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XXIII 91 2016
Carta ao leitor
O sétimo dia de Pessach – o último dia da festa em circunstâncias em que prefeririam não estar. Algumas são
Israel (na Diáspora, comemora-se um oitavo dia) – obrigadas a viver onde não gostam, outros trabalham em
celebra o milagre da abertura do Mar de Juncos. um ramo que não lhes interessa. Já outras são obrigadas a
A história de como D’us abriu o Mar, permitindo que lidar com pessoas com quem prefeririam não ter contato.
os judeus o atravessassem, e depois o fechou, afogando Há inúmeros exemplos de problemas e obstáculos que
os egípcios, é universalmente conhecida. A abertura do advêm de fontes externas. Mas há também uma outra
Mar foi, possivelmente, um milagre até maior do que forma de escravidão – sútil, mas não menos prejudicial.
as Dez Pragas. Certamente foi mais significativo, pois É a interna. É a escravidão que se manifesta por meio
representou a derrota absoluta do Egito. Foi somente de maus hábitos, vícios e características negativas que
após o episódio no Mar de Juncos que o Povo Judeu limitam o potencial do ser humano e, consequentemente,
finalmente se libertou de seus opressores. sua felicidade.
Nossos Sábios fazem a seguinte pergunta: por que as Dez Muitas pessoas acreditam que seriam verdadeiramente
Pragas não foram o suficiente para garantir a liberdade livres se conseguissem se livrar das formas externas
do Povo Judeu? De fato, por que foi necessário o episódio de escravidão. Elas imaginam que se as Dez Pragas
da abertura do Mar, que ocorreu sete dias após a saída do eliminassem os Faraós de sua vida, tornar-se-iam livres
Egito? Os egípcios já não haviam sido derrotados? e felizes: poderiam finalmente deixar seu Egito pessoal.
A religião idólatra egípcia já não havia sido desmentida? Mas muitas dessas pessoas se surpreendem ao descobrir
O Egito já não havia sido subjugado por D’us? que mesmo após deixarem seu Egito pessoal – após
superarem suas limitações externamente impostas –,
No dia 15 do mês hebraico de Nissan, primeiro dia o Faraó continua a persegui-las. Esse Faraó é a forma
de Pessach, o Faraó implorou a Moshé e Aharon que interna de escravidão: é o Faraó que levávamos
retirassem o Povo Judeu do Egito o mais rápido conosco mesmo após deixarmos o Egito. Para sermos
possível. Após a décima e última praga – a da morte dos verdadeiramente livres, precisamos não apenas libertar-
primogênitos – o Faraó e todo o Egito se encontravam nos de dificuldades e limitações externas, mas também
em estado de pânico. Acreditavam que se não liberassem das internas. Para que isso ocorra, é necessário partir o
os judeus de imediato, todo o Egito seria destruído. Mar de Juncos que existe dentro de nós e penetrar nas
Contudo, logo após libertar os judeus, o Faraó muda profundezas de quem verdadeiramente somos e revelar
de ideia e envia suas forças armadas para capturá-los e o que há de melhor em nossa alma. Essa lição vale tanto
trazê-los de volta. Foi essa tentativa de recapturar os para indivíduos como para o Povo Judeu como um todo.
judeus que levou ao milagre do Mar de Juncos. Assim, Como um grande Sábio judeu ensinou: é mais fácil tirar
a libertação do Povo Judeu ocorreu em duas etapas: os judeus do Egito do que o Egito dos judeus.
primeiro, as Dez Pragas, que resultaram no Êxodo, em
15 de Nissan, e segundo, a abertura do Mar, que ocorreu Pessach é a festa da liberdade. Que este tema e a santidade
uma semana mais tarde – no sétimo dia de Pessach. da festa ajudem cada um de nós a se libertar de todas as
limitações – tanto externas como internas.
Os livros místicos explicam por que as Dez Pragas
não foram o suficiente para garantir a liberdade do Pessach Sameach a todos!
Povo Judeu. A Cabalá explica que há duas formas de
escravidão e, portanto, duas etapas na busca humana pela
liberdade.
As quatro facções
diante do Mar
“E Moshé disse ao povo: Não temais! Ficai e vede a salvação que
o Eterno vos fará hoje; porque os egípcios que vedes hoje
não voltareis a vê-los nunca mais! O Eterno lutará por vós, e
vós fiqueis calados! E o Eterno disse a Moshé: Por que clamas
a Mim? Fala aos filhos de Israel para que sigam em frente!”
N
o 7o dia da festa de Pessach, 21 do mês de Um segundo grupo bradou: “Deixem-nos voltar ao
Nissan, celebra-se o milagre da divisão do Egito. Melhor é viver como escravos do que morrer”.
Mar de Juncos. Foi esse evento – e não as Um terceiro grupo disse: “Deixem-nos lutar contra
Dez Pragas – o que assegurou a libertação os egípcios. Se tivermos que morrer, ao menos deixem-
do Povo Judeu da escravidão egípcia. Pois nos morrer lutando”. E, finalmente, um quarto grupo
como nos conta a Torá, como resultado da décima disse: “Deixem-nos orar a D’us. Nada mais podemos
e última praga – a morte de todos os primogênitos fazer”.
egípcios – o Faraó finalmente permitiu que os judeus
deixassem o Egito. Mas ele se arrependeu e enviou seu Moshé, líder do Povo Judeu, agindo de acordo com
poderoso exército para capturá-los e trazê-los de volta a Vontade Divina, rejeitou a abordagem de todos os
ao Egito. quatro grupos. “E Moshé disse ao povo: Não temais!
Ficai e vede a salvação que o Eterno vos fará hoje;
Os judeus deixaram o Egito no 15o dia de Nissan – porque os egípcios que vedes hoje, não voltareis a vê-
primeiro dia de Pessach. Mas logo após sua partida, as los nunca mais! O Eterno lutará por vós, e vós fiqueis
forças armadas egípcias saíram em seu encalço. O Faraó calados! (Êxodo 14:13). “Não temais! Ficai e vede a
estava determinado a capturar os milhões de escravos salvação do Eterno…”, segundo o Midrash, foi a resposta
a quem dera permissão de deixar o país e os trazer de de Moshé àqueles que, no desespero de não vencer
volta ao Egito. Uma semana após o Êxodo, os judeus se a ameaça egípcia, queriam atirar-se ao mar.
viram aprisionados: diante deles, o Mar de Juncos, e por “Os egípcios que vedes hoje, não voltareis a vê-los nunca
trás, os poderosos exércitos do Faraó. mais”, dirigia-se àqueles que defendiam a rendição e o
retorno ao Egito. “O Eterno lutará por vós” foi a resposta
Como reagiram? Conta-nos o Midrash que o Povo àqueles que desejavam combater os egípcios. E “fiqueis
Judeu se dividiu em quatro facções. Um grupo disse: calados” foi a rejeição de Moshé àqueles que disseram,
“Deixem-nos atirar-nos ao mar. Será melhor “Tudo isso está além de nosso controle. Só nos resta
morrer do que voltar à escravidão no Egito”. rezar”.
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Os Filhos de Israel atravessam o Mar de Juncos em terra seca seguidos pelo Faraó e seus cavaleiros. Hagadá alemã, séc. 15
A festa de Pessach dura sete dias As reações do povo quando se viu facções. O primeiro grupo
na Terra de Israel (oito dias na aprisionado – pelo Mar, de um lado, defendia o suicídio: argumentavam
Diáspora) em virtude do processo e pelo exército egípcio, de outro – é que era melhor afogar-se do que
de libertação que levou uma semana. uma lição para cada um de nós sobre ser morto em batalha ou ser
O êxodo do Egito ocorreu no dia como lidar com os obstáculos e as capturado e levado de volta ao
15 de Nissan, mas os judeus somente adversidades da vida. Apesar dos Egito. O segundo grupo queria
se tornaram realmente livres no milagres que tinham testemunhado permanecer vivo a qualquer preço:
dia 21 do mês, quando um milagre no Egito, não há dúvida de que os nem queriam se afogar nem
duplo ocorreu no Mar de Juncos, judeus tinham boas razões para morrer lutando. O terceiro grupo
Yam Suf, em hebraico: a salvação do temer quando o exército egípcio se defendia o martírio: “Como vamos
Povo Judeu e a destruição de seus aproximava deles. Seria praticamente morrer, de qualquer forma”, diziam,
opressores. impossível cruzar o Mar – ainda “deixem-nos ao menos morrer
que alguns conseguissem salvar- com dignidade”. O quarto grupo
Os quatro campos se, certamente as crianças e os não queria morrer – nem no mar
bebês se afogariam. E se optassem nem em batalha – mas tampouco
A palavra Torá deriva da palavra por enfrentar o exército egípcio, queria voltar ao Egito. Como
hebraica Hora’á, que significa eles provavelmente seriam aparentemente não havia nenhuma
ensinamento. Cada relato na aniquilados. Afinal, não era o Egito solução natural para seu suplício,
Torá é uma lição para cada um a superpotência da época? Escravos eles argumentavam que a única
dos judeus em cada uma das fugitivos não se comparavam às coisa que os judeus podiam fazer era
gerações. Há muito a aprender forças bem equipadas do exército clamar a D’us e esperar que Ele os
da leitura do Midrash sobre a egípcio. salvasse.
divisão do Povo Judeu em
quatro campos diante do Mar de Ao se depararem com a morte, Essas quatro abordagens frente
Juncos. os judeus se dividiram em quatro a uma situação aparentemente
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impossível ilustram como quase acorrentadas do que correr o risco parte dos outros dois. Para eles, a
todos os seres humanos lidam de se afogar ou morrer no campo ideia de ceder sem lutar – ou pior,
com as adversidades que lhes de batalha. Tais pessoas conciliam, se autodestruir – é absurda.
parecem intransponíveis. Algumas chegam a acordos e se subjugam. As pessoas que pertencem ao
pessoas querem jogar-se ao mar, Elas farão qualquer coisa para evitar terceiro grupo às vezes até gostam
metaforicamente, e, às vezes, até uma briga, mesmo se isso implicar de problemas e obstáculos. Afinal,
literalmente. Elas entram em em abrir mão de sua liberdade, seus é sua chance de exercitar seus
desespero e desesperança. Outras, valores, sua dignidade e crenças mais músculos, de mostrar como são
que D’us os livre, até contemplam o valiosas. poderosas, mesmo que elas, também,
suicídio. No mínimo, retiram-se do tombem em meio à batalha. Seu
mundo como forma de se retirar da Há um terceiro grupo de pessoas lema, como Sansão, é: “Que eu
realidade. que é a antítese do segundo. Essas morra com os filisteus” ( Juízes
adoram uma briga. Vivem para 16:30). “Pode ser que eu tombe”,
Um segundo grupo lida com a brigar. No que lhes diz respeito, argumentam, “mas farei tudo para
adversidade se rendendo à situação. quando surge um obstáculo, este tem que também caiam meus inimigos”.
Essas pessoas se submetem à que ser vencido pela força. Se um “Os exércitos do Faraó podem
situação ou à pessoa que as está inimigo se impõe, este tem de ser mesmo me vencer”, dizem, “mas eles,
ameaçando. E fazem quaisquer derrotado. Diante de um problema, também, sentirão o gosto de sangue
sacrifícios – de fato, até sacrificam sua reação é preparar-se para uma e cairão mortos”.
sua própria liberdade – em troca da luta. Essas pessoas não acreditam
vida. Metaforicamente, preferem no meio-termo, nas negociações e, Há um quarto grupo de pessoas:
continuar escravos do Faraó a ter certamente, na conciliação. aqueles que creem que a oração é a
que enfrentar suas legiões e arriscar resposta para todos os problemas.
sua vida ou sua integridade física. Quem pertence a esse grupo “Como D’us é Onipresente e
Para essas pessoas, é melhor viver geralmente despreza quem faz Onipotente”, raciocinam,
“E naquele mesmo dia, D’us tirou os judeus do Egito”. Iluminura, Seder Hagadah Shel Pessach, Hamburgo, 1730-1750
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Golden Hagadá, c.1320, Barcelona, ESPANHA. Iluminuras retratando três das Dez Pragas
“Ele pode bem cuidar de todos De fato, como ensina o Talmud, a a Torá nos ensina que
os meus problemas”. Tais pessoas vida é uma gigantesca roda-gigante:
obviamente não pertencem ao a sorte da pessoa pode estar a oração por si só,
primeiro grupo de pessoas, pois embaixo, hoje, mas pode estar no despida de ação,
quem tem uma profunda fé em D’us alto, amanhã. Na verdade, quando
não é a resposta para
não se desespera. Eles também não alguém chega ao fundo do poço,
pertencem ao segundo nem geralmente é sinal de que sua sorte os obstáculos da vida.
ao terceiro grupo, pois não creem está prestes a mudar. A história “Por que clamas a
em submissão nem em confrontação. de Yossef, filho de nosso Patriarca
Somente creem no poder da oração Yaacov, é um exemplo disso: ele, que Mim?”, D’us diz a Moshé.
– em invocar a ajuda do Altíssimo. ficou durante 12 anos nas prisões “Diga ao povo que
egípcias, tornou-se o Vice-Rei
A Torá nos conta que D’us não do Egito – o governador de fato siga em frente!”
aprovou as abordagens de nenhum daquela que era a superpotência da
dos quatro grupos – nem mesmo do época.
quarto grupo. Pelo contrário, D’us
diz a Moshé: “Por que clamas a Mim? A própria história de Pessach nos
Fala aos filhos de Israel, para que sigam ensina que é possível a sorte da
em frente!”. pessoa dar uma reviravolta. Nós, o
Povo Judeu, que fomos um povo
Isolamento, submissão escravo e oprimido, sujeito a torturas
e confrontação e genocídio, fomos libertados pela
Mão de D’us, que nos tirou do Egito
Não é difícil entender por que a Torá e nos levou ao Monte Sinai, onde
rejeita a abordagem que diz que a Ele nos escolheu como Seu povo e
maneira de lidar com os obstáculos nos deu a Sua Torá. Yossef se tornou
é se atirar ao mar. O ser humano Vice-Rei do Egito porque ele não
nunca deve ceder ao desespero. se desesperou na prisão egípcia. Os
Enquanto estivermos vivos, sempre judeus se tornaram o Povo Eleito
haverá esperança. Acreditar em D’us porque não se assimilaram, apesar
significa acreditar que Ele tudo de todo o sofrimento que nos foi
pode, inclusive arrancar alguém imposto nas centenas de anos em
Representação do Faraó Ramses III,
da mais difícil das situações. que vivemos no Egito. Vale dos Reis, antiga Tebas
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A Torá condena todas as formas de significaria desistir – por inércia Mas muitas pessoas querem
autodestruição – física, espiritual, ou medo. Significaria escolher a lutar apenas porque anseiam
psicológica, emocional, social, sobrevivência em vez de escolher pela confrontação e guerra.
econômica ou cultural. Obviamente, uma vida plena e livre. Significaria Tais pessoas, especialmente se
há várias formas de “se atirar ao não assumir os riscos da vida. Os estiverem convencidas de que estão
mar”. Algumas pessoas, incapazes judeus que apoiaram a ideia de absolutamente certas e que D’us está
de lidar com o mundo, atiram-se em voltar ao Egito preferiam viver a seu lado, lutarão incansavelmente
um mar de vida religiosa. Essa é sua como escravos a lutar e arriscar sua contra qualquer pessoa ou coisa que
maneira de cortar todo o contato vida. Para eles, a única coisa que julguem estar em seu caminho.
