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RETRAÇANDO AS CONCEPÇÕES DE DEFICIÊNCIA MENTAL

Luciana Pacheco Marques


Professora Doutora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora

Muito mais do que aprender a sobreviver, o homem está fadado a aprender a viver
em contato com os outros, os quais se constituem, no muito das vezes, em
verdadeiros algozes ou juízes de seus semelhantes.
(Marques, 1992, p. 91)

A deficiência representa, na trama das relações sociais, um fato merecedor de uma


análise profunda por parte dos estudiosos do comportamento humano. É inegável o fato de que a
sociedade enfrenta enormes dificuldades para lidar com o que é diferente, com tudo aquilo que se
afasta dos padrões estabelecidos como normais. Todas as categorias sociais que não se enquadram
nesses padrões são, de alguma forma, identificadas como desviantes e colocadas à margem do
processo social.
Marques (1994) discute essa problemática sob o ângulo ideológico, demonstrando
que o discurso e a prática sociais de atendimento à pessoa com deficiência passam primeiramente
pelos interesses das classes sociais dominantes de identificar e manter o desviante segregado em
uma instituição especializada. Para esse autor, a instituição especializada, seja ela nos moldes de
internato, escola ou classe especial beneficia muito mais os interesses dominantes da sociedade do
que às próprias pessoas com deficiência assistidas.
Alicerçada num discurso de proteção e de preparação das pessoas com deficiência
para uma futura reintegração na sociedade, a instituição especializada tem sua imagem difundida
pelos veículos de comunicação e pela opinião pública, como se fosse algo de grande importância e
necessidade para tais pessoas, escamoteando seu principal objetivo: o de identificar e segregar os
desviantes.
Nas palavras de Bieler, citado por Figueira (1995, p. 37): “Desde o início dos tempos
em todo o mundo, essas pessoas foram alijadas do convívio social, impedidas de participar e de
desenvolver sua capacidade como indivíduo e cidadão”.
Os registros históricos dão conta de que as sociedades sempre tiveram muita
dificuldade para lidar com a diferença imposta pela deficiência. Segundo Figueira (1996, p.38), a
prática da discriminação das pessoas com deficiência remonta às priscas eras da humanidade. Diz
ele:

A história conta e a antropologia está aí para quem quiser confirmar!


Nas antigas civilizações (e em algumas sociedades tribais nos dias atuais), a prática
de eliminação pura e simples de seus membros que nasciam ou adquiriam
deficiências através de doenças, acidentes rurais ou de caça. Usavam como
argumento para o sacrifício a idéia de que o indivíduo iria sofrer ao longo de sua
vida as condições precárias da época, além da eliminação da vítima em função da
coletividade. Naqueles tempos, já existia o conceito da “inferioridade”; um sujeito
com algum tipo de deficiência, na visão pré-concebida de sua tribo, nunca seria um
bom caçador, não poderia ir para o campo de batalha, não era digno de uma
esposa, nem de gerar novos e bons guerreiros, etc. Já existia a discriminação e a
segregação.
Nesta mesma perspectiva histórica, Fonseca (1995, p. 9) reforça esta tese, ao afirmar
que:

Ao longo da história da humanidade é freqüente observarmos que


muitas condições sociais tem sido consideradas como deficientes, refletindo
normalmente este fato um julgamento, julgamento que se vai requintando e
sofisticando à medida que as sociedades se vão desenvolvendo tecnologicamente, em
função de valores e de atitudes culturais específicas. (...) Em muitos aspectos, a
problemática da deficiência reflete a maturidade humana e cultural de uma
comunidade. (...) Essa realidade obscura, tênue, sutil e confusa procura, de alguma
forma, afastar ou excluir os indesejáveis, cuja presença ofende, perturba e ameaça a
ordem social.

Importa destacar que a deficiência esteve sempre revestida da uma imagem negativa,
muitas vezes maligna, cuja origem estaria ligada a atos pecaminosos dos homens ou a
arbitrariedades e forças superiores.
Nas palavras de Fonseca (1995, p. 10),

Desde a seleção natural, além da seleção biológica dos espartanos,


que eliminavam as crianças mal formadas ou deficientes, passando pelo
conformismo piedoso do cristianismo, até a segregação e marginalização operadas
pelos exorcistas e exconjuradores da Idade Média, a perspectiva da deficiência
andou sempre ligada a crenças sobrenaturais, demoníacas e supersticiosas.

