo, proxima-
dêmicos de diferentes países que é uma mente, e estou considerando a idéia de
diminuição da presença do marxismo ir a essa reunião. Ainda tenho minha
no discurso das pessoas... assinatura da Monthly Review. Mas es-
tá se transformando em uma reunião de
Wolf veteranos na qual você fala sobre as ba-
Eduardo Archetti me disse que perce- talhas que uma vez lutou e espera algo
beu que o marxismo estava em maus melhor para o futuro. A não ser que te-
lençóis quando, na livraria da universi- nha alguma coisa concreta que possa
dade, em Oslo, mudaram os livros so- fazer com isso, se transforma em nostal-
bre marxismo para os fundos da loja e gia.
colocaram, no lugar, livros de astrolo-
gia (risos). Eu nunca tive certeza sobre Lins Ribeiro
os prognósticos revolucionários do Em uma época em que o capitalismo
marxismo. A idéia do proletariado sem- triunfante está por toda parte, o que de-
pre me pareceu um primeiro passo in- vem fazer os socialistas?
teressante para perguntar quais eram
as implicações do trabalho assalariado. Wolf
Mas a idéia de um proletariado unifica- Alguém disse, acho que foi o Philippe
do que, então, atua em uníssono sob a Bourgois, “agora todos nós terminare-
liderança do Partido Comunista, sem- mos sendo social-democratas” (risos)!
pre me pareceu uma quimera. Karl Witt- Não vejo nenhum programa geral. Mes-
fogel uma vez disse: Marx sim, marxis- mo nos lugares onde o socialismo real-
mo não. Acho que o marxismo falhou mente foi positivo, em Viena, por exem-
intelectual e politicamente, mas deixa plo, a classe operária não acredita mais
um importante legado a ser incremen- nele. Não tem apelo, todos querem fa-
tado. Se vai sobreviver ou não, não te- zer dinheiro. No final, teremos uma si-
nho a menor idéia. Existe um certo nú- tuação em que a metade do mundo en-
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riquece e a outra vive de rejeitos, ho- geral do que faz a humanidade possível
meless. Acho que é uma situação ver- enquanto um projeto, e o que faz a hu-
dadeiramente horrível, humana, social manidade existir de um certo modo em
e politicamente, em todos os sentidos. diferentes situações, se não tivermos
Mas não sei qual é a resposta. essa combinação, então, quem precisa-
rá de antropologia? Essa é a sua marca
Lins Ribeiro de distinção. A observação naturalista
Algumas pessoas, altamente respeitá- também está sob ataque.
veis, acham que a antropologia irá de-
saparecer. Você estudou em uma época Lins Ribeiro
em que a visão universal do antropólo- Mas isso também tem um lado positivo.
go era muito forte. A fragmentação da A pretensão de “estar lá” e ser um ob-
especialização na antropologia é altíssi- servador neutro era algo em que muita
ma e pode ser vista nos encontros da gente acreditava. E agora não se pode
Associação Americana. Como poderá mais montar a estória ingênua da neu-
sobreviver essa visão universal dos an- tralidade objetiva. Transformar tudo em
tropólogos? Pode sobreviver? E isso tem um jogo de textos é o cerne da questão,
a ver com uma de suas preocupações: pois pode-se chegar ao ponto em que as
uma perspectiva do tipo quatro campos pessoas não querem mais fazer pesqui-
boasianos (antropologia cultural, ar- sa de campo.
queologia, lingüística e antropologia fí-
sica) sobreviverá em uma era de extre- Wolf
ma fragmentação? Sem dúvida. Também tudo é implodido
no plano do indivíduo, com questões
Wolf como “quem sou eu em relação a essa
Não tenho muita esperança de que so- outra pessoa”. Assim, perde-se a capa-
breviverá. As instituições que costuma- cidade de generalização que a antropo-
vam ter uma perspectiva do tipo quatro logia teve no passado. Acho que há
campos estão rapidamente desmontan- uma grande perda real de disciplinas
do suas iniciativas, por várias razões. baseadas na observação. A psicanálise,
Mas acho, também, que existe um tipo válida ou não, envolvia de fato a idéia
de dialética entre a humanidade em ge- de observar e ouvir alguém e, a partir
ral e o enfoque de situações particula- de pequenas estórias e sinais, construir
res. Quando investigamos situações es- algum tipo de explicação. Isso pratica-
pecíficas temos em mente uma compa- mente desapareceu. Agora, enfiam uma
ração de todas essas situações. Tais pílula na pessoa e pronto. O mesmo com
perspectivas estão desaparecendo. As a antropologia. Os sociólogos são bem
pessoas não querem mais fazer pesqui- mais poderosos com as estatísticas, ob-
sa de campo, ou a pesquisa de campo servações e entrevistas que desenvol-
tem de ser a maior parte do tempo so- vem, do que um cara sentado em “el
bre a identidade do self, como eu me barrio” tratando de entender o que está
sinto quando falo com dois cheyennes. acontecendo. Assim, acho que o ângulo
Antes nos detínhamos sobre eles, e não de observação natural do trabalho de
sobre nós. Essas coisas que estão desa- campo irá desaparecer também. Isso é
parecendo, de certo modo definiam co- muito ruim, porque as alternativas para
mo a antropologia era, não sei o que se- todos esses modelos serão os economis-
rá no futuro. Se não tivermos a noção tas do Banco Mundial.
CULTURA, IDEOLOGIA, PODER E O FUTURO DA ANTROPOLOGIA 163

Lins Ribeiro
Então, a particularidade da antropolo-
gia é ver o universal desde um ponto de
vista particular que é densamente ob-
servado. Existe algo mais que gostaria
de falar?

Wolf
Neste ponto da minha vida, o que real-
mente me fascina é que todas essas no-
ções com as quais trabalhamos, de re-
pente, só se mantêm juntas com clipe
de papel. Não funcionam muito bem.
Nesse projeto em que me encontro, o
poder da imaginação humana de inven-
tar idéias é realmente impressionante.
Podem ser loucas ou não, têm conse-
qüências, matam pessoas. Mas existe
realmente algo sobre elas que não cap-
turamos muito bem. Pensemos sobre a
história das Cruzadas; a idéia de con-
verter o mundo inteiro ao islamismo, ou
ao catolicismo; a idéia de que os judeus
depois de 6 mil anos devem voltar à Pa-
lestina – e não importa quem viva lá,
são recém-chegados que não pagaram
aluguel por 2 mil anos. Essa capacidade
dos humanos de criar projetos impres-
sionantes é algo, para mim, bastante
inexplicável.

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