com um mundo que lhes parece importava era continuarem vivos.
negativo ou desagradável. A Torá Com certeza, às vezes precisamos
não tolera esse comportamento, Essa atitude de submissão – de lutar. Se o Holocausto nos ensinou
ensinando-nos que o judeu deve ser ceder, de conciliar – se aplica tanto algum tipo de lição, foi que não
proativo no mundo. Se D’us quisesse a indivíduos quanto a grupos podemos silenciar e permanecer
que todos os judeus se trancassem de pessoas. Muitos indivíduos e indefesos. As grandes conquistas
dentro de uma sinagoga ou Casa de minorias costumam sacrificar sua e vitórias militares do Estado de
Estudos, sem nunca de lá sair, Ele identidade, seus valores e mesmo Israel proporcionaram segurança
não teria enviado suas almas à Terra. sua dignidade, apenas para preservar e orgulho aos judeus, em todas as
Se estamos aqui neste mundo, há a vida. A sobrevivência física vem partes do mundo. Contudo, há
um propósito nisso. Ser um reino de às custas de todo o resto. Pessoas uma diferença enorme entre lutar
sacerdotes e uma nação santificada submissas toleram e apaziguam os porque não há outra saída e lutar
significa envolver-se no mundo e faraós do mundo. Elas suportam pelo prazer de lutar. A luta pela
ter uma influência positiva sobre o opressão, brutalidade e injustiça preservação da vida, da liberdade e
mesmo. A Torá não deseja que nos porque têm medo de confrontar um da dignidade está sancionada pela
afastemos da escuridão, mas sim, inimigo a quem julgam ser muito Torá. A luta pela emoção da luta,
que iluminemos o mundo. mais forte do que elas. Seu lema é: pela glória ou como um canal para o
De fato, podemos e devemos nadar Melhor viver como escravos do que ódio é o anátema do judaísmo.
no “mar do Talmud”. Mas o que morrer como homens livres.
não podemos fazer é afogar-nos Como ensinam nossos Sábios, o
nele. Com raríssimas exceções, o Os judeus que pertenciam ao terceiro propósito da Torá é trazer paz ao
Povo Judeu não se pode imergir grupo – aqueles que desejavam mundo. Somente empunhamos as
totalmente no estudo da Torá e enfrentar os egípcios no campo armas quando necessário. Como
negligenciar o mundo, porque isto de batalha – podem parecer mais disse, certa vez, um de nossos
também é uma forma de suicídio. honrados do que os outros dois. Mas grandes Mestres, a missão do Povo
Muitas pessoas, temerosas, ou que lutar geralmente não é a abordagem Judeu é trazer luz ao mundo. Se o
não desejam enfrentar as “legiões correta face aos obstáculos e Povo Judeu apenas se dedicasse a
do Farão”, atiram-se ao mar, e, inimigos. A beligerância não é uma combater seus inimigos – vingando-
consequentemente, deixam de panaceia: não é a resposta a todos se daqueles que nos fizeram mal ou
contribuir para o Povo Judeu e o os problemas da vida. Mas há quem estivesse constantemente em batalha
mundo, em geral. adore uma boa briga. Essas pessoas contra os que nos odeiam ou a nós se
querem lutar com todos e com tudo: opõem – nosso povo não teria tempo
A Torá também condena a todos os inimigos – imaginários ou para nada mais. Nós, judeus, quer
abordagem do segundo grupo de reais, todas as ameaças e mesmo individual quer coletivamente, temos
judeus diante do Mar – aquela que qualquer ideia ou ideologia que eles importantes tarefas a cumprir neste
defendia que o povo devia voltar ao desaprovem. Geralmente, a bravata mundo. Não poderemos realizar
Egito. D’us criou o homem para ser dessa gente nos deslumbra. Nós nossa missão se estivermos ocupados
livre. O próprio tema de Pessach é os julgamos valentes e fortes. Os lutando contra todos aqueles que nos
o fato de termos sido escravos, mas judeus foram pisoteados pelo mundo odeiam.
quando D’us nos libertou, nós nos durante tanto tempo que muitos
tornamos Seus servos apenas – e de nós se deslumbram com aqueles A Torá não tolera a abordagem de
de mais ninguém. Voltar ao Egito que enfrentam nossos inimigos. atirar-se ao mar ou de voltar ao
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Oração e ação
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Hagadá de Charlotte von Rothschild . Hagadá de Pessach, com tradução ao alemão (Frankfurt), copiada por
Eliezer Sussman Mezeritsch, decorada por Charlotte von Rothschild, 1842
egípcios, que ainda estavam em seu judeus se atiraram ao mar, outros pedir pela vinda do Mashiach.
interior. O obstáculo – o Mar de “voltaram ao Egito”, outros, ainda, No entanto, ao longo de nossa
Juncos, Yam Suf – acabou revelando- decidiram que a solução para lidar história, e especialmente após o
se um milagre que salvou nosso povo com um mundo hostil era a luta, Holocausto, nós, o Povo Judeu,
de nossos inimigos, garantindo sua e outros concluíram que tudo que decidimos seguir em frente.
liberdade. podiam fazer era orar e esperar Retornamos à nossa pátria ancestral.
pelo melhor. Mas a melhor Erguemos um país extraordinário.
Esta história é verdadeira e vem abordagem tem sido a que é E tanto em Israel quanto na
sendo contada há milhares de anos, recomendada pela Torá: seguir em Diáspora,trabalhamos para fortalecer
geração após geração, e inspirou frente. Apesar de todos os nossos o Judaísmo como nunca dantes.
inúmeras pessoas – judeus e não inimigos e de todo o sofrimento
judeus. e perseguição, e mesmo apesar do A ordem Divina de seguir em frente
Holocausto, o Povo Judeu seguiu se aplica ao Povo Judeu como um
“Sigam em frente” em frente. Na esteira das grandes todo, e também a cada judeu em
tragédias, seria compreensível se os particular e a cada ser humano.
O tema principal de Pessach é a judeus tivessem cometido suicídio Precisamos constantemente seguir
liberdade, que, para o Povo Judeu, nacional – abandonando o judaísmo em frente, mesmo diante de um
adveio em estágios. Primeiro vieram – ou “voltado ao Egito” – através da Mar de Juncos, de nosso Yam Suf
as Dez Pragas, a seguir o Êxodo e, assimilação. Teria sido compreensível particular. E quando seguimos em
por fim, o milagre da divisão do Mar se o Povo Judeu se tivesse dedicado frente, os obstáculos não apenas se
de Juncos. Esses relatos e as lições inteiramente a se vingar contra desfazem – eles se transformam em
que deles tiramos são atemporais e todos os responsáveis pelo milagres.
universais. Holocausto. Os judeus poderiam
ter permanecido na Europa e
No decorrer de nossa vida, recorrido à violência e terrorismo
enfrentamos obstáculos – externos e para vingar o sangue de sete milhões BIBLIOGRAFIA
internos. Ao longo de nossa história, de seus filhos. Ou poderiam ter Rabi Schneerson, Menachem Mendel,
nós, judeus, enfrentamos muitos concluído que como somos um Likkutei Sichot volume 3
faraós, muitas legiões egípcias e povo pequeno, não há nada a Rabi Schneerson, Menachem Mendel
muitos Mares de Juncos. Alguns fazer além de rezar nas sinagogas e Sichot Kodesh 5740 vol. 2
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NOSSAS FESTAS
Lag BaOmer e o
Rabi Shimon Bar Yochai
Lag BaOmer, o 33º dia da contagem do Omer, é um dos dias mais
festivos no calendário judaico. É uma festa especialmente
popular em Israel. O país se enche de fogueiras. Essa data é
celebrada com excursões e outros eventos alegres e quase
meio milhão de pessoas visitam o túmulo – em Meron, no norte
de Israel – do grande Sábio e místico, o Rabi Shimon bar Yochai
– cujo aniversário de falecimento é justamente nesse dia.
L
ag BaOmer não é um Yom Tov – Nos textos judaicos, Lag Baomer é chamado de
um dia de festa religiosa – mas é um “Dia da Hilulá” de Rabi Shimon bar Yochai.
dos mais alegres do ano. No 33º dia A palavra “Hilulá” é aramaico e significa festa ou
do Omer, suspendem-se as práticas tristes de festa de casamento. Em geral, quando uma fonte
Sefirat HaOmer e há várias tradições sobre a judaica menciona a Hilulá de Rabi Shimon, está-se
maneira de celebrar o dia. Por exemplo, referindo à celebração feita em sua homenagem
na tradição sefaradita, faz-se um leilão público em que quando ele se casou, em sua juventude. Mas quando
se acendem velas em honra ao Rabi Shimon bar Yochai um livro sagrado judaico ensina que Lag BaOmer
e a outros grandes Sábios. Na Europa Oriental, é o “Dia da Hilulá de Rabi Shimon bar Yochai”,
o costume prevalente era fazer arcos e flechas para não quer dizer que esse dia era o de seu casamento,
as crianças, com os quais elas brincavam nas florestas. mas a data de sua morte. A mesma palavra, Hilulá, usada
Em Lag BaOmer, muitos judeus que vivem na para se referir ao casamento de Rabi Shimon também é
Diáspora ou em Israel, mas que não podem viajar a usada para o seu passamento deste para o outro mundo.
Meron, acendem uma fogueira ou, no mínimo, velas, em
homenagem ao grande Sábio, Rabi Shimon. A associação do termo Hilulá com o dia da morte
de alguém é intrigante. Afinal, ao longo das gerações,
Lag Baomer é mencionado em vários lugares da a data do falecimento de uma pessoa era guardada
literatura judaica, mas seu significado permanece pela família e filhos como um dia triste
meio que envolto em mistério. Uma tradição conta que – um dia de reflexão e expiação. Muitas pessoas
no 33º dia do Omer, uma praga cessou de afligir costumavam jejuar na data de falecimento de seus pais
os alunos de Rabi Akiva – mestre de Rabi Shimon. e mestres. Contudo, ao longo do tempo, a associação
Outras fontes nos contam que essa é a data do termo “Hilulá” com a data de falecimento de
do falecimento de Rabi Shimon bar Yochai e que todas Rabi Shimon se tornou tão aceita que a data de
as celebrações realizadas nesse dia se devem a esse falecimento de outras pessoas também passou a ser
motivo. designada pelo termo “Hilulá”.
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calendário para
contagem do
omer atribuído
a eliezer sussman,
alemanha, meados
séc. 18. têmpera
sobre papel
a seu lar original, Gan Eden, essas Seu falecimento foi um tipo de Fogueiras para Rabi
almas celebram e se rejubilam com casamento: quando ele deixou este Shimon bar Yochai
essa reunião. O júbilo por essa volta mundo, ele se reuniu com as almas
e essa reunião nos Céus é tão grande que se encontram nas maiores alturas A prática de se acender fogueiras e
que supera a tristeza das pessoas dos Céus – aquelas que sentiram sua velas em Lag BaOmer advém de um
em nosso mundo quando de seu ausência e ansiavam por ele durante antigo costume – que perdura até o
falecimento. As pessoas que aqui os anos em que ele viveu neste nosso dia de hoje – o de se acender uma
ficam devem tentar – por mais difícil mundo físico. grande fogueira próximo ao túmulo
que seja – vencer sua tristeza de Rabi Shimon bar Yochai, em
e entender que a alma que deixou Meron. Como mencionamos acima,
este mundo está feliz de ter chegado quase meio milhão de pessoas viajam
a um lugar mais feliz. Um texto a Meron nessa data.
antigo recorda um elogio fúnebre
da época talmúdica: “Chore pelos O costume de se acender a fogueira
enlutados, mas não por quem para Rabi Shimon é, provavelmente,
parte; pois ele partiu para o descanso, remanescente de um costume
e nós, para o lamento”. observado à época do Primeiro e
do Segundo Templos de Jerusalém.
Rabi Shimon bar Yochai pediu Quando morria um rei, o povo
que as pessoas não chorassem fazia uma fogueira imensa, na qual
sua partida, mas se rejubilassem atiravam artigos pertencentes ao
pela subida de sua alma. Por esse monarca falecido. Era uma forma
motivo, a data de sua morte – Lag ilustração de
de lamentação, mas também uma
BaOmer – é chamada de sua “Hilulá”. Rabi Shimon bar Yochai expressão de solenidade, que
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transmitia a majestade da realeza. exotéricas e esotéricas da Torá. Tel Aviv o fazem, ainda que muitas
A maior expressão de desonra para O Talmud ensina que se houve no delas pouco saibam sobre Rabi
um rei morto seria não se acender mundo um verdadeiro Tzadik, este Shimon. Mas não importa o quanto
fogueira quando de seu falecimento. foi o Rabi Shimon. Também nos se saiba sobre esse grande Sábio e
ensina que, por meio de seus atos e místico de Israel. Todos que acendem
Essa prática persistiu por muitos méritos, ele podia expiar todos os fogueiras ou velas em Lag BaOmer
séculos, mesmo quando já não havia pecados de Israel desde a criação do prestam-lhe homenagem. Rabi
reis judeus. O tratado talmúdico mundo até os dias em que ele viveu. Shimon bar Yochai continua um
Semachot (Avel Rabati) narra a mistério, uma lenda. Ele redefiniu
seguinte história: “Quando faleceu Nossos Sábios o comparam a Moshé nossa percepção sobre a morte.