De forma sucinta, Fonseca (1995) traça uma linha evolutiva das diversas concepções
de deficiência, construídas ao longo da história da civilização ocidental. Com esse fim, o autor
citado estabelece concepções distintas, que, embora coexistam até os nossos dias, tiveram
momentos de hegemonia em determinados períodos dessa história. Essa concepções são o
preformismo, o predeterminismo, o envolvimentalismo, o interacionismo e, em decorrência desta
ultima, a modificabilidade cognitiva.

O preformismo

Baseada nos preceitos da mística e da superstição, a concepção preformista


caracterizou-se pela atribuição das causas da deficiência a forças sobre-humanas. Os atributos
mentais, sensoriais e motores do homem seriam, nessa perspectiva, dádivas ou castigos de Deus
(força do bem) ou do demônio (força do mal), que, em eterna luta pelo poder, se digladiavam às
custas dos mortais humanos. Importa ressaltar que, sob tal concepção, nem o meio ambiente nem o
substrato orgânico tinham qualquer influência no fato de uma pessoa ser ou não deficiente. Tal
condição dependia única e exclusivamente da vontade de um ser superior.
Demonstrando a forma como as sociedades lidavam com a deficiência no período
Clássico da História, Fonseca (1995) e Pessotti (1984) destacam as práticas de extermínio e de
exposição a que estavam sujeitos as pessoas com deficiência em Esparta e em Atenas. Por se tratar
de um povo marcadamente guerreiro, a sociedade espartana cuidava de eliminar seus filhos com
deficiência. Pessotti (1984, p. 3) afirma:
De todo modo, é sabido que em Esparta crianças portadoras de
deficiências físicas ou mentais eram consideradas sub-humanas, o que legitimava
sua eliminação ou abandono, prática perfeitamente coerente com os ideais atléticos
e clássicos, além de classistas, que serviam de base à organização sócio-cultural de
Esparta e da Magna Grécia.

Em Atenas, da mesma forma, o Estado detinha o poder de deliberar sobre o destino


de seus filhos nascidos com deficiência. Tal prática culminava no encaminhamento dos mesmos
para lugares desconhecidos dos habitantes da cidade. Assim escreveu Platão, citado por Fonseca
(1995, p. 200):

As mulheres dos nossos militares são pertença da comunidade assim


como os seus filhos, e nenhum pai conhecerá o seu filho e nenhuma criança os seus
pais. Funcionários preparados tomarão conta dos filhos dos bons pais, colocando-os
em certas enfermarias de educação, mas os filhos dos inferiores, ou dos melhores
quando surjam deficientes ou deformados, serão postos fora num lugar misterioso e
desconhecido onde deverão permanecer.

Também Aristóteles defendia a exclusão das pessoas com deficiência da sociedade,


conforme declara Pessotti (1984, p. 4):

Para Aristóteles, até mesmo os filhos normais, excedentes, podem ser


expostos” em nome do equilíbrio demográfico, numa posição coerente com as linhas
mestras aristocráticas e elitistas da Política, mas fatal para as pessoas portadoras
de deficiências, principalmente quando essas viessem a implicar dependência
econômica.

O Cristianismo foi responsável por uma importante mudança na concepção clássica


de deficiência: com seu advento, a pessoa com deficiência passou a ter alma. Dessa nova concepção
resultou uma relação de conformismo piedoso para com as pessoas com deficiência. Todavia, não
eram considerados ainda os direitos das pessoas com deficiência como membros efetivos da
sociedade. Ora considerados como protegidos de Deus – les enfants du bon Dieu (Pessotti, 1984) -,
ora tratados como seres endemoniados, as pessoas com deficiência foram mantidas à margem da
cidadania sem direitos e deveres sociais.
Surgiram, então, na Idade Média, as primeiras instituições de assistência às pessoas
com deficiência. Data do século XIII, na Bélgica, a primeira instituição para abrigar pessoas com
deficiência mental (Pessotti, 1984).
No século seguinte, mais precisamente em 1325, na Inglaterra, foi elaborada De
praerogativa regis, a primeira legislação sobre os cuidados para com as pessoas com deficiência
mental. Essa legislação dispunha, segundo Dickerson, citado por Pessotti (1984), que o rei devia
zelar pelas pessoas com deficiência mental, cabendo-lhe se apropriar de parte de seus bens sob o
argumento de serem ressarcidos os gastos da realeza com o sustento dos mesmos.
O predeterminismo

