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K antor está morto! Esqueçam Kantor!

K antor está morto! Esqueçam Kantor!

M ichal Kobialka

S
ala Preta: O teatro de Kantor tem como Fim de Partida, quando nós temos quatro per-
eixo um embate com a representação. Nes- sonagens, Hamm, Clov, Nell e Nagg, sendo que
se sentido ele dialoga com dadaístas e esses dois últimos são incapacitados de andar ou
surrealistas, mas também com outros cria- de agir na vida e, de alguma forma, sentem-se
dores do teatro no século 20 que tiveram responsáveis pela condição em que se encon-
a crise da representação como um ponto de par- tram naquele momento. Somente Hamm e
tida, como é o caso de Beckett. Eu desconheço Clov é que tentam lidar com aquela realidade
qualquer menção de Kantor em seus escritos a que vêem lá fora, e, como sabemos, lá fora não
Beckett. Ele conhecia bem o teatro de Beckett? há nada, é cinza. Este é Beckett. Não há pro-
Se conhecesse, seu silêncio a respeito seria es- gresso linear em Beckett. Da mesma forma
tratégico? Como você relacionaria o trabalho como para as pessoas na situação do pós-guerra
dos dois? que não podiam ver progresso na história.
Michael Kobialka: Esta é uma questão Como podemos falar sobre progresso, que foi
muito complexa. Eu penso que nós poderíamos tão precisamente descrito por Kant em “O que
estabelecer a relação entre Kantor, Beckett e é o Iluminismo”, ou por Hegel, na teses histó-
outros artistas a partir da questão de como nós ricas na década de 20 do século XIX, se o proje-
afirmamos a realidade, da questão de como a to do racionalismo iluminista terminou como
realidade pode ser representada. O fato de Kan- terminou a II Guerra Mundial. Eu penso que
tor não fazer muitas referências a Beckett não Beckett, e ao mesmo tempo Kantor, se recusam
implica que ele desconhecesse Beckett, mas que, a lidar com a História como um movimento
se ambos tratavam dos mesmos temas, os mate- progressivo, como um desenvolvimento em re-
rializavam de formas distintas. Eu penso que lação a algum tipo de final positivo. Não há tal
para Beckett, escrevendo nos anos 50 depois da final no horizonte. Só há esse momento em que
II Guerra Mundial, a questão era o que signifi- eles estão tentando estabelecer como existir, de
cava representar, ou como representar a expe- modo que a mente humana possa se dignificar
riência da realidade que nos rodeia. Recordemos depois de Auchwitz. Kantor e Beckett colocam

Michal Kobialka é professor da Universidade de Minessota. Esta entrevista foi concedida durante se-
minário internacional realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da USP, em julho
de 2005. A entrevista foi traduzida e editada por Luiz Fernando Ramos.

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no palco o mesmo problema, mas eles o mate- fronta com a pintura completa. Quer dizer, to-
rializam de modos completamente diferentes. dos aqueles objetos utilizados no atelier e que
Beckett com sua economia de linguagem, são marginalizados frente à obra de arte pronta.
