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Sobre arte e fotografia

notas sobre uma relação


tensional

Rodrigo Tavarela Peixoto

tese de mestrado em Artes Plásticas


desenvolvida sob a orientação de Prof.Dr.
Rodrigo Silva

ESAD.CR/IPL
2010

Índice

1 Introdução

2 Algumas notas sobre a origem da arte

3 Algumas notas sobre a fotografia

3.1 Sobre a experiência da fotografia

3.2 Sobre a experiência da fotografia como arte

(contemporânea).

4 Bibliografia
1 Introdução

Vivemos tempos de múltiplos paradigmas 1 para a arte. Não se tratando


obviamente de uma ciência, apesar das tentativas que actualmente existem para
colar os termos – arte e ciência – a arte não é de todo o palco da exactidão, da
prova ou da obtenção de leis de carácter universal. Ainda assim nunca na sua
longa história foi a arte terá sido objecto de uma multiplicação de valores e
conceitos tão inflacionada como actualmente. Como refere Nathalie Heinich no
seu texto Para acabar de vez com a querela da arte contemporânea: “podemos
efectivamente distinguir três maneiras diferentes de conceber hoje a arte, três
maneiras igualmente praticadas, mas desigualmente valorizadas, segundo o tipo
de aculturação dos espectadores. Poderíamos dizer que se trata de três
“paradigmas” podemos ser clássicos e praticar uma arte que “assenta na
figuração, respeitando as regras académicas de representação do real”, podemos
ser modernos e crer que o que se exige a um artista é a “expressão da sua
interioridade” ou contemporâneos, abraçando o valor da transgressão de forma
absoluta, inclusivamente a “transgressão em segundo grau, em que são as
transgressões realizadas na arte contemporânea que são transgredidas” 2. Mas
todos vivemos sob o mesmo céu e cabemos no mesmo espaço. Artistas treinados
e educados no caos de referências do século XXI. Não há uma prática, uma forma,
um modo ou um valor que definam a obra de arte ou o artista. Por entre a
desmultiplicação de objectos, textos e obras, o estudante de arte que pretende
ser artista tenta encontrar o caminho, sabendo de antemão que deambula no

1
Entre o classicismo mimético, o progresso modernista e a fractalidade da arte contemporânea
vão se comtaminando e intercruzando palavras: pós-moderno; pós-contemporâneo; alter-
moderno; neo-formalismo; pós-pictórico; etc. Usamos as palavras e preguiçamos na sua
definição, construimos um texto como quem constroí uma prateleira que deve ser grandiosa
pois o que ela vai suportar assim o merece, mas colocamos o frasco com a etiqueta no seu topo
e desconhecemos que coisas cabem no seu interior.
2
Nathalie Heinich – “Para acabar de vez com a querela da arte contemporânea”in revista Marte
nº2 – A legitimação na arte, Lisboa, Ed.Associação de estudanstes da FBAUL, 2006, p.?.
território onde tudo é permitido, mas tudo é permitido apenas ao artista. Ainda
artistas não somos e já nos perdemos num mundo onde o infinito e a
desregulação iludem e escondem como biombos a possibilidade de um caminho.
Os que persistem acabam por encontrar algo a que podemos chamar um
caminho, mas em breve compreendem que o próprio caminho parece estar
assente num território sem fundações que constantemente se move e cuja
deslocação aumenta na proporção directa do caminho percorrido. Percorre-se o
caminho na certeza de que é a coisa certa a fazer, quando na verdade o que
importa é definir o território sobre o qual essa estrada está assente.
É a paisagem que se vê do caminho que importa criar, até finalmente
emprestarmos ordem a um universo desprovido de estruturas e hierarquias,
ordem essa que será exclusiva e da autoria daquele que o percorre. Esta é a obra,
este é o trabalho – criar a paisagem para o caminho (e construir miradouros para
os que seguem).
Os textos que se seguem devem ser miradouros (mais rigoroso que a expressão
que “pontos de vista) para o trabalho (que será a paisagem, sendo o caminho o
espaço e tempo de vida do artista) . Tal como a vista de um miradouro é um lugar
específico de observação de um mundo que se dá e se oferece como infinito, esta
visão construída pelo miradouro implica a acção e a deslocação dos que a ele
querem aceder.
Importa agora iniciar o lançamento de palavras que procuram formular intuições e
tactear uma forma de nomear este processo, como que setas lançadas a um alvo
desconhecido, para que a paisagem se cumpra e a obra possa ganhar o seu
caminho.
2 Algumas notas sobre a origem da arte

Não podemos desligar a arte de um gesto inaugural de dar sepultura . Esse


momento ancestral de nascimento do homem 3 através dos gestos que indicam
uma consciência da morte parece ter coincidido com a necessidade de criar - para
o corpo daquele que acaba de morrer - um lugar, uma construção, uma marca
que ocupasse o lugar daquele que acaba de desaparecer, que preserve uma
memória, que celebre um indivíduo, por vezes apenas conjunto de pedras que
espelhe uma memória dos vivos. É essa a qualidade de um gesto ou de uma
acção que transforma pedras em pessoas, que permite amar, matar e morrer pelo
cheiro de uma terra, falar com estrelas ou chorar árvores. Essa qualidade, que
vem “do fim dos tempos, do princípio de tudo”4. É esse ganho de sentido,
incarnado num gesto ou numa materialidade, que a arte continua a operar: uma
alteração de categoria, uma alteração de lugar no mundo dos homens que olham
(e que ainda não separam arte e religião). Será para essa alteração que
reservamos o nome “criação” ou nome “arte”.

