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ESAD.CR/IPL
2010
Índice
1 Introdução
(contemporânea).
4 Bibliografia
1 Introdução
1
Entre o classicismo mimético, o progresso modernista e a fractalidade da arte contemporânea
vão se comtaminando e intercruzando palavras: pós-moderno; pós-contemporâneo; alter-
moderno; neo-formalismo; pós-pictórico; etc. Usamos as palavras e preguiçamos na sua
definição, construimos um texto como quem constroí uma prateleira que deve ser grandiosa
pois o que ela vai suportar assim o merece, mas colocamos o frasco com a etiqueta no seu topo
e desconhecemos que coisas cabem no seu interior.
2
Nathalie Heinich – “Para acabar de vez com a querela da arte contemporânea”in revista Marte
nº2 – A legitimação na arte, Lisboa, Ed.Associação de estudanstes da FBAUL, 2006, p.?.
território onde tudo é permitido, mas tudo é permitido apenas ao artista. Ainda
artistas não somos e já nos perdemos num mundo onde o infinito e a
desregulação iludem e escondem como biombos a possibilidade de um caminho.
Os que persistem acabam por encontrar algo a que podemos chamar um
caminho, mas em breve compreendem que o próprio caminho parece estar
assente num território sem fundações que constantemente se move e cuja
deslocação aumenta na proporção directa do caminho percorrido. Percorre-se o
caminho na certeza de que é a coisa certa a fazer, quando na verdade o que
importa é definir o território sobre o qual essa estrada está assente.
É a paisagem que se vê do caminho que importa criar, até finalmente
emprestarmos ordem a um universo desprovido de estruturas e hierarquias,
ordem essa que será exclusiva e da autoria daquele que o percorre. Esta é a obra,
este é o trabalho – criar a paisagem para o caminho (e construir miradouros para
os que seguem).
Os textos que se seguem devem ser miradouros (mais rigoroso que a expressão
que “pontos de vista) para o trabalho (que será a paisagem, sendo o caminho o
espaço e tempo de vida do artista) . Tal como a vista de um miradouro é um lugar
específico de observação de um mundo que se dá e se oferece como infinito, esta
visão construída pelo miradouro implica a acção e a deslocação dos que a ele
querem aceder.
Importa agora iniciar o lançamento de palavras que procuram formular intuições e
tactear uma forma de nomear este processo, como que setas lançadas a um alvo
desconhecido, para que a paisagem se cumpra e a obra possa ganhar o seu
caminho.
2 Algumas notas sobre a origem da arte
Arte com um deus ausente portanto, mas na qual sobra um homem, um homem
que é aqui o resto de um deus, a areia da praia que sobrou da erosão ocidental da
montanha. Podemos, pela arte (haverá outras formas?), adivinhar a montanha
que existia mas também a força que a destruiu, olhamos a areia e
compreendemos o poder tectónico que terá formado a montanha, o seu tamanho,
a força do vento que a vai erodindo. Com os pés assentes na areia quente
agradecemos a areia, lembrando-nos da passagem do Mito de Sísifo de Abert
Camus: “Concluí que tudo está bem.” diz Édipo, e essa afirmação é sagrada. Ecoa
no universo selvagem e limitado do Homem. Ensina que a totalidade não é, nunca
foi, esgotável. Conduz para fora deste mundo um deus que chegou a ele
insatisfeito e com uma preferência por sofrimentos fúteis. Transforma o destino
num assunto de homens e que deve ser resolvido entre homens.”” 6, não apenas o
destino mas também a arte.
É a arte que nos pode devolver a vertigem de ser homem: não acreditamos já
num deus, não acreditámos nos homens, não acreditamos no proletariado ou na
burguesia, nem na tecnologia, talvez reste ainda o homem que faz, que tenta
construir novas montanhas mas que talvez não produza senão a areia, matéria
remissiva da montanha tentada, areia que nos deixa adivinhar a pedra seminal,
areia esta já distante de deus, resto da montanha sagrada.
Não podemos já ser canais de algo superior, no entanto todo aquele o que já
5
Jean Genet - O estúdio de Alberto Giacometti, trad. por Paulo da Costa Domingos, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1999, p.28.
6
Albert Camus, - The Mith of Sysifus, Trad. De Justin O'Brien, Londres, Penguin Books, 2005,
trad para português minha.
experimentou um acto de criação sabe que há um momento onde estamos longe
da espuma dos dias, separados do plasma viscoso que abraça o quotidiano.