Kantor com seu desejo de expressar como os Eu penso que nesse momento da jornada artís-
objetos podem ser pensáveis e identificáveis, e tica de Kantor a idéia de um processo se torna
como seria possível não reduzi-los simplesmen- muito mais significativa do que a idéia do pro-
te a utilitários. Eu acredito que há todo um es- duto final. Ele opera dentro de uma cultura que
pectro de pessoas, uma gama de autores, pinto- só dá credibilidade ao produto final, que pode
res e filósofos que estão se colocando a mesma ser vendido, ou trocado. Nas Lições de Milão,
questão. E a questão é: o que significa represen- particularmente a décima segunda, Kantor fala
tar quando o projeto iluminista fracassou. sobre o mercado dos museus, o mercado das ga-
Como pode ser recordado, é Camus quem con- lerias, e de como os museus e galerias dão visibi-
tinuamente fala da necessidade de um auto-exa- lidade aos artistas. Em conseqüência disso, para
me na cultura ocidental. Se você ler as teses de que um artista visual obtenha reconhecimento
Hegel sobre a História, a civilização ocidental é necessário que ele, ou ela, participe da glo-
pressupõe o desenvolvimento do espírito até o balização da imagem, de modo que em São
nível mais avançado implicando na superação Paulo, Minneapolis ou Varsóvia as pessoas pos-
de um estágio primitivo das sociedades. Este era sam reconhecer aquela imagem. Num certo sen-
Hegel nos anos 20 do século XIX. Mas o que tido é um show ambulante. Kantor está, pois,
está acontecendo agora, politicamente, no pós- ali chamando nossa atenção para o processo,
guerra? É, exatamente, o mesmo processo. E é isto nos anos sessenta, quando havia também o
esse projeto que Beckett e Kantor se recusam a Living Theatre, o Open Theatre e o Performan-
subscrever. Eles percebem, e querem nos fazer ce Group, nos Estados Unidos, e outros tantos
perceber, que se pode questionar a fé cega no grupos em todo mundo interessados no proces-
progresso. Isto, num certo sentido, é o que nos so, porque era ali onde as descobertas estavam
é introduzido depois de 1968, na condição pós- acontecendo. Não acho que esteja dizendo nada
moderna, na filosofia de Derrida, Foucault, novo sobre isso, mas Kantor, nesse momento,
Deleuze, Guattari, Michel de Certau, todos estava muito ligado a um contínuo processo de
engajados em um questionamento sistemático investigação na criação da obra de arte. Então
do mito progressista do modernismo. Para resu- ele mudou, e começou a mudar lidando com
mir, eu penso que Kantor e Beckett, modernis- A Classe Morta e Wielopole,Wielopole. Contudo,
tas por excelência, realizaram um programa éti- e isso é um aspecto interessante, A Classe Morta
co que o modernismo não acessava porque não era supostamente uma obra de arte que estava
havia as condições políticas que o requeressem. continuamente se modificando. Depois de mil
Sala Preta: Kantor disse uma vez que os apresentações Kantor decidiu que não iria mais
ensaios são a parte mais relevante do teatro, e mostrar o espetáculo, porque algo que era pres-
só eles deveriam permanecer, mesmo quando suposto ser apenas um processo tinha se torna-
não são bem-sucedidos, cheios de defeitos e ne- do uma obra arte completa. Há, então, um mo-
cessitando de muitas correções, porque seriam mento na trajetória do trabalho de Kantor em
a única arte verdadeira. Você poderia comentar que A Classe Morta deixa de ser apresentada pois
essa afirmação? passa a ser percebida como uma obra de arte
Michael Kobialka: Em 1963 Kantor apre- concluída. Assim, o único modo de Kantor
sentou o que ele chamou de Exposição Popular. manter o frescor em torno de A Classe Morta
Em vez de apresentar obras de arte completas era esquecer daquele espetáculo.
Kantor apresentou 963 objetos, que normal- Sala Preta: Mas ela foi reencenada em
mente não são mostrados quando você se de- Nova Iorque em 1991, não foi?