Hoje a ausência de uma ligação ao transcendente separou a arte da religião. A


arte adquiriu novas aparências, novos meios, técnicas, tecnologias, matérias, mas
3
Como é dito por Edgar Morin: “Nas fronteiras da terra-de-ninguém onde se efectuou a
passagem do estado de “natureza” para o estado de homem, o passaporte de humanidade válido,
científico, racional e evidente, é o utensílio (...) Mas há um outro passaporte sentimental, que não
é objecto de qualquer metodologia, de qualquer classificação, de qualquer explicação, um
passaporte sem visto, mas que encerra uma comovedora revelação: a sepultura”. Edgar Morin –
O Homem e a Morte, trad. por João Guerreiro Boto e Adelino dos Santos Rodrigues, Lisboa,
Publicações Europa-América, 1988, p.23. Noutra passagem: “como nos revelou a sepultura, a
magia irrompe no sapiens” e “os fenómenos mágicos são potencialmente estéticos e os
fenómenos estéticos são potencialmente mágicos”, “ a irrupção da morte(...)é ao mesmo tempo a
irrupção de uma verdade e de uma ilusão, a irrupção de uma elucidação e de um mito, a irrupção
de uma ansiedade e de uma garantia, a irrupção de um conhecimento objectivo e de uma nova
subjectividade, e sobretudo, a ligação ambígua entre ambos.” Acrescentaríamos aqui a irrupção
da arte. Cf.Edgar Morin, O paradigma perdido: a natureza humana, trad. de Hermano Neves,
Lisboa, Publicações Europa-América, 1975, p. 96-98
4
Como diz Jean Genet sobre as estátuas de Alberto Giacometti. Jean Genet - O estúdio de
Alberto Giacometti, trad. por Paulo da Costa Domingos, Lisboa, Assírio e Alvim, 1999, p.19.
continua a romper os dias ordinários com uma vertigem de relíquia sem sagrado,
a fazer-nos olhar para um lugar no qual nada nos olha de volta que não nós
próprios. A arte constrói um espelho discriminante e aponta ou nomeia (como se
não houvesse ainda homens na terra), cada vez que acontece é um mundo que se
inaugura e um novo infinito que aparece: como escreve Genet, aí temos “experiência
não da continuidade mas sim da descontinuidade”, onde “cada objecto cria o seu espaço infinito” 5.

Arte com um deus ausente portanto, mas na qual sobra um homem, um homem
que é aqui o resto de um deus, a areia da praia que sobrou da erosão ocidental da
montanha. Podemos, pela arte (haverá outras formas?), adivinhar a montanha
que existia mas também a força que a destruiu, olhamos a areia e
compreendemos o poder tectónico que terá formado a montanha, o seu tamanho,
a força do vento que a vai erodindo. Com os pés assentes na areia quente
agradecemos a areia, lembrando-nos da passagem do Mito de Sísifo de Abert
Camus: “Concluí que tudo está bem.” diz Édipo, e essa afirmação é sagrada. Ecoa
no universo selvagem e limitado do Homem. Ensina que a totalidade não é, nunca
foi, esgotável. Conduz para fora deste mundo um deus que chegou a ele
insatisfeito e com uma preferência por sofrimentos fúteis. Transforma o destino
num assunto de homens e que deve ser resolvido entre homens.”” 6, não apenas o
destino mas também a arte.

É a arte que nos pode devolver a vertigem de ser homem: não acreditamos já
num deus, não acreditámos nos homens, não acreditamos no proletariado ou na
burguesia, nem na tecnologia, talvez reste ainda o homem que faz, que tenta
construir novas montanhas mas que talvez não produza senão a areia, matéria
remissiva da montanha tentada, areia que nos deixa adivinhar a pedra seminal,
areia esta já distante de deus, resto da montanha sagrada.

Não podemos já ser canais de algo superior, no entanto todo aquele o que já
5
Jean Genet - O estúdio de Alberto Giacometti, trad. por Paulo da Costa Domingos, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1999, p.28.
6
Albert Camus, - The Mith of Sysifus, Trad. De Justin O'Brien, Londres, Penguin Books, 2005,
trad para português minha.
experimentou um acto de criação sabe que há um momento onde estamos longe
da espuma dos dias, separados do plasma viscoso que abraça o quotidiano.
Estamos simultaneamente afastados de nós próprios e abrimos um momento de
lucidez, sentimos que fazemos algo que apenas nós podemos fazer e
encontramo-nos suspensos, sem fé nem medo, nessa solidão, “a nossa mais certa
glória”, da qual nos olha uma história sem actores, feita de homens sem nome e
na qual apreendemos a “solidão de todos os seres e de todas as coisas” 7,
tornando-nos conscientes do lugar dos nossos pés e do espaço que ocupamos. A
Arte aponta e ao apontar faz-nos ver: uma mão esticada, da qual seguimos a
trajectória do dedo em riste, para descobrirmos o que antes permanecia na
sombra e “revelar essa ferida secreta dos seres e das coisas” 8. Um lugar de
comunhão, que resiste à linguagem.