Estamos simultaneamente afastados de nós próprios e abrimos um momento de
lucidez, sentimos que fazemos algo que apenas nós podemos fazer e
encontramo-nos suspensos, sem fé nem medo, nessa solidão, “a nossa mais certa
glória”, da qual nos olha uma história sem actores, feita de homens sem nome e
na qual apreendemos a “solidão de todos os seres e de todas as coisas” 7,
tornando-nos conscientes do lugar dos nossos pés e do espaço que ocupamos. A
Arte aponta e ao apontar faz-nos ver: uma mão esticada, da qual seguimos a
trajectória do dedo em riste, para descobrirmos o que antes permanecia na
sombra e “revelar essa ferida secreta dos seres e das coisas” 8. Um lugar de
comunhão, que resiste à linguagem.
Reconhecemos algo, algo para o qual não possuímos uma palavra (caso a
possuíssemos, outra coisa reconheceríamos ou não necessitaríamos da arte). A
arte começa lá onde acaba a linguagem 9 e toda a linguagem ambiciona chegar
pela palavra ao que a arte segreda (sussurra, murmura, mostra….), sabendo, de
antemão, que nunca o encontrará. Tentamos levar o discurso ao limite (figuras de
estilo, novas escritas) na tentativa vã de dizer o que Lascaux ou o Grande Vidro
dão a ver. Mas a comunhão que ocorre à volta de um texto nunca será idêntica à
que tem lugar diante de uma obra de arte, dizemos uma palavra que tente ser o
que ela não pode fazer e escrevemos incontáveis páginas a tentar torná-la arte.
Mas no preciso momento em que a linguagem se torna útil toda a possibilidade de
nela haver arte desaparece e é próprio da linguagem no quotidiano estar ao
serviço; o seu material - as letras, as palavras - nasceram para servir e não são
passíveis de serem substituídas por outras, necessitam de uma forma específica
7
Jean Genet - O estúdio de Alberto Giacometti, trad. por Paulo da Costa Domingos, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1999 p. 27
8
Jean Genet - O estúdio de Alberto Giacometti, trad. por Paulo da Costa Domingos, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1999 p. 18
9
Tem aqui que ser feita aqui uma distinção entre as formas de criação como poesia e literatura
– que se distanciam do seu uso utilitário e tratam as palavras da mesma forma que um pintor
trata a tinta, que são usos artísticos e que estão excluídos da linguagem como mero utensílio.
para promoverem o entendimento. Na arte a forma renova-se a cada novo
objecto, a sua forma é esgrimida com os materiais que lhe dão a aparência
(grafite, pedra, tinta, luz, película…) e é através da manipulação destas matérias
que se abre o espaço para que a criação ocupe o seu lugar numa obra. Toda a
linguagem se encontra assente em regras, imutabilidades, contaminada pelo
utilitarismo; para que possa alguma vez ser o que a arte é ela terá de se despojar
de tudo o que faz dela mera comunicação, apropriação, manipulação (haveria
mais arte nos espaços entre as palavras ou no que resta ao
serem esquecidas ).
3 Algumas notas sobre a fotografia
10
Virgílio Ferreira - Aparição, Lisboa, Bertrand Editora, 1994, p.193.
simplesmente aparecendo, mostrando, expondo. Sabemos que não temos acesso
ao momento da fotografia, esse momento está separado de nós por ruptura
intransponível (irreversível, poderíamos mesmo dizer) entre a realidade material
que lhe dá origem e o momento em que olhamos essa superfície de papel
fotossensível. Ao termos acesso à fotografia vislumbramos esse momento por um
buraco da fechadura do espaço/tempo graças a essa sensibilidade fixada por uma
“luz desenhada” (uma das traduções possíveis de Photo+graphè, no grego) e a
uma matéria inscrita pela luz. É esta a operação pela qual permanecemos ligados
a esse instante.
Para um fotógrafo, encarar o assunto de uma fotografia como algo que importa
documentar significa que a fotografia será ditada em absoluto pela exterioridade
do fotografado, do que está diante si. Serão as qualidades que tornam esse
objecto nele próprio que devem ficar registadas. A fotografia-documento resolve-
se na compreensão que o fotógrafo tem de um objecto, na sua capacidade de
encontrar as suas qualidades e especificidades escolhendo o ponto de vista,
enquadramento, foco, que determinarão a justiça do documento. Na delimitação
deste espaço de captura está sempre pressuposto um mundo de sentido onde o
fotografado adquire a sua significação. Um mesmo objecto pode ser coisas
diversas e o fotógrafo pode escolher de entre um leque de possibilidades que
pode tornar actuantes.
