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“O Campo Religioso Brasileiro está (sempre esteve) em Movimento”

Fabiano Fernandes Serrano Birchal

_____O campo religioso brasileiro é um verdadeiro mosaico: diferentes peças, com desenhos
particulares e de origens nem sempre comuns, manuseadas por artistas distintos, de lugares
diversos; enfim, uma grande mistura que forma um todo nem sempre harmônico, mas uno em sua
concepção final, possuidor de uma identidade pitoresca e bastante particular. Um painel em
movimento, um mural de colagens adaptado, onde cortes e recortes mudam de posição com
facilidade, dando origem a novos contornos. Um caleidoscópio da busca humana pelo
transcendente.

_____Na composição do campo religioso brasileiro encontram-se três traços culturais distintos e
principais: a cultura portuguesa, a africana e a aborígine. Este sincretismo já era encontrado em
terras nacionais desde o final do século XVI, quando se constatavam misturas aberrantes entre o
catolicismo e práticas indígenas, fomentadas, inclusive, pelos colonos portugueses. Não tardou,
logo depois, para que os escravos vindos da África introduzissem suas crenças em terras
tupiniquins, proporcionando uma mistura ainda maior de culturas religiosas.

_____Aos poucos o mapa de cultos brasileiro foi nitidamente delineado. Já no final do século XIX
percebia-se claramente a estruturação religiosa do país: nas regiões mais afastadas do eixo centro-
sul, como é o caso da Amazônia, havia a mistura marcante entre cultos aborígines e católicos; no
litoral, prevaleciam os cultos afro-brasileiros, fundidos também ao catolicismo (era comum
observar na colônia pessoas que recebiam o batismo católico e, ao mesmo tempo, levavam
oferendas aos orixás. Tanto que muitos dos santos católicos foram tendo seus correspondentes nos
orixás, como é o caso de São Jorge, por exemplo, visto como Ogum nos cultos afro-brasileiros); por
fim, no nordeste e nos cerrados de Minas Gerais, bem como nas montanhosas regiões do sul,
reinava o catolicismo popular, originário do homem interiorano de Portugal; o catolicismo oficial,
neste contexto, encontrava-se mais difundido nas paróquias dos bairros ricos, conventos e nas
cidades maiores.

_____A difusão do catolicismo no Brasil, fora dos grandes centros urbanos, deve seu sucesso a uma
figura simples: o leigo. Dada a grande falta de padres, sobretudo nas regiões interioranas, foram os
colonos portugueses os grandes responsáveis pela expansão e manutenção de uma linguagem e
cultura católicas, que, todavia, fugiam dos padrões oficiais estabelecidos pela igreja de Roma.
Dispersos, estes grupos isolados criaram uma forma muito particular de professar a fé cristã a partir
da criação de figuras santificadas, da identificação de lugares sagrados em seu meio, que serviam de
palco para narrativas bíblicas, da criação de uma hierarquia religiosa própria, com a determinação
de funções como o “capelão”, “sacristão”, “tirador de rezas”, que podiam até mesmo se perpetuar
por herança familiar. Criou-se uma espécie de misticismo católico, com a exaltação de santos,
milagres e curas, penitências e castigos. Um conjunto de crenças e lendas típicos da distante Idade
Média européia e que eram ressignificados e legitimados pelas camadas populares no interior do
Brasil, formando o que se convencionou chamar de catolicismo popular.