Raban Gamliel, o Ancião, Rabeinu. De fato, alguns trabalhos E continua sendo um dos Sábios
Onkelos queimou por ele mais místicos alegam que Rabi Shimon mais reverenciados em toda a nossa
de 80 minas (uma enorme soma). era a reencarnação de Moshé. Como História. Foi um dos maiores alunos
Perguntaram-lhe: ‘Qual o propósito ele era “rei”, de estatura igual a de Rabi Akiva, um dos pilares do
de seu gesto? Ao que ele respondeu: qualquer outro rei, é mais do que Talmud e se tornou especialmente
‘Pois que está escrito: Hás de morrer justo que se acendam fogueiras famoso por ser o “pai” da Cabalá.
em paz; e assim como faziam lichvodó, em sua honra, como o Povo É mais do que justo iluminar ao
fogueiras para teus antepassados, Judeu fazia no passado pelos reis que máximo com muitas fogueiras
os reis que reinaram antes de ti, faleciam. E como ele mesmo via a e velas o dia de Lag BaOmer, pois
assim também queimarão para ti... sua partida deste mundo como uma Rabi Shimon bar Yochai foi um
( Jeremias 34:5). E não tem mais libertação e uma redenção – como homem que personificou o fogo da
valor Raban Gamliel do que cem uma forma de casamento – outros Torá e que iluminou o mundo com
reis inúteis?” também compartilham esta alegria e sua Luz Infinita.
celebram o dia de sua “Hilulá”, que
Rabi Shimon bar Yochai, um dos ocorre em Lag BaOmer.
pilares do Talmud e autor do Zohar,
BIBLIOGRAFIA
obra que é a base da Cabalá, foi Como já dissemos, nesta data
Rabi Steinsaltz, Adin (Even Israel),
um dos maiores Sábios de todos os acendem-se fogueiras em Israel e Lag Baomer Change and Renewal,
tempos – um gigante das facetas na Diáspora. Até as crianças em Maggid Books
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SHOÁ
A MISSÃO DE um
judeu em nuremberg
POR ZEVI GHIVELDER
O
rapaz foi ao encontro do famoso general cidade que pouco antes do fim do conflito foi palco de
William “Bill” Donovan, que, depois de um massacre perpetrado pelas tropas SS contra mais
sucessivos êxitos nos campos de batalha, de mil estrangeiros submetidos a trabalhos escravos.
era o diretor da OSS (Sigla correspondente Quando o pequeno Richard completou quinze anos
ao Departamento de Serviços Estratégicos, de idade, embora as leis antissemitas do Reich se
antecessor da CIA). Sonnenfeldt escreveu em suas avolumassem, a mãe decidiu mandá-lo, junto com o
memórias: “Eu imaginava o mítico Bill assim como uma irmão menor, Helmut, para Berlim, para que, como
espécie de John Wayne, com medalhas no peito e revólver disse, “pudessem viver o clima de uma cidade grande”.
na cintura. No entanto, deparei-me com uma pessoa de Mas, a capital alemã seria apenas um pouso, porque
cabelos grisalhos, afável, simples, que me perguntou se eu quando a guerra começou, a mãe contatou um parente
falava alemão e se eu seria capaz de me desincumbir como na Inglaterra e pediu-lhe que acolhesse os dois filhos.
intérprete. Respondi que o alemão era meu idioma nativo. Em Londres, ambos foram matriculados num internato,
Deu-me, então, um documento em alemão e me mandou onde Richard se tornou fluente no idioma inglês.
traduzir. Quando terminei, disse que eu era o melhor Entretanto, sua vida pacata sofreu um revés. Em 1940,
de todos que até então tinha entrevistado”. Em seguida, quando a Inglaterra rompeu relações e entrou na guerra
Sonnenfeldt foi encaminhado a um coronel chamado contra a Alemanha, ele acabara de completar dezesseis
Hinkel, que foi direto ao ponto: “Você gostaria de anos. Por isso, de acordo com as leis britânicas, passou
trabalhar para a OSS?” Poucos dias depois, acompanhado a ser considerado um “inimigo estrangeiro”. Portanto,
pelo dito coronel, estava a bordo de um avião rumo a devia ser expulso do país. Revoltado e destacando sua
Paris. Durante a viagem, ficou surpreso com as próprias condição de judeu, escreveu cartas para o primeiro-
contas que fez: eram decorridos apenas sete anos desde ministro Churchill e para o Rei George VI pedindo que
que deixara a Alemanha para escapar do nazismo. fosse reconsiderado seu mandado de expulsão. Inclusive
acrescentou que, assim como os ingleses, seu desejo
Heinz Wolfgang Richard Sonnenfeldt nasceu em 1923 era lutar contra o nazismo. Não adiantou e o rapaz
na pequena localidade alemã de Gardelgen, Saxônia, foi deportado para a Austrália. Enquanto isso, o casal
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Sonnenfeldt conseguiu custosos África do Sul, tendo como roteiro a da rua Pressbourg, perto do Arco
vistos para sair da Alemanha, via Jamaica, Trinidad-Tobago e, por fim, do Triunfo, que seria seu local de
Suécia, junto com o filho Helmut. Nova York. serviço durante os meses seguintes.
Rumaram para Baltimore, nos Sua tarefa consistia em analisar
Estados Unidos, após obterem a Nos Estados Unidos, em 1942, pilhas e mais pilhas de documentos
indispensável carta de chamada Sonnenfeldt pretendeu alistar-se no escritos em alemão e assinalar as
emitida por uma família americana exército, mas foi recusado por não passagens que julgasse importantes
que vagamente conheciam. ser cidadão americano. Entretanto, para serem usadas no futuro tribunal
foi convocado em novembro do de crimes de guerra. Além disso, em
Richard Sonnenfeldt ficou pouco ano seguinte e mandado para um face dos documentos apreendidos,
tempo na Austrália. Decidiu viajar centro de treinamento em Fort ele deveria apontar quais os nazistas
para a Índia e se fixou na cidade Meade. Dali seguiu para outro passíveis de serem levados a
de Bombaim (atual Mumbai). Ali, centro de treinamento na Flórida. julgamento, tendo encontrado mais
conforme escreve em suas memórias, Para encurtar a história, Richard de 800 nomes. Os soviéticos davam
viveu um tempo feliz, sobretudo por estava engajado em definitivo como preferência a Berlim para a sede
ter feito amizade com uma família soldado raso no exército americano do tribunal que seria instalado. Isto
Parsi, oriunda da Pérsia, seguidora em ação na Europa. Participou da provocou discussões acaloradas com
da doutrina de Zoroastro, e com feroz Batalha das Ardenas e, mais os russos. Um dia, já impaciente,
um grupo de jovens judeus alemães tarde, foi um dos primeiros militares Robert Jackson, promotor-chefe dos
que também tinham emigrado que libertaram o campo Estados Unidos, explodiu: “Então
para aquelas paragens. Certo dia, de concentração de Dachau. vocês julgam os seus criminosos
como nada tinha a perder, dirigiu- A imagem de cadáveres empilhados em Berlim e nós julgaremos os
se ao Consulado americano. Ele e de pessoas esqueléticas e famintas nossos aonde decidirmos!”
conta que quando entrou naquele nunca mais lhe saiu da memória. A escolha acabou sendo a cidade de
prédio, viu uma pequena placa onde Nuremberg porque ali se encontrava
se lia: Air Conditioned by Carrier. Voltemos a seu voo para Paris. quase intacto o Palácio da Justiça,
Ficou maravilhado. Nunca tinha Depois de descer no aeroporto capaz de ser reformado a tempo do
visto na vida um aparelho de ar de Le Bourget, foi conduzido início dos julgamentos e também
condicionado. Foi recebido pelo para uma mansão no número 7 porque a cidade havia sido o local de
simpático vice-cônsul Wallace La sucessivas demonstrações do partido
Rue que lhe informou que, naquele nazista. No final de julho de 1945,
então, ainda havia cotas disponíveis a equipe de promotores americanos,
para imigrantes alemães e pediu-lhe incluindo Sonnenfeldt, embarcou
uma certidão de nascimento. Richard num voo de Paris para Nuremberg.
não tinha, mas enfatizou que seus
pais já estavam em Baltimore a Richard jamais se esqueceu de
chamado de uma família de nome ter avistado do alto o estádio da
Lansbury. Por incrível coincidência, cidade, cenário das monumentais
o diplomata, que era de Baltimore, manifestações empreendidas por
conhecia os Lansbury e, após Hitler e seus comparsas. Também do
algumas formalidades burocráticas, alto ele pôde observar que a cidade
concedeu-lhe o visto. Richard estava quase toda destruída. Em
pensou em embarcar num navio solo, viu centenas de alemães que
que faria escala em Yokohama, no vagavam pelo pouco que restava das
Japão, e dali navegaria para a costa ruas, em andrajos, e sem quaisquer
oeste dos Estados Unidos. Porém, a expressões em suas fisionomias. Do
perspectiva de parar no Japão não o jipe aberto, jogou fora o cigarro que
entusiasmou. Já pairava a perspectiva acabara de fumar e logo viu um
de os japoneses entrarem em guerra bando de mulheres correndo para
contra os americanos. Embarcou disputar o resto do cigarro, para elas
em outro navio que fez escala na Richard Sonnenfeldt uma preciosidade.
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Julgamento de Nuremberg: Tribunal Militar Internacional que, representando as Nações Aliadas, julgou líderes nazistas
por conspiração de guerra, crimes de guerra e crimes contra a Humanidade
Sonnenfeldt foi acomodado numa era um coronel chamado Amen, Hitler não sabia sobre os campos
instalação provisória onde se que, conforme o protocolo, ordenou de concentração e nem sobre os
encontravam as celas destinadas que Richard fizesse um juramento extermínios. Quanto a mim, embora
aos futuros interrogatórios e foi segundo o qual traduziria fielmente algo chegasse aos meus ouvidos,
encaminhado para um escritório as perguntas e respostas a serem passei toda a guerra como principal
exclusivo. Escreveu: “Incrível! feitas do inglês para o alemão e do assessor de Hitler. Era um militar
Eu tinha apenas 23 anos de idade alemão para o inglês. muito ocupado e muito importante.
e era mais jovem do que a maioria Duas pessoas sabiam de tudo:
das secretárias ali em serviço”. Sua primeira intervenção: “Por favor, Himmler e Bormann. Um morreu
Ele soube que seu primeiro identifique-se”. Resposta: “Meu e outro desapareceu”. O coronel
trabalho como intérprete seria no nome é Herman Goering, marechal Amen fez uma pergunta que o
interrogatório do marechal Goering, do Terceiro Reich”. Em seguida, o deixou sem resposta: “Se você era
braço direito de Hitler quase intérprete dirigiu-se ao prisioneiro: tão próximo de Hitler como sabia
até o fim do conflito. Ficou “Herr Gering!...” O marechal de algo e esse algo nunca chegou ao
impressionado quando este ficou objetou: “Meu nome é Goering e conhecimento do Fuhrer?”
à sua frente. Vestia um uniforme não Gering”. Sonnenfeldt
de cor cinza do qual haviam sido havia distorcido o sobrenome O general Bill Donovan fazia
retiradas as insígnias militares. de propósito porque o vocábulo questão de que Goering confessasse
Exibia uma face amassada e alemão gering tem a tradução os crimes de guerra do nazismo, mas
enrugada e um olhar esgazeado, aproximada de “coisinha”. Num o acusado permanecia inamovível
consequência dos quarentas interrogatório subsequente, Goering nesse sentido. O general pediu-me
comprimidos que ingeria por dia, fez de tudo para eximir-se de culpa, que lhe perguntasse se era verdade
destinados a substituir seu vício pela declarando: “Muitas coisas foram que ele tinha mandado matar os
morfina. Vestia botas fornecidas pelo feitas usando meu nome e sobre as aviadores americanos e ingleses
exército americano. O inquisidor quais eu não tenho a menor ideia. que tivessem sido obrigados a
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Memorial da
Imigração Judaica
A cidade de São Paulo ganha o seu primeiro Memorial da
Imigração Judaica. Localizado na sede da Sinagoga mais
antiga do Estado, a Kehilat Israel, na Rua da Graça,
no bairro do Bom Retiro, o museu reúne importante acervo
com documentos e obras raras que narram a história
e a contribuição dos imigrantes judeus ao desenvolvimento
do Brasil desde os seus primórdios.
O
Memorial da Imigração Judaica do Brasil Dayan e Leiman. Não faltaram, também, palavras de
surge como uma nova e importante agradecimentos a todos que, de uma forma ou outra,
instituição a ser incluída no roteiro contribuíram e ainda contribuem para iniciativas que
histórico e cultural não só da cidade, como garantem a manutenção da cultura, tradições e valores
do País”, afirma o Rabino Toive Weitman, judaicos.
coordenador da nova instituição.
“Nesta noite prestamos uma homenagem a todos
Alguns judeus estavam no navio de Pedro Álvares Cabral os imigrantes. Somos todos imigrantes ou filhos de
e, no século 17, já havia uma comunidade estabelecida imigrantes deste País que nos recebeu tão bem e
em Recife, na época sob domínio holandês. Raridades nos deixa tão à vontade para realizar muitas coisas.
como objetos, vestimentas, documentos e livros do século Tínhamos a obrigação de criar este Museu da
17, vindos de diversos países, são algumas das obras do Imigração Judaica e restaurar a mais antiga sinagoga
precioso acervo. O Memorial terá entrada gratuita e do Estado de São Paulo. Ela pode ser pequena em
contará, de forma didática, a história e contribuições que tamanho, mas é gigante em sua história e lembranças
os judeus trouxeram ao País. dos pioneiros e heróis que aqui fundaram a comunidade
judaica de São Paulo, em 1912. E este é um Memorial
Na noite da inauguração, prestigiada por lideranças que preserva a nossa história, os nossos valores e
comunitárias, autoridades e descendentes dos imigrantes, costumes, de forma extremamente profissional e
palavras emocionadas marcaram os discursos que tecnológica. Mas este é apenas o primeiro passo, pois
relembraram a trajetória dos primeiros judeus a se através da colaboração de toda a coletividade, com
instalar no Brasil, plantando as sementes de uma fotos e documentos, cada um ajudando dentro das
comunidade que ajudou a construir a cidade e o País. suas possibilidades, cresceremos cada vez mais”, disse
Homenagens foram prestadas àqueles que permitiram a Benjamin Steinbruch ao falar em nome da família.
concretização do projeto e, também, a sua continuidade A Sinagoga Kehilat Israel foi renomeada em
nas décadas seguintes: as famílias Steinbruch, Safra, homenagem a seus pais, Dora e Mendel Steinbruch.
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Entre as inúmeras peças expostas, o apresentador Silvio Santos. Também que fosse preservada a lembrança
Memorial traz preciosidades como ali se encontra um documento com e a história dos pioneiros que
o diário de viagem de Henrique mais de 250 anos utilizado pelos construíram aquele templo. A partir
Sam Mindlin (da família Mindlin, imigrantes marroquinos como da ideia de que os imigrantes judeus
da Metal Leve e da Biblioteca talismã, que contém frases cabalistas estão no Brasil desde o século 17 e,
Brasiliana Guita e José Mindlin). de proteção e saúde, em hebraico. em decorrência de sua contribuição
O diário, escrito em 1919, quando histórica para a construção de valores
o garoto de apenas 11 anos, narra Um sonho realizado e da cultura brasileira, idealizou-se
sua migração de navio de Odessa este Memorial para preencher uma
(Ucrânia) até o Rio de Janeiro. O projeto para criação do Memorial lacuna sobre a história judaica. “É
Outra raridade é o livro Diálogos surgiu no ano de 2004, quando os uma forma de gratidão do povo
de Amor, de 1580, escrito por Judah responsáveis pela sinagoga Kehilat judeu ao acolhimento oferecido pelo
Leon Abravanel (ou Abrabanel), Israel manifestaram o desejo de Brasil em quase 400 anos, desde
também conhecido, em italiano, que se instalaram por aqui, e uma
como Leone Ebreo, de Veneza. Ele homenagem aos imigrantes judeus
era filho do renomado Rabi Don que aqui aportaram”, explica o
Isaac ben Judah Abravanel, que, no rabino Toive Weitman.
ano de 1492, após os reis Fernando
e Isabella terem proclamado o Por trás da ideia do memorial está
Edito expulsando todos os judeus o rabino Y. David Weitman, que
da Espanha, em desesperado apelo, sugeriu como ponto de partida
atira-se aos pés dos Reis Católicos, do projeto reunir relatos, objetos,
pedindo-lhes a revogação de tão livros, documentos, roupas, entre
infame decisão. Infelizmente, em vão. outros, das seis ondas migratórias
Abravanel foi um antepassado do judaicas que aqui chegaram
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crédito -fotos:
andre nehmad e lilian knobel
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“O Filho de Saul”
uma viagem ao inferno
A
escolha do filme húngaro pela Academia de escreveu Luiz Carlos Merten no Estado de S. Paulo, em
Artes e Ciências Cinematográficas foi uma 3 de fevereiro de 2016, “O filme chega para perturbar.
vitória esperada, pois “O Filho de Saul” já Gostando ou não, é visceral. Tira o público de sua zona
acumulara inúmeros prêmios: o Grande de conforto...”.