Reconhecemos algo, algo para o qual não possuímos uma palavra (caso a
possuíssemos, outra coisa reconheceríamos ou não necessitaríamos da arte). A
arte começa lá onde acaba a linguagem 9 e toda a linguagem ambiciona chegar
pela palavra ao que a arte segreda (sussurra, murmura, mostra….), sabendo, de
antemão, que nunca o encontrará. Tentamos levar o discurso ao limite (figuras de
estilo, novas escritas) na tentativa vã de dizer o que Lascaux ou o Grande Vidro
dão a ver. Mas a comunhão que ocorre à volta de um texto nunca será idêntica à
que tem lugar diante de uma obra de arte, dizemos uma palavra que tente ser o
que ela não pode fazer e escrevemos incontáveis páginas a tentar torná-la arte.
Mas no preciso momento em que a linguagem se torna útil toda a possibilidade de
nela haver arte desaparece e é próprio da linguagem no quotidiano estar ao
serviço; o seu material - as letras, as palavras - nasceram para servir e não são
passíveis de serem substituídas por outras, necessitam de uma forma específica

7
Jean Genet - O estúdio de Alberto Giacometti, trad. por Paulo da Costa Domingos, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1999 p. 27
8
Jean Genet - O estúdio de Alberto Giacometti, trad. por Paulo da Costa Domingos, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1999 p. 18
9
Tem aqui que ser feita aqui uma distinção entre as formas de criação como poesia e literatura
– que se distanciam do seu uso utilitário e tratam as palavras da mesma forma que um pintor
trata a tinta, que são usos artísticos e que estão excluídos da linguagem como mero utensílio.
para promoverem o entendimento. Na arte a forma renova-se a cada novo
objecto, a sua forma é esgrimida com os materiais que lhe dão a aparência
(grafite, pedra, tinta, luz, película…) e é através da manipulação destas matérias
que se abre o espaço para que a criação ocupe o seu lugar numa obra. Toda a
linguagem se encontra assente em regras, imutabilidades, contaminada pelo
utilitarismo; para que possa alguma vez ser o que a arte é ela terá de se despojar
de tudo o que faz dela mera comunicação, apropriação, manipulação (haveria
mais arte nos espaços entre as palavras ou no que resta ao
serem esquecidas ).
3 Algumas notas sobre a fotografia

“Frágeis fios destas imagens amarelecidas, convergindo para mim,


para a minha memória cansada, presos do futuro por uma breve
referência, uma nota, uma etiqueta. Terei um filho talvez. Eu lhe
contarei o que sei de vós. Mas ele o esquecerá talvez, ou o filho do meu filho, ou o
filho do filho do meu filho. Então aparecereis num recanto do sótão,
absurdos, incríveis, inquietantes, com uma face a falar
ainda, como o olhar de um cão que nos fita, nos procura, e que o
silêncio de permeio, e que um vidro de permeio separam irremediavelmente de nós. Mas
agora ainda estais vivos, ainda alguém, eu, aqui, silencioso
nesta casa solitária, vos liga a vida que freme para lá destes
muros...”

In Virgílio Ferreira - Aparição10,

3.1 Sobre a experiência da fotografia

Olhamos na parede um pedaço de papel no qual está inscrita e impressa uma


imagem. Poderá ser uma imagem de alguém que nos olha de volta parecendo
interpelar-nos ou de uma cidade deserta que nos ignora. Esquecemos então o
papel (se é que alguma vez reparamos nele), esquecemos a parede, o edifício, a
cidade, o país, a hora. Esquecemos o espaço e o tempo presentes, para nos
transportarmos para um outro espaço-tempo em consigamos ouvir ecos do lugar
e do momento em que a imagem - que nos olha de um espaço-tempo incerto - foi
extraída de um outro espaço do tempo e do tempo de um outro lugar. Aprisionada
dentro do espaço invisível da caixa negra, inscrita num suporte fotossensível para
ser posteriormente devolvida ao mundo pelo fotógrafo, a imagem adquirirá uma
nova existência e estará, aqui e agora, presente à nossa frente, aparecendo,

10
Virgílio Ferreira - Aparição, Lisboa, Bertrand Editora, 1994, p.193.
simplesmente aparecendo, mostrando, expondo. Sabemos que não temos acesso
ao momento da fotografia, esse momento está separado de nós por ruptura
intransponível (irreversível, poderíamos mesmo dizer) entre a realidade material
que lhe dá origem e o momento em que olhamos essa superfície de papel
fotossensível. Ao termos acesso à fotografia vislumbramos esse momento por um
buraco da fechadura do espaço/tempo graças a essa sensibilidade fixada por uma
“luz desenhada” (uma das traduções possíveis de Photo+graphè, no grego) e a
uma matéria inscrita pela luz. É esta a operação pela qual permanecemos ligados
a esse instante.

