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FRAGA, Walter. Pós-Abolição: o dia seguinte In GOMES, Flávio. SCHWARCZ, Lilia.

Dicionário da Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


O que mais preocupava eram os milhares de libertos misturados aos populares nas ruas
da cidade. E, mais ainda, o entusiasmo do povo tinha incorporado a dimensão e os
significados das duas maiores festas populares da província. Para seu desespero, a
celebração da liberdade se transformou numa síntese potencialmente explosiva do
Carnaval e do Dois de Julho. Realmente, foi insuportável para aquele ex-senhor de
escravos assistir, a um só tempo, à inversão da ordem do Carnaval e à exaltação da
liberdade do Dois de Julho. Por trás disso, havia o medo maior de que a festa
desembocasse em ameaça séria à ordem. Afinal, festas e batuques sempre foram vistos
pela classe senhorial como prenúncios de revolta. p. 373

Note-se que, se para os abolicionistas baianos o Treze de Maio era um desdobramento do


dia 2 de julho de 1823, data da independência do colonialismo português, para os
pernambucanos a relação era com o dia 25 de março de 1884, quando jangadeiros e
populares aboliram o tráfico interno de escravos e a escravidão na província do Ceará.
Nas passeatas abolicionistas que se realizaram em Salvador nos dias subsequentes ao
Treze de Maio, os libertos também se fizeram presentes, mas apareciam no final do
cortejo e puxando os carros dos caboclos. Aquela posição subalterna na festa de algum
modo simbolizava o lugar pensado para eles ocuparem no Brasil pós escravista. P. 373

Vê-se que a festa cuidadosamente preparada pelo senhor para dar as boas-novas
frustrou-se em seus objetivos, pois os ex-cativos souberam com antecedência que a
escravidão já havia sido abolida. Na manhã seguinte, o senhor experimentaria desgosto
maior ao constatar que os ex-escravos não atendiam à convocação ao trabalho, pois,
segundo o velho ex-escravo, "no outro dia não tinha ninguém mais no terreiro". p.374

Depois da promulgação da lei de 13 de maio, a situação parecia incontrolável em muitos


lugares do Brasil. Os libertos passaram a expressar a nova condição numa linguagem
franca, que aos ouvidos de ex-senhores e feitores soou como "insolente" e
"insubordinada". Não são poucos os senhores e senhoras que guardaram daquele dia
lembranças terríveis de "ingratidão" e desobediência. P.375

Basta dizer que, um ano depois do Treze de Maio, as áreas rurais do Recôncavo baiano
ainda estavam conflagradas por conflitos envolvendo ex-escravizados e proprietários
rurais. Ali os ex-escravizados se recusaram a receber a ração habitual, e só aceitavam
trabalhar mediante pagamento semanal ou por diária. Recusaram-se também a cumprir
as mesmas jornadas de trabalho do tempo da escravidão. Exigiram trabalhar menos
horas nas lavouras dos fazendeiros e reivindicaram mais tempo para se dedicarem às
áreas que lhes eram reservadas para o cultivo de suas próprias lavouras. Trabalhar nos
termos das velhas relações escravistas era visto pelos libertos como "continuação do
cativeiro". P.375

 Ex escravos perceberam que possuir terras dava a eles a oportunidade de não


trabalhar para nenhum senhor. A exemplo daqueles que vendiam mandioca
plantada pelos mesmos, e vendiam na cidade.
Foi assim no Engenho Maracangalha, onde os libertos se arrancharam e plantaram
mandioca, experimentando a doce sensação de viver sem senhor. Desde então puderam
livremente vender o produto das roças nas feiras locais, e não havia quem os obrigasse a
seguir para o canavial. Tais iniciativas sem dúvida demonstram que, para aqueles
libertos, a liberdade alcançada em 13 de maio estava conectada ao desejo de possuir
terras. p. 375/376

Por seu lado, os libertos tiveram que se esforçar para efetivar sua condição de liberdade
num contexto de repressão que atingia não apenas os "treze de maio", mas toda a
população negra. Nos anos iniciais do Brasil republicano, recrudesceu o controle sobre
os candomblés, batuques, sambas, capoeiras e qualquer outra forma de manifestação
identificada genericamente como "africanismo". Esse antiafricanismo teve implicações
dramáticas para as populações negras, pois reforçou as barreiras raciais que
dificultavam o acesso a
melhores condições de vida e a ampliação dos direitos de cidadania. P. 376
Nos anos 1930, a Frente Negra Brasileira relembrava o fim do cativeiro, mas também
fazia daquele dia um momento para denunciar e reatualizar antigas demandas da
população negra, especialmente acesso à educação. P. 376

As celebrações nos redutos negros parecem ter sobrevivido ao esquecimento. Em


Cachoeira, na Bahia, toda noite de 13 de maio a filarmônica Lyra Ceciliana, fundada
pelo abolicionista negro Manuel Tranquilino Bastos, desfila pelas principais ruas da
cidade repetindo o trajeto do desfile abolicionista de 1888. Em Santo Amaro, também
na Bahia, todos os terreiros de candomblé da cidade se reúnem no largo do Mercado, é o
Bembé do Largo do Mercado. Segundo a tradição oral, essa
celebração começou em 1889 por iniciativa de um famoso babalorixá local chamado
João de Obá. P.377

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