Prêmio do Júri e o da Crítica, no Festival de
Cannes, em 2015, e o Globo de Ouro de Melhor Filme Para quem o assistiu, vai ser difícil esquecê-lo. Ao longo
Estrangeiro, este ano. Emocionado ao receber o Oscar, de 107 intermináveis minutos, Nemes nos faz vivenciar
László Nemes, que também é o autor do roteiro, afirmou o mundo de Auschwitz pelos olhos de Shaul Aslander,
que no filme há uma mensagem de esperança: “Mesmo nosso guia no inferno, protagonizado pelo poeta e ator
nas horas mais negras, pode haver uma voz dentro de nós judeu, Géza Röhrig.
que nos permite continuar humanos...”.
O filme se caracteriza por longos silêncios e imagens
“O Filho de Saul” é um filme emocionalmente exigente desfocadas. A fotografia, assinada por Mátyás Erdély, é
e angustiante. A intenção do diretor foi criar uma obra um dos elementos que faz do filme uma obra única. Em
claustrofóbica, levando-nos tão perto quanto possível da nenhum momento a carnificina é trazida em primeiro
“fábrica de morte” nazista, ao modus operandi da execução plano – há imagens fugidias de corpos em foco nítido,
do assassinato em massa. Ao mostrar o horror “nu e cru”, mas são fragmentadas – mas isso não minimiza o horror:
queria que absorvêssemos o cenário do inferno da hora o rosto de Saul espelha tudo o que está desfocado. Numa
mais negra da humanidade, num grau de realismo que entrevista, o diretor Nemes explicou por que adotou esse
poucos filmes de ficção tiveram a coragem de tentar. tipo de filmagem: “Acredito que o poder da imaginação é
moralmente muito importante, porque não podemos, não
Não há como escrever a respeito do filme sem dar aos há formas de recriar o horror, podemos apenas sugeri-lo”.
leitores a impressão de ser um daqueles filmes que devia
ser assistido, mas do qual tentamos nos esquivar por A história de Saul Auslander, um Sonderkommando, é
saber que iria mexer com emoções profundas. Como fictícia, mas o contexto histórico do filme é preciso.
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Vemo-los encaminhar os judeus às cinzas para ser lançado no Vístula, que ficou inutilizado. Jovens judias
câmaras de gás, vasculhar roupas para não deixar rastro nem vestígios. haviam conseguido os explosivos.
e haveres pertencentes às vítimas Como vimos acima, a revolta serve
para entregá-los aos nazistas – Mas mesmo entre os de pano de fundo para o filme.
arriscando-se a guardar algo que Sonderkommando, assim como A retaliação nazista foi implacável.
“brilhe” para subornar guardas; entre tantos outros judeus durante
aguardar os 10 a 12 minutos após a Shoá, houve os que encontraram No final de dois dias, 452 membros
as portas das câmaras terem-se forma de resistir, de subverter as do Sonderkommando foram mortos
fechado – o tempo necessário para regras num mundo de silêncio e, para servir de exemplo, os nazistas
o gás matar a todos – para retirar os e trevas. Foi em redor dos seus liquidaram cerca de um terço dos
corpos nus, e após extrair os dentes barracões, mais do que em qualquer membros de outros “comandos
de ouro, arrastá-los e colocá-los no outro lugar dos campos, que especiais”. Quatro jovens mulheres
monta-cargas rumo ao piso de cima, foram encontrados fragmentos acusadas de fornecer dinamite
para os fornos crematórios. de papel enterrados, com relatos aos revoltosos foram torturadas
e descrições sobre o sofrimento, a e enforcadas diante dos demais
Vemos Saul esfregar o chão da máquina de extermínio nazista, as prisioneiros. Uma delas, Roza
câmara para limpar o sangue e plantas dos edifícios sobre o que Robota, de 23 anos, ainda teve a
excremento para que os que estavam os judeus chamaram “o Inferno de coragem de gritar: “Sejam fortes,
por vir não adivinhassem o que Auschwitz-Birkenau”. Deixaram- tenham coragem”, quando a porta do
os esperava. Manter as vítimas na nos também quatro célebres alçapão se abriu.
ignorância era a melhor forma de fotografias tiradas em Birkenau.
assegurar que a morte em massa O filme mostra o momento da A história de Saul
se desenrolasse sem “atrasos captura dessas imagens.
ou contratempos”. Enquanto Na primeira cena do filme o
isso, outros Sonderkommando Foram também os Sonderkommando espectador é catapultado à porta
alimentavam as fornalhas que deflagraram, em 7 de outubro de uma das câmaras de gás de
com carvão, onde os corpos de 1944, uma revolta, durante a Auschwitz. Vemos e ouvimos os
eram incinerados, e, no final, qual três guardas foram mortos judeus sendo ludibriados pelos
transportavam o amontoado de e foi explodido o Crematório IV, nazistas a se despirem e deixarem
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todos os seus pertences para “tomar certificar que o garoto estava vivo,
o banho antes de comerem uma sopa o médico o sufoca, e pede uma
quente”; “não esqueçam o número autópsia sobre aquele “exemplar”
do cabide onde penduraram suas humano pouco usual, para
roupas”. Vemos homens, mulheres, determinar a causa da “não morte”.
jovens e velhos sendo empurrados
para dentro da câmara de gás; Saul quer acreditar que o garoto
ouvimos sons e gritos terríveis. é seu filho. De repente, a vida de
A porta se fecha; a tela fica preta e a Saul volta a ter um propósito, um
viagem ao inferno se inicia. objetivo. Ele fica obcecado em evitar
que façam a autópsia, que é proibida
Vemos Saul e o grande X vermelho pela Lei Judaica; quer encontrar
pintado em suas costas, o sinal de um rabino para dizer o Kadish e
que ele era um Sonderkommando. tentar dar um enterro digno àquele
A vida para ele é nada mais que garoto. Tudo no rosto de Saul nos
um pesadelo acordado pelo qual ele diz que aquele gesto pequeno, mas,
vagueia. Saul fala pouco. Afinal, o no inferno nazista, muito arriscado,
que há para dizer quando sua vida é a é imperativo. É a última coisa que
de um escravo forçado a participar da podemos ouvir gritos vindos dos pode mantê-lo humano.
maior falta de humanidade cometida “chuveiros” atrás da porta. Depois
por homens contra outros homens? de encher as caixas com objetos À medida que ele segue em sua
de valor dos judeus para dar aos solitária missão, os Sonderkommando
Vamos acompanhá-lo, ver o que alemães, ele passa para sua próxima estão organizando a revolta.
ele vê. As diretrizes de Nemes à “tarefa”: a remoção “das partes”, Mas, para Saul, o levante ficou
sua equipe de filmagens foram como os nazistas grotescamente em segundo plano, pois agora
simples: “A câmera deve ficar chamam os corpos, das câmaras está impelido totalmente por sua
grudada em Saul, não ultrapassar de gás. De repente, Saul vê um determinação de tratar deste único
sua capacidade de visão e audição, garoto que sobreviveu ao gás. Um judeu, este único ser humano, com a
não fornecer um único plano médico nazista é chamado e Saul humanidade e o respeito que ordena
do conjunto. A câmera será sua então testemunha quando, após se a Lei Judaica. Ao tentar proteger o
companheira nessa verdadeira
travessia do inferno”. Somos
transportados em uma corrida
infernal, enquanto Nemes
nos mantém o tempo todo
emocionalmente fragilizados.
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33 abril 2016
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C
om o passar dos anos, seus idealizadores medicamentos e tratamentos. O hospital universitário,
fizeram da excelência no atendimento que é público, tem como principal missão curar pessoas,
à saúde um de seus principais objetivos, independente de sua religião ou origem, e é reconhecido
atraindo profissionais, pesquisadores, como um oásis de paz em uma região conturbada.
estudantes, investidores e doadores, todos O Sheba atua não apenas em Israel, como também
comprometidos com a ideia de garantir o melhor em missões internacionais e de ajuda humanitária em
atendimento aos pacientes visando sua reabilitação e regiões de risco, tanto afetadas por conflitos como por
reintegração na sociedade. fenômenos naturais.
Ao longo das décadas, tornou-se o maior hospital do Argentina, Armênia, Azerbaijão, Brasil, Camboja,
Oriente Médio, não apenas por sua dimensão física, China, Guiné Equatorial, Costa do Marfim,
mas principalmente por sua abrangência em termos Cazaquistão, Kossovo, Mauritânia, Peru, Rússia,
de especialidades e visão multidisciplinar do atendimento Ruanda, Sri Lanka, Ucrânia, Uzbequistão e Vietnã são
à saúde, revolucionando o serviço médico em Israel e alguns dentre os inúmeros países que já participaram
na região. No Sheba foram realizados a primeira de seus programas. O Departamento Internacional da
cirurgia de coração aberto do país, os primeiros instituição, além de oferecer programas para treinamento
implantes de coração artificial para correção de defeitos e formação de equipes da área da saúde, supervisiona a
congênitos em crianças, além de ter sido o primeiro a construção de hospitais e clínicas no exterior, atuando,
realizar, com sucesso, processos de inseminação artificial, muitas vezes, em parceria com os sistemas de saúde de
entre outros tantos. outros países.
Também um centro acadêmico e científico renomado, Em Israel, o hospital recebe, também, pacientes de
o Sheba Medical Center é responsável por 25% de toda todo o Oriente Médio, inclusive de nações árabes que
a pesquisa médica realizada em Israel, sendo grande não mantêm relações diplomáticas com Israel, e da
parceiro da indústria no desenvolvimento de novos Autoridade Palestina. O Sheba foi responsável pela
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israel
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foi pensado para aumentar o bem- chefe do Instituto Ella para 2015. No ano passado o Instituto
estar das crianças hospitalizadas Pesquisa e Tratamento de Melanoma ultrapassou a marca de mil
e seus acompanhantes. “Tanto e Câncer de Pele, é o responsável implantes. Segundo Rotstein,
o Departamento de Oncologia pelo desenvolvimento de um novo graças a seus antecessores e aos
quanto o de Pediatria são sonhos e revolucionário medicamento, o milhares de profissionais devotados
realizados”, diz Rotstein. CKAM1, que foi vendido para a ao hospital ao longo de quase sete
Merck, uma das maiores empresas décadas, o Sheba Medical Center
Como sempre afirma o CEO da farmacêuticas do mundo. tem estado à frente de inúmeros
instituição, o Sheba é grandioso avanços médicos no país e no
em suas instalações, mas o que faz O professor Aviram Nissan, chefe exterior. “Temos desempenhado
a diferença são seu corpo clínico do Departamento de Cirurgia, um papel estratégico em várias
e acadêmico. Vários exemplos é o responsável pelo aumento áreas, destacando-se a área de
revelam a dedicação e a excelência significativo do número de reabilitação. Investimos milhões
dos profissionais que lá atuam e cirurgias realizadas na área de para oferecer a cura aos soldados
que se dedicam ao crescimento neoplasias malignas da cavidade feridos, às vítimas do terror e a
do Sheba. Em 2015, por exemplo, do peritônio. Ao lado do professor crianças, judias e árabes, vítimas
os professores Shlomo Noy, Motti Gutman e do Dr. Aviad de neoplasias e defeitos congênitos
vice-presidente para Pesquisa e Hoffman, o professor Nissan do coração, entre outros. No entanto,
Desenvolvimento, e Anat Achiron, realizou cerca de 100 cirurgias em não se trata apenas de oferecer a
vice-reitora, aprovaram junto ao 2015, combinando a remoção radical melhor tecnologia e os melhores
Conselho de Educação Superior a de metástases no abdômen seguidas medicamentos, mas também,
criação de um programa de de quimioterapia aquecida. Como confortar aqueles que nos procuram
Medicina de quatro anos no resultado, um terço dos pacientes aflitos pelas mais variadas razões.
hospital, um projeto conjunto se curam e a expectativa de vida de Nossos quase sete mil profissionais
do Sheba com a Universidade outro terço aumenta. estão comprometidos com o mais
Hebraica de Tel Aviv, a Universidade alto padrão de medicina e, o mais
St. Georges de Londres e a O Instituto de Audiologia também importante, com o que chamamos
Universidade da Nicósia. registra êxitos. Sob a coordenação de “o espírito Sheba”, o toque
da Dra. Yael Henkin, tem crescido humano, que é o que nossas equipes
O professor Gal Markel, o mais o programa de implante coclear, oferecem aos pacientes e seus
jovem professor de Israel e cientista- que se tornou o maior do país em familiares”.
37 abril 2016
personalidade
A
Dra. Karnit Flug foi um dos nove como governadora interina, foram decisivos para sua
governadores de bancos centrais a receber confirmação na direção do Bank of Israel.
a classificação máxima na conferência O que teria feito para que Netanyahu decidisse
anual do FMI e Banco Mundial. Após confirmá-la no cargo? Durante um debate de rotina
a cerimônia, ela declarou aos jornalistas: perante o Primeiro Ministro e várias outras autoridades,
“O Bank Israel tem uma equipe do mais alto nível Karnit Flug explicou por que, em sua capacidade de
profissional e me sinto privilegiada de que nosso trabalho governadora interina do Banco desde 1º de julho, optara
tenha merecido, novamente, grande apreço na arena por reduzir as taxas de juros do país. Netanyahu ficou
internacional”. extremamente impressionado com sua análise e a clareza
de sua linha de raciocínio em seu relatório sobre suas
Karnit Flug já atuara como vice-governadora conversas com Ben Bernanke and Janet Yellen.
da instituição na gestão de seu antecessor,
Stanley Fischer, sendo que este último foi quem Como Governor do Bank of Israel, Flug é, por lei, o
indicou seu nome para sucedê-lo. Ela passou a assessor econômico do governo. E o Departamento
ocupar oficialmente o cargo 112 dias depois que seu de Pesquisas do Banco conduz os estudos sobre a
antecessor se afastou da função. Esse vácuo foi visto economia de Israel, delineando a base de pesquisa para
com preocupação pelos economistas israelenses, a discussão pública nas áreas que fazem parte da pauta
pois isso jamais ocorrera desde a criação do Banco. dos legisladores econômicos. Os problemas são vários
Segundo fontes ligadas ao governo, esse lapso se e em seu discurso de posse em 13 de novembro do ano
deveu à resistência do primeiro-ministro Binyamin passado ela mencionou os mais importantes:
Netanyahu em confirmá-la no cargo, pois sua preferência
direcionava-se a outros candidatos. Ainda segundo “Antes de mais nada, precisamos encontrar formas de
comentaristas econômicos israelenses, o trabalho aumentar a taxa de crescimento da produtividade na
realizado por Flug ao longo dos anos e, principalmente, economia israelense. Há um tremendo potencial nos
nos meses após a saída de Fischer, quando atuou trabalhadores do país, mas o PIB real por trabalhador
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REVISTA MORASHÁ i 91
Karnit Flug recebendo o certificado das mãos do então presidente shimon peres
não se equipara ao das economias crescimento econômico inclusivo e melhorar nossas habilidades através
mais avançadas, e, por conseguinte, sustentável. E acredito que para esse do treinamento vocacional, melhorar
a economia não consegue fim há uma necessidade de aumentar a educação de todos os setores da
proporcionar aos cidadãos um a produtividade do setor empresarial; sociedade. Estas são as categorias
padrão de vida alinhado com o das e isto se baseia em infraestrutura, em gerais. Há a necessidade de
economias mais desenvolvidas. promover a inovação, melhorando o continuar nossos esforços de integrar
O principal objetivo do Banco é ambiente empresarial – não estamos grupos que têm baixos índices de
manter a estabilidade de preços, bem classificados no ranking “fazer participação no mercado de trabalho,
já que se trata de uma condição negócios” do Banco Mundial... – especialmente os homens ultra-
necessária para uma economia ortodoxos e as mulheres árabes”.
pujante e em desenvolvimento”.