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Michael Kobialka: Isto foi depois da mor- mo quando a produção estava completa Kantor
te de Kantor, e curiosamente aquela montagem acrescentava novos elementos à partitura. Ou
tinha doze minutos a mais do que a original, realizava um desenho que era necessário a uma
porque sem Kantor no palco tudo ficou mais produção realizada vinte anos antes. Por isso te-
solto. O tempo no teatro de Kantor é crucial. mos que ser muito cuidadosos quando vamos
Os atores não tinham um ponto de referência. datar os desenhos e os textos de Kantor. Ele pre-
Sala Preta: Os textos de Kantor publica- cisava de desenhos para a produção de O Retor-
dos são muito peculiares, pois têm as falas, as no de Odisseu, de 1944, e alguns desses desenhos
rubricas e seus próprios comentários sobre a só foram efetivamente realizados em 1980. Isto
encenação. O que você poderia dizer a respeito. nos leva a pensar em um tempo total, signifi-
Michael Kobialka: Existe uma relação es- cando que o que aconteceu em 44 reaparece
treita entre todos os elementos do processo cria- para Kantor em 1988, quando estava trabalhan-
tivo de Kantor. Se você pensa sobre suas produ- do em Eu que não deveria voltar jamais, e aque-
ções, seus ensaios, seus desenhos, suas pinturas les textos retomavam o que ele pensava mais de
e suas notas, não como elementos separados, quarenta anos antes. Na peça Kantor encontra
mas como modalidades singulares de uma sen- Odisseu, senta com ele na mesma mesa e lê de
da artística, você percebe interconexões entre seu caderno de direção, que tinha sido criado
todos eles. Quer dizer, seus textos estão estrita- em 1944. Mas aquelas palavras soam agora de
mente conectados com seu pensamento, este uma forma totalmente diferente. Há comentá-
com sua pintura e esta com as imagens de suas rios, desenhos de cena, a linguagem da poesia.
encenações. Articulados, eles criam uma rede O processo do pensamento não possui um tem-
extremamente sofisticada de interdependências. po rígido, a consciência não conhece o tempo,
Qualquer texto de Kantor oferece um olhar e se você pode pensar sobre isso como uma in-
acurado sobre o passado, o presente e o futuro. fatigável e contínua investigação além dos con-
Algumas vezes Kantor escrevia o que chamava fins do tempo e do espaço, essa será minha res-
uma “partitura”, que eram as notas sobre a pro- posta. É difícil. Como Kantor disse em 1990,
dução, sobre o que ele estava pensando, sobre o em um de seus diários mais íntimos, “talvez
que o estava observando. Então ele ia para o en- quando eu morrer eu pare de pensar”. Parece-
saio e iria escrever que tudo que ele tinha escri- me que essa modalidade, o pensamento, é sem-
to na noite anterior não fazia nenhum sentido pre extremamente dinâmica. Todos nós sabe-
no espaço da cena. O que acontecia no espaço mos apreciar um repouso. Para ele não havia
da cena era também registrado por Kantor du- repouso. Portanto, tudo aquilo que estava acon-
rante o processo de ensaio e é possível perceber tecendo, pinturas, desenhos, escritos e produ-
a tensão entre aqueles dois textos diferentes. Si- ções, eram a materialização da mesma obses-
multaneamente, há um comentário permanen- são de pensamento. Um pensamento que nun-
te, porque um ator provoca um pensamento em ca repousava.
Kantor, que será registrado em pedaço de papel Sala Preta: Uma das características do tea-
ou expresso numa pintura, ou numa peça em tro de Kantor é associar de forma estreita as di-
que ele está trabalhando. É uma idéia de mensões ética e estética. Como você analisa es-
Gesamtkunswerk (obra de arte total) num modo tes aspectos?
muito particular, pois você não pode separar Michael Kobialka: No fim das Lições de
aqueles elementos, sendo eles todos interdepen- Milão, Kantor diz: “Lembrem de tudo e esque-
dentes, no sentido que eles materializam o pen- çam de tudo”. E eu penso que esta afirmação
samento de Kantor de maneiras diferentes, mas descreve o paradoxo que define o teatro de
dentro de todo um espectro de possibilidades. Kantor. Kantor entende a ética como a idéia da
Esta é uma razão porque, freqüentemente, mes- nomeação do vazio. O vazio é aquilo que não

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tem um modo preciso de ser descrito, ou esca- to rapidamente elas começam a reconstruir, pri-
pa do nosso campo de apreensão da realidade. meiro os eventos bíblicos, o mundo transcen-
Kantor não está interessado necessariamente na dental, depois as rotinas diárias e finalmente os
mimese oficial, no modo oficial de representa- eventos históricos. E essa reconstrução do mun-
ção da realidade. Mas ele está muito interessa- do terminará gerando um novo desastre. E co-
do naqueles elementos que escapam daquela meçamos de novo. Kantor permanece colocan-
realidade oficial. Nós chamamos isto de nada, do a questão sobre quantas vezes vamos ter que
de vazio, alguma coisa que não pode ser vista. fazer para finalmente nos dar conta do que é
Para Kantor este nada, ou vazio, é o que ele quer que estamos fazendo. E para mim esta é a ética
investigar, porque mesmo se esta busca for inú- do que eu chamaria de teatro político. Quer di-
til, para ele aquele vazio está precisamente libe- zer, quantas vezes nós temos que ver um geno-
rado das constrições da realidade presumida. A cídio para entender um genocídio. E isso é exa-
realidade é o que nós somos autorizados a pen- tamente o que Kantor está indicando. Giorgio
sar sobre ela, a linguagem que nós temos para Agamben, comentando os acontecimento da
descrevê-la. O que ele quer fazer? Ele quer per- Auschwitz fez uma bela colocação: “É hipócrita
turbar essas legitimações, que descrevem a emer- se perguntar como Auschwitz pode acontecer.