A folha onde se inscreve a imagem fotográfica actua como índice e remete-nos


para uma dimensão espacio-temporal distante, que se inscreveu materialmente
num suporte. Enquanto objecto, qualquer fotografia estabelece uma relação
seminal com uma parcela da realidade que terá existido. Mas não o faz do mesmo
modo que um dedo que aponta ou um bilhete de um concerto; nestes casos
podemos falar da qualidade indiciária tal como é referida por Peirce: chamamos
index a um signo “ao estar realmente e na sua existência individual conectado a
um objecto individual”11 . A fotografia, embora estabeleça uma relação da mesma
ordem, vai concretizar esta relação de uma forma mais refinada. Ela mostra de
uma forma detalhada e hiper-semelhante a realidade que a originou: mais do que
índice ela é hiper-índice, ela é construída e gerada pela realidade que figura,
permite “ao mundo que ele se celebre a si mesmo” 12 , para se instituir como
prova (eventualmente discutível, não tanto pela materialidade, mas pela
interpretação da parcialidade do visto). Ela acrescenta à sua qualidade de índice,
a de portadora de uma porção essencial do seu objecto, estabelecendo uma
relação directa com a visão de um objecto sem ser atravessada por outros
intérpretes que não o objecto que nela aparece (se excluirmos obviamente as
modulações técnicas que fazem variar o dispositivo de captação). A diferença
essencial entre as duas (entre o valor indiciário e o valor fotográfico, “hiper-
11
Charles S. Peirce - Collected papers of Charles Sanders Peirce, Vol.III, Bellknap Press of
Harvard University, 4th printing, 1974, p.414, trad. para português minha.
12
Pedro Miguel Frade - Figuras de Espanto – A fotografia antes da sua cultura, Lisboa, Edições
ASA, 1992, p.68.
indiciário”) é na relação estabelecida com o objecto original: enquanto que a
relação indiciária não exige ao seu signo que este seja inscrito pelo seu index, que
seja verdadeiramente filho dele, que o conserve em si, mas apenas que com ele
estabeleça uma relação, que seja originada por ele, a relação fotográfica implica
que um fragmento da existência do objecto se apresente perante nós, “uma
determinada foto não se distingue nunca do seu referente (…) tem qualquer coisa
de tautológico: nela um cachimbo é sempre um cachimbo infalivelmente. Dir-se-ia
que a fotografia traz sempre consigo o seu referente ambos atingidos pela mesma
imobilidade amorosa ou fúnebre...”13 (talvez venha daí o terror dos elementos de
algumas tribos em estágios mais tradicionais da civilização, como ela é entendida
por nós ocidentais, ao serem confrontados com as suas imagens ou a sua recusa
determinada em que lhes sejam “tiradas” - e atente-se a esta palavra que terá
como sinónimos roubada ou apropriada - fotografias com medo que uma parte da
sua alma lhes seja subtraída). Esta diferença pode ser compreendida se nos
reportarmos ao exemplo referido anteriormente, um bilhete de um concerto ou
um dedo que aponta: ambos necessitam da relação com o seu index para existir,
mas não foi ele que os criou, que os inscreveu com a sua essência. Uma fotografia
é marcada, inscrita, gravada pelo seu objecto, ela está em directa contiguidade
com ele e este facto eleva a relação indiciária à de uma co-criação: um objecto
que conserva diluído em si parte substancial do ente que lhe deu origem,
integrado sob a forma de uma fossilização da luz na materialidade de um suporte
ou de um acontecimento fixado num corpo, como se a fotografia fosse de algum
modo um prolongamento da natureza por outros meios. Como refere Pedro Miguel
Frade, “a fotografia, ao conceder à natureza os poderes que lhe permitiam
assumir, ela mesma, o papel da sua própria representação” parece por isso
“aumentar as possibilidades do seu cumprimento como natureza”14.

Em Walter Benjamin encontramos uma indicação de que mesmo numa imagem


que é a manifestação do real sob a forma de uma inscrição do tempo numa
superfície, essa marca do tempo contém sempre a força do único e do acaso, da
13
Roland Barthes - A Câmara clara, trad. de Manuela Torres, Lisboa, Edições 70, 1989, p. 18.
14
Pedro Miguel Frade - Figuras de Espanto – A fotografia antes da sua cultura, Lisboa, Edições
ASA, 1992, p. 68.
passagem do instante, da entropia do tempo, que abre o documento a algo que
escapa a toda a reprodução. Diz ele em “Pequena história da fotografia”, ao falar
da fotografia de Dautheney:“apesar de toda a habilidade artística do fotógrafo e
da metodologia na atitude do seu modelo, quem contempla a fotografia sente o
impulso irresistível de procurar, aqui e agora, o cintilar insignificante do acaso
com o qual a realidade, por assim dizer, ateou o carácter da imagem” 15. Esta
qualidade da fotografia permite-lhe instituir-se como documento do instantâneo:
num certo sentido, toda a fotografia é documento mas nem todo o documento é
um documento do processo do tempo, i.e., do “instantâneo”. Ora a questão que
nos interessa no fotográfico seria essa capacidade de documentar essa
instantaneidade lá onde ela manifesta a sua irredutibilidade: no absurdo, no
impossível, no inútil - na sua fatalidade:“esta fatalidade (não há foto sem alguma
coisa ou alguém) arrasta a fotografia para a desordem dos objectos – de todos os
objectos do mundo : porquê escolher (fotografar) um determinado objecto, um
determinado instante, em vez de outro?” 16. Neste contexto faz sentido pensar o
fotógrafo como o homem que escolhe o quê e como documentar, que abre o
espaço necessário para que o acaso, o imponderável se tornem verosímeis.

