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A MUSICA WA TERRA DE TRACEMA (Sinopse histérica do movimento musical no Cearé de 1900 a 1950) PEDRO VERISSIMO Alguns anos faz que vimos neompanhando o evoluir artistico-musical da terra eearence, ¢ nflo nos pesa dizer que sun ascencdo as esferas serenas ¢ Iuminosas das regides onde smente vingam a Verdade, o Belo e © Sublime, se tem operado gradativa porém ininterruptamente. A manelra de outros Estados, 0 Cearé é 9 terra da misica, Sentimo-la na melor profusio desde as eldades até as aldelas, inspirda e milo aprendida, Quantes génios da arte divina feneceram na rudex de um casulo, sequiosos da Linfa vitalizante de seu predestino! Quantas revelagdes artisticas vem de surgir ho paleo da vids, sem 0 Jordio em que se opera o batismo de luz, para nova fase de existéneia! Quantos eleltos perdides por gases invios sertées a dentro, envoltos no denso véu do obscurantismo! Quantas vocag6es dobraram ¢ debram ainda sob o péso das ctreunsténcias, sem © estimulo de u’a mo protetora! So pontos admirativos que nos conduzem a refletir no tnjustifieével dispei~ {elo dos nossos valores ¢, sobremodo, no olvido do Estado que, de resto, seria a sentinela avangada do nome pétrlo mo concérto das reallzagées vocacionais. Dessa desprotegiio & triste prova o que se pussou com Alberto Nepomuceno, gléria de que o Brasil se orgulha e tanta honra faz ao Cearé, “ndio haver conse- suldo que 0 Presidente da antiga Provinola dese execuglo & lel que, por projeto do deputado Martinho Rodrigues de Sousa, a Assembleia vatou, em 1833, conce- dendo-Ihe, or espago de trés anos, a penséo de 3008000 mensels, que euxiliaria axjuiele mogo de talento nos seus estudes musicais em Conservatérlo eurrpeu”. No fora q mao amiga do escultor Rodolfo Bernardelil, mais a pensio de 400 150 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA francos mensais, adquirida em coneurse para o “Hino da Republica”, certamente ‘Nepomuceno jamais tivera pastade de um modesto pianista de orquestra. Por que a auséncla de lel protetora © assiténcia das vocagées artisticas, ou SeJs de bolsa de estudos, institutcéo destinada a manter os jovens pobres que reve~ Jassem tendéncia para as belas-artes ou que tivessem necessidade de completar sua eultura? Daf a razfo precipua de ser a Terra da Luz preciria na sua representacio artistico-musical. Nos dias que precederam @ entrads do século XX, a coordenagio musical do Ceara admirava pelo saber e incentive que Ihe emprestayam os poucos mestres entéo existentes. Um dos mais antigos musicos da Provincia, em 1811, fol Joaquim Bernarda de ‘Mendonga Ribeiro. Professor de latim e musico versado em textos cldssicos, suas produgSes primavam pela originalidade, tanto esmeradas na forma quanto de estilo moldado na escole italiana, Decorridos alguns anos, apareceu em Aracatl ume pequena orquestra comandada pelo mestro Boaventura José de AmgSo e da qual fazia parte seu parente Félix José Valois, cognominade Areré, o tal que velo escoltado de Quixeramobim para a capital e, depois, processado em face de sua estremada ligagtio A causa liberal. “N8o fol fusilado porque, em tempo, chegara do Rio. de Janeiro ordem para suspenderam as execug6es. “Todavia, Ihe fizeram praca de le. Minha, e meteram-lhe na mfo a batuty do quartel”. No Tod, antes de 1830, viam-se alguns mtisicos, mas a6 Francisco Inicio, que Unha excelente voz de basso, consegutu alguma cousa parecida com orqucstra. Seu substitute, Simplicio Delfino Montezums, discipulo multe sentimentalista, algumas vezes “viram-no chorar executando um “Andante Cantabile”, rindo-se logo pds quando se efetuava a transi¢éo para um “Alegro vivo”. Mais tarde Monte- uma, transferindo-se para Fortaleza, empregou sua atividade no magistério, ens!