gência da realidade, nomeando o vazio. Nesse Como Ruanda pode acontecer. Nossa respon-
sentido o nomear o vazio é a ética de Kantor, sabilidade é perguntar quais são as condições
de descrever como os elementos estabelecem que nós criamos que permitem que esses acon-
suas individualidades, estabelecem suas caracte- tecimentos continuem se repetindo”.1 E este é
rísticas, não por conta do valor de uso alocado o teatro de Kantor. Ele fala sobre as condições
sobre eles pela sociedade e pela cultura, mas pe- existentes que permitem que esses acontecimen-
las relações que estão sendo estabelecidas entre tos se dêem sem desafiar os próprios atos que
determinados elementos em um espaço deter- levas esses fatos a acontecerem. Para mim este é
minado. É só quando você se engaja neste pro- o aspecto ético da investigação de Kantor. Não
cesso que você pode realmente desafiar os mi- como isso pode acontecer, mas quais as condi-
tos que nos rodeiam. Há uma razão porque no ções que estão sendo perpetuadas, que nós con-
teatro de Kantor nós estamos continuamente tinuamos mantendo e nos fazem caminhar ao
lidando com a repetição: as coisas são repetidas, encontro de um novo desastre.
os mortos voltam à vida, as situações são recria- Sala Preta: Não lhe parece que a memó-
das de novo, não porque ele quer preencher o ria em Kantor é uma antimemória, ou uma
tempo em suas produções, mas porque, como antimemória no sentido platônico, não como
ele diz, talvez essa repetição finalmente nos per- reminiscência do que já se sabia mas como apre-
mita ver aquele evento como se fosse pela pri- sentação de uma nova realidade. Como você vê
meira vez, de modo que nós possamos mudá- essa questão da memória em Kantor?
lo. O movimento circular não é circular, porque Michael Kobialka: Se eu tivesse que utili-
toda vez que ele se repete, talvez, haja um novo zar Platão para discutir a memória, ou mesmo
aspecto que está sendo trazido à atenção. Há um Santo Agostinho, qualquer um dos dois, seja
buraco, para ele. Em Noite Silenciosa, uma com a idéia das sombras ou das impressões, isto
cricotage de 1990, Kantor mostra o mundo de- significaria o processo de recuperar certos acon-
pois de uma catástrofe e indica que quando as tecimentos ou pessoas à consciência. Você deve
pessoas voltam à vida, como no seu teatro, mui- recordar a história de Simonides, com quem a

1 AGAMBEN, Giorgio, Remnants of Auschwitz: The Witness and The Archive. Trad. de Daniel Helle-
Roazen. New York: Zone Books, 1999.