Para a economista, aumentar
Em fevereiro de 2015, em uma a produtividade e enfrentar as
das primeiras entrevistas a um jornal questões relativas à pobreza são dois
desde que assumiu o cargo grandes desafios para o Governo.
de governadora interina do Banco Ela está muito preocupada em
de Israel, Karnit Flug, declarou, fortalecer o shekel perante o dólar,
como já o fizera inúmeras vezes, principalmente devido ao efeito
“que a economia de Israel é uma que causa sobre o desemprego. Em
economia aberta, e como tal, sua tese de doutorado, “Políticas
grandemente impactada pelos governamentais em um modelo de
desenvolvimentos no exterior”. equilíbrio geral entre o comércio
internacional e o capital humano”,
“A meu ver, o principal objetivo dedicou grande atenção ao mercado
da política econômica deve ser o com o primeiro ministro bibi netanyahu de trabalho israelense. Para ela, as
39 abril 2016
personalidade
Ao responder à pergunta se
apresentando a nova cédula de 50 shekels durante reunião com a imprensa, no
acreditava que a ameaça de boicotes
bank of israel, set. 2014 políticos fosse impactar a economia
de Israel, a governadora do Bank
empresas de tecnologia de ponta até financeira ou bancária, estamos of Israel respondeu: “Acredito
podem aguentar um dólar fraco, mas pensando no bem-estar das famílias, que, até agora, não vimos nenhum
as indústrias exportadoras low-tech dos consumidores e das pessoas”. efeito substancial causado pelos
que consequentemente dependem boicotes. Tampouco vimos boicotes
de mão-de-obra e que têm grandes Nessa mesma entrevista ela afirmou substanciais… E imagino que o
contingentes de funcionários que o fato de ser mulher nunca Ministério das Relações Exteriores
não o conseguem. Eles necessitam foi um problema para ela nessa esteja realmente monitorando e
pagar seus funcionários em shekel área dominada por homens. E tentando identificar essa questão
e recebem dólares desvalorizados demonstrou que não tem medo de com a antecedência necessária. Isto
em troca. O resultado será dar passos ousados, ao diminuir a dito, como somos uma economia
demissões em massa. É verdade taxa de juros a um patamar histórico pequena, aberta e voltada às
que as grandes indústrias se dão bem de 0,1%, um mês depois de assumir exportações, os mercados abertos e
com o empenho do Bank of Israel o cargo interinamente. E ainda receptivos são fator importante para
para enfraquecer o shekel vis-à-vis o nossa performance”.
dólar. Mas o que preocupa Flug é o
trabalhador e o desemprego... Sua Vida
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REVISTA MORASHÁ i 91
Karnit Flug foi nomeada para o lugar de Stanley Fischer, na foto, como governor do Bank of Israel
41 abril 2016
atualidade
O começo da
corrida à Casa Branca
jaime spitzcovsky
A
disputa interna, quando republicanos e fogo no pré-candidato. Em debate televisivo no
democratas escolhem seus candidatos, se começo de março, Trump teve que enfrentar uma
estende até a metade do ano, mas dois saraivada de críticas por posições como “neutralidade
nomes já despontam como franco favoritos: no conflito israelo-palestino”.
Donald Trump e Hillary Clinton. E
polêmicas ligadas a Israel e judaísmo ocupam papel de O primeiro golpe veio do senador Ted Cruz, do Texas.
destaque no início da campanha. “Como presidente, não serei neutro”, afirmou o pré-
candidato, para acrescentar: “Não creio que precisemos
O empresário Donald Trump monopolizou de um comandante-em-chefe que seja neutro entre
manchetes no começo de 2016 ao surpreender com terroristas palestinos e um de nossos maiores aliados no
sólido desempenho nas primárias iniciais e provocar mundo, a nação de Israel”.
rapidamente terremotos políticos, como a rápida
desistência de Jeb Bush, surpreendido por uma magra O pré-candidato Marco Rubio, senador pela Flórida,
votação entre republicanos. Trump adota um discurso que, em seguida, abandonaria a disputa, também não
com forte apelo conservador, atraindo setores da poupou o adversário com mais força desde o início
sociedade norte-americana preocupados, por exemplo, das primárias republicanas. “A política que Donald
com as mudanças demográficas no país. Estatísticas delineou, eu não sei se ele percebe, é uma política anti-
apontam, entre outras tendências no país, a manutenção Israel: Não há acordo de paz possível com os palestinos
do aumento da população hispânica. no momento atual”. Governador de Ohio de olho
na Casa Branca, John Kasich participou do debate
Trump, um megaempresário sem biografia política, e reforçou o coro de críticas: “Não acredito que haja
seduz republicanos cansados das lideranças tradicionais nenhuma solução de paz permanente no longo prazo”.
do partido. A inesperada ascensão e fortalecimento
promoveu um cataclisma político responsável por levar Donald Trump anunciou uma posição de neutralidade
seus adversários na disputa pela indicação a centrarem no conflito israelo-palestino, argumentando ser
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47 abril 2016
atualidade
Os candidatos: Marco Rubio, Ted Cruz, Bernie Sanders, Donald Trump e Hillary Clinton
Outros judeus disputaram primárias, víamos pessoas em suas lojas, com No enfrentamento com Bernie
como os senadores Arlen Specter, números em seus braços porque Sanders, crítico frequente do
da Pensilvânia, em 1996, e Joe haviam passado por campos de primeiro-ministro Binyamin
Lieberman, de Connecticut, em 2004. concentração de Hitler”. Netanyahu, Hillary Clinton buscou
Quatro anos antes. Liberman foi vice explorar diferenças de abordagem em
na chapa encabeçada por Al Gore, no Sanders, no entanto, não entusiasma relação a Israel. A ex-primeira-dama
pleito vencido por George W. Bush. o eleitorado judaico norte-americano, prometeu, caso eleita, convidar “Bibi”
tradicionalmente mais democrata do para a Casa Branca ainda no primeiro
Sanders, que se define como que republicano. Pesquisas recentes mês do mandato e “levar os laços
“socialista”, alimenta polêmicas sobre apontam que o partido do presidente bilaterais a um patamar superior”.
sua identidade judaica. Ao longo Obama conta com apoio de 64%
da carreira política, dedicou escassa dos judeus dos EUA, enquanto Hillary tem procurado construir
relevância ao assunto. Sobre Israel, republicanos amealhariam cerca de um discurso que amenize a tensão
assumiu posições bastante críticas 25% de preferências. registrada, ao longo dos últimos anos,
em relação a diversos governos no relacionamento entre o primeiro-
do Estado judeu, onde passou Hillary Clinton desponta, ministro israelense e o presidente
alguns meses, nos anos 1960, como portanto, como a candidata com norte-americano. A pré-candidata
voluntário em um kibutz. mais apoio entre eleitores judeus chegou a falar em “reconstruir o
norte-americanos. Apoia-se, além laço inquebrantável” que une os dois
Em debate na campanha das dos vínculos históricos entre a países e, em mais de uma ocasião,
primárias, o senador foi questionado comunidade judaica e democratas, falou de sua “conexão emocional”
sobre seu vínculo com o judaísmo. nas relações construídas ao longo com a Terra de Israel. E, de olho na
“Tenho muito orgulho em ser de décadas de ação política, como manutenção do tradicional apoio
judeu e ser judeu é parte tão primeira-dama, senadora e secretaria da maioria dos eleitores judeus aos
importante de quem eu sou”, de Estado, cargo que ocupou no democratas, sustentou que “fará
argumentou. “A família de meu primeiro mandato de Obama. todo o possível para fortalecer a
pai foi exterminada por Hitler no E existe também uma dimensão parceria estratégica e fortalecer o
Holocausto. Eu sei o que significam familiar. Chelsea, filha de Hillary compromisso de segurança dos
políticas extremistas, radicais, e Bill Clinton, casou-se em 2010 Estados Unidos com Israel”.
insanas. Aprendi essa lição como com o judeu Marc Mezvinsky,
uma criança pequena, quando minha filho de um casal de ex-deputados jaime spitzcovsky foi editor
internacional e correspondente da
mãe me levava às compras e nós democratas. folha de s. paulo em moscou e em pequim.
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HISTÓRIA
Os Judeus e a Medicina
Sergio D. Simon
M
inha avó, que era portuguesa, sempre nos por Assaf ben Berechiahu (também conhecido por
ensinou que devíamos procurar médicos Assaf ha Rofé) e Yohanan ben Zabda. É um livro
judeus, porque esta é uma velha tradição que abrangia conhecimentos médicos da Mesopotâmia,
na nossa família. Parece que em Portugal, do Egito, da Índia e dos países mediterrâneos da
há séculos, se recomenda, sempre que época, principalmente da Grécia. Acompanhava o
possível, que se procure um médico judeu, porque são os livro um “Juramento de Assaf ”, que, de maneira muito
melhores”. Surpreso com esta observação, decidi buscar interessante, é bastante parecido com o Juramento
fontes históricas que confirmassem o que me contava de Hipócrates usado pelos formandos em Medicina
essa senhora. até os dias de hoje. Entre outros tópicos, o Juramento
de Assaf proíbe o médico, por exemplo, de causar
E foi sem muito esforço que descobri que realmente, ao intencionalmente a morte de um doente por meio
longo de muitos séculos, na Europa, reis e nobres, famílias de ervas ou poções; obriga o médico a guardar
abastadas e até o próprio Papa, optavam, quando possível, segredo sobre seus pacientes, além de inúmeras outras
por médicos judeus. Essa figura arquetipal de um médico considerações que continuam bastante atuais.
judeu remonta até mesmo à Babilônia do século III, onde
se dizia que um sábio talmúdico de nome Samuel, que se O Sefer Refuot advoga que os médicos dediquem
expressava em aramaico, era tão conhecedor da anatomia especial atenção aos pobres, num cuidado social
humana e das regras higiênicas dos judeus que era capaz provavelmente originado nos escritos dos profetas.
de curar todas as doenças, menos três1. O Sefer Refuot estabeleceu entre os judeus a
figura singular do médico como uma profissão
O grande livro de Medicina do povo judaico, o Sefer diferenciada, a ser cultuada com muito estudo
Refuot, entretanto, apareceu por volta do século IV, escrito e muita humildade. Talvez daí venha a fama dos
judeus como especialmente ligados à arte da cura.
Existem ainda 15 manuscritos completos do Sefer
1
Não há referência na bibliografia sobre quais seriam essas três doenças. Refuot, todos em coleções de museus europeus, a mais
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história
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2
Maravedí: Moeda de ouro ou prata (“maravedí
de plata”) da Península Ibérica, usada
principalmente na Espanha dos Almorávidas. corte transversal do olho, identificando as membranas e os humores aquosos.
Provem do árabe marabet. manuscrito da provença, c. 1400
51 abril 2016
história
também reconhecem que seria o médico judeu que os atendia, vontade em pagar pelos serviços
melhor um cristão, mas acabam um certo Dr. Samuel. Há ampla de um médico judeu, não pela sua
contratando Rabi Samuel (Simuel) documentação de dispensas papais eventual falta de competência, mas
como médico da instituição, com para médicos judeus a partir de simplesmente por ser judeu, numa
um salário de mil maravedís por ano. 1426, quando o Papa Pio II permitiu época de grande perseguição por
Assim, a medicina dos poderosos que dois médicos judeus atendessem parte da Igreja Católica. Quando
europeus era, quase sempre, cristãos. A última delas foi para se observa a deterioração global
praticada por médicos judeus ao “Doctor Benjamin (Gullielmo) da relação entre judeus e Igreja
longo de toda a Idade Média. Salamonis”, um médico judeu de Católica na época, com acusações
Massa, na Itália. Essas dispensas fantásticas, instituição do ghetto em
A situação piorou muito para papais eram documentos complexos, várias cidades européias, restrições
os judeus europeus no fim da nas quais se externava a esperança de à prática da usura, e, finalmente,
Idade Média e nos séculos da que, através do contato diário com a sua expulsão de vários países,
Renascença. A partir do século XV, pacientes cristãos, os médicos judeus não é de se admirar que a relação
a Igreja Católica aumentou muito encontrassem o verdadeiro caminho com os médicos judeus também
seu discurso contra “os inimigos da salvação. As dispensas lembravam tenha sofrido enormemente. Mas,
da cruz”, e esta perseguição e ainda aos médicos judeus que mesmo assim, os médicos judeus
discriminação acabaram levando à eles deveriam permitir a extrema- continuaram sua prática por toda a
expulsão dos judeus da Península unção aos seus pacientes cristãos, e, Europa.
Ibérica e ao aparecimento da inclusive, induzi-los a isto.
Inquisição. Mesmo nessa época, Descrições da época mostram
entretanto, os médicos judeus Mas a dispensa papal não era como eram vistos e como agiam
continuavam em voga. Os anciãos garantia de emprego e segurança os médicos. Relatos detalhados de
religiosos (“anziani”) de Lucca, para os médicos judeus da época. Kalonymus ben Kalonymus, de
por exemplo, eram temerosos de Há casos como os de Mestre Elia, Arles, e de Shem Tov Falaquera, de
continuar empregando médicos na cidade de Assisi, e de Daniel da Navarra, mostram os médicos como
judeus devido à intensa propaganda Castro, na cidade de Bagnoregio, pessoas de destaque e respeito na
antijudaica da Igreja. Mas passaram que terminaram desempregados. sociedade, mas muitas vezes com
a instituir, então, uma dispensa papal Apesar de possuirem a bolla papal, uma certa arrogância e pompa, por
(“bolla”)para manter empregado a população não mais se sentia à eles ridicularizada.
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1. sigmund freud 2. albert sabin 3. jonas salk 4. Rita Levi-Montalcini 5. Robert Koch 6. Paul Ehrlich
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israel
Q
uando a existência de um Estado Judeu A situação mudou na década de 1980, quando o
era ainda um sonho, lado a lado com os alto comando das FDI tomou uma decisão: permitir
homens as mulheres judias exerceram a participação feminina como instrutoras de combate.
as mais diferentes funções, inclusive na Duas décadas depois, ficou evidente o acerto dessa
proteção dos kibutzim e das aldeias de decisão. Segundo a tenente coronel Shirli Karni, vice-
Eretz Israel. Aprenderam a lutar e atirar e ajudaram na assessora do diretor de Assuntos Femininos,
elaboração de estratégias para organizar a defesa. o treinamento de combates da FDI aprimorou-se
muito nos últimos 20 anos e atualmente os instrutores
A história está repleta de exemplos de mulheres são em sua maioria mulheres.
combatentes nas batalhas que antecederam a formação
do moderno Estado de Israel. Com coragem e No entanto, as mulheres ainda não podem servir em
determinação atuaram infiltradas como agentes, na todas as posições de combate. Mas Shirli acredita
retaguarda, e nas frentes de combate. Havia mulheres que a luta pela igualdade de direitos nas forças armadas
lutando no Palmach, na Haganá, no Irgun. Lutaram na israelenses já foi vencida. “Ninguém mais se pergunta
Guerra de Independência, estando inclusive presentes da se se deve ou não permitir a presença feminina em
defesa de Jerusalém, em 1948. posições de luta e comando. A única pergunta
é como e quando. As FDI passaram por mudanças
Em 1953, porém, cinco anos após a Declaração profundas em seus valores de tal forma que estas são
de Independência, o então primeiro-ministro David irreversíveis”.