- ‘nou misiea no Coléglo da Imaculada Concei¢éo, sendo parte saliente da orquestra “Santa Cecilia", tocando viotoncelo. ‘A garbosa cidade de Sobral também teve sua orauestra, sob a regéncia do maestro Galdino José Gondim (pal de Zacarias Gondim), que, reunindo os ele- mentes da terra, entre outros, o célebre Joio do Rezo (0 desdobrado violinista © cantor), nfo invejava 0 conjunto do Icé. Dom Luis Antonlo dos Santos, 1°. Bispo do Cesré, certa vez disse que sun visita pastoral, tinha notado que no Cearé havia muito gdsto pela miivicu, pois havia apreciado algumas orquestras bem dirlgidas e boas, notadamente us corquestras de Sobral e 166". © expressive concelto do nosso sempre lembrada pastor vem ratificar e origem de nossa referéneia. ‘Em 1952 outro mestre — Bernardo José Pacheco — ministrou, em Fortaleza, o ensino de misica aos jovens amadores que rendiam culto a Euterpe, No mesmo ano ocorret a primeira representagéo liriga, no Teatro So Luis. pelos artistas italanos Uguecions. A inédita temporada impressionou os assistentes. © tall fol 0 sucesso que 0 elenco tevq de permanecer demorado tempo, a convite da sociedade local, no intuito de disseminar ensInamentos de canto ¢ musica instru. mental, . REVISTA DO INSTITUTO_DO CEARA 151 Em 1857 Joaquim Manuel Borges (alcunhado Jonquim Macaco), ex-mestre, ou melhor, 9 primelro mestre da banda de misica do Corpo de Policia do Estado, Jeclonava nos educandérios da capital e, particularmente, & rua Amélia, onde também era visto o veu colega Herculano José de Sousa. Era assim animador o conério musical citadino, quando, nos fins do século XIX, frequentes concertos sintonicos eram teallzdos nos salées mobres da cidade, no ‘Teatro Sio Luis, no Clube Iracema, além de multos levados a efelto no recinto da Assembléla Estadual, Seus promotores, os maestros Vitor Augusto Nepomucenc (pal de Alberto Nepomuceno), Jorge Vitor Ferreira Lopes (pai de Henrique Jorge), Joaquim Manuel Borges, Herculuno José de Sousa e Joie de Araujo Costa, bem me- recem registo nesta meméria, pela dedicagéo e assiduldade com que procuravam ‘manter a bog vontade de seus disofpulos. Bstamos xno alvorecer do ano de 1900. © novo século velo trazer novas ocorréncla: Zacarlas Gondim e Manuel Magalhiies, dois competentes musicistas, levaram, a ombro o subilme desiderato. Zacarlas Gondim, crganista da Catedral e da TgreJa do Coragaa de Jesus, pro- fessor do Coléglo de Nossa Senhora de Lourdes, de que era diretora Ana Bilhar, aya auias particulares de harménio e piano. Intelectual que era, publicou: “Tragos Hgeiros sdbre a evolugso da musica no Brusli, especialmente no Ceara” e “Musica e dange inuigenas”, tendo elaborado uma sénle de artiyos sobre a anterpretago contida no “Motu Propr.o" de 8.8. Pio X, yelativamente A misiea sacra. Wolo maesize Zacanas Gondun quem, em 1903, ensalou e dirglu, em primeira mio, ¢ coral e milsica do “Hino do Cearé”, de Alberto Nepomuceno, 0 qual teve pare CanWw as almadus voses Ge apucudas nurmauslas, sau numere de seienta, 6, para acompanhamento, a harmomiosa banda do Corpo de Seguranea do Nstado, eniso mestraga pelo eximio clarinetista Raimundo Nonato de Soust. Manuel Magalhfes, o maestro que frequentou © Conservatérlo de Lubec, na. Alemanha, tinha um curso de violino e plano; ensalou a orquestra do Teatro Sao Luis, bem assim a banda do Batalhéo de Seguranca do Kstado. Organizou diversas bandas de miis.ca ge aniciativa part.cular, inclusive a dos empregados do coméreio — “Club Filarménico de Amadores”, e lecionou o idioma alemio no Liceu do Ceara. Sua famosa orquestra “Santa Cecilia" muito disse do seU dirigente, que nio media sacrificio para conservé-la com seu aprimorado talento. ‘Kram seus componentes 03 protessores Simplicio Delfino Montezuma, violoncelo; Antonio Thomiis de Cervaiho, violino e oboé; Pedro Viana, fagote; Viana de Carvalho, violin; Gongaio de Acarape, contrabasso, e outros de reconhectde merito. Em 1908 falecia Zacarias Gondim. Foi quando Fortaleza acolheu dois maestros itallanos — Luigi Maria Smido e Ciro Ciarlini; o primeiro, contratado para reger 4 banda de musica do Batalhio de Seguranca, no govérno Nogueira Actoli, tendo antes, em 1898estado em Baturité, onde obteve a coneretizagio de um atracnte grupo orquestral de quarenta figuras; 0 segundo, também de profegio, passou @ residir na cldade de Granja, zona norte do Estado, tendo prestado bons servicos no 56 aos granjenses, bem como aos habitantes dos munieipios visinhos, erlando bandas e orquestras e dando ligses de violoncelo, violine ¢ piano. ‘A banda policial, sob a regéncla de Smido, teve repercussio dentro e fora do Estado, a ponto de ser reputada a mals garbosa de todo o nordeste brasileira. 