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arte da memória nasceu. Depois de ir a um Ban- o contrário, quer dizer, o que está encoberto
quete, e retirar-se, a edificação onde estivera para que esta memória se faça visível. Assim
vem abaixo e todos os presentes são soterrados Kantor quer lembrar mentalmente e mostrar no
a ponto de ficarem irreconhecíveis. Simonides palco aquilo que a memória encobre e apaga da
é chamado para ajudar os parente a identificar vista. Esta é uma das razões porque ele é obce-
os cadáveres. Reconstituindo de memória o lu- cado com a idéia de que criar memórias é um
gar em que cada um dos presentes encontrava- processo dinâmico que nunca se estabiliza. Um
se sentado, Simonides foi capaz de identificar processo que está continuamente sendo exibi-
os mortos. A idéia de relembrar mentalmente do, como ele faz em A Classe Morta, em que é
algo que aconteceu é uma idéia que obviamen- necessário se certificar de que nossas memórias
te coloca os mortos, ou o passado, ao longo de do passado nunca estarão completas, mas que
um tipo de itinerário que dá a essa memória, serão sempre perturbadas por algo que nos que-
algo que é efêmero, uma presença. Dando pre- remos pôr de lado, para que possamos esquecer
sença a algo que é efêmero, nós o fixamos e o pois não são convenientes. Assim em A Classe
estabilizamos, transformando-o numa memória Morta, as memórias dos dias de escola pode-
morta. Num certo sentido, relembrar mental- riam, no fim, ser fonte de prazer. Mas o que ele
mente é o momento de destruir as memórias, faz ali, trazendo para dentro daquelas memóri-
porque nós só lembramos do que pode ser ex- as personagens como o do soldado da primeira
presso de uma maneira particular. Você é quem guerra mundial, é impedir que as memórias
dá visibilidade aos mortos. Esta é uma metáfora criadas pelos velhos se completem. Então é um
utilizada por Michel De Certeau em The Writ- processo de perfuração das memórias, de deses-
ting of History 2 para falar de como nós os histo- tabilização delas. É um processo de fazer brotar
riadores forçamos os corpos mortos a falar nos- uma memória e em seguida deixar que ela
sa língua. É só fazendo-os falar nossa língua que colapse. Mas é uma imagem que nunca se com-
os mortos ou as memórias se tornam visíveis a pleta. O mesmo é verdade para suas memórias
nós. Nesse sentido as memórias não são memó- da segunda guerra mundial e de sua família. A
rias, mas só mortos que nós não conseguimos questão é como lidamos com a memória. En-
entender. Eu penso que Kantor está muito cons- tão isso nos permite entrar em regiões que são
ciente disso, e ele está desafiando a autoridade autônomas, em vez de eu dar a esta memória
de quem está recordando. O que eu recordo, uma linguagem, de modo que os mortos sejam
como eu recordo. É sempre um ato ético e polí- os mesmos que eu sou. Em um de seus ensaios
tico. A memória das nações. Eu posso pensar Kantor diz que a memória é como a realidade.
na situação na Polônia, e de como os mitos na- Se eles são ambos iguais então é precisamente
cionais poloneses são lembrados. Eu posso pen- com a tensão entre eles que Platão não pode li-
sar em qualquer outro país do mundo e de dar, que Santo Agostinho não pode lidar. Con-
como as memórias nacionais são usadas para tudo, a existência destes universos paralelos é
justificar as expansões territoriais, a erradicação exatamente o momento em que o teatro se tor-
de grupos minoritários etc. Está sempre acon- na um lugar de transição, de um mundo para o
tecendo e veio acontecendo ao longo dos sécu- outro. Assim a memória é tão real como qual-
los. Eu penso que esta é uma das razões porque quer outra coisa.
Kantor não quer subscrever este tipo de mne- Sala Preta: Seria possível dizer que Kan-
motécnica, ou a técnica da memória, sugerindo tor, de um ponto de vista estrito nunca foi esté-