Para um fotógrafo, encarar o assunto de uma fotografia como algo que importa
documentar significa que a fotografia será ditada em absoluto pela exterioridade
do fotografado, do que está diante si. Serão as qualidades que tornam esse
objecto nele próprio que devem ficar registadas. A fotografia-documento resolve-
se na compreensão que o fotógrafo tem de um objecto, na sua capacidade de
encontrar as suas qualidades e especificidades escolhendo o ponto de vista,
enquadramento, foco, que determinarão a justiça do documento. Na delimitação
deste espaço de captura está sempre pressuposto um mundo de sentido onde o
fotografado adquire a sua significação. Um mesmo objecto pode ser coisas
diversas e o fotógrafo pode escolher de entre um leque de possibilidades que
pode tornar actuantes.

15
Walter Benjamim - Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, trad. de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel
Alberto, Lisboa, Relógio d'Água Editores, 1992, p. 119.
16
Roland Barthes - A Câmara clara, trad. de Manuela Torres, Lisboa, Edições 70, 1989, p. 19.
Mesmo uma objectivação documental é sempre um encontro: o fotógrafo tenta
desaparecer da fotografia para que nela encontre lugar a restituição fiel desse
algo único que determina a essência de uma situação ou acontecimento, visando
uma hipotética transparência absoluta, abandonar toda a expressão enquanto
manifestação do fotógrafo e deixar que esse lugar seja ocupado pela impressão
de uma restrita fracção do mundo que “dê a ver” - “se aceitarmos entender aqui
este verbo como o exercício inteligente do olhar” 17. Este encontro implica uma
procura activa e consciente, mesmo quando possa ser um acto passivo de
descoberta ocasional. Nesse sentido afasta-se da ideia duchampiana de rendez-
vous: trata-se, neste caso, de um encontro iniciado por uma busca que cataliza
uma acção em direcção a um objecto.

O fotógrafo que documenta é o que procura reconhecer as singularidades que


fazem nascer o sentido e constrói um forma visual onde elas se tornam não só
visíveis, mas enfáticas. Ele impõe-se ao espaço conotativo da imagem, o espaço
dos signos, procurando um espaço de pura mostração. Embora a fotografia
aparente operar uma “subtracção perceptiva da realidade”18 ao suspender as
dimensões temporal e espacial numa imobilização, na verdade ela revela na
superfície o tempo: o tempo das coisas e o tempo do fotógrafo. O congelamento
fotográfico é simultaneamente uma paragem do tempo e uma porta que se abre
para um outro tempo: as superfícies agora imobilizadas permitem a observação
de todo o tempo que passou e se imprimiu, algo impossível de observar enquanto
ele passa. A fotografia subtrai o tempo à sua passagem mas oferece ao nosso
olhar a possibilidade de ver essa passagem inscrita na imagem. A estes tempos
adicionam-se um multiplicidade de outros tempos: o tempo que demora a
impressionar a película com luz, o tempo necessário para tornar visível, um tempo
de construção de um objecto, do desenho através da luz n na materialidade
infinitamente pequena da película fotossensível. A fotografia é assim a revelação
do tempo dos acontecimentos nos espaço dos corpos que existem no mundo, que
17
Pedro Miguel Frade - Figuras de Espanto-A Fotografia antes da sua cultura, Lisboa, Edições
ASA, 1992, p.70.
18
Pedro Miguel Frade - Figuras de Espanto-A Fotografia antes da sua cultura, Lisboa, Edições
ASA, 1992, p. 94.
se transferem através da luz para o corpo superfície das imagens.

Desde o início da sua história que existiram fotógrafos que encenaram,


construíram e manipularam os assuntos das suas fotografias. Mas no momento
em que cessa o trabalho de construção e se inicia o da fotografia, na altura em
que passam para trás da máquina, todos eles se transformam no homem que
procura deixar inscrever na película a realidade, o homem que documenta.
3.2 Sobre a experiência da fotografia como arte (contemporânea).

A fotografia é uma discreta parcela da realidade, vista como percepção deficitária


que subtrai à realidade as qualidades do presente vivo e da profundidade 19, mas
que é sempre recebida como fosse testemunho verosímil dessa percepção viva.
Ao ser tomada como real ela potencia o equívoco: não porque a fotografia seja
“mentirosa” mas porque ao apresentar-se de uma forma tão contaminada pelo
real que observamos e vivemos, transforma-se em realidade ela própria e
frequentemente, incapazes de compreender o jogo fotográfico, utilizamos as
regras e ferramentas de avaliação do quotidiano vivido como base do nossa
relação com a imagem. A fotografia, no seu uso documental e testemunhal é vista
como emanação directa do referente, ligada ao real, demasiado presa à
representação e à reprodução da realidade que somos inconscientemente inibidos
de olhá-la como uma construção. O gesto mínimo que lhe dá origem (carregar no
botão), a banalidade contemporânea desse gesto 20, afasta a fotografia da reflexão
e do pensamento e coloca-a ao lado do empírico e do imediato. Confundimos a
fotografia com o seu assunto (ou com o seu sujeito) e esta desordem não nos
permite vê-la como construção.