Ben-Gurion decidiu que elas deveriam servir nas
Forças de Defesa de Israel (FDI) em funções Anualmente, cerca de mil mulheres jovens, ao término
burocráticas. Assim, nos 30 anos seguintes, com do Ensino Médio, tentam tornar-se instrutoras de
poucas exceções, atuaram em atividades ligadas à área combate das FDI. Apenas 25% das candidatas são aceitas
de saúde e nos escritórios das FDI como secretárias, e, após um breve período de treinamento generalizado,
porta-vozes etc. são encaminhadas a uma base específica para sua
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capacitação. Pode ser uma base pelo povoado de Machtesh Ramon na mente os valores e ideais que
de infantaria, blindados, artilharia, e seguir em direção ao sul por devemos agregar ao treinamento”.
entre outras. A mais cobiçada, uma estrada na qual os ônibus não Lidar com jovens recém-saídas
no entanto, é a remota base dos avançam. do colégio não é tão simples. Sua
Batalhões de Engenharia, no primeira reação ao chegarem à base
Neguev. Para ostentar a boina A atual coordenadora dos cursos de
prateada e a insígnia desse batalhão treinamento de combate da base é
é preciso passar por um dos cursos a Tenente Liron, de 23 anos, cuja
mais completos e árduos das FDI. aparência é totalmente oposta ao
que se imagina para alguém nessa
Com quatro meses de duração, o função. Criada em um bairro da
programa é oferecido duas vezes cidade de Kochav Yair, não muito
por ano e tem como foco principal distante de Kfar Saba, ela não se
a destruição das defesas inimigas. alistou logo após o término do
Sabotagem e desmonte de minas Ensino Médio, optando por trabalhar
estão entre os temas principais do como voluntária durante um ano
treinamento. O uso de explosivos com crianças, em Afula. Muito bem
nos campos de batalhas, o articulada, termos como moral,
deslocamento em campos minados valores e sociedade estão sempre
e a explosão de barreiras são itens presentes em suas conversas. Sobre
presentes no programa. isso, diz aos visitantes: “Eu tento
mesclar aquilo em que acredito com
Para chegar à Base dos Batalhões de os valores do exército. Meu objetivo
Engenharia no deserto de Neguev, não é apenas treinar pessoas para uma
ao sul de Beersheva, é preciso passar possível guerra, mas, também, manter
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israel
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57 abril 2016
história
JUDEUS DURANTE
A PRIMEIRA CRUZADA
POR REUVEN FAINGOLD
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Conquista de Jerusalém pelos cruzados. “Storie degli Imperatori”. Biblioteca Arsenal. Paris
e servos, todos buscando uma formação superior àquela encontrada habitavam em territórios do Império
absolvição de seus pecados. Nos anos na população local. Carolíngio, assim como os que,
1064-1065, sob a liderança na Península Ibérica, viviam sob
do Arcebispo Sigfred de Mogúncia e Vários pyutim (hinos hebraicos em domínio muçulmano. Porém, a luta
do abade Ingulf de Croyland, verso) descrevem as dificuldades entre o poder papal e o crescente
7 mil peregrinos se dirigiram a sofridas pelos judeus por rejeitar o poder político dos monarcas, criou-
Jerusalém, falecendo a maioria no Cristianismo como a “fé verdadeira”. lhes uma nova situação.
caminho. Desde a destruição do Segundo
Templo e o exílio de Roma em Em meados do século 11, era instável
Este processo de peregrinação 70 E.C., várias comunidades a situação dos judeus da Europa
se inicia no “Concílio de Clermont”, judaicas se espalharam pela Europa. central. Na França e na Alemanha,
em 1095, estabelecendo-se na dependiam da proteção dos reis,
Europa ordens militares como Seus membros jamais esqueceram com os quais mantinham relações
os Templários, que ocasionaram Jerusalém, como bem o denota a “aceitáveis” já que os reis careciam de
transformações na vida cotidiana e contínua entoação da prece seus talentos e suas riquezas.
no destino dos judeus, e criaram “O ano próximo, em Jerusalém”, e a
um abismo entre a civilização reafirmação de seu compromisso Os judeus concediam empréstimos
ocidental e o Judaísmo. Cresce, com a Terra de Israel. aos governantes, que, entre outros, os
assim, uma sistematização das incumbiam de coletar impostos para
hostilidades contra os judeus. VÉSPERAS DA PRIMEIRA o Tesouro Real, atividade que os
Como a Igreja os declara “inimigos CRUZADA tornaria cada vez mais impopulares
da fé”, as camadas populares iniciam entre os camponeses e a pequena
uma onda de violência contra os Na época medieval, desfrutavam nobreza que os culpava pelas
Filhos de Israel. Afinal, a maioria de tranquilidade e prosperidade penúrias pessoais e a impossibilidade
deles vivia nas cidades e tinha uma na Europa cristã os judeus que de progredir na vida.
59 abril 2016
história
Ao se iniciarem as Cruzadas, muitos considerados pelos cristãos como penúrias experimentadas pelos
cristãos mantinham dívidas com “colaboradores” dos muçulmanos. peregrinos que viajavam à Terra
judeus. A peregrinação à Terra Em 1064, na conquista de Barbastro, Santa. Além disso, os muçulmanos
Santa era não só uma forma de motivado pelos maus tratos a judeus, haviam profanado o Santo Sepulcro
receber perdão da Igreja e do Céu o Papa Alexandre II escreveu aos em Jerusalém e demais Lugares
pelos pecados, mas também um bispos hispânicos, lembrando-os Santos cristãos na Terra Santa,
meio de libertar-se das obrigações da diferença entre muçulmanos e fato que enfureceu as autoridades
econômicas. judeus: “Os primeiros são inimigos eclesiásticas. A resposta foi o
irreconciliáveis dos cristãos, discurso do Papa Urbano II, em
Alguns anos antes das Cruzadas, enquanto os últimos são meros Clermont Ferrant, em 26 de
aconteciam perseguições esporádicas. colaboradores”. novembro de 1095. A chamada do
Um cronista judeu anônimo relata Papa para as Cruzadas agitou o
o massacre de Otranto, uma vila Antes da Primeira Cruzada, os povo.
ao sul da Itália, em 930: “Judeus reis e as autoridades eclesiásticas
foram perseguidos... ao Rabino reconheciam o valor dos judeus PRIMEIRA CRUZADA
Yeshaya lhe atravessaram o pescoço oferecendo-lhes proteção e direitos.
com uma faca e o mataram Em 1084, o Bispo de Espira lhes A Primeira Cruzada foi proclamada
como a um cordeiro no pátio da outorgou uma carta de privilégios, em 1095, pelo Papa Urbano II,
sinagoga; e o Rabino Menachem reconhecendo-os como agentes com o objetivo duplo de auxiliar
caiu dentro de um poço, e a nosso colonizadores da cidade. Em 1090, os cristãos bizantinos e libertar
mestre o estrangularam”. Em 1007 o rei Henrique IV renovou-lhes os Jerusalém e a Terra Santa do
aconteceriam massacres na França privilégios, outorgando um direito jugo muçulmano. Na verdade, a
e a expulsão e conversões dos similar aos judeus de Worms. Esses Primeira Cruzada não foi um único
judeus de Mogúncia (Mainz), na documentos lhes permitiam exercer movimento, mas um conjunto de
Alemanha. livremente o comércio, garantindo ações bélicas de inspiração religiosa,
também suas liberdades religiosas. que incluiu a Cruzada Popular, a
Entre os séculos 8 a 11, os judeus Cruzada dos Nobres e a Cruzada de
da Espanha viviam em paz e No final do século 11, chegaram 1101.
integrados ao Estado islâmico, sendo notícias do Oriente relatando as
A conclamação era para libertar
Jerusalém dos infiéis, mas a Primeira
Cruzada deu vazão a uma longa
tradição de violência organizada
contra os judeus. Primeiro na França
e, depois, na Renânia, alguns líderes
de grupos populares interpretaram
que a guerra contra os infiéis podia
ser aplicável não só aos muçulmanos,
no Levante, mas também contra os
judeus, que viviam na maioria das
comunidades europeias. Muitos
cristãos não viam motivo para viajar
milhares de quilômetros para lutar
contra os inimigos do Cristianismo,
quando estes estavam, também, à
porta de suas casas.
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REVISTA MORASHÁ i 91
61 abril 2016
história
Meschulam, presenciaram a
chegada dos cruzados, começaram
a se preparar para o combate. Mas,
pelas desgraças [ocorridas] haviam
jejuado debilitando-se muito, sem
poder resistir ao inimigo. Durante a
Lua Nova do mês de Sivan, chegou
o conde Emich com seu exército,
assassinando anciãos e moças, sem
ter compaixão pelo sofrimento nem
pela dor, nem pela fraqueza nem
pela doença... Quando viram que seu
destino estava selado, incentivaram-
se uns a outros dizendo: ‘Soframos
com paciência e heroísmo tudo
aquilo que nossa sagrada religião nos
O Rei da França Luis IX embarca para uma cruzada rumo a Oriente.
Iluminura Medieval. Desenho anônimo ordena...’. De imediato os inimigos
nos matarão, porém nada interessa
filhas e os pais caem sobre seus todos os seus objetos de valor. mais que nossas almas adentrando
filhos’. Um matava seu irmão, outro No entanto, ao adentrar Emich puras na Luz Eterna... Formando
seus pais, esposa e filhos. Todos com seus soldados no palácio, o um coral exclamaram: ‘Bem-
aceitavam de bom grado o Desígnio bispo sumiu subitamente e a aventurados aqueles que sofrem em
Divino, entregando suas almas ao guarda episcopal os deixou sem nome de um D’us único’ ”.
Todo Poderoso, gritando, ‘Ouve proteção. O cronista cristão
Israel, o Eterno é Nosso D’us, o Alberto de Aix testemunhou Um parágrafo mais adiante, o
Eterno é Um”. esses momentos: “Emich e sua cronista Shelomó bar Shimshon
turba, armados com picaretas e relata os últimos momentos dos
Segundo a crônica, os cruzados lanças, atacaram os judeus (...). judeus no pátio episcopal: “Homens
não respeitaram sequer os mortos. Depois de quebrar fechaduras piedosos [tzadikim] sentados no
Retirando os corpos do palácio, e destruir portões, alcançaram- meio do pátio, junto ao Rabino
cortaram-nos em pedaços e nos, matando 700 deles. Em vão Itzhak ben Moshé, rezavam
dispersaram seus restos. Apenas o tentaram defender-se; as mulheres embrulhados em seus xales de oração
judeu Simcha Cohen se salvou e foi foram assassinadas e os jovens, sem [talitot]... O Rabino foi o primeiro
batizado à força. Imediatamente, distinção de sexo, foram mortos a entregar seu pescoço para logo
tirou uma faca e feriu três carrascos, a facadas. Os judeus se armaram ser decapitado, caindo sua cabeça
porém o populacho o chacinou. contra si mesmos: correligionários, no chão. Enquanto isso, os demais
Naqueles dias de 1096 foram mortos esposas, filhos, mães e irmãs, tiraram judeus continuavam sentados no
800 judeus, todos atirados numa vala suas vidas mutuamente. Horror é mesmo pátio dispostos a atender a
comum. ter que contar isto... Somente um vontade do Criador. Os inimigos
pequeno número escapou com lhes atacaram com pedras e flechas,
Depois de Worms era a vez de vida desse cruel massacre. Alguns mas eles não se mexeram de seus
Mogúncia. Liderados pelo Conde receberam o batismo mais por temor lugares, morrendo todos. Aqueles
Emich de Leisingen, vários grupos à morte que por amor à fé cristã”. que estavam nos aposentos do
de marginais e cruzados fanáticos palácio, decidiram matar-se com
entraram na cidade. Os membros da A chacina de Mogúncia foi suas próprias mãos...”.
comunidade judaica pediram ajuda presenciada pelo cronista
ao Arcebispo Rutardo, obtendo Shelomo bar Shimon, um dos Os judeus feridos imploravam por
permissão para se refugiar até o poucos sobreviventes. Seu relato água, mas ao saber que essa seria a
perigo passar. Segundo o cronista, é comovedor: “Quando os filhos água para batizá-los se negavam a
mil judeus se aglomeraram no pátio da Aliança Sagrada, liderados recebê-la. O cronista Shelomó bar
episcopal após entregarem ao bispo pelo Rabino Kalonymos ben Shimshon descreve a coragem de um
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REVISTA MORASHÁ i 91
judeu que matou três soldados com dispersos em localidades vizinhas. Metz, onde morreram 22 judeus,
sua faca. Imediatamente, foi morto. Houve judeus hospedados em casas teve batismos coletivos forçados.
Destaque para um grupo de judias de vizinhos cristãos. Ao encontrarem Famílias inteiras de judeus
refugiadas no palácio episcopal as casas judaicas vazias, os cruzados de Ratisbona foram lançadas
de Mogúncia. Elas “espalharam arrasaram tudo, queimando a brutalmente nas águas do Danúbio
dinheiro entre os cruzados, para sinagoga e a Torá. para serem batizadas. Durante
ganhar tempo e cometer o suicídio três meses o terror se instalou
coletivo, al Kidush Hashem”. As Apenas em Treveris e Ratisbona nas comunidades do Reno. Um belo
mulheres atiravam pedras aos (hoje Regensburg), na Baviera, poema judaico medieval lamenta as
soldados, mas também eram feridas os cruzados conseguiram batizar valiosas perdas: “No terceiro
no rosto com pedras lançadas com pela força a comunidade. Como de dia do terceiro mês as lamentações
estilingues. costume, a maioria buscou proteção não paravam... Cobrirei com
no palácio do Arcebispo Eguilberto, torrentes de lágrimas os cadáveres
Emich matou e queimou o bairro mas os cruzados os achavam e de Espira e me lamentarei
judeu. Nesses fatídicos dias retiraram assassinavam. Outros se jogavam amargamente pelos da comunidade
do palácio episcopal 1.300 cadáveres. no rio Mosel, situado ao nordeste de Worms, e meus gritos de dor
Aproximadamente 60 judeus, que da França. O cronista escreveu: ecoarão pelas vítimas de Mogúncia”.
fugiram e se esconderam na catedral, “Algumas mulheres encheram suas Entre maio e julho de 1096, nas
foram rapidamente localizados e mangas e sutiãs com pedras e se províncias do Reno foram mortos
mortos. Dois judeus que haviam jogaram ao rio desde uma ponte”. 12 mil judeus.
aceitado o batismo para salvar suas
mães foram presos: Itzhak ben O Arcebispo de Treveris e Ratisbona RUMO A TERRA SANTA
David e Uri ben Yosef. Ambos exigiu também o batismo. Um
buscaram refúgio na sinagoga, mas rabino de nome Micha solicitou que Nenhum dos grupos de cruzados
acabaram morrendo nas chamas. ele lhe ensinasse os princípios da que participaram da Cruzada
O Rabino Kalonymos com 50 judeus religião católica, mas logo desistiu e Popular, parte do movimento
fugiram rumo a Rudesheim, pedindo abandonou o Cristianismo. chamado de Primeira Cruzada,
socorro ao Arcebispo da vila. Em
vão o clérigo tentou convencê-los a
se converter. Rabino Kalonymos quis
agredir um nobre, mas rapidamente
foi impedido e executado.