152 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA © coréto da antiga praca Marqués de Herval, hoje José de Alencar, servis de palco eos seus constantes concertos sinfonicos. Para all afluie numeroso e seleto auditério que ndo regateava dellrantes aplausos eo macstro. Francisco Benévolo, depois general, & outro habilissimo mestre que muito pre- vava sua arte e mutto contributu pars o soergutmento cultural e espiritual de nossa mocldade. & autor do “Hino General Tibireio”, cantado no dia da inaugu- ragio da estitua erguida @ Praga General ‘Mbtircio, a 8 de abril de 1888, em memoria do bravo soldado cearense que, nos campos do Paragual, elevou bem alto o nome da Pétrin, Seu falecimento data de 23 de Junho de 1918, Raquanto 1ss0, tivemos planistas intérpretes de cléssicos e professoras das jovens fortalezenses, entre outras, Estefania Pastor, Dondom Feljé da Costa Ribeiro, Elvira Pinho, Aurélia Meneses, Chiquita Meneses, Olimpia Bastos, Adelaide Ribelro, Amélia Frota, Ester Salgado, Julieta Araripe, Florzinha Emidio, Laura Mala, Isa de Queirés, Taié Caminha, Inlé Meton, Alice Freire, Lica Gurgel, Aurea Pacheco, Julinha Qui- xad6, Hilda Matos, Angélica Barroso, Sinhazinhs Mota, Mozarina e Isolda Jorge; Jaié, Dondom ¢ Santinha Jorge. Extensa € @ Msta nominal das noses planistas diplomadss e nio diplomadas, cuja enumeragto serla prolixa dentro de uma sintese como esta. Pequeno era 0 eiroulo de professores de piano; mas, em compensacso, atuavam mestres de outros instrumentos, no viotino, flauta, violfo, bandolim, cavaquinho, ete £ de fustiga apontar aqui o nome de um dos mais brilhantes propugnadores do nosso ensine musical — o maestro Henrique Jorge. © todo cearense o seu pé sado. Dirigit orquestras, ensinou violino e plano e levou de vencida muites con- cértos que eram festas verdadelramente artistices. Inspirado compositor, escreveu finos trechos de miistea sara de cimera, o que nos faz recordar “Ave Maria”, cAntico religiosa ouvido pela primeira vez por oca- sléo do enlace matrimonial do Dr. Ellézer Studart da Fonseca com a insigae plianisia dona Estér Salgado. Henrique Jorge fol um dos fundadores da Padarln Espititual, ¢ 0 seu nome de guerra ere Satasate Mirim. Violinistas do feltlo de Manuel Magalhfies, Henrique Jorge, Antonio Thomas de Carvalho, Josine Siquelra e Joequim Nunes sentiam-se recompenssdos pelo spro- veltamento de seus alunos. Os flnutistas Oscar Feltal, Silva Novo, Mozart Donizetst, Antonio Moreira, Joaquim Aristételes, Henrique Goilgnac, Carlos Jatal ¢ César Castro guiaram @ todos aqueles devotados ao melodicso tnstrumento de Pa. Havie ainda o estimulo do “pinho”, pelos professores violonistas Joaquim Alenquér, Rossii Sliva, José Cunha, Dr. Mamede Cirtno, Nelson de Sé Roriz e, posterlormente, ‘Oscar Clrino, Francisco Soares, Aleardo Freltas, Afonso Aires, Joo Lima e multos ‘outros. Bandas militares ¢ particulares tiveram vida antmada e protongada. Entre as militares contavam-se: a da “Policia do Estado”, a do “23 Batalhfo de Cacadores”, 8 da “Escola de Aprendizes Marinheiros © a do “Colégio Militar”, agora “Escola Preparatéria”. ‘Como particulares atuaram: a “Filarménica Calxetral", a do “Club Filarménteo de Amadores", 9 “Banda da Réde de Viaciio Cearense” e, por wltimo, a do “Cireuio do Operriog ‘Trabalhadores Catéiicos Séo José” A tradicional banda da Polfcla Militar do Estade tem nos dado concettuosos mestres, ndo sendo favor elté-los para a histérls da nossa miisiea: Jodo Morelra "da Costa, Pedro Gomes do Carmo (Pedro Piston), Pedro Alves Feltosa (Pedro Coté), REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 153 Joaquin Pacifico de Sousa, Joéo Francisco Gomes, Ralmundo Nonato de Sousa, Marlo César de Sousa, Raimundo Ferreira do Nascimento, Raimundo Byidio de Lima, Jéllo Marimho da Bilva, José Augusto dos Prazeres, Martintano José Monteiro (Naninho), Luis Saldanha Madeiro, Joo Batista de Sousa