2 DE CERTEAU, Michel. The Writing of History. New York: Columbia University Press, 1988.

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tico, se tomarmos a idéia kantiana da estética teatro todos os elementos desnecessários para
de uma recepção desinteressada. que a representação ocorra. Eis porque o cená-
Michael Kobialka: Certamente. Não há rio, o figurino e a luz são reduzidos e o palco
possibilidade de não ser parte interessada. Se eu fica vazio. Grotowski está muito consciente que
digo que para mim a função do teatro é respon- nesse processo de limpeza, o que está sendo re-
der à realidade isto define completamente mi- visto é o elemento mais poderoso do teatro que
nha atitude frente a esta realidade. Não há ou- é o movimento do corpo no espaço. Em vez de
tro modo de pensar isso. Assim desinteresse não cobri-lo com figurino, maquiagem e luz, deixe-
existe para Kantor, é impossível. Estar desinte- me mostrar a vocês a força deste corpo se movi-
ressado, eu acredito, para ele significaria estar mentando no palco. Este é o teatro pobre de
morto ou não existir. Não há jeito, para Kantor, Grotowski. Para Kantor, está conectado com o
de não se estar envolvido com a realidade. O fato de que quando ele está trabalhando com O
que é interessante é que em 1952, antes do es- Retorno de Odisseu, em 1944, a bestialidade da
tabelecimento de Cricot 2, Kantor participou guerra força-o a desafiar todas as convenções as-
ativamente de discussões na Polônia sobre o fu- sociadas à civilização que levou àqueles eventos.
turo da arte polonesa. Este era o tempo do rea- É a idéia de que uma nova realidade requer uma
lismo socialista, e o aspecto interessante desta nova linguagem. Se eu uso a mesma linguagem
discussão era que, até um certo ponto, o que aquela realidade continuará operando. Se, con-
Kantor propunha como arte poderia ser visto tudo, aquela realidade é o que estou desafiando
no âmbito da estética do realismo socialista, li- eu preciso encontrar uma nova linguagem para
dando com a realidade. Contudo, ele esteve em descrever o que acontece. No teatro de Kantor
diversas reuniões em que brigou pela autono- durante a guerra encenar uma peça em um tea-
mia dos artistas explorarem uma realidade con- tro era participar da procriação ou perpetuação
creta, em vez de subscrever uma certa apropria- da convenção tradicional. Essa é uma das razões
ção temática daquela realidade. Assim, ele porque ele não pode fazê-lo, além do fato que
sempre esteve engajado na tarefa de lidar e per- qualquer atividade artística na Polônia à época
turbar aquela realidade em que ele se percebia. era punida com a pena de morte pelos nazistas.
E eu penso que este é precisamente o aspecto Assim o único lugar em que ele podia fazê-lo
de seu teatro que julgo extremamente impor- era um lugar que estivesse fora da situação ofi-
tante tocar. Quer dizer, Kantor está sempre li- cial e normativa. E esse era um lugar que não
dando com o encontro com algo externo que o mais pertencia à civilização. Estava dentro dela,
faz pensar, com o encontro com o outro, e se mas tinha sido destruído pela civilização e se
força não a colonizar o outro, mas a se auto- tornado inútil, sendo excluído da norma. Eis
examinar e a examinar suas relações com aquele porque Kantor vai utilizar este quarto (nos es-
outro. Esta prática teratológica é uma prática combros de um prédio bombardeado). O mes-
radical e sempre dinâmica.que, eu sugiro, inte- mo se aplica aos atores que entravam nesse es-
gra tanto sua ética como sua estética. paço. Na Polônia, um ser humano estar vivo era
Sala Preta: E sobre a relação entre Kantor um transtorno. Supunha-se que você estivesse
e Grotowski? morto. Se você ainda não está morto eu o que-
Michael Kobialka: Muito resumidamen- ro morto. O aniquilamento da Polônia, um país
te. A confusão que ocorre freqüentemente é que com maioria de judeus, era um objetivo claro.