15
Walter Benjamim - Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, trad. de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel
Alberto, Lisboa, Relógio d'Água Editores, 1992, p. 119.
16
Roland Barthes - A Câmara clara, trad. de Manuela Torres, Lisboa, Edições 70, 1989, p. 19.
Mesmo uma objectivação documental é sempre um encontro: o fotógrafo tenta
desaparecer da fotografia para que nela encontre lugar a restituição fiel desse
algo único que determina a essência de uma situação ou acontecimento, visando
uma hipotética transparência absoluta, abandonar toda a expressão enquanto
manifestação do fotógrafo e deixar que esse lugar seja ocupado pela impressão
de uma restrita fracção do mundo que “dê a ver” - “se aceitarmos entender aqui
este verbo como o exercício inteligente do olhar” 17. Este encontro implica uma
procura activa e consciente, mesmo quando possa ser um acto passivo de
descoberta ocasional. Nesse sentido afasta-se da ideia duchampiana de rendez-
vous: trata-se, neste caso, de um encontro iniciado por uma busca que cataliza
uma acção em direcção a um objecto.
O caminho que a fotografia teve que percorrer (e percorre ainda) para ser
reconhecida como arte tem sido semeado por debates e clivagens que redundam
sempre na mesma recorrência: haveria uma fotografia de fotógrafos e uma
fotografia de artistas. Continuamos ainda a distinguir entre fotógrafos e artistas
que usam a fotografia, mesmo dentro do universo de artistas consagrados,
podemos facilmente afirmar (ou melhor, a crítica continua a usar estas distinções,
altamente questionáveis, que apenas têm a ver com contextos de recepção) que
26
Nas palavras de André Bazin : "Pela primeira vez, entre o objecto originário e a sua reprodução no
espaço, apenas intervém a instrumentalidade de um agente não-vivo. Pela primeira vez uma
imagem do mundo é formada automaticamente, sem a intervenção criativa do homem. A
personalidade do fotógrafo introduz-se nos procedimentos de formação da imagem apenas na
selecção do objecto a ser fotografado e através do propósito que o anima. Apesar de o
resultado final poder reflectir algo da sua personalidade, não tem o mesmo papel que um
pintor. Todas as artes são baseadas na presença do homem, apenas a fotografia retira uma
vantagem da sua ausência. A fotografia afecta-nos como um fenómeno da natureza, como uma
flor ou um floco de neve cujas origens vegetais ou naturais são uma parte inseparável da sua
beleza." In What is cinema, trad de Hugh Gray, Berkeley and Los Angeles, University of
California Press, 2005, p.13, trad para português minha.
27
Jeff Wall - Selected Essays and interviews, Nova Iorque, The Museum of Modern Art, 2007,
p.144, trad. minha.
Andreas Gursky ou Nan Goldin serão fotógrafos e Fischl & Weiss ou Hamish Fulton
serão artistas que usam a fotografia. Ao realizarmos estas distinções estamos
também a distinguir a natureza que se deixou inscrever nos objectos fotográficos,
como se afirmássemos que na fotografia de fotógrafos, o trabalho é respeita a
neutralidade na captura do real e é uma pura imagem de conhecimento do
mundo e na fotografia de artistas, o trabalho é construído, manipulado. Não
concebemos chamar artista a alguém que aparenta ser apenas “aquele que deixa
passar a natureza”, que deixa que o real se inscreva naturalmente, que parece
ausentar-se da acção de criação e não ser o responsável pelo ganho de sentido
operado naquele objecto.
28
Jeff Wall, Selected essays and interviews, Nova Iorque, The Museum of Modern Art, 2007, p-
151 trad. minha.