A fotografia forma-se no espaço vedado da luz no interior da máquina, invisível e


inacessível. Este fenómeno distancia esse instante de surgimento e criação da
acção efectiva do homem: ele aparece apenas como o iniciador de um processo
que desconhece e ao qual não tem acesso, o autor do gesto que desencadeia a
19
Escreve Vilem Flusser: “as imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das
quatro dimensões espácio-temporais, para que se conservem apenas as dimensões do plano.
Devem a sua origem à capacidade de abstracção específica a que podemos chamar
imaginação” in Ensaio sobre a fotografia – para uma filosofia da técnica, Lisboa, Relógio
d'água editores, 1998, p.54.
20
Esse gesto que serve para ligar a televisão ou lançar uma bomba, atirar uma bala ou acender
uma luz e que todos podemos realizar com igual competência; como nos afirma Flusser
irónicamente, “no gesto fotográfico, uma decisão última é tomada: apertar o gatilho (assim
como o presidente americano finalmente aperta o botão vermelho)” In Ensaio sobre a
fotografia – para uma filosofia da técnica, Lisboa, Relógio d'água editores, 1998, p.54.
gestação da imagem (mas não da imagem per si) deslocando a criação do corpo
do artista para o da “caixa negra” da máquina, da qual Flusser diz tratar-se de um
“complexo “aparelho-operador”(...) demasiadamente complicado para que possa
ser penetrado (...)o que se vê é apenas o input e o output” 21. Segundo este autor
“a transformação de instrumento em máquina” altera a relação com as imagens,
agora geradas por máquinas automáticas22; já não observamos o virtuosismo da
mão ou do pensamento mas apenas a execução mecânica de um gesto. De um
ponto de vista estritamente operativo esquecemos as decisões do fotógrafo (a
construção de um ponto vista e de um olhar), vemos apenas a acção do aparelho
reduzindo o papel do fotógrafo ao de activador da máquina.

Este processo impessoal desloca a atenção do espectador da fotografia do acto


de construção da imagem e do olhar, colocando essa atenção no assunto do
fotografado e instando-o a obliterar a superfície material da fotografia, “seja o
que for que ela dê a ver e qualquer que seja a sua maneira, uma foto é sempre
invisível: não é ela que nós vemos.”.23 Nunca nos distanciamos totalmente das
questões relacionadas com as pessoas que aparecem ou com os cenários
retratados: a fotografia “garante aos espectadores que a arte não é difícil; os
temas parecem mais importantes do que a arte”24, diante de uma fotografia (de
uma obra) o espectador tende a procurar informação 25 e não uma experiência
estética de teor artístico. Um objecto fotográfico, vergado às características de
ligação a uma realidade física que se inscreve nele de um modo radicalmente
21
Vilém Flusser, -Ensaio sobre a fotografia – para uma filosofia da técnica,Lisboa,Relógio d'água
editores,1998, p.35.
22
“quando os instrumentos se transformaram em máquinas, a sua relação com o homem
inverteu-se. Antes da revolução industrial, os instrumentos cercavam os homens; depois, as
máquinas eram por ele cercadas...antes, os instrumentos funcionavam em função do homem;
depois, grande parte da humanidade passou a funcionar em função das máquinas.” in Ensaio
sobre a fotografia – para uma filosofia da técnica, Lisboa, Relógio d'água editores, 1998, p.41.
23
Roland Barthes - A Câmara clara, trad. de Manuela Torres, Lisboa, Edições 70, 1989, p. 18.
24
Susan Sontag - Ensaios sobre fotografia, trad. José Afonso Furtado, Lisboa, Pub. Dom Quixote,
1986, p. 118.
25
Escreve Flusser: “sobretudo, torna-se observável na actividade fotográfica, a desvalorização
do objecto e a valorização da informação como sede de poder.” In Ensaio sobre a fotografia –
para uma filosofia da técnica, Lisboa, Relógio d'água editores, 1998, p.48.
diferente das outras artes, indissoluvelmente ligado à caixa negra e à máquina,
longe do mundo da mão humana, parece para o espectador comum estar
afastado das qualidades que a tradição destinou à arte 26 (longa discussão sobre a
“artisticidade” da fotografia, que a animou desde as suas origens). Esta
denegação da qualidade estritamente artística da fotografia foi directamente
confrontada pelos fotógrafos que, a partir dos anos 60, escolhem apresentar a
fotografia como suporte das obras de arte contemporânea, apresentando-se como
“artistas-fotógrafos”, num mundo artístico que se afastava cada vez mais das
práticas mais realistas de representação. Esses artistas jogavam com a ideia de
que este meio “não pode encontrar alternativas à representação, como o fizeram
as outras artes. É da natureza física do próprio medium representar coisas” 27, mas
que isso é justamente aquilo que nos força a repensar o modo como construímos
as abstracções e construções com que percepcionamos o real.