_____A via católica oficial, contudo, não deixou de existir na nação brasileira. A presença de um
clero formalmente estruturado era vista nos grandes centros, nas paróquias e conventos. A nascente
intelectualidade do país seguia os preceitos de Roma e enxergava o catolicismo rústico do interior
como manifestação de uma realidade social, cultural e econômica atrasada, bárbara. Uma oposição
clara entre o Brasil dito arcaico das camadas populares e a idéia de um Brasil moderno e
cosmopolita das camadas superiores.
A inserção de cativos africanos no Brasil, desde a segunda metade do século XVI até fins do século
XIX, fundou uma cultura nacional sincrética e muito particular. Os negros trouxeram seus cultos e
crenças religiosas, que se fundiram às práticas cristãs e indígenas, deixando marcas profundas e
indeléveis no campo religioso brasileiro. O candomblé, originário da África, trouxe a cultura dos
orixás, a dança, uma forte ligação com a Terra e com os elementos da natureza. Uma nova visão
cosmogônica, novos mitos e ritos, o transe, agentes espirituais atuando diretamente sobre a vida
humana: uma proposta de fé muito distinta do catolicismo romano. Os cultos africanos e aborígines
encontraram adeptos, sobretudo, nas camadas inferiores da população brasileira, entre os escravos e
outros oprimidos. Ainda assim, estas formas de religiosidade representavam grupos parciais, e não a
sociedade brasileira em sua totalidade.

_____Da fértil comunhão entre práticas ameríndias, cristãs e do candomblé, surgiu a Umbanda, no
início do século XX, que pode ser considerada a única religião verdadeiramente brasileira. A
Umbanda incorpora ainda conceitos diversos de outras religiões, transfigurados para responder aos
anseios do povo do Brasil. Um exemplo claro do sincrético e difuso universo religioso brasileiro.

_____No início do século XX chegam oficialmente no Brasil igrejas cristãs protestantes. A


revolução provocada pelo manifesto do monge agostiniano Martim Lutero, no século XVI, é trazida
através de missões pentecostais, que fundam uma nova base cristã em um país onde a grande
maioria da população é católica. O protestantismo não encontrou barreiras severas para conquistar
seu lugar ao sol no campo religioso brasileiro. Das missões clássicas (luteranos, por exemplo) ao
neopentecostalismo carismático (Igreja Sara Nossa Terra), fiéis se aglomeram nos bancos das
igrejas, buscando ressignificar sua experiência de fé. Contudo, a facção protestante é, geralmente,
menos dada a sincretismos com outras religiões: não é comum, ao evangélico, freqüentar religiões
como a umbanda e o candomblé, que muitas vezes são até mesmo combatidas pelas correntes
cristãs protestantes.

_____A histórica comunhão de crenças do povo brasileiro tornou a dimensão religiosa deste país
marcada por uma enorme diversidade de manifestações da fé. São comuns, no Brasil, fiéis que
freqüentam a missa católica aos domingos, assistem a programas de televisão protestantes às
segundas-feiras, participam de reuniões espíritas nas sextas e dançam no terreiro de umbanda aos
sábados. Somando-se ao sincretismo histórico e cultural brasileiros, é também marcante no país o
chamado fenômeno da Nova Era, originário do processo de secularização que se instalou no mundo
ocidental desde o final da era moderna e que encontra, na pós-modernidade, um campo fértil para se
expandir. Às três matrizes originais da cultura nacional, misturam-se mitos e práticas ritualísticas
orientais e européias antigas, fomentando o misticismo, o esoterismo e a magia, num fenômeno
chamado por alguns estudiosos de subjetivismo religioso ou reencantamento do mundo. Este
modelo de fé encontrou grande receptividade no Brasil, onde o trânsito religioso é traço comum de
seu povo.

_____O campo religioso brasileiro sempre esteve em movimento, se adaptando e modificando.


Desde a chegada dos portugueses em terras nacionais, diversas culturas e manifestações da busca
pelo transcendente se alternam e se misturam na formação de uma matriz religiosa porosa e
dinâmica. Dos cultos aborígines ao fenômeno da Nova Era, o ser brasileiro é marcado por um
intenso dinamismo e flexibilidade que lhe permitem transitar por diversas manifestações religiosas
sem, contudo, perder a dimensão de sua fé. Ele pode, a cada momento, ressignificar sua
religiosidade, experimentar novos solos e escolher aquilo que mais responde a seus anseios, sem
precisar, para isso, ser fundamentalista, radical. Um modo de ser no mundo cordial e sincrético.

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