63 abril 2016
história
chegou à Terra Santa. Pelas estradas, a santidade da Igreja não seja aumentando com o tempo, atingindo
eram contidos por outros grupos profanada pelos judeus”. seu ponto mais alto em 1215. Nesse
cristãos que tinham suas terras ano, o Concílio Latrão IV, liderado
devastadas. O cronista Albert de Em 1103 houve uma trégua pelo Papa Inocêncio III, ordena aos
Aquisgran comenta: “Depois das entre o poder político e religioso. monarcas da Europa aceitar uma
crueldades cometidas, carregando Os judeus poderiam voltar ao legislação que obriga todos os judeus
as riquezas roubadas aos judeus, Judaísmo mediante pagamento em a habitar em bairros separados e
aquela gentalha insuportável favor da Igreja, e os bens das vítimas portar em suas vestes o distintivo
composta por homens e mulheres, sem herdeiros seriam confiscados amarelo, sinal de humilhação e
continuou sua viagem rumo a em benefício do Tesouro real. discriminação. Dessa forma, ficava
Jerusalém, passando pela Hungria”. Todos saíram satisfeitos, inclusive os aberto o caminho para outras
Lá o rei húngaro Koloman os judeus que conseguiram reconstruir Cruzadas. Tudo era apenas uma
aniquilou. Para o cronista “tudo sua sinagoga em Mogúncia, apenas questão de tempo.
era obra de D’us contra peregrinos oito anos depois da Primeira
depravados que haviam pecado ao Cruzada.
matar judeus”. BIBLIOGRAFIA
PALAVRAS FINAIS Falbel, Nachman, Kidush Hashem:
O conde Emich e seu exército jamais Crônicas hebraicas sobre as Cruzadas.
Edusp, São Paulo 2001, 375 págs.
chegaram a Jerusalém. Ele morreu ao Os violentos ataques ocasionados
regressar à sua pátria. O dia de sua pelos cruzados entre 1096-1099 Prawer, Joshua, The History of the Jews
in the Latin Kingdom of Jerusalem.
morte em 1117, estrelas com formato poderiam ter sido apenas um Clarendon Press 1988, 310 págs.
de gotas de sangue teriam caído do episódio isolado na História
Runciman, Steven, História das Cruzadas.
céu. Medieval, no entanto essas Editora Imago. Rio de Janeiro 2002, 340
ações em busca de um “perdão págs.
O Imperador e o Papa se religioso” mudaram radicalmente Suarez Bilbao, F., Los judíos y
posicionaram contrariamente a mentalidade europeia. A procura las Cruzadas. Las consecuencias
diante dos excessos dos cruzados. de novos horizontes levou ao y su situación jurídica, em:
MEDIEVALISMO, año 6, págs. 41-75
Henrique IV emitiu uma enriquecimento ilícito e a uma e 121-146.
autorização para que as pessoas religiosidade extrema.
batizadas à força pudessem voltar
ao Judaísmo. Já o Papa Clemente As Cruzadas prejudicaram o
III replicou: “Ouvimos que judeus desenvolvimento do Judaísmo das Prof. Reuven Faingold é historiador
e educador, PHD em História e História
batizados estão desertando da Igreja, comunidades da Alemanha. Judaica pela Universidade Hebraica de
Jerusalém. É também sócio fundador
e tal coisa é pecaminosa; portanto Elas criaram um distanciamento da Sociedade Genealógica Judaica
nós exigimos de ti (Henrique cada vez maior entre cristãos do Brasil e, desde 1984, membro do
Congresso Mundial de Ciências Judaicas
IV) e de todos nossos irmãos que e judeus, um espaço que foi de Jerusalém.
64
COMUNIDADES
O
Édito foi um choque. Os judeus a Reconquista chegou praticamente ao fim, a atitude
acreditavam serem transitórias, como tantas dos monarcas em relação aos judeus se transformou.
outras, as perseguições e discriminações Não sendo mais necessários para administrar as terras
das quais tinham sido vítima a partir do reconquistadas, os judeus passaram a ser vistos apenas
final do século 14. Havia judeus vivendo como uma vultuosa fonte de renda para a Coroa.
na Península Ibérica desde a queda do Segundo Templo,
e, durante os séculos, haviam sobrevivido a invasões, Não há dúvida de que no século 14 o poder da Igreja
guerras, pogroms, ao domínio islâmico e cristão. Viveram Católica crescera em demasia e, consequentemente, a
épocas de ouro e de discriminações. Estavam convencidos situação dos judeus na Europa tornava-se cada vez mais
de que sua proeminência em todas as esferas da vida difícil. Após a Igreja determinar que as heresias cristãs
econômica, além da presença na Corte de judeus que deviam ser vistas não apenas com um flagrante desafio
atuavam como administradores e conselheiros dos reis, às doutrinas católicas, mas também como um desafio
serviriam de proteção contra a hostilidade da Igreja e à própria estrutura da Igreja Romana, e que deveriam
do povo. Ademais, acreditavam que os Reis Católicos, ser eliminadas nem que fosse pela força, era inevitável
nome pelo qual ficaram conhecidos Fernando de Aragão a pergunta sobre o que fazer com a presença judaica na
e Isabel de Castela, os protegeriam. Afinal, até 1491 e Europa.
mesmo no início de 1492, depois da captura de Granada,
os reis ainda nomeavam judeus para importantes postos A partir do Concílio de Latrão, em 1215, a Igreja passa
na Corte e haviam também renovado os contratos com a exigir dos governantes ações mais severas em relação
os judeus que arrecadavam impostos. O choque sobre a à população judaica. No entanto, por muito tempo, as
decisão dos Reis Católicos não era fruto de ilusões sem mesmas não foram acatadas pelos reis cristãos da Península
fundamento... Ibérica ainda dividida entre vários reinos autônomos.
No entanto, a expulsão foi o desfecho de um processo A atitude benevolente dos monarcas com os judeus era
lento e progressivo de mais de dois séculos. Quando guiada por interesses próprios. Em Castela e Aragão, por
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COMUNIDADES
toledo, espanha
exemplo, o benefício que os reis vida na Península Ibérica era melhor antijudaica que ocorreu em 1391.
obtinham através dos exorbitantes do que em outras partes da Europa, Agitador antissemita sem
impostos pagos pelos judeus ainda que crescesse a conscientização escrúpulos, Martinez iniciara,
superavam qualquer inclinação, de insegurança. no final da década de 1370, uma
decorrente de convicções próprias violenta campanha contra os judeus.
ou pressões da Igreja ou do povo, de Não há como entender a expulsão Em suas pregações, costumava
tomarem medidas mais drásticas. de 1492 sem examinar os “alertar” a população de Sevilha
acontecimentos de 1391, de 1412 e para a “iniquidade” desse povo,
Porém, quaisquer que fossem as 1413. encorajando a violência contra seus
atitudes da Coroa, entre as membros.
massas os sentimentos antijudaicos O primeiro desastre
eram cada vez mais fortes. – o ano de 1391 Em 1390, Martinez aproveitou a
Ataques verbais e físicos contra morte do Arcebispo de Sevilha e do
judeus se repetiam, também, com O ano de 1391 foi determinante Rei de Castela, que deixara como
frequência muito maior. Já estava na história dos judeus na Península herdeiro ao trono um filho menor
impregnada no imaginário popular a Ibérica. Frades franciscanos e de idade, para intensificar seus
figura do judeu como um ser maligno dominicanos, apoiados pelo papado, ataques. Para a maioria dos
– a “encarnação do diabo”, ou, no percorriam a Península e davam historiadores, Martinez foi o
mínimo, seus parceiros no mal, que sermões inflamatórios cujo intuito principal instigador dos pogroms
“visavam a ruína” do Cristianismo. era a conversão dos judeus. que, no ano seguinte, varreram a
Para as massas, o judeu era o culpado A instabilidade política e as Península. No dia 4 de junho de
por todo infortúnio e desastre. pregações do Arquidiácono de 1391, os judeus de Sevilha foram
Ecija, Ferrant Martinez, que atacados. Os pogroms espalharam-se
Vale ressaltar, porém, que apesar do vivia em Sevilha, armaram o rapidamente de uma cidade
clima antijudaico, para os judeus a palco para a ampla violência a outra, nos reinos de Aragão e
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Catalunha e nas Ilhas Baleares. haviam reduzido seus números, sua relações entre cristãos e judeus,
Massas ensandecidas impulsionadas riqueza e seu moral. visando minar a economia destes
por um grande fervor religioso últimos, suprimindo suas liberdades
avançavam sobre os bairros O judaísmo espanhol conseguiu e reduzindo-os à condição de párias.
judaicos obrigando os judeus sobreviver nos Reinos Cristãos Entre outros, os judeus foram
a optar entre a cruz e a morte. durante um século após a catástrofe despejados de seus bairros para
Milhares escolheram a morte, mas de 1391, principalmente, por causa separá-los dos cristãos, proibidos de
tantos outros aceitaram batismo, da determinação dos monarcas coletar impostos para os governantes,
sendo poupados, sem exceção. de Castela e Aragão em proteger que era parte significativa da origem
Famosas comunidades judaicas as comunidades judaicas, e o da riqueza judaica.
foram destruídas, como a de reconhecimento por parte de
Gerona, sinagogas foram tomadas e cristãos, que viviam em pequenos Os instigadores das novas leis
transformadas em igrejas. centros urbanos, de que a presença foram o pregador Vincent Ferrer e
de uma comunidade judaica lhes era Pablo Garcia de Santa Maria – um
Em Castela, como vimos acima, favorável. apóstata judeu que Ferrer convertera
não havia um monarca forte, e e que se tornara bispo de Burgos e
a devastação foi terrível; poucas O segundo desastre Castela. Em decorrência da união
comunidades foram poupadas. – os anos de 1412 e 1413 de Castela e Leon sob um monarca,
Apenas nos Reinos de Navarra embora os reinos permanecessem
e Portugal, governados por reis Os vinte anos que se seguiram após separados, as leis de Valladolid eram
poderosos, as comunidades judaicas os eventos de 1391 foram de uma válidas tanto em Castela quanto
ficaram em segurança. relativa calmaria na intensidade da em Leon. Também em Aragão,
perseguição. Para a grande maioria, Fernando I procurou estabelecer
Estimativas do total da população era um indício de que havia um ordenações parecidas com as
judaica, em 1391, variam futuro em terras ibéricas para os castelhanas contra os judeus.
amplamente, mas calcula-se que judeus. Mas muitos haviam perdido
300 mil judeus viviam na época a esperança e procuraram deixar
em terras ibéricas. Após um ano a Península estabelecendo-se em
de distúrbios, quando a ordem foi volta da bacia do Mediterrâneo.
restaurada, um terço da comunidade (Os governos passaram a restringir
havia sido assassinada; um terço a emigração judaica – não queriam
havia sobrevivido como judeus “perder” seus judeus, “apenas”
praticantes, conseguindo se esconder convertê-los.)
ou fugir para terras muçulmanas,
e cerca de 100 mil haviam-se A Igreja Católica, por intermédio
convertido. das suas campanhas contra os
judeus, colocava um número cada
Após a devastação, os judeus vez maior de obstáculos na interação
tentaram reerguer suas comunidades. entre eles e os cristãos. Queria isolar
A de Aragão foi salva da total a população judaica cada vez mais,
destruição, graças ao Rabi Hasdai querendo “preservar” os cristãos de
Crescas, uma das principais toda “contaminação” judaica.
autoridades rabínicas de seu tempo,
que liderou o judaísmo espanhol Nos anos de 1412 e 1413, as
durante um de seus períodos comunidades judaicas de Castela e
mais críticos. As aljamas foram Aragão sofreram novos desastres.
reconstruídas e a normalidade O primeiro ocorreu em 2 de janeiro
restabelecida. Mas, para os judeus se de 1412, quando, no Reino de
reerguerem era necessário mais do Castela, foi imposta, pelas Cortes de
que a reabilitação física nas juderías Valladolid, uma lista de restrições
arruinadas. Os pogroms de 1391 que passaram a regulamentar as entrada da sinagoga
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COMUNIDADES
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recém-convertidos não estavam mais momento, as conversões em massa Fernando se tornou rei de Aragão.
sujeitos às leis que restringiam a de judeus haviam sido vistas pelas De 1479 em diante eles governaram
vida dos judeus. Nos anos seguintes, autoridades eclesiásticas como uma o que era, de fato, um único reino
vários deles galgariam posições de vitória do Cristianismo. Elas partiam unificado. Isabel e Fernando
destaque na administração real, na do pressuposto que, com o passar do gradualmente restauraram a ordem e
burocracia civil e até mesmo na tempo, mesmo os que haviam sido impuseram sua autoridade sobre toda
Igreja, chegando a casar seus filhos convertidos à força se tornariam a Espanha. Num primeiro momento,
com membro da nobreza. cristãos sinceros. Mas, no decorrer do os reis não eram hostis aos judeus,
século, a Igreja passou a ver o grande pelo contrário.