Com o advento do Renascimento, ocorreu uma significativa mudança na postura do


homem perante a vida, verificando-se o fortalecimento da visão antropocêntrica e,
conseqüentemente, o enfraquecimento da visão teocêntrica até então dominante. As ciências físicas
e naturais sofreram, então, um grande avanço, sendo que a Biologia foi o ramo do conhecimento
mais explorado no novo processo de construção do entendimento da natureza humana e de seu
papel no mundo. Essa mudança de concepção teve como marco os estudos de Paracelso e Cardano,
médicos que se dedicaram à explicação da natureza da deficiência mental. Na obra intitulada Sobre
as doenças que privam os homens da razão, publicada em 1567, Paracelso admitia a origem
patológica da deficiência mental, embora preservasse o cunho supersticioso da mesma como
produto de forças cósmicas ocultas. De acordo com Pessotti (1984, p. 15), é nessa obra que “ao que
parece, pela primeira vez uma autoridade da medicina, reconhecida por numerosas universidades,
considera médico um problema que até então fora teológico e moral”. Análoga à concepção de
Paracelso, a tese de Cardano acrescentava à primeira uma preocupação pedagógica com a instrução
das pessoas com deficiência.
Surgiu, nesse contexto, a concepção predeterminista da deficiência mental: as causas
da defectologia e da normalidade estariam determinadas pelo substrato biológico do indivíduo.
Segundo Pessotti (1984), com a obra de Thomas Willis, intitulada Cerebri anatome, publicada em
1664, a visão organicista da deficiência mental é consolidada. Para esse autor, a causa da
deficiência mental teria origem numa lesão ou disfunção do Sistema Nervoso Central.
O meio ambiente era entendido como neutro ou de influência negativa. Conforme
sugeria Rousseau (1983), o homem, ao nascer, estaria isento de todos os males; a vida em sociedade
é que o desviaria de seu caminho natural.
Cumpre destacar o papel marcante da Revolução Industrial do século XVIII na
construção do imaginário social sobre a deficiência em geral. Atrelada à noção de produtividade,
emergiu o modelo de corpo produtivo.
Marques (1994, p. 79) caracteriza esse investimento no corpo produtivo como uma
marca registrada do Capitalismo. Segundo este autor,

o que acontece é que a deficiência, enquanto estereótipo do desvio, também se


enquadra no grupo das marginalidades produzidas pela ideologia da classe
dominante. Portanto, não se pode dissociar a condição de indivíduo deficiente de
uma idéia exterior de capacidade produtiva e da concepção de corpo social que
fundamenta todas as relações políticas e econômicas.
Numa sociedade capitalista, onde as relações se definem pela
produção e pelo lucro, o padrão ideal de homem segue os valores sociais
determinantes.

O produto histórico dessa mudança no comportamento social e econômico do


homem moderno foi a consolidação de uma formação discursiva fundada na dicotomia semântica e
prática da eficiência versus deficiência. Além do aspecto biológico da anormalidade, a deficiência
passou a ser entendida também como um fator impeditivo para o trabalho fabril.

O envolvimentalismo

A descoberta, em 1799, de Vitor, um menino de, aproximadamente, doze anos de


idade, que vivia na floresta de Aveyron, no meio de lobos, reacendeu, em oposição à visão
racionalista francesa, a concepção dos empiristas ingleses sobre a origem do conhecimento humano.
Base filosófica da concepção envolvimentalista, que predominou durante o século
XIX, a corrente empirista propõe que o conhecimento é originário da experiência sensível e, por
conseguinte, da influência direta do meio ambiente. Na base filosófica dessa abordagem, encontra-
se o pensamento de Locke, para o qual, segundo Pessotti (1984, p.22):

A experiência é o fundamento de todo o nosso saber. As observações


que fazemos sobre os objetos sensíveis externos, ou sobre as operações internas da
nossa mente, e que percebemos, e sobre as quais refletimos nós mesmos, é o que
supre o nosso entendimento com todos os materiais de pensamento. Assim, o uso da
razão, embora capaz de produzir idéias e conhecimentos, será exercido sempre, em
última análise, sobre os dados da sensação.

Influenciado por Locke, Condillac deu ao pensamento daquele um caráter


psicológico e pedagógico. Dos trabalhos desses dois autores foram erguidas as bases empiristas da
educação dos alunos com deficiência mental. De acordo com Pessotti (1984, p.29), tais
pressupostos são:

ela é sensualista, admite a gênese de idéias e processos mentais complexos a partir


de idéias e processos simples, admite que da percepção se passa a operações
mentais não necessariamente formais; que a formalização é apenas um modo de
estender as operações precedentes; que há estádios necessários e gradativos entre a
percepção e as operações com signos ou formais; que para efeito do exercício das
faculdades mentais não importa quais e quantos órgãos dos sentidos sejam
empregados na origem de conhecimento, ou seja, na percepção sensorial; que o
domínio da linguagem não é essencial para o desenvolvimento do entendimento
(funcionamento das faculdades mentais); e, acima de tudo, que as capacidades ou
incapacidades mentais são produto da experiência e das oportunidades de exercício
de funções intelectuais e não necessariamente dotes inatos, de natureza anátomo-
fisiológico ou metafísica.