O caminho que a fotografia teve que percorrer (e percorre ainda) para ser
reconhecida como arte tem sido semeado por debates e clivagens que redundam
sempre na mesma recorrência: haveria uma fotografia de fotógrafos e uma
fotografia de artistas. Continuamos ainda a distinguir entre fotógrafos e artistas
que usam a fotografia, mesmo dentro do universo de artistas consagrados,
podemos facilmente afirmar (ou melhor, a crítica continua a usar estas distinções,
altamente questionáveis, que apenas têm a ver com contextos de recepção) que

26
Nas palavras de André Bazin : "Pela primeira vez, entre o objecto originário e a sua reprodução no
espaço, apenas intervém a instrumentalidade de um agente não-vivo. Pela primeira vez uma
imagem do mundo é formada automaticamente, sem a intervenção criativa do homem. A
personalidade do fotógrafo introduz-se nos procedimentos de formação da imagem apenas na
selecção do objecto a ser fotografado e através do propósito que o anima. Apesar de o
resultado final poder reflectir algo da sua personalidade, não tem o mesmo papel que um
pintor. Todas as artes são baseadas na presença do homem, apenas a fotografia retira uma
vantagem da sua ausência. A fotografia afecta-nos como um fenómeno da natureza, como uma
flor ou um floco de neve cujas origens vegetais ou naturais são uma parte inseparável da sua
beleza." In What is cinema, trad de Hugh Gray, Berkeley and Los Angeles, University of
California Press, 2005, p.13, trad para português minha.
27
Jeff Wall - Selected Essays and interviews, Nova Iorque, The Museum of Modern Art, 2007,
p.144, trad. minha.
Andreas Gursky ou Nan Goldin serão fotógrafos e Fischl & Weiss ou Hamish Fulton
serão artistas que usam a fotografia. Ao realizarmos estas distinções estamos
também a distinguir a natureza que se deixou inscrever nos objectos fotográficos,
como se afirmássemos que na fotografia de fotógrafos, o trabalho é respeita a
neutralidade na captura do real e é uma pura imagem de conhecimento do
mundo e na fotografia de artistas, o trabalho é construído, manipulado. Não
concebemos chamar artista a alguém que aparenta ser apenas “aquele que deixa
passar a natureza”, que deixa que o real se inscreva naturalmente, que parece
ausentar-se da acção de criação e não ser o responsável pelo ganho de sentido
operado naquele objecto.

A fotografia fez a sua entrada no universo da “grande arte” contemporânea de


um modo que reforçou esta clivagem. Um conjunto de artistas nada preocupados
com a fotografia como disciplina, para quem a utilização da máquina fotográfica
era em tudo igual à utilização de um instrumento e não de uma máquina (tal
como eles são distinguidos por Flusser) descobriram na utilização da fotografia
um prolongamento das suas intenções e formas de gerar imagens e registos de
processos de intervenção e acção sobre o mundo. Frequentemente fotografia não
era a obra em si: ela funcionava apenas como imagem da obra ou como uma
registo documental de uma acção, como forma de dar a ver uma forma, um
processo, uma materialidade. O valor fotográfico acrescenta uma aura de
autenticidade ao registo da acção da arte e permite transmitir para posteridade a
efemeridade performativa. Estamos aqui a pensar em todos os artistas que nos
anos 50, 60, 70 do século XX realizaram performances, obras efémeras ou
criaram objectos onde uma conceptualização por recurso às imagens era interior
ao projecto, tornando-se em si mesma num elemento de transformação do
própria gestação da obra. Ed Ruscha, Robert Smithson, Douglas Huebler, Gordon
Matta-Clark, Richard Long, Walter DiMaria, Bruce Nauman, Dennis Oppenheim ou
Anna Mendietta, entre outros, protagonizaram a entrada da fotografia na arte
contemporânea através do reconhecimento e transformação das suas qualidades
de testemunho do real, emprestando-lhe subjectividade e desligando-a da sua
dimensão estritamente informativa, tornando-a um documento ou arquivo
paradoxal (documento e criação).

Esta transformação sempre foi tensional e paradoxal mas a presença, explicita ou


implícita, do sujeito-fotógrafo, constitui-se como decisiva na conquista de um
lugar como objecto artístico, objecto que existe intencionalmente como acto
criativo de um homem e não emanação do real. Nas palavras de Jeff Wall: “as
fotografias de Long e Nauman documentam gestos artísticos já concebidos,
acções ou “ eventos-de-estúdio” - coisas que se impõem de uma forma auto-
consciente como modelos estéticos conceptuais para o estado de coisas no
mundo, que, como tal, não precisam de aparecer directamente na imagem.” 28.
Por outras palavras, Nauman e Long ao actuarem como os criadores de uma
realidade a fotografar, fazem com que a acção da fotografia apareça como um
gesto não-artístico numa situação artística. Assim o gesto fotográfico destina-se
sobretudo a documentar performativamente um gesto artístico: mas mesmo que
não necessite de ser ele mesmo um gesto artístico para ser arte, ele é imanente
ao processo criativo. Do ponto de vista fotográfico, equacionando as variáveis
fotográficas (enquadramento, ponto de vista, foco, momento), podemos quase
dizer que qualquer fotografia em que a máquina fosse apontada ao objecto ou
situação que se desejava registar, cumpriria esse propósito. Mas para uma parte
dos artistas que usaram a fotografia converte-se num medium pleno de
propriedades expressivas próprias. A fotografia continua a ter relações tensionais com a arte
contemporânea, embora hoje existam autores como o Bernd & Hilla Becher, Stephen Shore, Andreas
Gursky ou Martin Parr, que contribuíram para anular a distinção entre esse dois usos da fotografia. No
entanto, continua a existir no meio da arte contemporânea um desconfiança em relação aos artistas que
recorrem em exclusividade quase total á fotografia, como se necessitássemos de “gestos artísticos
extra-fotográficos” para reconhecermos na fotografia, uma forma legítima de arte. Hoje, dentro da
fotografia contemporânea, encontramos autores que fabricaram um outro
caminho. No final dos anos 70, Jeff Wall, Hiroshi Sugimoto, Cindy Sherman ou
Jean-Marc Bustamante, entre outros, levaram a fotografia para outros territórios.