A rápida ascensão dos conversos contingente de cristãos-novos como
provocava inveja e ressentimento, um “um perigo oculto”, passando Havia inúmeros judeus e conversos
exacerbando o antagonismo cristão. a querer eliminar todos aqueles que foram nomeados para ocupar
Os conversos acabaram por se cuja lealdade a seu credo não fosse cargos importantes na administração
transformar em um problema social confiável. do Reino. Entre outros, havia duas
além de religioso. A judeufobia, o figuras de destaque: Rabi Isaac ben
antijudaísmo religioso das massas, Como vimos acima, os primeiros Judah Abravanel – que se refugiou
fundiu-se com um novo tipo de motins contra conversos irromperam em Castela após a morte do rei
antissemitismo – o racial. Depois em Toledo. Em junho de 1449, D. Afonso V, rei de Portugal, e Don
de 1391, o conceito de limpieza os que viviam na Ciudad Real, no Abraham Senior, de Segóvia, Rabino
de la sangre (pureza de sangue) Reino de Castela, reagiram após Chefe da comunidade judaica e
tornou-se incorporado na vida terem sido atacados por cristãos- Coletor-Chefe de impostos reais, em
espanhola nos séculos seguintes. Para velhos, tendo a luta durado 15 dias. Castela. Os dois eram encarregados
um cristão provar sua “pureza de Os ataques se repetiram em 1464, de administrar as receitas e fornecer
sangue” devia provar que não havia 1467 e 1474, sendo que esse último abastecimentos ao exército real.
nenhum judeu em sua linhagem. pogrom foi particularmente grave. A Outros estadistas cristãos-novos
A política de limpieza de la sangre intranquilidade popular causada pela prestavam serviços à Coroa e dentro
será adotada primeiramente, em hostilidade dos cristãos-velhos contra da casa real, Isabel conseguiu
1449, em Toledo, onde um conflito os conversos preocupava cada vez conceber o Príncipe Juan devido ao
anti-conversos conseguiu bani-los e mais os governantes. tratamento médico que recebeu de
a seus descendentes da maioria dos seu médico judeu, Lorenzo Badoc.
cargos oficiais. O objetivo do estatuto O ideólogo do antissemitismo que Havia também administradores e
de exclusão foi impedir uma maior se abateu contra judeus e conversos intelectuais judeus também na corte
inserção de cristãos-novos na vida espanhóis foi um franciscano, frei de Aragão e a serviço de vários
econômica e social, pois essa mistura Alonso de Espina, o superior da nobres e clérigos.
contrariava os interesses dos cristãos- Casa de Estudos de Salamanca, que
velhos. os odiava igualmente e defendia a Ademais, em várias ocasiões,
completa extirpação do judaísmo da Fernando e Isabel intervieram
A crescente hostilidade dos cristãos- Espanha por expulsão ou extermínio. pessoalmente para impedir distúrbios
velhos e o conceito de “limpeza Em seu devido tempo, todas as antijudaicos e punir os que haviam
do sangue” – que levaram a um sugestões de frei Alonso foram fomentado a violência. Para conter os
isolamento dos cristãos-novos, adotadas pelos governantes ibéricos. excessos dos nobres e das autoridades
foram fatores que levaram um municipais em sua tentativa de
grande número de conversos, Os Reis Católicos restringir os direitos dos judeus,
assim como seus filhos e netos – e a Inquisição Fernando havia deixado claro que
nascidos nominalmente no seio do não deviam ser prejudicados. Em
Cristianismo – a traçar o caminho de A história dos judeus na Espanha 1477, ao defender os judeus de
volta às suas raízes. vai dar sua guinada final em outubro Trujillo, Isabel declarou, “Todos
de 1469, quando Isabel de Castela os judeus do meu reino são meus
Ao longo do século 15 a questão dos se casa com o príncipe Fernando de e estão sob minha proteção, e cabe
conversos começou a preocupar os Aragão. Em 1474, Isabel ascendeu ao a mim defender e protegê-los, e
governantes e a Igreja. Num primeiro trono de Castela e, cinco anos depois, manter seus direitos”. São inúmeras
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as provas de que, até a véspera da monarcas espanhóis a Igreja e o A Inquisição tomou nova dimensão
expulsão, os governantes de Aragão Estado atuavam em conjunto, a quando Torquemada foi nomeado
e Castela consideravam os judeus Inquisição espanhola funcionaria Inquisidor Geral. Todos os tribunais
como súditos leais e merecedores de como um instrumento da Igreja, mas da Inquisição, em toda a Espanha
proteção. A confiança judaica em seu também de política real. cristã, achavam-se sob sua jurisdição.
apoio não se baseava, de fato, como Em novembro de 1478, uma Bula do Nos quinze anos seguintes, até
alguns estudiosos alegam, em ilusões Papa Sisto IV autorizou a criação de sua morte em 1498, ele teve um
fantasiosas. uma Inquisição única na Espanha. poder que rivalizava com o dos
Concedeu aos monarcas espanhóis o Reis Católicos. Sob Torquemada, o
Mas, Fernando e Isabel eram inédito direito de nomear e demitir trabalho da Inquisição prosseguiu
antes de mais nada monarcas os inquisidores. Em setembro de com renovada e diabólica energia.
católicos e levavam a sério suas 1480, dois dominicanos foram Na década seguinte, a Inquisição se
responsabilidades religiosas em nomeados inquisidores. ramificou, cobrindo quase todo o país
relação à Igreja. Não foi apenas por em fins do século. Talvez uns 30 mil
razões políticas que eles receberam O primeiro auto-de-fé se realizou conversos tenham sido queimados
do Papa Alexander VI o título de los em fevereiro de 1481, e seis vivos em todo o reino. Milhares
Reyes Católicos. conversos foram queimados vivos de pessoas ficaram aleijadas ou
na estaca. Só em Sevilha, no início enlouqueceram por causas das
Os constantes relatórios sobre as de novembro, as chamas ganharam torturas, arruinadas porque seus
alegadas atividades judaizantes mais 288 vítimas, enquanto 79 bens haviam sido confiscados. Desde
realizadas por conversos alarmavam foram condenadas à prisão perpétua. o momento de sua instalação, a
os Reis, principalmente Isabel. E, Segundo os registros, entre 1481 e Inquisição cobiçava a riqueza dos
uma vez consolidada sua posição 1488, houve 750 autos-de-fé apenas conversos e dos judeus. Nada podia
política, os Reis Católicos decidiram em Sevilha. deter as atrocidades, cuja relação
agir para resolver a questão dos ocuparia centenas de milhares de
conversos, de acordo com as páginas. A certa altura, os dignitários
diretrizes propostas pelos mais de Barcelona escreveram ao Rei
extremos fanáticos católicos: extirpar Fernando: “Estamos todos arrasados
a “heresia” dos conversos e tomar com as notícias que recebemos
severas medidas contra os judeus das execuções e atos que dizem
para impedi-los de influenciar a estar tendo lugar em Castela”. Em
população cristã. Castela, havia protestos contra o
renascimento de uma instituição
Em 1447, Isabel e Fernando foram bárbara, criada originalmente em um
convencidos pelo prior dominicano clima mais primitivo espiritual. Mas
de Sevilha, Alonso de Hojeda, de os críticos foram silenciados.
estabelecer a Inquisição em suas
terras. O dominicano alegava Desde o início, a Inquisição
de que os conversos se reuniam espanhola moveu-se com brutalidade
secretamente para praticar seus “ritos em seu uso de confissões secretas
antigos”, e essa ameaça só poderia ser extorquidas sob tortura, que era
adequadamente combatida se fosse considerada “a melhor maneira de
instalado na Espanha um Tribunal capturar o maior número de judeus
da Inquisição, sob controle real. secretos”. Em sua metodologia e
técnicas de intimidação e tortura, não
Ao contrário dos antigos Tribunais difere da Inquisição Papal, mas foi
do Santo instituídos no século 13, a certamente na Espanha que atingiu
Inquisição espanhola não seria um novas dimensões de intolerância,
instrumento do Papado. Prestaria cinismo, perversidade e terror. Todo
contas diretamente a Fernando e Ruela dos Arcos. Um dos espaços
urbanos mais conhecidos, de forte
tipo de tortura que a depravada
Isabel. Como nos domínios dos lembrança judaica imaginação dos inquisidores
71 abril 2016
COMUNIDADES
Decreto de expulsão dos judeus de Granada, 31 de março de 1492. Manuscrito O Rei Fernando reconheceu que a
sobre papel. Cópia não certificada, Arquivo Geral de Simancas, Valladolid perseguição dos judeus e conversos
teria inevitavelmente repercussões
idealizava acabava sendo sancionado. e, supostamente, não tinham poder econômicas adversas para o país.
Há registros de que um inquisidor sobre membros de outras religiões. Nem ele nem a Rainha Isabel, porém,
falou aos colegas: “Devemos Mas, como a Inquisição considerava puderam resistir à combinada pressão
lembrar que o objetivo principal do o judaísmo um inimigo mortal da Inquisição e do sentimento
julgamento e execução não é salvar a da fé cristã, encontrava meios de popular. Numa carta a seus mais
alma do acusado, mas alcançar o bem implicar, arrastar e destruir os judeus influentes nobres e cortesãos, o
público e impor medo aos demais”. praticantes. A verdade é que todos Rei escreveu: “O Santo Ofício da
os que ocuparam cargos importantes Inquisição, vendo que alguns cristãos
O Édito de no Tribunal do Santo Ofício tinham são postos em perigo pelo contato
Expulsão de 1492 como objetivo se livrar dos judeus e comunicação com os judeus,
e, no final, conseguiram destruir o estipulou que eles sejam expulsos de
O ódio da Inquisição não era judaísmo na Espanha. todos os nossos reinos e territórios,
apenas em relação aos conversos. e convenceu-nos a dar nosso apoio e
Era maior o ódio aos judeus Para conseguir seu objetivo final concordância a isso... fazemo-lo com
praticantes, porque, em teoria, a Inquisição foi em frente em um grande dano para nós, buscando e
ficavam fora de sua jurisdição crescendo de histeria, paranoia e preferindo a salvação de nossas almas
legal oficial. Os inquisidores eram terror. Ironicamente, o horror dessa acima do nosso proveito...”.
autorizados a tratar de hereges, isto primeira década, fez com que um Em janeiro de 1483, para apaziguar
é, cristãos que se haviam desviado número ainda maior de conversos a Inquisição na Andaluzia, os
da ortodoxia da fé cristã, ou seja, voltassem a procurar suas raízes monarcas anunciaram que todos
cristãos-novos acusados de judaizar, judaicas. A religião e a tradição, os judeus da região deveriam ser
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expulsos. Em maio de 1486, todos os à tortura, ele “confessou” o nome Logo após a queda de Granada,
judeus foram enxotados de grandes de vários conversos e judeus começaram a circular rumores na
partes de Aragão. Mas a expulsão supostamente envolvidos num corte de que um decreto de expulsão
geral teve de ser adiada porque a complô para derrubar o Cristianismo, para todos os judeus estava para ser
Coroa precisava do dinheiro, expertise a Inquisição e matar todos os cristãos. decretado. As datas específicas para a
e outras formas de apoio dos judeus Ainda que nenhuma criança estivesse formulação, promulgação e anúncio
e conversos para a campanha em desaparecida em La Guardia, nem público do decreto continuam alvo
andamento contra os muçulmanos houvesse fundamento na patológica de discussão, mas provavelmente
do Reino de Granada. acusação de assassinato ritual, os foram assinados em fim de janeiro e
Em 1478, a batalha com o Reino judeus, uma vez mais, se viram promulgados no final de março.
de Granada foi retomada e, na vítimas dessa calúnia medieval.
década seguinte, Castela perseguiu, Torquemada indicou uma comissão Nesse ínterim, Rabi Abrabanel e
incessantemente, a ofensiva contra especial investigadora que, como se Rabi Seneor tentaram influenciar
o último reino muçulmano na previa, “julgou culpados” os acusados. os Reis Católicos a revogar o
Península Ibérica. Em novembro de 1491, duas decreto. Na introdução a seu
semanas antes da queda de Granada, comentário sobre os Profetas, Rabi
Torquemada aceitou o adiamento cinco judeus e seis conversos foram Abrabanel recorda ter-se reunido
pela Coroa da expulsão de todos os mandados para a fogueira em Ávila. três vezes com o Rei, implorando,
judeus da Espanha até que o Reino incessantemente, mas em vão, por
muçulmano de Granada fosse final O intuito de Torquemada era atiçar seu povo. Apesar de necessitar do
e definitivamente conquistado. Mas, ainda mais o povo contra os judeus apoio dos poderosos cortesãos judeus
nesse meio tempo, passou a preparar e conversos, e assim preparar os e conversos, Fernando manteve-se
o terreno. ânimos para o decreto de expulsão, firme, enquanto Isabel o estimulava a
que seria divulgado apenas três meses manter sua decisão de remover todos
Assim surgiu uma acusação de após o veredicto. os judeus da Espanha.
libelo de sangue, conhecida como
El Niño de la Guardia. Um converso, Em 2 de janeiro de 1492, quando Rabi Abrabanel é bastante sucinto
Benito Garcia, foi levado perante a o estandarte espanhol foi alçado na em sua descrição de seu dramático
Inquisição e acusado de participar torre de Alhambra, palácio-fortaleza encontro com o casal real, mas Rabi
da crucificação de uma criança cristã em Granada, a sorte dos judeus Moshé Capsali, Rabino Chefe de
na véspera de Pessach. Submetido estava selada. Istambul no século 15, e cronistas
73 abril 2016
COMUNIDADES
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REVISTA MORASHÁ
Afirmamos nosso propósito Cada vez que recebo a Morashá, que Gostaria de parabenizar pela
de desenvolver, em parceria, completa a minha seleção e arquivo de revista Morashá pela edição
programas de incentivo à leitura assuntos importantes do judaísmo, fico de dezembro de 2015, está linda
e dinamização da Biblioteca encantado pela beleza gráfica e esmero e completa como sempre.
Pública do Espírito Santo, pelos assuntos de espiritualidade das Agradeço a toda equipe e “Parabéns”
consolidando-os como espaço nossas festas do Ano Judaico. O grato a todos!
de convivência e como referência e rico conteúdo de nossa sempre Danielle Chueke
quanto ao acesso à informação e ao atualizada vivência de judeus no Por e-mail
conhecimento. mundo atual. Encantou-me o artigo
Na expectativa de contribuir para sobre Marthe Cohn “Uma Heroína Não posso deixar de tecer elogios
valorizar nossas bibliotecas com para a História”. Como dizem no à Equipe que faz esta maravilhosa
ações e políticas públicas de ampliação Yad Vashem, “o centro de memória em revista direcionada à comunidade
e atualização de acervos e de estímulo Israel”, “De trás de cada pessoa tem judaica, seja pelo seu fantástico
às práticas de pesquisa e de leitura, uma história” dos que foram e dos que conteúdo, seja pela sua qualidade
agradecemos a cortesia do envio da estão. gráfica.
revista Morashá. Ernesto Strauss Claudio Sternfeld
Rita de Cássia Maia e Silva Costa São Paulo - SP São Paulo - SP
Gerente do Sistema Estadual de
Bibliotecas Públicas do Espírito Santo
Como sempre, também a edição 90 de Morashá apresentou a seus
Morashá é de alto nível e representa leitores a História de Purim, de
Parabéns pela magnífica edição da os valores culturais judaicos. maneira criativa e ao mesmo tempo
revista Morashá número 90 e pelas didática. Impossível não fazer
Leopoldo Goldenberg
matérias sobre Chanucá, que são Por e-mail uma analogia aos tempos atuais.
ótimas. Como sempre, a revista merece O Povo de Israel deve estar sempre
uma leitura integral, pois todos os Li a matéria sobre “Os Protocolos dos alerta para o surgimento de um
artigos são muito bons. Sábios de Sião” em que os judeus são novo Haman.
Elie Politi acusados de serem os seus autores.
São Paulo - SP Claudio Roitman
Achei bastante interessante o artigo e por e-mail
gostaria de receber informações sobre
À Equipe da Morashá desejamos fontes de pesquisa, documentários e Retratando a vida e a trágica
primeiramente um Feliz Ano Novo e referências do material utilizado em morte de Itzhak Rabin, a revista
agradecemos muito o envio da revista sua edição. É de suma importância ter Morashá resgata para o público
para a Alliance Israélite Universelle- fontes de pesquisa para desmentir o em geral a importância de líderes
Paris. mau-caratismo desses antissemitas no autênticos e comprometidos pela
Anne-Laure Lachowsky Brasil. causa de sua gente.
Assistente da Biblioteca da Alliance
Israélite Universelle Luiz Henrique de O. Rocha Marcia Sandowski
Paris - França Por e-mail por email
75 abril 2016