os dois fazem referência a um Teatro Pobre. Essa Portanto a ação de um ser humano neste quar-
palavra pobre, esse adjetivo significa um modo to era um ato fora da norma. O mesmo é ver-
de lidar com o teatro e é precisamente aí que dade para o que os atores traziam. Não são mais
está a diferença. Para Grotowski o teatro pobre adereços, são objetos inúteis, destruídos pela
refere-se a estabelecer um processo que retira do guerra. Portanto nesse sentido o teatro de Kan-

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tor é também um teatro pobre, mas não no sen- Michael Kobialka: Exatamente. Eu penso
tido de Grotowski. As bases são completamen- que para Kantor a idéia de uma memória cole-
te diferentes. Por exemplo, não há metodologia tiva é algo que deve ser perturbado. Em um de
no teatro de Kantor. Grotowski deixa um mé- seus ensaios sobre sua trajetória pessoal ele diz
todo, uma série de exercícios que podem ser ter sempre estado contra os movimentos de
usados pelos atores para criar um resultado mui- massa, contra as ideologias de massa. E não era
to particular. Uma vez que Kantor está morto, só porque ele não acreditava em alguma ideolo-
o seu teatro desaparece. Não há um método gia particular, mas porque ele está muito cons-
Kantor. Há atores que entendem o que Kantor ciente de como ideologia podem resultar em
fez e criam espetáculos, mas são espetáculos que burocracias. Ele é radicalmente contra o socialis-
lidam mais com as individualidades de seus mo burocrático. Nesse sentido, o que ele está
agentes do que com um método de atuação. querendo propor é que uma necessária condição
Ambos criaram estruturas teatrais muito autô- para manter a autonomia do artista, e não esta-
nomas e heterogêneas. Ambos que criaram tea- mos falando da idéia romântica de artista como
tros pobres, mas as respectivas pobrezas são as- um criador messiânico, é a sua vida individual
sociadas a condições materiais, físicas, éticas e que desafia o que parece relevante a esses movi-
estéticas completamente diferentes. mentos de massa. Então esse é o poder, a força
Sala Preta: E como era a relação entre os e a condição necessária. Na produção de Noite
dois? Eles se conheciam? Silenciosa, Kantor confrontou a memória cole-
Michael Kobialka: Sim eles se conheciam. tiva da Polônia com a tendência do país a esque-
Grotowski ia aos espetáculos de Kantor. Não cer-se de tudo. Naquela época não havia a pos-
estou certo de que Kantor fosse aos espetáculos sibilidade de se admitir a existência de minorias
de Grotowski.. Grotowski era mais moço. Há na Polônia, e por um longo tempo sustentou-se
muitas histórias sobre os dois. A relação era a idéia de que se tratava de um país homogê-
muito complexa. Eu penso que o mais interes- neo. Não havia minorias. Kantor diz: “Descul-
sante é que eles eram tão diferentes que não che- pem-me, isto tem que ser perturbado”. Assim,
gava a haver uma competição entre eles. Havia a memória coletiva não significa necessaria-
um reconhecimento mútuo nos termos da arte mente uma memória que tem que ser perpetu-
do teatro e da teatralidade. Mas eu não acredito ada, mas uma memória que foi construída atra-
que jamais pudessem trabalhar juntos. Eu não vés da ideologia de massa. Não me compreenda
posso imaginar isto e essa impossibilidade é o mal, mas penso que ele empreende um esforço
melhor retrato dessa relação. Mas sim, eles se contínuo para torcer, enrugar, algo que vai se
encontravam. Depois da morte de Kantor e da tornando uma superfície lisa. Ele está, nessa
morte de Grotowski houve algumas tentativas, medida, encenando uma greve na casa da histó-
da parte de pesquisadores de seus respectivos ria. Ainda que a história possa ser vista como
centros de documentação, de fazer alguma coi- em progressão, nessa casa ele está encenando
sa juntos, tentando estabelecer, na forma de uma greve. Ele não sairá, ele não vai se satisfazer.
uma investigação dos arquivos, a significação de Essa é uma condição necessária para ele.
suas práticas teatrais. Sala Preta: Como você relacionaria o
Sala Preta: Você mencionou a repeti- teatro de Kantor com a tradição simbolista e
ção como uma tentativa de evitar que se perpe- com as idéias de Maeterlink de um teatro de
tue o desastre, na idéia da história como me- andróides?