28
Jeff Wall, Selected essays and interviews, Nova Iorque, The Museum of Modern Art, 2007, p-
151 trad. minha.
Michael Fried no seu livro Why photography matters as art as never before 29 traça
este caminho da chegada ao universo da arte contemporânea de autores que não
usam apenas a fotografia como um suporte entre outros ou como registo
subsidiário de outros media, mas que pensam e agem dentro de questões que
emergem do processo fotográfico (interrogações que não são exclusivas das suas
obras e que podemos encontrar ao longo de toda a história da arte, mas que
estes autores representam de uma forma que só a fotografia pode colocar). Fried
coloca como marco a aderência da fotografia ao tableau, formalizada pela
impressão em grandes dimensões (a conquista do detalhe, que enquanto
fenómeno faz a sua aparição apenas no momento que a imagem adquire a sua
escala expositiva) e por terem sido realizadas para a parede da galeria ou do
museu. A fotografia separou-se do pequeno formato, das relações estabelecidas
com um espectador de cada vez que segura a imagem na sua mão e de uma
ideia de captação da realidade enquanto instantâneo (ou verdade).

As fotografias conquistaram então o lugar da contemplação reservado à obra de


arte: libertam-se da tirania da referente ou mantém com ele uma relação crítica e
passam a beneficiar da autonomia e da auto-referialidade de que gozam os
objectos artísticos. Essa relação com o espectador da arte tornou-se decisiva para
a fotografia ou para um tipo de fotografia - o próprio Fried menciona no início do
seu livro que apenas vai tratar de “um único regime do fotográfico” 30: fotógrafos
que de uma maneira ou de outra realizam trabalhos relacionados com o “Ser do
fotográfico”, trabalhos com um carácter ontológico, que instauram uma relação
seminal com a nossa visão do objecto fotográfico per si. Esta “nova” fotografia
encontra-se no centro das discussões da crítica de arte actual. A sua difícil
categorização, derivada da sua natureza paradoxal (é representação, mas
também apenas “apresentação”, devido ao seu carácter hiper-indiciário), o seu
estatuto de objecto artístico, está constantemente posto em causa: em qualquer
fotografia podemos encontrar, em fractura exposta, uma dúvida lançada sobre a

29
Michael Fried – Why photography matters as art as never before, New Haven and London, Yale
University Press, 2008.
30
Michael Fried - Why photography matters as art as never before, New Haven and London, Yale University Press, 2008,
p. 2.
posição da fotografia e da imagem na arte contemporânea . Walter Benn Michaels
citado por Michael Fried sintetiza: “ a questão sobre a pintura – é uma pintura ou
é um objecto? - torna-se a questão da fotografia, não tanto por uma fotografia
poder ser tomada como sendo um objecto da fotografia de... mas por não poder
ser tomada como sendo uma imagem de um objecto do qual é a fotografia. Esta é
a questão... do fóssil31. Nós não experienciamos o fóssil como um trilobito, mas
também não o experienciamos como sendo a imagem de um trilobito. E se
pensarmos a fotografia segundo o modelo do fóssil não podemos ter como
garantido o seu estatuto como objecto artístico. “ 32. A discussão teórica promete
alongar-se nos próximos tempos, embora isso nunca vá impedir as fotografias de
serem arte (sejam elas de fotógrafos, de escultores, de pintores, de video-artistas,
de artistas conceptuais, sejam fotografias analógicas ou digitais). A questão é a
seguinte: a fotografia não é representação de um objecto, nem ela mesma um
objecto, não é nem um simples índice nem um puro símbolo, não é nem um
artefacto extra-artístico nem uma obra de arte, não é nem um acontecimento
congelado no tempo nem uma construção artificiosa do real, mas é a zona
instável onde estas divisões se tornam problemáticas e pensantes, onde estas
distinções estão em aberto e são permanentemente redistribuídas.

31
Esta comparação da fotografia ao fóssil é referente às palavras de Hiroshi Sugimoto na brochura History is History,
(New York, 2005), que acompanha a sua exposição com o mesmo título na Japan Society Gallery, New York, 2005-
2006.
32
Michael Fried - “Why photography matters as art as never before”,New Haven and London, Yale University Press,
2008, p. 336
4 Bilbiografia

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Lisboa, Relógio d´Àgua, 1992.

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