Brando, Pedro Domin- gues da Silva, José Carneiro e Anisto dos Santos. As bendas de misice, marciais ou nfo, tém finalidade patriética e so indis- pensévels numa capital onde ha constantemente solenidades oflclais, paradas, fostas civieas e roltglosas. ‘Tempo houve em que era avultado o mimero de orquestras, prinelpalmente as de pau e cords, quase sempre compostas de mocos do coméreio, functonérios pabltcos © artistas que, em gozo espirttual, rendiam culto & Unguagem da “slma e do eoragho*. Dentre as mais conhecidas ¢ aplaudidas merecem mencio: a do “Grémio Musical Pantera”, a “Orquestra do Batathéo de Seguranga”, a do “Clube Tallense de Ama- dores”, a do “Clube de Diversbes Artisticas. a do “Violon Club", a “Orquestra da Fenix Calxeiral”, a do “Club Iracema”, a do “Clube dos Diérlos”, a do “Club Estimulo Musical” ¢ a do “Cinema Pio X”. Em 1915 Raimundo Donlzett! Gondim, um sobratenso de nasctmento, d'plomado em MbAo, regeu ® orquestra do Cinema Moderno, em Fortalesa, tendo como vallo- 803 componentes os professores Silva Novo, Edgar Nunes, Antonio Moreira, Manuel Xavier. Boanerges Gomes, Carlos Moreira. Oscar Pereira, José Dias € Joio Moreira. © muestro Raimundo Donizetti, eximio pianiste © compositor, soube reunir A sua melodia as qualidades que, realcadas pelo seu genio, fazem da “Valsa dos Ausentes" uma primorosa pfgina de éibum. Possuimos © ainda temos alguns cearenses diplomados em miisica, devendo lembrat, por enquanto, o5 nomes de Soute Menor, planista, Eleazar de Carvalho, e1ende regente, € Aluisto Pinto, eminente vulto do teclado, At6 0 ano de 1920, como vé o leltor, havia muito agrado ¢ interesss pela arte dos sons, o que cquivate dizer: assim como 0 eeurense nasce blindado para enfrentar as adversidades, “& semelhanga de Euterpe, masce mtislco”. Fortaleza, na sua placider de outrora, roforta de Urlsmo e de malor prazer espiritual, embaleda de sonhos ao Iter das nottes selenitas, confortads nas suas diversées sadias, quando 0 violdo, em suaves arpejos, cadenciava a meiga vou das filbas de Tracema, era uma cidade de atrativos naturals ¢ menos absorvida pela vertigem dos austos da existéncia atual. Nos dias de 1990, um feltio clentifieo ortundo do progresso “yankee” e europe, Aesmentindo nosso romantismo, velo como que dlissipar nossa velha tradigfo, com © aparecimento das estacSes de ridio ¢ do cinema falado, Foi o bastante para que as orquestras fOssem pouco a pouco desaparecende dos cinemas mudos, até (© desinimo final. Professores de mvisica tiveram empsledecida a frequéncla de alunos ¢, por motivo Inconcebivel, fugiam os grupos orquestrais, em soctedade, deixendo ao abandono as cangées modinhelras, as tertifllas sociofs e mesmo © ritmo nas dengas da quadritha, da pole, da mazurea e do tango-hrastleiro, De 1900 2 1950 14 se vio cinquente anos. Seré que 0 indice opsonico da nossa cultura musteal néio tenhu baixado em paralelo ao do nosso passado? Parece que sim. © mundo marcha, a vida corre acelerada e confusa e novos acontecimentos estdo a desvirtuar nossa atencdo para a sublimidade da mats encantadora das artes. No campo social moderno, onde tudo se agita e tumultua de inteiativas re- 154 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA modeladoras, a nova geracio, na sua maioria, estaca ante 9 futebol profissional ow a5 notas marcentes dos discos que registam o bullclo das guarachas, dos swings, dos boleros, das rumbas e dos sambas ao léu da culca ¢ do pandelro. Desculda a elevagho do pensamento, o transporte magnifico dos sons, que € 0 yemédlo sedative da nossa alma nas horas agras do sofrimento moral. Isso, como bem disse hé pouco Otacilio Colares: “numa terra como a nossa em que, ha tempos, as cogitagSes da inteligéncia eram tidas como razio do nosso orgulho”. ‘Mau grado nosso, obrigamo-nos ao clima que nos preside, até que passe a onda revolta do séeulo estarrecide pelos efeltos diabélicos da energia atomic: Cearé! Continuamos a ouvir constentemente os tous acordes deliciosos tangen- ‘clarem, levemente, sutfimente, as frondes da tua solitérla carnaubeira. Salve!

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