Responsável pela educação do selvagem de Aveyron, Itard, médico francês, utilizou-


se dos pressupostos de Locke e Condillac, tornando-se o primeiro teórico da educação de pessoas
com deficiência mental. Percorrendo seus passos, Seguin, um outro médico francês, sistematizou os
estudos metodológicos sobre a educação dos alunos com deficiência mental.

O interacionismo

À luz da concepção envolvimentalista, o dado biológico ficou, pois, relegado a um


plano secundário no processo de desenvolvimento e de aprendizagem do homem.
Marcado pelo fortalecimento teórico e prático das ciências humanas e sociais, em
especial da educação, da sociologia e da psicologia, o século XX caracterizou-se pelo crescimento
desenfreado das populações urbanas, principalmente nos centros de maior prosperidade comercial e
industrial e pelo processo de democratização da educação básica. O aumento da demanda de
matrículas escolares provocou, como era de se esperar, um aumento significativo no número de
pessoas com deficiência em busca de escolaridade nos estabelecimentos regulares de ensino. Tal
fenômeno gerou uma reação quase que imediata do sistema educacional, que passou a se utilizar do
mecanismo de criação das classes e escolas especializadas, as quais passaram a funcionar como
verdadeiros depósitos de crianças problemáticas, livrando o sistema regular de ensino da presença
de tais indivíduos. Nesse mesmo contexto é que surgiu a concepção interacionista de inteligência,
que, sem privilegiar o indivíduo (o orgânico) ou o meio, propunha a interação de ambos como a
forma mais coerente e sensata de construção do conhecimento. Nessa perspectiva, as habilidades
mentais, sensoriais e motoras do indivíduo decorreriam da quantidade e da qualidade das trocas
efetuadas entre o indivíduo e o meio ambiente.
Duas abordagens encarnam bem essa concepção: o Construtivismo de Jean Piaget,
cuja preocupação maior recai sobre o sujeito epistêmico e o Sócio-Interacionismo de Lev Vygotsky,
com ênfase no sujeito histórico.
Concluindo a evolução histórica das concepções sobre deficiência mental, Fonseca
(1995) apresenta a concepção da modificabilidade cognitiva, como decorrência da concepção
interacionista na Educação Especial. Segundo Mantoan (1997), diversos autores como Feuerstein
(1979), Borkowski (1987), Paour (1988) e Audy (1991), Inhelder e Céllerier (1992) têm se ocupado
das experiências de controle do funcionamento cognitivo, tentando comprovar a modificabilidade
cognitiva, o ensino de estratégias cognitivas e a metacognição nas pessoas com deficiência mental.
Todas essas concepções, surgidas ao longo da história, suscitaram discussões e
desencadearam sentidos que estão presentes hoje nas diversas abordagens psicológicas e
pedagógicas que norteiam a prática dos professores de alunos com deficiência mental.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FIGUEIRA, Emílio. Imagem e conceito social da deficiência (segunda parte). Temas sobre
desenvolvimento. São Paulo: Memnon, v. V, n. 25, p. 35-8, jul./ago. 1995.
______. Imagem e conceito social da deficiência (terceira parte). Temas sobre desenvolvimento.
São Paulo: Memnon, v. V, n. 26, p. 38-41, maio/jun. 1996.
FONSECA, Vitor da. Educação Especial. 2.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Caminhos pedagógicos da inclusão: a formação do professor tal
como a concebemos e realizamos. Campinas, 1997. (mimeo)
MARQUES, Carlos Alberto. Para uma filosofia da deficiência: estudo dos aspectos ético-social,
filosófico-existencial e político-institucional da pessoa portadora de deficiência. Juiz de Fora: 1994.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) - UFJF.
MARQUES, Luciana Pacheco. Em busca da compreensão da problemática da família do
excepcional. Rio de Janeiro: 1992. Dissertação (Mestrado em Educação) - Departamento de
Educação, PUC/RJ.
______. Deficiência mental: da superstição à ciência. São Paulo: T.A. Queiroz/USP, 1984.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os
Pensadores).

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