Michael Fried no seu livro Why photography matters as art as never before 29 traça
este caminho da chegada ao universo da arte contemporânea de autores que não
usam apenas a fotografia como um suporte entre outros ou como registo
subsidiário de outros media, mas que pensam e agem dentro de questões que
emergem do processo fotográfico (interrogações que não são exclusivas das suas
obras e que podemos encontrar ao longo de toda a história da arte, mas que
estes autores representam de uma forma que só a fotografia pode colocar). Fried
coloca como marco a aderência da fotografia ao tableau, formalizada pela
impressão em grandes dimensões (a conquista do detalhe, que enquanto
fenómeno faz a sua aparição apenas no momento que a imagem adquire a sua
escala expositiva) e por terem sido realizadas para a parede da galeria ou do
museu. A fotografia separou-se do pequeno formato, das relações estabelecidas
com um espectador de cada vez que segura a imagem na sua mão e de uma
ideia de captação da realidade enquanto instantâneo (ou verdade).
29
Michael Fried – Why photography matters as art as never before, New Haven and London, Yale
University Press, 2008.
30
Michael Fried - Why photography matters as art as never before, New Haven and London, Yale University Press, 2008,
p. 2.
posição da fotografia e da imagem na arte contemporânea . Walter Benn Michaels
citado por Michael Fried sintetiza: “ a questão sobre a pintura – é uma pintura ou
é um objecto? - torna-se a questão da fotografia, não tanto por uma fotografia
poder ser tomada como sendo um objecto da fotografia de... mas por não poder
ser tomada como sendo uma imagem de um objecto do qual é a fotografia. Esta é
a questão... do fóssil31. Nós não experienciamos o fóssil como um trilobito, mas
também não o experienciamos como sendo a imagem de um trilobito. E se
pensarmos a fotografia segundo o modelo do fóssil não podemos ter como
garantido o seu estatuto como objecto artístico. “ 32. A discussão teórica promete
alongar-se nos próximos tempos, embora isso nunca vá impedir as fotografias de
serem arte (sejam elas de fotógrafos, de escultores, de pintores, de video-artistas,
de artistas conceptuais, sejam fotografias analógicas ou digitais). A questão é a
seguinte: a fotografia não é representação de um objecto, nem ela mesma um
objecto, não é nem um simples índice nem um puro símbolo, não é nem um
artefacto extra-artístico nem uma obra de arte, não é nem um acontecimento
congelado no tempo nem uma construção artificiosa do real, mas é a zona
instável onde estas divisões se tornam problemáticas e pensantes, onde estas
distinções estão em aberto e são permanentemente redistribuídas.
31
Esta comparação da fotografia ao fóssil é referente às palavras de Hiroshi Sugimoto na brochura History is History,
(New York, 2005), que acompanha a sua exposição com o mesmo título na Japan Society Gallery, New York, 2005-
2006.
32
Michael Fried - “Why photography matters as art as never before”,New Haven and London, Yale University Press,
2008, p. 336
4 Bilbiografia
Albert Camus - The Mith of Sysifus, Trad. De Justin O'Brien, Londres, Penguin
Books, 2005
André Bazin - What is cinema, trad de Hugh Gray, Berkeley and Los Angeles,
University of California Press, 2005
Charles S. Peirce - Collected papers of Charles Sanders Peirce, Vol III, Bellknap
press of Harvard University, 4th printing, 1974
Edgar Morin – O Homem e a Morte, trad. por João Guerreiro Boto e Adelino dos
Santos Rodrigues, Lisboa, Publicações Europa-América, 1988
Edgar Morin -O paradigma perdido: a natureza humana, trad. de Hermano Neves,
Lisboa, Publicações Europa-América, 1975
Jean Genet - O estúdio de Alberto Giacometti, trad. por Paulo da Costa Domingos,
Lisboa, Assírio e Alvim, 1999
Jeff Wall - Selected Essays and interviews, Nova Iorque, The Museum of Modern
Art, 2007
Michael Fried - Why Photography Matters as Art as Never Before, New Haven, Yale
University Press, 2008.
Pedro Miguel Frade - Figuras de Espanto – A fotografia antes da sua cultura,
Lisboa, Edições ASA, 1992
Roland Barthes - A Câmara clara, trad. de Manuela Torres, Lisboa, Edições 70,
1989
Susan Sontag - Ensaios sobre fotografia, trad. José Afonso Furtado, Lisboa, Pub.
Dom Quixote, 1986
Vilém Flusser - Ensaio sobre a fotografia – para uma filosofia da técnica, Lisboa,
Relógio d'água editores,1998
Virgílio Ferreira - Aparição, Lisboa, Bertrand Editora,1994
Walter Benjamin - Sobre Arte, técnica, linguagem e política - Trad. João Barrento,
Lisboa, Relógio d´Àgua, 1992.