mória coletiva. Você fala sobre memória e pa- Michael Kobialka: No Manifesto do Tea-
rece que você está falando numa memória que tro da Morte, Kantor escreve bastante sobre
se perpetua e na linguagem como uma catego- Craig e sua idéia de que precisamos nos livrar
ria avassaladora. dos atores porque eles destroem o teatro. Essa

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seria uma das razões pela qual, no teatro de audiência assiste a um happening, participa dele
Craig, a marionete substitui o ator, e o mesmo como se aquela apresentação lhe propiciasse
é verdade para os simbolistas e sua idéia de des- criar uma ilusão de ação. Ele dizia: o happening
teatralização, do pressuposto de querer mostrar no começo provocava um choque na audiên-
o que se pode pensar mais do que as emoções cia, até que se tornasse um modismo e se tor-
do ator. Nos dramas de Maeterlink e de Yeats a nasse previsível. Pense em Dionísio 69 e no
idéia é: deixe-me mostrar no palco o que você Living Theatre. No começo chocava o público,
pensa. Mas este pensamento só pode ser mos- mas depois se tornou tão óbvio que o público
trado numa perspectiva antiteatral. Lembre-se já ia ao teatro preparado para participar de algo
que o palco simbolista é sombreado, os atores pouco usual. Assim aquela participação que pre-
se movem pouco e só há as palavras que são di- tendia, no início, chocar tornava-se uma parti-
tas, evocativas de imagens que, se supõe, serão cipação no ato estético. Então o que seria possí-
despertadas no espectador. Uma marionete é, vel fazer para perturbar isso? A resposta foi a
pois, um elemento perfeito para desteatralizar a noção do Teatro da Morte, em 1975. Separava-
cena. Kantor até um certo ponto concorda com se a audiência dos atores criando a “barreira
esse projeto, com essa idéia. Contudo, ele indi- intransponível”. Portanto, a marionete, ou o
ca que essa tentativa de nos afastar da tradição manequim, no teatro de Kantor, naquele mo-
teatral se realiza de maneiras diferentes, em dife- mento, é a imagem que de algum modo nos é
rentes momentos da história. Marcel Duchamp familiar, mas, ao mesmo tempo, é estranhamen-
e Dada, por exemplo, também tentaram des- te diferente e separada, em oposição ao teatro
teatralizar o espaço tradicional introduzindo a tradicional em que o ator é uma extensão da
realidade do “ready-made”, uma realidade que pessoa sentada no auditório, interpretando as
estava despida de ilusão. Em uma das seções do personagens de uma peça, que é uma imitação
manifesto do Teatro da Morte, Kantor afirma da vida. Para ele há a barreira instransponível.
que o problema do ator não é que ele se movi- Enquanto o público quer se ver refletido na
menta no palco, ou que sente emoções, mas que cena, Kantor está negando-lhe este conforto,
o ator, de alguma forma, perpetua aquele en- tentando chocá-lo. Não há satisfação instantâ-
tendimento particular do teatro. Assim, qual- nea garantida. Assim, colaboram na sua idéia de
quer coisa que possa perturbar aquela compre- utilizar a marionete, a referência de Craig, bem
ensão do teatro, entendido como um processo como sua insatisfação com os happenings, mas
de ilusão, e desteatralize a ilusão, terá significa- Kantor está também muito consciente da tra-
ção para Kantor. Seja uma marionete como no dição simbolista. Ele encenou, em 1938, A Mor-
caso de Craig, ou objetos encontrados – “ready- te de Tintagiles, de Maeterlink, e voltou à peça
made”, como em Duchamp. São ambos proces- em 1988, com o espetáculo A Máquina do Amor
sos de destruição da ilusão. Mesmo assim, ele e da Morte, um espetáculo maravilhoso. Nele
salienta, esse processo de introduzir uma “reali- usava as marionetes de uma maneira constru-
dade pronta” como forma de desteatralizar a ilu- tivista. Inclusive, nos anos trinta tinha criado
são que supostamente é criada pelo ator, de al- um teatro de bonecos, porque era fascinado pela
guma maneira fracassou. De fato, quando uma tradição simbolista que conhecia muito bem.

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